Processo nº 272/2020
Data do Acórdão: 06MAIO2021
Assuntos:
Acordo de cedência de trabalhador
Denúncia do acordo
Questão prejudicial
SUMÁRIO
Se o Autor não logrou provar que a denúncia do acordo de cedência de trabalhador foi feita com a observância da formalidade essencial estipulada e exigida no próprio acordo para a denúncia, sendo certo que o gozo das fracções autónomas pelo Réu uma das regalias a que este tinha direito por força do acordo de cedência, não é ilícita a ocupação pelo Réu das fracções autónomas nem existe qualquer razão para obrigar o Réu a desocupar as fracções autónomas. E nestas circunstâncias, a não restituição das fracções autónomas ao Autor não pode conduzir à violação do direito do Autor sobre as fracções autónomas nem gerar ao Réu responsabilidade civil de indemnização.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 272/2020
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
No âmbito dos autos da acção declarativa de condenação de processo ordinário, intentada, pela A Banco Ásia S.A., que passou posteriormente a denominar-se Banco B, S.A., contra C, registada sob o nº CV1-16-0036-CAO, e que correu os seus termos no 1º Juízo cível do Tribunal Judicial de Base, veio a final proferida a seguinte sentença julgando parcialmente procedente a acção:
Banco B, S.A., em chinês, B銀行股份有限公司, com sede em Macau, na…, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº ….
Vem instaurar a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra
C, casado, residente na …, Portugal.
Alega o Autor ter celebrado com o BXXX, do qual o Réu era empregado e onde exercia as funções de Sub Director, um acordo segundo o qual o BXXX cedia o Réu enquanto trabalhador ao Autor, passando a exercer as funções de Director em Macau. Para além do salário e de outros benefícios o Autor obrigou-se a fornecer ao Réu casa mobilada para o que arrendou o apartamento que indica, cujo contrato após as sucessivas renovações terminaria em 31 de Maio de 2015.
Em 28.08.2014 o Autor procedeu à denúncia do referido Acordo comunicando essa intenção ao BXXX e ao Réu com a antecedência mínima de 30 dias, pelo que, o Réu deixou de prestar serviços para o Autor em 28 de Setembro de 2014, devendo proceder à devolução das fracções autónomas até ao dia 30.09.2014. Sucede que o Réu não se apresentou para trabalhar no BXXX e continuou a residir e a usufruir das fracções autónomas que lhe haviam sido cedidas pelo Autor. Procedendo o Autor à denúncia do contrato de arrendamento ficou acertado com o Senhorio que o mesmo só terminaria em 08.02.2015 devendo o Autor pagar as rendas devidas até essa data, pelo que, interpelou o Réu para que entregasse as fracções autónomas até 20.12.2014 o que este não fez impedindo o Autor de ter procedido à entrega das fracções, o que levou a que o Senhorio instaurasse acção de despejo contra o Autor, sendo que, uma vez que no decurso da mesma o Réu acabou por entregar as fracções, o Autor veio a ser condenado no pagamento da indemnização de MOP392.000,00 e no pagamento das custas judicias de MOP8.467,00, tendo ainda de suportar a título de honorários e despesas o pagamento da quantia de MOP46.750,00.
Concluindo que a conduta do Réu causou danos para o Autor no valor de MOP600.687,00, pede que, julgando-se a acção procedente e provada seja o Réu condenado a pagar ao Autor a quantia de MOP600.687,00 (seiscentas mil seiscentas e oitenta e sete patacas), quantia à qual acrescem os juros vincendos desde a data da citação do Réu, calculados à taxa legal anual fixada em 9,75%, até integral e efectivo pagamento da quantia em dívida.
Citado o Réu para contestar veio este defender-se por impugnação, concluindo pela improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador, sendo seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal mantendo-se a validade da instância.
A questão a decidir nesta sede processual consiste em saber se o Réu tinha a obrigação de entregar as fracções autónomas a que se reportam os autos, em caso afirmativo quando e se o incumprimento ou atraso dessa obrigação foi causa directa e necessário de prejuízos para o Autor os quais caiba ao Réu indemnizar e em que medida.
