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Processo nº 24/2021 Data: 28.04.2021
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Procedimento disciplinar.
Direito disciplinar.
Infracção disciplinar.
Acusação (Requisitos).
“Dever de zelo”.



SUMÁRIO

1. A “decisão” de aplicação de uma “pena disciplinar” – pela prática de uma “infracção disciplinar”, (cfr., art. 281°) – é o culminar de todo um “procedimento” – o chamado “processo disciplinar”; (cfr., art. 325° e segs.) – que, (como não podia deixar de ser), não se afasta da definição legal – de procedimento administrativo – constante do art. 1° do C.P.A..

Porém, o “Direito disciplinar” é um ramo específico, dotado de (relativa) autonomia própria, constituindo um sub-ramo do Direito Administrativo.

2. Nos termos do art. 281° do E.T.A.P.M.:
“Considera-se infracção disciplinar o facto culposo, praticado pelo funcionário ou agente, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais a que está vinculado”.

A “atipicidade” que caracteriza a “infracção disciplinar”, (em contraposição com o “ilícito penal”), não dispensa a verificação – cumulativa – dos seguintes elementos “essenciais”: a (clara e concreta) “conduta do funcionário” com a “descrição, por artigos dos actos cuja prática é imputada ao arguido”, (cfr., art. 332°, n.° 2, al. b) do E.T.A.P.M.); o “carácter ilícito” desta, (por inobservância ou violação de algum dos deveres funcionais); o “nexo de imputação” que se traduz na censurabilidade da conduta a título de “dolo” ou de “negligência”, sendo, que na falta de qualquer destes elementos, não há infracção disciplinar, cabendo sublinhar, igualmente, que o referido “elemento subjectivo” (da conduta), constitui “matéria de facto” que deve constar da “factualidade” descrita em sede da “acusação”, e, se provada, da “decisão da matéria de facto” do “relatório final”.

Na acusação devem constar “factos objectivos e concretos”, (para que se possa, ainda que por via de ilação, concluir pela ilicitude da conduta do arguido e a sua culpa), e não “conclusões de facto”, (ou juízos conclusivos), não se podendo considerar como integrando uma “infracção disciplinar”, uma “acção” que, pelos termos “vagos”, “abstractos” ou “subjectivos” em que é descrita, não permite concluir pela infracção de algum dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função exercida.

3. Não se olvida que a uma “acusação” deduzida em sede de um “processo disciplinar”, não se aplicam, exactamente, os mesmos requisitos para tal (e sob pena de nulidade) previstos em processo penal, (cfr., art. 265°, n.° 2 do C.P.P.M.), e que a uma “decisão final” neste procedimento proferida, não se exigem, igualmente, os “formalismos” próprios de uma “sentença” (ou Acórdão em processo) penal; (cfr., art°s 355° a 358° do referido C.P.P.M.).

Porém, dada a sua evidente “analogia”, e sendo que nos termos do art. 277° do E.T.A.P.M., ao “regime disciplinar” aplicam-se, supletivamente, as normas de Direito Penal, fundamental e imprescindível é o (rigoroso) respeito de um mínimo de formalidades processuais e de pressupostos substanciais para que se possa considerar, como se pretende, um “processo justo e leal”.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 24/2021
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), com os restantes sinais dos autos, recorreu contenciosamente para o Tribunal de Segunda Instância do despacho pelo SECRETÁRIO PARA A ECONOMIA E FINANÇAS em 27.09.2019 proferido, com o qual, na parcial procedência do seu recurso hierárquico, se decidiu alterar a decisão recorrida, reduzindo-se a pena disciplinarmente aplicada para a de multa de 15 dias de vencimento; (cfr., fls. 2 a 11 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Em sua apreciação, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 29.10.2020, (Proc. n.° 1212/2019), concedendo provimento ao recurso.

Entendeu-se, em síntese, que a decisão punitiva recorrida padecia do “vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto”, decidindo-se, assim, pela sua anulação “nos termos do artº 124º do CPA. (…)”; (cfr., fls. 66 a 74-v).

