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Processo nº 40/2021 Data: 05.05.2021
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “burla informática”.
Vícios da decisão da matéria de facto.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Contradição insanável da fundamentação.
Elementos (e características) do tipo de crime de “burla informática”.
Erro no enquadramento e qualificação jurídico-penal da matéria de facto provada.
Absolvição.



SUMÁRIO

1. O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre “toda a matéria objecto do processo”.

O aludido vício apenas existe se houver “omissão de pronúncia” sobre “factos relevantes”, e os “factos provados” não permitirem uma boa e sã aplicação do direito ao caso submetido a julgamento.

A dita “insuficiência” não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devem suportar a matéria de facto, em causa estando antes, o “elenco” desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, mas por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver.

Nenhuma “insuficiência” existe se o Tribunal emitiu expressa e clara pronúncia sobre todos os “factos” constantes da acusação pública deduzida (e do pedido civil pela assistente enxertado nos autos), pronunciando-se, assim, como lhe competia, sobre todo o “objecto do processo”, justificando os motivos da sua convicção e decisão, evidente se mostrando que nenhuma “matéria de facto (relevante)” ficou por apurar.

2. Apenas existe “contradição insanável da fundamentação” quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada, ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados.

Há assim “contradição entre os fundamentos e a decisão” quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada, e há “contradição entre os factos” quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.

Verificando-se que a “decisão condenatória” com a qual não se conforma o ora recorrente é totalmente “inteligível”, não padecendo, em parte alguma, de juízos ou afirmações antagónicas ou inconciliáveis, nenhum reparo, por “contradição”, merece.

Pode-se, como é óbvio, discordar do decidido…

Porém, como cremos que nenhuma dúvida suscita, tal “discordância” não se identifica com nenhum dos “vícios da decisão da matéria de facto” a que se refere o art. 400°, n.° 2, al. a), b) e c) do C.P.P.M..

3. O crime de “burla informática” caracteriza-se como um crime de “execução vinculada”, no sentido de que a lesão do património se produz através da “intrusão, interferência e utilização (em certos termos) dos sistemas e meios informáticos”, sendo também um crime de “resultado parcial ou cortado”, “exigindo-se que seja produzido um prejuízo patrimonial de alguém”.

Esta “dimensão típica”, remete, pois, para a realização de actos e operações (específicas) de “intromissão e interferência” em “programas ou utilização de dados” (nos quais está presente), e aos quais, está subjacente algum modo de “engano”, “fraude” ou “artifício” que tenha a finalidade (ou através da qual se realiza) a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, causando prejuízo patrimonial a terceiros.

4. Se percorrendo e analisando toda a decisão da “matéria de facto dada como provada” se vier a verificar, (relativamente ao ora recorrente), que em parte alguma dela se descreve, de forma minimamente concreta e objectiva, qualquer tipo de “intervenção” ou “participação” do mesmo no “projecto criminoso” consistente na prática de qualquer dos actos materialmente tipificados nas várias alíneas do n.° 1 do art. 11° da Lei n.° 11/2009 – que prevê o crime de “burla informática” – para que se possa decidir no sentido da sua condenação a título de “co-autor”, (ou “cúmplice”), impõe-se revogar a decidida condenação com a sua consequente absolvição.

A mera referência – em abstracto – à sua “ajuda” e ao “prejuízo que causou”, sem a mínima concretização (e densificação) em “actos concretos e materiais”, (com explicitação do que a mesma consistiu), apresentam-se (tão só e unicamente) como “juízos (meramente) conclusivos”, insusceptíveis de servirem para a subsunção dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de “burla informática”.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 40/2021
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação do Ministério Público e em audiência colectiva no Tribunal Judicial de Base, responderam, como (3° e 4°) arguidos, A (甲) e B (乙), com os restantes sinais dos autos; (cfr., fls. 432 a 434 e 790 a 792 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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A final do julgamento, e na total procedência da dita acusação, decidiu-se condenar os ditos arguidos como co-autores materiais da prática de 1 crime de “burla informática (de valor consideravelmente elevado)”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1, al. 1) e n.° 3, al. 2) da Lei n.° 11/2009, em conjugação com o art. 196°, al. b) do C.P.M., na pena (individual) de 4 anos de prisão, assim como no pagamento solidário (com os outros 1° e 2° arguidos) da quantia de MOP$4.448.483,48, à assistente “C”, (“丙”); (cfr., fls. 833 a 841).