Da instrução e discussão da causa apurou-se que:
a) O Réu celebrou, em 12 de Fevereiro de 2007, um contrato individual de trabalho sem termo com o Banco D de Investimento, S.A. (doravante “BXXX”) para desempenhar as funções correspondentes à categoria profissional de “Sub Director” em conformidade com a cópia de contrato de trabalho junto aos autos a fls. 19 a 26 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido; (alínea a) dos factos assentes)
b) Ao abrigo do “Acordo de Cedência Ocasional de Trabalhador” (doravante o “Acordo”) celebrado entre a Autora, o Réu e o BXXX em 31 de Julho de 2008, o BXXX cedeu, temporariamente, o Réu à Autora; (alínea b) dos factos assentes)
c) Tendo, assim, o Réu passado a exercer as funções de Director do BXXX nas instalações que a Autora possui na Região Administrativa Especial de Macau (doravante “RAEM”), mediante uma remuneração líquida anual de MOP1.080.000,00 (um milhão e oitenta mil Patacas); (alínea c) dos factos assentes)
d) Entre outros benefícios atribuídos ao Réu, nomeadamente um veículo automóvel para uso em serviço e respectiva manutenção, a Autora obrigou-se ainda a suportar os custos correspondentes à renda de casa mobilada e respectivas despesas até ao limite máximo de MOP22.500,00; (alínea d) dos factos assentes)
e) O Autor, o Réu e o BXXX acordaram que qualquer uma das partes podia rescindir o “acordo” mediante um pré-aviso de 30 dias através da cláusula nona do acordo; (alínea e) dos factos assentes)
f) Depois de 30 de Setembro de 2014, o Réu continuou a residir e a usufruir fracção autónoma designada por “A5” do 5º andar “A”, com todo o equipamento e acessórios, e dois lugares de estacionamento (doravante as “Fracções”) no edifício denominado “X Court - Lote X - Jardins do X”, sito em Macau, na …; (alínea f) dos factos assentes).
g) O Réu desocupou as fracções no dia 28 de Agosto de 2015; (alínea g) dos factos assentes)
h) Na Acção Especial de Despejo aludida no item 18, a Autora foi condenada a indemnizar a Senhoria em valor igual a HKD56.000,00 (quantia correspondente à renda mensal estipulada elevada ao dobro), por cada mês de renda desde 10 de Fevereiro de 2015 até à efectiva entrega das Fracções em 28 de Agosto de 2015, o que perfez a quantia global de MOP392.000,00 (trezentas e noventa e duas mil patacas) conforme resulta da certidão de sentença junta a fls. 159 a 162 dos autos, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzida.” (alínea h) dos factos assentes)
i) Em data não apurada o Autor celebrou um contrato de arrendamento com a Sociedade de Construção e Fomento Predial E Development Limited (doravante “Senhoria”), tendo por objecto a fracção autónoma designada por “A5” do 5º andar “A”, com todo o equipamento e acessórios, e dois lugares de estacionamento no edifício denominado “X Court - Lote X - Jardins do X”, sito em Macau, na…, da qual aquela era proprietária; (resposta ao quesito nº 1 da base instrutória)
j) Aquando do arrendamento da fracção referida no item anterior o gozo e fruição da mesma foi entregue pelo Autor ao Réu; (resposta ao quesito nº 2 da base instrutória)
k) Em 2 de Abril de 2013, o Autor celebrou um segundo contrato de arrendamento com a Senhoria, tendo por objecto as referidas Fracções em conformidade com a certidão de contrato de arrendamento juntos aos autos a fls. 82 a 99 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido; (resposta ao quesito nº 3 da base instrutória)
l) Aquando do arrendamento da fracção referida no item anterior o gozo e fruição da mesma foi entregue pelo Autor ao Réu; (resposta ao quesito nº 4 da base instrutória)
m) O Autor e a senhoria acordaram que a renda mensal das Fracções se cifrava em HKD28.000,00 (vinte e oito mil dólares de Hong Kong), equivalentes a MOP28.840,00 (vinte e oito mil oitocentas e quarenta patacas); (resposta ao quesito nº 5 da base instrutória)