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Inconformada, a entidade administrativa recorreu pugnando pela legalidade da sua decisão.

Nas suas alegações, e tanto quanto se consegue alcançar e de útil extrair, verifica-se que se limita a alegar que a sua decisão não merece censura, afirmando, a final, que: “o acto recorrido não padece do vício de erro nos pressupostos de facto que conduz à anulação nos termos do art.º 124.º do CPA, pelo que deve ser anulado o acórdão recorrido por padecer dos vícios de erros no reconhecimento de facto e na aplicação da lei”; (cfr., fls. 82 a 90 e 4 a 26 do Apenso).

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Após resposta da agora recorrida, batendo-se pela improcedência do recurso, (cfr., fls. 92 a 98), vieram os autos a este Tribunal de Última Instância.

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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer pugnando no sentido de se dever negar provimento ao recurso; (cfr., fls. 109 a 110-v).

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Nada obstando, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Eis o que do Acórdão agora recorrido se fez constar em sede da “decisão sobre a matéria de facto”:

“1. Relativamente à conduta de “induzir o queixoso a cancelar a queixa”
(i) A recorrente negou ter cometido a conduta de induzir e, declarou solenemente na sua contestação escrita que nunca tinha pedido ou proposto ao queixoso, de forma expressa ou implícita, o cancelamento da sua queixa; e, indicou que desta gravação do encontro resulta claro que o queixoso, por sua iniciativa, pediu à recorrente para prestar assistência à elaboração de uma declaração de cancelamento, então, a recorrente, a pedido do queixoso e segundo a sua vontade, prestou assistência à colaboração de uma declaração de cancelamento (fls. 101 dos autos).
(ii) Mas, após o exame da gravação do encontro efectuado entre a recorrente e o queixoso, a partir do início da gravação até ao queixoso dizer à recorrente “faça o que sugere” (na gravação de 13 de Fevereiro, pelas 17:13:34 horas), tanto a recorrente como o queixoso, ambos não manifestaram a intensão de cancelamento da queixa, e durante o encontro, o queixoso perguntou, por várias vezes, se ainda existia outra maneira para reclamar; mas, naquela altura, quanto à resposta dada pela recorrente ao queixoso, disse naturalmente: “então, vou ajudá-lo a cancelar isto” (na mesma gravação, pelas 17:13:36 horas). Segundo este diálogo, há fundadas razões para fazer crer que a recorrente propôs ao queixoso o cancelamento da queixa. Mais, essencialmente com base neste diálogo, a DSAL deu como provado que a recorrente tinha cometido a conduta de induzir o queixoso.
(iii) Na sua declaração ou contestação escrita, a recorrente alegou ter sabido que o inspector não pode induzir o queixoso a cancelar a queixa (fls. 51 e 99).
(iv) As testemunhas, da carreira de inspector, não tinham certeza se existe orientações por escrito, mas, declaram que o tratamento de conflitos laborais é o dever devido dos inspectores, então, cada inspector deve saber que não pode induzir o queixoso a cancelar a queixa.
(v) Depois de analisados todos os pontos acima expostos, nomeadamente o diálogo da gravação e a declaração da recorrente, há fundadas razões para crer que a recorrente cometeu a conduta de “induzir o queixoso a cancelar a queixa”, e tal conduta violou os deveres que os inspectores devem cumprir. Sendo assim, a decisão da aplicação da pena de multa pelo Sr. Director da DSAL à recorrente é fundamentada na factualidade, ao invés do alegado pela recorrente que a DSAL não tem provas precisas para comprovar que a mesma cometeu o erro”; (cfr., fls. 70-v a 71).

Do direito

3. Como resulta do que até aqui se deixou relatado, vem interposto recurso do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, como se referiu, concedeu provimento ao anterior recurso contencioso da ora recorrida, decidindo pela anulação do acto administrativo punitivo aí objecto de recurso.

Para boa – melhor – compreensão dos motivos do assim entendido e decidido, vale a pena atentar no que se considerou no Acórdão recorrido para se chegar à dita solução.