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Do assim decidido, recorreram os ditos (2) arguidos e o Ministério Público para o Tribunal de Segunda Instância.

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Por Acórdão de 17.12.2020, (Proc. n.° 1201/2019), negou-se provimento ao recurso dos arguidos, concedendo-se provimento ao do Ministério Público, e, alterando-se a decisão recorrida em conformidade, condenou-se os referidos arguidos na pena (individual) de 5 anos de prisão; (cfr., fls. 1145 a 1175).

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Inconformados, trazem os referidos (2) arguidos os presentes recursos para este Tribunal; (cfr., fls. 1217 a 1222 e 1226 a 1240).

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Em Resposta, foi o Ministério Público de opinião que os recursos não mereciam provimento; (cfr., fls. 1247 a 1250-v).

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Em sede de vista, considerou também o Exmo. Representante do Ministério Público que censura não merecia o Acórdão recorrido; (cfr., fls. 1271).

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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados e constantes do Acórdão do Tribunal Judicial de Base e do Tribunal de Segunda Instância que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (e que, mais adiante, se fará adequada referência para efeitos de apreciação e decisão das questões colocadas).

Do direito

3. Insurgem-se os identificados (3° e 4°) arguidos/recorrentes, A e B, contra o decidido pelo Tribunal de Segunda Instância que, como se deixou relatado, negando provimento aos recursos que tinham interposto (do Acórdão do Tribunal Judicial de Base), e concedendo provimento ao recurso do Ministério Público, alterou – agravou – a pena (individual) de 4 anos de prisão que lhes tinha sido decretada, impondo-lhes a de 5 anos de prisão.

Entende, tão só, o (3°) arguido A, que “excessiva” é a pena aplicada.

Por sua vez, é o (4°) arguido B de opinião que a decisão recorrida padece do vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “contradição insanável da fundamentação”, alegando, subsidiariamente, o mesmo vício de “excesso de pena”.

–– Identificadas que se apresentam as “questões” a tratar, comecemos pelo “recurso do 3° arguido”, pois que, desde já se consigna que nenhuma razão lhe assiste, sendo evidente a improcedência do seu recurso.

Vejamos.

Ao crime de “burla informática (de valor consideravelmente elevado)” pelo dito recorrente cometido, cabe a pena de 2 a 10 anos de prisão; (cfr., p. e p. pelo art. 11°, n.° 1, al. 1) e n.° 3, al. 2) da Lei n.° 11/2009).

Nenhuma censura merecendo a “decisão da matéria de facto”, (que não vem impugnada nem se mostra de alterar), e constatando-se que, (relativamente ao ora recorrente), daquela constam todos os elementos objectivos e subjectivos do crime em questão, impõe-se dizer que excessiva ou inflacionada não é a pena imposta pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, (de 5 anos de prisão, a 3 anos do seu mínimo legal, e a 5 anos do seu máximo, e, assim, a 1 ano do meio da moldura legal).

De facto, e como sabido é, em sede de determinação da medida da pena, há que ter presente que nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Sobre a mesma matéria preceitua também o art. 65° do mesmo código que:

“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena”.

Por sua vez, e como temos afirmado, com o recurso não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015 e de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020).

E, nesta conformidade, ponderando no que até aqui se expôs, na referida moldura penal – de 2 a 10 anos de prisão – atento o critério para a determinação da medida da pena previsto nos transcritos art°s 40° e 65° do C.P.M., no que vem sendo entendido pelos Tribunais de Macau em matéria de pena em processos análogos, e apresentando-se-nos evidente que o Tribunal a quo não deixou de ponderar, adequadamente, em todas as circunstâncias relevantes para a fixação da pena em questão, mostra-se-nos pois que se impõe confirmar a pena de 5 anos de prisão ao ora recorrente decretada.