n) Em 28 de Agosto de 2014, o Autor procedeu à denúncia do Acordo, comunicando por escrito essa intenção ao Réu; (resposta ao quesito nº 6 da base instrutória)
o) A denúncia referida no item anterior foi feita pela entrega em mão ao Réu em 28 de Agosto da carta cuja cópia consta de fls. 156 e que aqui se dá por integralmente reproduzida, com efeitos a partir de 28 de Setembro de 2014; (resposta ao quesito nº 7 da base instrutória)
p) Na primeira metade do mês de Setembro de 2014 o próprio Presidente do Autor, Dr. F, voltou a contactar o ora Réu, informando-o de que tinha sido decidido manter o acordo de cedência até 30 de Dezembro desse ano pelo que a carta referida em o) seria substituída por outra que nunca chegou a ser emitida; (resposta ao quesito nº 8-A da base instrutória)
q) Após o referido em p) numa reunião nas instalações do Banco Autor realizada a 24 de Setembro de 2014 o Réu foi informado de que a situação referida na resposta dada ao item p) ficava sem efeito e mantinha-se a situação da carta referida em o), pelo que tinha-se de apresentar junto da sua entidade patronal, o BXXX, em Lisboa, a partir de 28 de Setembro de 2014; (resposta ao quesito nº 9 da base instrutória)
r) Sucede que o Réu não se apresentou ao trabalho em Portugal; (resposta ao quesito nº 11 da base instrutória)
s) Em 11 de Novembro de 2014, o Autor denunciou o contrato de arrendamento referido no item k) junto da Senhoria; (resposta ao quesito nº 12 da base instrutória)
t) Em resposta à carta do Autor, a Senhoria informou, por carta datada de 17 de Novembro, que, em cumprimento do disposto no nº 1 do artigo 1044º do Código Civil, o contrato deveria permanecer em vigor até 9 de Fevereiro de 2015, impendendo sobre aquela a obrigação de pagamento atempado das rendas até à referida data, bem como de um mês adicional de renda, a título de compensação legalmente devida no montante de HKD28.000,00; (resposta ao quesito nº 13 da base instrutória)
u) Em 20 de Novembro de 2014, o Autor remeteu carta registada com aviso de recepção para a morada constante da alínea f), interpelando o Réu para que procedesse à desocupação das Fracções até ao dia 20 de Dezembro de 2014; (resposta ao quesito nº 14 da base instrutória)
v) O Réu não desocupou as Fracções, impossibilitando, desse modo, que o Autor as pudesse restituir à Senhoria na data referida no item anterior; (resposta ao quesito nº 15 da base instrutória)
w) Em 3 de Fevereiro de 2015, a Senhoria fez nova menção à data de entrega das Fracções no dia 9 de Fevereiro de 2015, juntando nota de débito no montante de HKD37.000,00 relativa à renda no montante de HKD9.000,00, devida pelo período de 1 de Fevereiro a 9 de Fevereiro de 2015, e à indemnização legalmente prevista pela cessação antecipada do contrato de arrendamento no montante de HKD28.000,00; (resposta ao quesito nº 16 da base instrutória)
x) Em 16 de Fevereiro de 2015, o Autor remeteu uma carta à mandatária da Senhoria, juntando um cheque no valor de HKD37.000,00, correspondente ao pagamento da renda devida de 1 a 9 de Fevereiro de 2015 no valor de HKD9.000,00 e à compensação devida pela cessação antecipada do contrato de arrendamento no valor de HKD28.000,00; (resposta ao quesito nº 17 da base instrutória)
y) Face à não restituição das Fracções por parte da Autora, em 25 de Março de 2015, a Senhoria instaurou uma Acção Especial de Despejo contra o Autor junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM, cujo processo correu termos sob o nº CV1-15-0013-CPE; (resposta ao quesito nº 18 da base instrutória)
z) A Acção Especial de Despejo aludida no item 18 se deveu ao facto de o Réu não ter desocupado as Fracções, impossibilitando o Autor de as restituir à Senhoria na data acordada, 9 de Fevereiro de 2015; (resposta ao quesito nº 19 da base instrutória)