Na parte que agora interessa, tem o veredicto recorrido o teor seguinte:

“Nas suas alegações e conclusões de recurso imputa a Recorrente ao acto impugnado o vício de violação de lei, seja por violação dos pressupostos de facto em que assenta que entende que não correspondem à verdade seja porque entende que a sua actuação não violou o dever de zelo a que estava obrigada.
Vejamos então.
O vício de violação de lei «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis» - Cit. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 4ª Ed., Vol. II, pág. 350.
«O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. A ofensa não se verifica aqui nem na competência do órgão, nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste, nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objecto do ato.
Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre a decisão tomada ou os efeitos de direito determinados pela Administração e o que a norma ordena.
(…)
A violação de lei, assim definida, comporta várias modalidades:
a) A falta de base legal, isto é, a prática de um ato administrativo quando nenhuma lei autoriza a prática de um ato desse tipo;
b) O erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas;
c) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo;
d) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do objecto do acto administrativo;
e) A inexistência ou ilegalidade dos pressupostos, de facto ou de direito, relativos ao conteúdo ou ao objecto do acto administrativo:
f) A ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do ato – designadamente, condição, termo ou modo -, se essa ilegalidade for relevante, nos termos da teoria geral dos elementos acessórios;
g) Qualquer outra ilegalidade do acto administrativo insusceptível de ser reconduzida a outro vício. Este último aspecto significa que o vício de violação de lei tem um carácter residual, abrangendo todas as ilegalidades que não caibam especificamente em nenhum dos outros vícios.» - Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit. pág. 351 a 353 -.
Quanto ao erro nos pressupostos.
Toda a factualidade que fundamenta a punição assenta no pressuposto de que a Recorrente informando o cidadão de que a sua pretensão dificilmente procederia induziu-o a desistir da queixa.
Do ponto (ii) da factualidade apurada consta que se concluiu que a agora Recorrente induziu o queixoso a desistir da queixa porque aquele disse “faça o que você sugere” (gravação 13.02 às 17.13.34) e a funcionária agora Recorrente responde “então, vou ajudá-lo a cancelar isto” (gravação 13.02 às 17.13.36).
Facto é uma acção ou acontecimento ocorrido.
A enumeração dos factos provados numa decisão deve conter/descrever as acções e os acontecimentos realizados de uma forma cronológica de modo a que um sujeito normal possa ter a percepção da situação real, isto é, a situação da vida e histórica, que fundamenta a decisão.
Salvo melhor opinião o elenco dos factos constantes do parecer que fundamenta a decisão recorrida não é bastante para o efeito.
Ali se haveria de ter descrito toda a situação - as acções e acontecimentos, subjacentes à situação dos autos -, nomeadamente que foi apresentada uma queixa, que no seguimento daquela foi realizada uma reunião que no decorrer dessa reunião foi dito isto e aquilo.
Dos factos deve também constar o elemento subjectivo, ou seja, a intenção com que se actuou.
Com base nesses factos se haveria depois de concluir se a Recorrente induziu o queixoso a desistir da queixa contra a vontade deste e se o fez com a vontade de não actuar como lhe era exigido ou admitindo que não estava a actuar como lhe era exigido – dolo ou negligência -.
Isto é, era necessário que fosse descrita a conduta – as acções e acontecimentos que historicamente ocorreram – e a intenção com que essa conduta foi realizada.
Induzir a praticar ou a consentir num resultado que não se desejava é uma conclusão que se retira dos factos descritos.
No caso em apreço havia que se ter descrito todos os factos que nos permitissem com a segurança jurídica necessária concluir que com a sua conduta a Recorrente induziu, constrangeu, o cidadão a desistir da queixa sem que fosse da sua vontade fazê-lo.
Da factualidade descrita remetendo-se para a gravação diz-se que às 17.13.34 o cidadão queixoso diz “faça o que você sugere”, às 17.13.36 a funcionária diz “então, vou ajudá-lo a cancelar isto” e depois diz-se que a conduta foi de induzir o queixoso a desistir da queixa. Mais se diz que tanto a Recorrente como o queixoso, ambos não manifestaram a intenção de cancelamento da queixa e que o queixoso perguntou várias vezes se ainda existia outra maneira para reclamar.
Ora, a factualidade descrita não é suficiente para se concluir que houve intenção de induzir o queixoso a desistir da queixa.
Basta atender ao pormenor de que até então ambos não falaram em desistência de queixa, pelo que, se até ali não se falou de desistência de queixa não houve qualquer indução ou sugestão da Recorrente nesse sentido.
Concluir a partir daqui que a atitude da funcionária foi a de pressionar, instigar, constranger à desistência da queixa não tem apoio na factualidade descrita.
Para se concluir pelo incitamento é preciso mais do que indagar “então vou ajudá-lo a cancelar isto?” em resposta a uma afirmação do “suposto” incitado que afirma espontaneamente “faça o que você sugere” e que vem a assentir no cancelamento.
Nas suas alegações e conclusões de recurso a Recorrente ataca a decisão recorrida indicando que o resulta da gravação às 17.13.34 e 17.13.36 não permite dar como provado que a Recorrente induziu o queixoso a desistir da queixa, o que se comprova, seja pelo visionamento da gravação nesse segmento, seja pelas razões supra expostas.
Da visualização e audição da gravação o que resulta é a interpretação dos factos agora indicada em que é o queixoso quem espontaneamente pede à funcionária para fazer o que entender uma vez que em face das explicações conclui não ter razão1.
Destarte, impõe-se concluir que a decisão recorrida não tem factos suficientes para inferir pelo alegado incitamento à desistência de queixa e subsequente violação do dever de zelo.
(…)”; (cfr., fls. 71 a 74).