Na verdade, a “factualidade provada” revela que o recorrente, agiu com dolo directo e muito intenso, em comparticipação, (muito) elevado sendo o grau de ilicitude da sua conduta, bastando, para tal, ter em conta que com a mesma se causou um prejuízo à assistente dos autos na ordem dos 10 milhões de dólares de Hong Kong.

Por sua vez, e como se referiu, importa ter presente que, (nomeadamente), em “matéria de pena”, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena, (alterando-a), apenas e tão só, quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, pois que o recurso não visa, nem pretende eliminar, a imprescindível margem de apreciação livre reconhecida ao Tribunal julgamento.

Com efeito, de forma repetida e firme temos vindo a entender que “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”; (cfr., v.g., Ac. de 07.04.2018, Proc. n.° 27/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 68/2019 e de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020).

Dest’arte, revelando-se pela decisão recorrida, a adequada selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, imperativa é a confirmação da pena aplicada; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. deste Tribunal de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015 e, mais recentemente, o de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I e a decisão sumária de 29.06.2020, Proc. n.° 73/2020).

–– Passemos para o recurso do (4°) arguido B, começando-se pelos vícios imputados à “decisão da matéria de facto”.

Repetidamente temos afirmado que o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre “toda a matéria objecto do processo”.

Isto é, o aludido vício apenas existe se houver “omissão de pronúncia” sobre “factos relevantes”, e os “factos provados” não permitirem uma boa e sã aplicação do direito ao caso submetido a julgamento.

Importa pois (também) atentar que a dita “insuficiência” não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devem suportar a matéria de facto, em causa estando antes, o “elenco” desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, mas por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver.

O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada traduzir-se-á, afinal, na falta de investigação e de pronúncia sobre os elementos fácticos que permitam a integração na previsão típica criminal por falência de matéria integrante do seu tipo “objectivo” ou “subjectivo”, ou, até, de uma qualquer circunstância modificativa agravante ou atenuante, sendo, por sua vez, de se considerar que inexiste qualquer “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” quando os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento; (sobre o vício e seu alcance, cfr., v.g., e entre outros, o o Ac. deste T.U.I. de 26.03.2014, Proc. n.° 4/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017 e de 27.11.2020 Proc. n.° 193/2020).

In casu, e como pelo Tribunal de Segunda Instância já foi clara e adequadamente explicitado, nenhuma “insuficiência” existe, pois que o Tribunal Judicial de Base emitiu – expressa e clara – pronúncia sobre todos os “factos” constantes da acusação pública deduzida (e do pedido civil pela assistente enxertado nos autos), pronunciando-se, assim, como lhe competia, sobre todo o “objecto do processo”, justificando os motivos da sua convicção e decisão, (cfr., fls. 837 a 838), evidente se mostrando que nenhuma “matéria de facto (relevante)” ficou por apurar, sendo, desta forma, patente, a não verificação do assacado vício.

Por sua vez, no que toca ao vício de “contradição insanável da fundamentação”, o mesmo tem sido (reiteradamente) definido como aquele que ocorre quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Como se tem considerado, apenas existe “contradição insanável da fundamentação” quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada, ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados.

Há assim “contradição entre os fundamentos e a decisão” quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada, e há “contradição entre os factos” quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente; (cfr., v.g., os atrás citados Acs. deste T.U.I. de 26.03.2014, Proc. n.° 4/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, e o de 27.04.2018, Proc. n.° 14/2018).

Nesta conformidade, como no referido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância se explanou, e como atrás se deixou igualmente explicitado, a “decisão condenatória” com a qual não se conforma o ora recorrente é totalmente “inteligível”, não padecendo, em parte alguma, de juízos ou afirmações antagónicas ou inconciliáveis, nenhum reparo, por “contradição”, merecendo.

Pode-se, como é óbvio, “discordar do decidido”…

Porém, como cremos que nenhuma dúvida suscita, tal “discordância” não se identifica com os aludidos “vícios” a que se refere o art. 400°, n.° 2, al. a), b) e c) do C.P.P.M..