aa) O Autor foi ainda condenado ao pagamento das respectivas custas judiciais, no montante de MOP8.467,00; (resposta ao quesito nº 21 da base instrutória)
bb) O Autor teve de suportar ainda a quantia de MOP46.750,00 (quarenta e seis mil setecentos e cinquenta patacas) a título de honorários e despesas relativos à Acção Especial de Despejo intentada pela Senhoria; (resposta ao quesito nº 22 da base instrutória)
cc) O contrato de arrendamento aludido no item k) contém expressamente a seguinte cláusula: “O Arrendatário terá de reembolsar ou pagar ao Senhorio todos os custos e encargos (incluindo os custos legais com advogados) razoavelmente incorridos pelo Senhorio com a demanda de pagamento de qualquer renda em atraso ou qualquer montante em dívida que deva ser pago pelo Arrendatário neste âmbito e com a imposição de quaisquer outras estipulações e termos aqui previstos, conforme determinado pelos tribunais ou autoridade competente”; (resposta ao quesito nº 23 da base instrutória)
dd) A não entrega das fracções por parte do Réu ao Autor, obstou a que Autor pudesse livremente dispor das mesmas no período entre 20 de Dezembro de 2014 e 9 de Fevereiro de 2015; (resposta ao quesito nº 24 da base instrutória)
ee) … tendo o Autor pago à senhoria as rendas correspondente ao período entre o dia 1 de Outubro de 2014 a 31 de Janeiro de 2015; (resposta ao quesito nº 25 da base instrutória)
ff) Durante a Acção Especial de Despejo aludida no item y) nunca o Autor e a Senhoria interpelaram o ora Réu com vista à devolução das fracções. (resposta ao quesito nº 27 da base instrutória)
Cumpre apreciar e decidir.
Subjacente à questão a decidir nestes autos está um contrato de cedência de trabalhadores celebrado entre o aqui Autor e o BXXX – entidade patronal do Réu -.
No âmbito desse acordo o Réu passou a prestar a sua actividade profissional para o aqui Autor, mediante o pagamento de uma remuneração, para além de outras regalias entre elas a atribuição de habitação.
Aquele acordo poderia ser rescindido por qualquer das partes mediante um pré-aviso de 30 dias – cf. al. d) dos factos assentes -.
Conforme resulta das alíneas m), n), o) e p), o Autor por carta entregue em mão ao Réu denunciou o acordo referido em 28 de Agosto de 2014 com efeitos a 28 de Setembro de 2014, contudo, algum tempo após, o Autor através do seu Presidente veio a informar o Réu que se mantinha o acordo de cedência.
Sendo certo que a carta a substituir a carta de denúncia nunca chegou a ser emitida, o certo é que as partes estão obrigadas a actuar de acordo com o princípio da boa-fé, pelo que, sendo emitida declaração em sentido contrário da anterior, deve ter-se a primeira como eliminada.
Posteriormente, em 24 de Setembro de 2014 o Réu volta a ser informado de que se mantinha a situação anterior e que dali a 4 dias tinha de se apresentar em Lisboa na sua entidade patronal.
Ora, da cláusula nona do contrato – a fls. 25v e 26 e referida na al. d) da factualidade apurada – resulta implicitamente que o pré-aviso terá que ser escrito, o que em 24 de Setembro não é feito, bem como que a comunicação tem de ser feita aos outros dois contraentes – assim se deve entender a expressão a ambos os outorgantes, uma vez que são três -, sendo que não está demonstrado que haja sido feita comunicação alguma à entidade patronal do Réu seja em 28 de Agosto, seja em 24 de Setembro, e nesta última data não é emitido nenhum pré-aviso escrito.
Logo parece que a denúncia não foi formalmente feita em nenhuma das situações.
Contudo, o certo é que, em data que não ficou apurada nestes autos mas algures após aquelas o acordo de cedência deixou de produzir efeitos.