Em face do até aqui exposto, adequadas se apresentam desde já as considerações que se seguem.

Nos termos do art. 280°, n.° 1 do E.T.A.P.M. (aprovado pelo D.L. n.° 87/89/M de 21.12): “Os funcionários e agentes são disciplinarmente responsáveis perante os seus superiores hierárquicos pelas infracções que cometam, desde a data da posse ou, se esta não for exigida, desde a data da assinatura do contrato ou do início de funções”.

Por sua vez, estatui o art. 281° do mesmo diploma que:

“Considera-se infracção disciplinar o facto culposo, praticado pelo funcionário ou agente, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais a que está vinculado”.

E, em relação às “penas disciplinares” aplicáveis às “infracções disciplinares” (cometidas) assim prescreve o art. 300°, n.° 1:

“1. As penas aplicáveis aos funcionários e agentes pelas infracções disciplinares que cometerem, são:
a) Repreensão escrita;
b) Multa;
c) Suspensão;
d) Aposentação compulsiva;
e) Demissão”.

Porém, como se mostra óbvio, a “decisão” de aplicação de uma “pena disciplinar” – pela prática de uma “infracção disciplinar”, (cfr., art. 281°) – é o culminar de todo um “procedimento” – o chamado “processo disciplinar”; (cfr., art. 325° e segs.) – que, (como não podia deixar de ser), não se afasta da definição legal constante do art. 1° do C.P.A., onde se prescreve que:

“1. Entende-se por procedimento administrativo a sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da Administração Pública, ou à sua execução.
2. Entende-se por processo administrativo o conjunto de documentos em que se traduzem os actos e formalidades que integram o procedimento administrativo”.

Ora, tendo-se em conta que o “Direito disciplinar” é um ramo específico, dotado de (relativa) autonomia própria, (constituindo um sub-ramo do Direito Administrativo), e encontrando-se, como se viu, especialmente previsto no já referido E.T.A.P.M., vejamos.