Aqui chegados, e visto estando que a “decisão da matéria de facto” não padece dos assacados e referidos “vícios”, (ou outros, de conhecimento oficioso), sendo assim de se ter como “definitivamente” fixada, continuemos.

–– A última questão pelo ora recorrente colocada diz respeito à “medida da pena”, entendendo também que “excessiva” é a pena de 5 anos de prisão que lhe foi decretada.

Porém, da análise e reflexão que sobre a supra aludida decisão relativamente à “matéria de facto dada como (provada)” tivemos oportunidade de efectuar, (e sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido diverso), cremos que se impõe revogar a decisão condenatória em questão.

–– Passa-se a (tentar) explicitar este nosso ponto de vista.

Tipificando o crime de “burla informática” prescreve (agora) o art. 11° da Lei n.° 11/2009, (na redacção dada pela Lei n.° 4/2020, in B.O. n.° 17, I Série, de 27.04.2020, pág. 3891), que:

“1. É punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa quem, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo para si ou para terceiro, causando prejuízo patrimonial a outrem:
1) Introduzir, alterar, suprimir ou eliminar dados informáticos;
2) Interferir no resultado de tratamento de dados informáticos;
3) Estruturar incorrectamente programa informático; ou
4) Intervier no funcionamento de sistema informático.
2. A tentativa é punível.
3. Se o prejuízo patrimonial causado for:
1) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos;
2) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos”; (cabendo aqui recordar que o crime de “burla informática” era antes previsto no art. 213° do C.P.M. que foi revogado pela Lei n.° 11/2009, apelidada de “Lei de Combate à Criminalidade Informática”, aplicável à situação dos autos, e com a qual se pretendeu dar melhor resposta às “dificuldades ao nível da investigação deste tipo de criminalidade”; sobre o tema, cfr., v.g., Vera Marques Dias in, “A Problemática da Investigação do Cibercrime”, “Data Venia”, Ano I, n.° 1; Benjamim Silva Rodrigues in, “Da Prova Penal-Electrónico-Digital e da Criminalidade Informática-Digital”, Tomo IV; Fong Man Chong in, “Do Mundo Real ao Mundo Virtual – Alguns aspectos jurídico-criminais da vida cibercomunitáría”, Instituto de Estudos Jurídicos Avançados da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 2005, pág. 141 a 147; e, Peter Grabosky in, “The Global Cyber-Crime Problem: The Socio-Economic Impact”, 2005, pág. 50, estes últimos dois também citados no Parecer n.° 3/III/2009, da 3ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa de Macau, e onde, especificamente, sobre o crime do artigo 11° em questão se consignou que: “O tipo ora previsto é semelhante ao do artigo 213.° do Código Penal, ora revogado, sendo dele retirado a vertente da utilização não autorizada de dados informáticos, conduta constante do artigo 5.° da proposta de lei. Os actos abrangidos pelo tipo objectivo prendem-se com manipulações informáticas que tenham uma intenção fraudulenta, deles resultando perdas patrimoniais de terceiros e caso o agente tenha agido com a intenção de obter vantagem lucrativa ilícita para si próprio ou para terceiros. A referência à interferência no resultado de tratamento de dados informáticos [alínea 2) do n.° 1] visa garantir que todas as formas relevantes de manipulação se encontram abrangidas, cobrindo actos tais como as manipulações de hardware, os actos que impedem as saídas para a impressora, assim como os actos que afectam o registo ou o fluxo de dados, ou a sequência pela qual os programas são executados. A estruturação do programa informático é incorrecta [alínea 3) do n.° 1] quando ela é contrária à finalidade do programa informático, produzindo as novas instruções resultados objectivamente contrários à finalidade do programa”, acrescentando-se também que “A burla informática distingue-se do crime de burla geral, previsto no artigo 211.° do Código Penal, por ser um crime de execução vinculada. Enquanto que o crime de burla geral pode ser cometido por qualquer meio de erro ou engano sobre os factos que o agente astuciosamente provocou, o crime de burla informática tem de ser cometido através de algum dos meios descritos no n.° 1”).