Não se alega nem se demonstra que aquele acordo haja sido repristinado, sendo que, o que resulta dos autos é que as várias acções instauradas posteriormente entre os aqui sujeitos processuais e a entidade patronal do Réu são no sentido deste ser indemnizado, ou não, pela denúncia do contrato de cedência e despedimento.
Ou seja, válida ou não a denúncia do contrato de cedência o certo é que não se demonstra que se tenha reagido contra a mesma no sentido de suspender os efeitos desta.
Assim sendo, da factualidade apurada o que podemos aproveitar para a decisão da causa é que em 24 de Setembro o Autor comunicou verbalmente ao Réu que denunciava o contrato de cedência e algures após essa data o Réu deixou de prestar a sua actividade laboral para o Autor, sendo que não cabe no objecto destes autos cuidar da validade da denúncia desse acordo – até porque não intervêm todos os sujeitos da relação material controvertida -.
Porém, sendo a atribuição da habitação – traduzida no uso e fruição das fracções autónomas a que se reportam os autos – uma das regalias a que o Réu tinha direito por força do acordo de cedência de trabalhador, deixando este de produzir efeitos haveria o Reu de entregar a habitação em causa.
Desconhecendo-se a data em que se tornou efectiva a denúncia do acordo, temos que em 20 de Novembro de 2014 o Autor interpelou o Réu para entregar as fracções autónomas a que se reportam os autos até 20 de Dezembro de 2014 – cf. al. t) da factualidade apurada -.
Logo, haveria o Réu de ter entregue as fracções até àquela data o que não fez.
A partir deste momento – 20 de Dezembro de 2014 – e até ao dia em que entrega as fracções autónomas – 28 de Agosto de 2015 (cf. al. g) da factualidade apurada) -, o Réu manteve-se a usufruir das fracções autónomas em causa sem ter para o efeito título algum que o legitimasse.
Ao fazê-lo actuou o Réu ilicitamente, violando o direito do titular ao direito de arrendamento daquelas.
Segundo o nº 1 do artº 477º do C.Civ. «aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São, assim, pressupostos da responsabilidade civil:
- O facto;
- A ilicitude;
- A imputação do facto ao lesante;
- O dano;
- Nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso dos autos o uso e fruição das fracções autónomas sem ter título que o legitime é o facto ilícito a que alude a disposição legal, resultando este da actuação voluntária do Réu, o qual ainda que não tivesse consciência absoluta de estar a violar o direito do Autor pelo menos seria de o admitir como possível segundo o padrão de comportamento do homem médio, pelo que lhe é imputável a título de negligência consciente.
Destarte, face ao disposto no nº 1 do artº 477º do C.Civ. incorre o Réu na obrigação de indemnizar o Autor pelos danos resultantes da lesão.
O dano consiste no prejuízo que a conduta do agente causou a outrem, estando aquele obrigado a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação – artºs 556º e 557º ambos do C.Civ. -.
Reportando-se o caso dos autos à utilização das fracções autónomas sem para tal estar habilitado o prejuízo do Autor corresponde numa primeira fase ao valor locativo daquelas e, posteriormente a outros prejuízos caso se demonstrem.
Da factualidade apurada o que resulta é que pelo uso das fracções autónomas era paga a renda equivalente a MOP28.400,00 mensais, pelo que, sem necessidade de outras delongas será este o valor devido pelo período que decorreu a utilização abusiva entre 21 de Dezembro de 2014 e 28 de Agosto de 2015.
Contudo por força da não entrega da fracção autónoma foi pelo Senhorio instaurada acção de despejo contra o aqui Autor na sequência do que foi condenado a pagar ao Senhorio a quantia de MOP392.000,00 a título de rendas, nas custas judicias de MOP8.467,00 e MOP 46.750,00 a título de honorários e despesas – cf. al. g), z) e aa) da factualidade apurada -, tudo no valor global de MOP447.217,00.