Pois bem, ponderando na “questão” que importa apreciar e decidir nos presentes autos, (e para não nos alongarmos), mostra-se, desde já, de se atentar no estatuído no art. 332°, n.° 2 do dito E.T.A.P.M., onde – sob a epígrafe “arquivamento ou acusação”, e regulamentando o que poderíamos chamar de “requisitos da acusação” (em procedimento disciplinar) – se prescreve que:

“1. (…)
2. Não se verificando os pressupostos referidos no número anterior, o instrutor deduz, no prazo de 10 dias, a acusação, articulando, discriminadamente:
a) A identificação do arguido e a indicação da respectiva categoria, carreira e vínculo funcional, quadro de pessoal a que pertence e serviço onde está colocado;
b) A descrição, por artigos, dos actos cuja prática é imputada ao arguido e que integram a violação dos deveres infringidos, indicando o lugar, o tempo, a motivação para a respectiva prática, o grau de participação que o arguido teve e quaisquer circunstâncias agravantes ou atenuantes relevantes para determinar a pena aplicável;
c) A menção da delegação de competência para aplicar a pena disciplinar, quando exista, ainda que publicada no Boletim Oficial;
d) A indicação da disposição ou das disposições legais infringidas pela prática de cada um dos actos articulados;
e) A indicação da pena ou penas aplicáveis a cada uma das infracções imputadas ao arguido.
(…)”.

Com efeito, a “atipicidade” que caracteriza a “infracção disciplinar”, (em contraposição com o “ilícito penal”), não dispensa a verificação – salienta-se, cumulativa – dos seguintes elementos, que, por isso, lhe são “essenciais”: a (clara e concreta) “conduta do funcionário” com a “descrição, por artigos” dos, no atrás transcrito art. 322°, n.° 2, al. b) referidos “actos cuja prática é imputada ao arguido”; o “carácter ilícito” desta, (por inobservância ou violação de algum dos deveres funcionais); o “nexo de imputação” que se traduz na censurabilidade da conduta a título de “dolo” ou de “negligência”, sendo, que na falta de qualquer destes elementos, não há infracção disciplinar, cabendo sublinhar, igualmente, que o referido “elemento subjectivo” (da conduta), constitui “matéria de facto” que deve constar da “factualidade” imputada (descrita) em sede da “acusação”, e, se provada, da “decisão da matéria de facto” do “relatório final”, pois que se tem por inquestionável que, para se processar (legalmente) – no caso – um funcionário público por determinada infracção disciplinar, na acusação devem constar “factos objectivos e concretos”, (para que se possa, ainda que por via de ilação, concluir pela ilicitude da conduta do arguido e a sua culpa), e não “conclusões de facto”, (ou juízos conclusivos), não se podendo considerar como integrando uma infracção disciplinar, uma “acção” que, pelos termos “vagos”, “abstractos” ou “subjectivos” em que é descrita, não permite concluir pela infracção de algum dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função exercida.

Não se olvida que a uma “acusação” deduzida em sede de um “processo disciplinar”, não se aplicam, exactamente, os mesmos requisitos para tal (e sob pena de nulidade) previstos em processo penal, (cfr., art. 265°, n.° 2 do C.P.P.M.), e que a uma “decisão final” neste procedimento proferida, não se exigem, igualmente, os “formalismos” próprios de uma “sentença” (ou Acórdão em processo) penal; (cfr., art°s 355° a 358° do referido C.P.P.M.).

Porém, dada a sua evidente “analogia”, e sendo que nos termos do art. 277° do E.T.A.P.M., ao “regime disciplinar” aplicam-se, supletivamente, as normas de Direito Penal, fundamental e imprescindível é o respeito de um mínimo de formalidades processuais e de pressupostos substanciais para que se possa considerar um “processo justo e leal” que, como se apresenta óbvio, não pode deixar de ser.

Aqui chegados, e feitas as considerações que antecedem, quid iuris?

Pois bem, sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido diverso, cremos que a “instrução” do “processo disciplinar” a que os presentes autos de recurso dizem respeito, não constitui, (infelizmente), um bom exemplo do que aquela fase processual deve constituir.