Como sobre a matéria em questão refere M. Miguez Garcia, “«a burla informática associa-se a computadores», que servem «para o processamento de dados», nos quais se introduzem «os dados a processar (input) e a forma de processamento desejada, seleccionando algumas das possibilidades disponíveis do programa: obtém -se automaticamente um determinado resultado (output)», pelo que «o burlão pode introduzir dados falsos no sistema informático (manipulações do input) e pode alterar a ordem de processamento (manipulações do programa) – pode assim falsear o resultado obtido», entendendo-se por “dados” «todas as informações susceptíveis de serem tratadas» e por “programa” «o conjunto de instruções dadas ao computador para cumprir tarefas específicas»”; (in “O Direito Penal Passo a Passo”, Vol. II, pág. 249).

Por sua vez, e como sobre a mesma matéria se pronuncia também P. Pinto de Albuquerque, a “autonomia conferida ao crime relativamente ao ilícito fundamental da burla terá tido como justificação, a «circunstância de os computadores não poderem ser enganados, pelo que a manipulação informática com vista ao enriquecimento ilegítimo do agente ou de terceiro não se submete ao tipo clássico da burla»”; (in “Cometário ao Código Penal”, 2ª ed., pág. 688 e segs.).

Com efeito, o ilícito em questão constitui um crime de “dano” e de “resultado”, pois que, como nota L. Henriques, (citando também Leones Dantas), “é imprescindível a ocorrência efectiva de um prejuízo patrimonial, prejuízo esse que «há-de recair sobre o património da vítima, como consequência da manipulação de dados informáticos em que se subsume a acção do agente», diferentemente do que acontece na burla comum, já que «não se individualiza como elemento do tipo (a) indução em erro de alguém», dirigindo-se o ilícito, acima de tudo, «para as situações de manipulação automatizada de dados, onde a intervenção humana, que no crime de burla comum se materializa normalmente num acto de disposição patrimonial, é substituída por operações automatizadas desencadeadas na sequência dos programas instalados no computador, pelo que «quem é induzido em erro é a máquina que por força do mesmo desencadeia operações que acabam por materializar a lesão do património exigida no tipo»”; (in “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. IV. 2016, pág. 248 e segs.).

Perante o assim estatuído e exposto, cremos que adequada é a consideração no sentido de que o crime de “burla informática” caracteriza-se como um crime de “execução vinculada”, no sentido de que a lesão do património se produz através da “intrusão, interferência e utilização (em certos termos) dos sistemas e meios informáticos”, (sendo também um crime de “resultado parcial ou cortado”, “exigindo-se que seja produzido um prejuízo patrimonial de alguém”).

Ora, esta “dimensão típica”, remete, pois, para a realização de actos e operações (específicas) de “intromissão e interferência” em “programas ou utilização de dados” (nos quais está presente), e aos quais, está subjacente algum modo de “engano”, “fraude” ou “artifício” que tenha a finalidade (ou através da qual se realiza) a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, causando prejuízo patrimonial a terceiros; (sobre o tema, cfr., também, Ana Helena França in, “Burlas Informáticas: Modos de Manifestação”; J. Oliveira Ascensão in, “Estudos Sobre Direito da Internet e da Sociedade da Informação”; José de Faria Costa e Helena Moniz in, “Algumas reflexões sobre a criminalidade informática”, B.F.D.U.C., Vol. LXXIII; Rita Coelho Santos in, “O Tratamento Jurídico-Penal da Transferência de Fundos Monetários através da Manipulação Ilícita dos Sistemas Informáticos”, Studia jurídica, n.° 82; Benjamin Silva in, “Direito Penal, Parte Especial, Tomo I – Direito Penal Informático-Digital”; Ana F. C. Santos in, “O cibercrime: desafio e respostas do direito”; e a compilação de trabalhos do Centro de Estudos Judiciários sobre o “Crime de abuso de cartão crédito de garantia e crédito e o crime de burla informática”).