Contudo, o valor das rendas em que o aqui Autor ali foi condenado a pagar corresponde às rendas em dobro desde 10 de Fevereiro a 28 de Agosto de 2015, pelo que, deve ainda o Réu o valor correspondente à utilização entre 21 de Dezembro de 2014 a 9 de Fevereiro de 2015 calculado com base no valor da renda devida de MOP28.840,00, e que corresponde a MOP10.574,67 (28.840:30x11) de 11 dias de Dezembro, MOP28.840,00 do mês de Janeiro e MOP9.270,00 referentes a Fevereiro – cf. al. v) e w) da factualidade apurada -, tudo no montante global MOP48.684,67.
A indemnização paga pela cessação antecipada do arrendamento não é imputável ao Réu, uma vez que tudo indica decorrer da denúncia do arrendamento por banda do Autor porque em face da denúncia do acordo de cedência não necessitava mais da fracção, sendo certo que em nada é imputável ao Réu.
Assim sendo temos que considerando o período em que abusivamente utilizou a fracção entre 21 de Dezembro de 2014 e 9 de Fevereiro de 2015 e o custos que implicou a utilização posterior e que resultaram na condenação do Autor e despesas decorrentes com a acção judicial, os danos resultantes da actuação do Réu são iguais a MOP495.901,67.
Quanto aos juros de mora pedidos, uma vez que a obrigação de resulta de factos ilícitos e apenas se tornou liquida neste momento, apenas se condena nos que vierem a ser devidos a contar da data desta sentença até integral pagamento.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos julga-se a acção parcialmente procedente porque parcialmente provada e em consequência condena-se o Réu a pagar ao Autor a quantia de MOP495.901,67 acrescida dos juros de mora à taxa dos juros legais a contar da data desta sentença até efectivo e integral pagamento.
Custas a cargo do Autor e Réu na proporção do decaimento.
Registe e Notifique.
Notificado e não conformado com a sentença que julgou parcialmente a acção, veio o Réu recorrer para este TSI, concluindo e pedindo que:
1. Conforme identificado pelo Tribunal a quo, “a questão” a decidir nos presentes autos consiste em saber “se o Réu tinha a obrigação de entregar as fracções autónomas - cujo uso e fruição lhe foram atribuídos no âmbito de um acordo de cedência celebrado com o Autor e a entidade patronal do Réu - e, em caso afirmativo, saber quando e se o incumprimento dessa obrigação foi causa directa e necessária de prejuízos para o Autor”;
2. Por outras palavras: “(...) o que vai ser discutida nessa acção (leia-se, nos presentes autos) é se houve ou não a tal denúncia do acordo de cedência alegada pela Autora e se o Réu deixou de haver causa legítima de ocupação das fracções a partir de 30 de Setembro de 2014(...) porque só com a denúncia do acordo é que o Réu ficou sem título legítimo para a ocupação das fracções autónomas em causa”(Cfr. Despacho Saneador, fls. 338 verso e Despacho de fls. 424 verso).
3. Da fundamentação da Sentença resulta, com especial interesse para a resposta à “questão” supra formulada, que o Tribunal a quo concluiu o seguinte: “(...) parece que a denúncia não foi formalmente feita em nenhuma das situações” e, bem assim, que se “Desconhece(ndo-se) a data em que se tornou efectiva a denúncia do acordo(...)”;
4. De onde, sabendo-se que o uso e fruição da fracção autónoma em causa consistia numa “regalia” a que o Réu/Recorrente tinha direito por força do acordo de cedência - não se demonstrando que este “acordo” tenha sido objecto de “denúncia” por parte do Autor/Recorrido e/ou “desconhecendo-se” a data em que o mesmo "acordo" deixou de produzir efeitos - razão não existia para que o Réu estivesse obrigado a entregar ao Autor as fracções em causa, razão pela qual deveria o Réu/Recorrente ser absolvido do pedido, por carência de fundamento legal para o efeito.