Como se vê do que se deixou relatado, a decisão punitiva “objecto do anterior recurso contencioso” deu como verificada a violação por parte da arguida, ora recorrida – uma funcionária do Departamento da Inspecção do Trabalho da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais – do seu “dever de zelo”, dado que se considerou que sugeriu, (indevidamente), a um “queixoso”, (trabalhador), que viabilidade não tinha a sua pretensão e que melhor seria a “desistência do procedimento” que pretendia levar a cabo contra a sua entidade empregadora, o que veio a suceder.

Porém, não obstante a (eventual) “impressão (negativa)” com que se possa ficar da referida “conduta”, importa reflectir sobre a dita “instrução” levada a cabo no âmbito do processo disciplinar em questão.

Começando-se pela “acusação”, (e que se mostra junta a fls. 74 a 85 do dito processo disciplinar, agora em apenso), cabe dizer que a mesma se apresenta (bastante) mais próxima de um “expediente” onde, entre afirmações abstractas, mais ou menos vagas, tecem-se comentários e justificações de vária ordem, confundindo-se “factos indiciados” com declarações prestadas e com os motivos de se terem aqueles como tal, tudo numa muito pouco feliz “amálgama” que se estende por (mais que) 11 páginas, distribuídas por “66 números”…

Ora, como se disse, (e agora repete-se), de exigir não é o formalismo (e o rigor) devido e próprio de um “processo de natureza penal”, havendo-se que que compreender que, como é normal e natural, os intervenientes processuais têm “estilos próprios”, apresentando-se-nos, porém, e mesmo assim, que o caso dos autos está (muito) longe do que seria (minimamente) adequado e desejável.

O mesmo se mostra de dizer a respeito do “relatório final” que foi (necessariamente) “contaminado” pela (deficiente) acusação antes deduzida e que levou à decisão do Director dos Serviços datada de 12.08.2019, onde se considerou verificada a prática de 2 infracções disciplinares, (cfr., fls. 110 a 128), e que, posteriormente, em sede do seu recurso hierárquico, deu lugar à decisão do Secretário para a Economia e Finanças de 27.09.2019, que o julgou parcialmente procedente, mantendo apenas uma das infracções, e reduzindo, como se referiu, a pena aplicada (de 30) para 15 dias de multa; (cfr., fls. 159 a 163).

E, sendo esta última a “decisão” anulada com o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância agora recorrido, cremos que visto está que não se pode reconhecer razão à ora recorrente.

Com efeito, (e independentemente do demais), mostra-se de subscrever as doutas considerações pelo Ministério Público tecidas em sede do seu Parecer junto aos autos, e do qual, pela sua clareza e assertividade, se apresenta de aqui transcrever, (especialmente) nos excertos seguintes:

“(…)
No caso, foi imputada à Recorrente contenciosa a violação do dever de zelo, o qual, como resulta do n.º 4 do artigo 279.º do ETAPM, «consiste em exercer as suas funções com eficiência e empenhamento e designadamente, conhecer as normas legais e regulamentares e as instruções dos seus superiores hierárquicos, bem como possuir e aperfeiçoar os seus conhecimentos técnicos e métodos de trabalho».
Não se vê, todavia, que, de alguma forma, a conduta da Recorrente contenciosa consubstancie uma violação de tal dever e, portanto, seja jurídico-disciplinarmente relevante.
A questão, se bem a equacionamos, não está em saber se a Recorrente contenciosa, na qualidade de inspectora da Direcção dos Serviços dos Assuntos Laborais induziu ou não um cidadão a desistir de uma queixa que ali apresentou contra a sua entidade patronal. O ponto, se não estamos enganados, é outro.
Com efeito, para que se demonstrasse que, quando disse ao cidadão queixoso que, no seu entender, a queixa que o mesmo apresentou não tinha subsistência, e, desse modo, fez com que, seguindo tal opinião, aquele tenha acabado por desistir dessa queixa, a Recorrente contenciosa, com tal conduta, violou o dever de zelo, necessário seria que tal actuação fosse demonstrativa (i) de um desconhecimento ou, pelo menos, de uma interpretação errónea das normas legais ou regulamentares aplicáveis, ou (ii) de uma incompleta ou negligente apreciação dos factos por errada ou apreciação dos mesmos ou incompleta instrução, de tal maneira que se pudesse concluir que o entendimento manifestado pela Recorrente contenciosa ao dito cidadão queixoso não tinha sustentação ou que era de base legal ou factual duvidosa e que, portanto, ela se devia ter coibido de o expressar, num primeiro momento ou, depois, devia ter feito com que a queixa fosse mantida, obstando à respectiva desistência.
(…)
O certo, porém, é que nada do que referimos se demostrou ou ficou sequer a constar da fundamentação do acto punitivo.
(…)
Pelo que vimos de dizer, consideramos que bem andou a douta decisão recorrida ao anular o acto administrativo recorrido não devendo a mesma, por isso, merecer qualquer censura desse Tribunal de Última Instância.
(…)”; (cfr., fls. 109-v a 110-v).