Pronunciando-se sobre os elementos constitutivos do dito crime de “burla informática”, José M. Damião da Cunha identifica 3 elementos essenciais:

“a) Um comportamento falsificador, que tanto pode consistir num “input” ilegítimo (dados utilizados sem autorização, por forma incorrecta ou incompleta), como numa manipulação da transmissão/ processo/decurso do tratamento dos dados (estruturação incorrecta ou intromissão ilegítima no processamento, que pode ser efectivada por supressão, alteração, etc., do programa ou de elementos do mesmo) – modos, de conduta manipuladores que têm por consequência;
b) Um resultado diferente do processamento – ou seja, um outro e diferente output, – isto é, caso não tivessem sido empreendidas as condutas manipuladoras prévias, o resultado (output) seria diferente daquele que de facto foi ou é;
c) Resultado que tem por efeito (mais ou menos imediato) um prejuízo patrimonial, circunstância que em regra significa: uma deslocação patrimonial, que decorre da alteração do “processamento”, e consequente criação de relação empobrecimento/enriquecimento. Escusado será dizer que o enriquecimento tem que ser ilegítimo. Sobre estes conceitos, cf. o que atrás já referimos, quanto à burla”; (in “Direito Penal Patrimonial; Sistema e Estrutura Fundamental”, pág. 198 e segs.).

E, como sobre o mesmo “ilícito” e com a sua habitual clareza salienta L. Henriques (e vale a pena aqui atentar):

“De acordo com o novo perfil de burla informática saído do art.° 11.° da Lei n.° 11/2009, de 06 de Julho, são seus elementos típicos constitutivos os seguintes:
I - de carácter objectivo:
- acção ou conduta (natureza vinculativa);
- resultado (prejuízo patrimonial);
II - de carácter subjectivo:
- dolo;
- intenção (de obtenção de ganho ou enriquecimento),
Comecemos pelos primeiros (objectivos), e desde logo pela conduta ou acção.
De acordo com o tipo descrito na lei, essa conduta ou acção assume-se de feição vinculativa, o que significa que só as modalidades aí indicadas servem para a perfeição do delito, a saber:
a. - relativamente a dados informáticos:
- introdução, alteração, supressão ou eliminação (n.° 1, 1);
- interferência no resultado do tratamento (n.° 1, 2);
b. - relativamente a programa informático:
- estruturação incorrecta (n.° 1, 3);
c. - relativamente a sistema informático:
- interferência no seu funcionamento (n.° 1, 4).
(…)
A primeira via de viciação de dados informáticos pode ocorrer através de diversas formas de actuação – introdução, alteração, supressão ou eliminação de dados –, expressões cujo significado o comum das pessoas desde logo alcança, pese embora a especificação da matéria.
Introduz-se adicionando; altera-se modificando; suprime-se anulando; elimina-se excluindo.
Interferir no resultado do tratamento de dados é participar na disposição patrimonial enquanto elemento essencial do crime, o que geralmente se consegue «servindo-se o agente directamente do computador» ou fornecendo «dados falsos a quem tiver por tarefa introduzi-los no computador» (LOPES ROCHA, op. cit., pág. 94).
(…)
Seguindo para a área dos programas informáticos, fala a lei em estruturação incorrecta dos mesmos, pretendendo-se com tal previsão sancionar acções que visam «a modificação do programa em ordem a que as suas instruções sejam diferentes das inicialmente concebidas pelo proprietário – por exemplo, a introdução de novas instruções ou funções no programa, a eliminação ou alteração do seu processo de funcionamento, a modificação dos sistemas de controlo do próprio programa» (LOPES ROCHA, op. cit., pág. 95).
(…)
Ou seja: o agente, por exemplo «interferindo na programação, consegue transferir dinheiro de uma conta a que teve acesso para uma outra» (M. MIGUEZ GARCIA, op. cit., pág. 250).
(…)”; (in ob. cit., pág. 249 a 251, salientando-se que a situação dos presentes autos constitui, exactamente, uma “transferência de dinheiro”, sendo de notar que a “interferência na programação” e consequente “tratamento de dados” compreende todos os “fenómenos técnicos” que visam a obtenção de um resultado através da admissão de dados e da sua inserção num “determinado programa”, devendo-se entender o conceito de “dados” de forma alargada, abrangendo todas as informações susceptíveis de serem tratadas).