Ora, em face do exposto, adiantada (e explicada) está a solução que se mostra de adoptar.

De facto, e como para efeitos da decisão disciplinar em questão se ponderou, nos termos do art. 7°, n.° 3, do Regulamento Administrativo n.º 12/2016, (“que estatui sobre a Organização e funcionamento da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais”, in B.O. n.° 21 de 23.05.2016):

“1. Compete ao Departamento de Inspecção do Trabalho, designadamente, fiscalizar e desenvolver acções de sensibilização no âmbito das relações e condições de trabalho, e instaurar os procedimentos legais sobre as infracções verificadas neste âmbito, tratar os pedidos de licenciamento das agências de emprego e efectuar a fiscalização sobre essas agências, bem como controlar o funcionamento da conta bancária referida no Regulamento Administrativo n.º 26/2008 (Normas de funcionamento das acções inspectivas do trabalho).
2. O Departamento de Inspecção do Trabalho compreende:
1) A Divisão de Licenciamento e de Apoio Técnico;
2) A Divisão das Relações Laborais;
3) A Divisão de Protecção da Actividade Laboral;
3. Compete à Divisão de Licenciamento e de Apoio Técnico, designadamente:
1) Analisar e tratar os pedidos de licenciamento das agências de emprego e fiscalizar o cumprimento das leis e dos regulamentos daquela área;
2) Emitir pareceres e prestar apoio técnico sobre questões na área da inspecção do trabalho;
3) Prestar serviços de consulta jurídica na área do trabalho, receber queixas e proceder à análise preliminar;
4) Promover e divulgar leis e diplomas na área do trabalho;
5) Ordenar e elaborar a informação e os dados do Departamento de Inspecção do Trabalho.
(…)”.

In casu, o que (objectivamente) dos autos resulta, é que a ora recorrida, ponderando nos termos da “queixa” (antes) apresentada sobre uma alegada falta de pagamento de um “bónus” de trabalho ao queixoso, e considerando as declarações pela entidade empregadora posteriormente prestadas, e no teor da cópia do “contrato de trabalho” em questão por esta apresentada e que juntou ao processo – onde, se justificou que, na situação em causa, completado não estava o período de tempo de trabalho mínimo necessário para o pagamento de tal bónus – terá manifestado a sua opinião sobre o “mérito” da pretensão apresentada.

E, nesta conformidade, em nossa opinião, apresenta-se-nos até que, (pelo menos, formalmente), observado foi o estatuído no transcrito art. 7°, n.° 3, al. 2 e 3, do atrás transcrito comando do Regulamento Administrativo n.º 12/2016, pelo que, sem que devida e completamente apurado e claramente provado esteja que a mesma recorrida agiu, “erradamente”, e, com “dolo” ou “negligência”, (totalmente) prematura e injustificada se apresenta a sua punição.

Dest’arte, imperativa se apresenta a decisão que segue.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Sem tributação, (dada a isenção).

Registe e notifique.

Macau, aos 28 de Abril de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

1 Opinião esta, veiculada pela funcionária que posteriormente e pelos seus superiores vem a ser confirmada como estando certa.
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