Ora, da “factualidade” in casu dada como “provada”, e que, com o rigor e objectividade com que cremos deve ser a mesma analisada e interpretada – resulta, apenas e tão só, que o ora recorrente acompanhou os restantes (3) arguidos dos autos no momento da sua entrada no Casino onde teve lugar a execução do ilícito em questão, e que, (em síntese que se nos adequada), deu lugar ao levantamento de quantias monetárias no valor total de HKD$10.000.000,00, em resultado de um depósito pelo 1° arguido (ficticiamente) efectuado através da interferência no programa do computador do seu trabalho na conta do 2° arguido, (por este, na companhia do 3° arguido, pouco tempo antes aberta), tendo, posteriormente, estado também presente em (alguns) momentos em que parte daquelas quantias foram utilizadas no jogo, cabendo assim consignar que adequada não se mostra a decisão (prolatada pelo Tribunal Judicial de Base e confirmada pelo Tribunal de Segunda Instância) que o condenou, como co-autor material da prática do dito crime de “burla informática”, pois que (totalmente) inexistente é qualquer “facto”, (concreto e provado), da sua efectiva, e ainda que parcial, “participação”, “colaboração” ou até “conhecimento” da efectuada “manipulação (abusiva) de dados informáticos”, da qual resultou o processamento e concretização do referido depósito com a apropriação ilícita das ditas quantias.

Na verdade, percorrendo toda a “matéria de facto dada como provada”, verifica-se, (relativamente ao ora recorrente), que em parte alguma dela se descreve, de forma minimamente objectiva, qualquer tipo de “intervenção” ou “participação” do mesmo no “projecto criminoso” consistente na prática de qualquer dos actos materialmente tipificados nas várias alíneas do n.° 1 do transcrito art. 11° para que se pudesse decidir no sentido da sua condenação a título de “co-autor”, (ou “cúmplice”; podendo-se, sobre tais formas de cometimento do crime ver, v.g., o Ac. deste T.U.I. de Acórdão de 30.10.2020, Proc. n.° 127/2020 – havendo, desta forma, que se revogar o decidido, com a consequente absolvição do ora recorrente).

Não se olvida que se deu como provado que o 2° arguido, “com a ajuda do 1°, 3° e 4° arguidos, apropriou-se de verba de valor consideravelmente elevado”, e que os mesmos “causaram prejuízo e sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas”.

Porém, sem a mínima concretização (e densificação) da referida “ajuda” do ora recorrente traduzindo-a em “actos concretos e materiais”, (com explicitação do que a mesma consistiu), aquela, como a aludida “consciência da ilicitude”, apresentam-se (tão só e unicamente) como “juízos (meramente) conclusivos”, insusceptíveis de servirem para a subsunção dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de “burla informática” matéria dos presentes autos.

Dest’arte, e por (total) inexistência de “matéria de facto (provada)” que com a solidez e consistência necessária permita um “enquadramento jurídico-penal” adequado a sustentar a decisão condenatória proferida, (e não constituindo este um “vício” típico e próprio da “decisão da matéria de facto”), impõe-se decidir em conformidade.

Decisão

4. Em face do que se tentou deixar exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso do (3°) arguido, A (甲), revogando-se o segmento decisório que condenou o (4°) arguido, B (乙), como co-autor material da prática de 1 crime de “burla informática (de valor consideravelmente elevado)”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1, al. 1) e n.° 3, al. 2) da Lei n.° 11/2009, em conjugação com o art. 196°, al. b) do C.P.M., do mesmo ficando o arguido absolvido, declarando-se também extintas as medidas de coacção a que se encontra sujeito.

Pelo seu decaimento pagará o recorrente A a taxa de justiça de 5 UCs.

Honorários aos Exmos. Defensores dos arguidos no montante de MOP$3.500,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 05 de Maio de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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