5. Não foi este, porém, o caminho trilhado pelo Tribunal a quo na douta Sentença recorrida.
6. Com efeito, após concluir que a "denúncia" do acordo de cedência não terá sido formalmente feita e/ou que se desconhece a data em que o mesmo deixou de produzir efeitos, o Tribunal a quo faz referência à comunicação enviada pelo Autor ao Réu, em 20 de Novembro de 2014, para que este entregasse as fracções em causa até ao dia 20 de Dezembro de 2014, o que não o tendo feito teria o Réu actuado ilicitamente, violando o direito do titular de arrendamento das fracções autónomas;
7. Ora, em caso algum pode o ora Recorrente aceitar a conclusão a que chegou o Tribunal a quo, por acreditar que a mesma se mostra inquinada por uma forte contradição com o que se mostra concluído anteriormente e, neste sentido, denota-se uma clara e manifesta oposição entre a douta fundamentação e a própria decisão o que deverá conduzir à sua nulidade, o que desde já e para os efeitos da al. c) do n.º 1 do art. 571.º do CPC se invoca e requer;
Mais detalhadamente,
8. Tendo o Tribunal a quo concluído pela inexistência da “denúncia” e/ou pelo “desconhecimento” da data em que a mesma se tornou efectiva e concluído que o direito do Réu - ao uso e fruição das fracções autónomas - resultava do acordo de cedência celebrado com o Autor não havia fundamento para que o Autor tivesse ordenado ao Réu a devolução das fracções até ao dia 20 de Dezembro de 2014, contrariamente ao que terá sido concluído pelo douto Tribunal a quo;
9. E, salvo o devido respeito, em caso algum se pode aceitar que a “interpelação” pelo Autor ao Réu, a 20 de Novembro de 2014 - para que aquele procedesse à entrega das fracções a que se reportam os autos - pudesse ser quanto bastasse para efeitos de substituir alguma das formas admitidas com vista a fazer cessar os efeitos do acordo de cedência que à data ainda se encontrava em vigor;
10. É que, tratou-se de uma comunicação enviada apenas ao Réu e sem que tivesse ficado demonstrado que a mesma foi igualmente dirigida à entidade patronal do Réu - o que se mostrava condição necessária para que uma eventual “denúncia” fosse apta a produzir qualquer tipo de efeitos extintivos da relação contratual em causa;
11. De onde se teria de concluir que a comunicação operada pelo Autor ao Réu, em 20 de Novembro de 2014 não apresenta um qualquer efeito extintivo na relação contratual existente entre o Autor e o Réu e, neste sentido, em caso algum se mostra apta a fazer cessar as “regalias” atribuídas pelo Autor ao Réu por força do acordo de cedência ao tempo plenamente em vigor, contrariamente ao que terá sido concluído pelo douto Tribunal a quo;
12. A não entender assim, a douta Sentença mostra-se inquinada por um grave erro de raciocínio - traduzido numa manifesta oposição entre os seus fundamentos e a própria decisão final - porquanto, se num primeiro momento concluiu pela “inexistência” (ou, pelo menos, pelo “desconhecimento”) da data em que se tornou efectiva a “denúncia” do acordo de cedência de trabalhador, vem posteriormente aceitar que a partir de 20 de Dezembro de 2014 o Réu se “manteve a usufruir das fracções autónomas “sem ter para o efeito título algum que o legitimasse”;
13. Repete-se, não resultando dos autos o “momento” em que a “denúncia” do acordo de cedência deixou de produzir os seus efeitos - e, como tal, o momento a partir do qual o Réu deixou de estar “legitimado” para usar e fruir as fracções que lhe foram cedidas ao abrigo do mesmo acordo - em caso algum poderia o Tribunal a quo concluir que o Réu teria actuado de forma “ilícita” ao manter-se no uso e fruição das mesmas fracções autónomas, razão pela qual deve a douta Sentença ser declarada nula e de nenhum efeito e o Réu absolvido do pedido formulado pelo Autor, por manifesta oposição entre os fundamentos e a decisão, o que desde já e para os legais efeitos se invoca e requer;
Acresce que,
14. Nos presentes autos, o Autor (Recorrido) veio imputar ao Réu (Recorrente) responsabilidade civil por factos ilícitos alegando que este, “(...) mesmo sabendo que o acordo de cedência tinha terminado, não desocupou a fracção que o Autor lhe entregou para usufruir enquanto o acordo de cedência estivesse em vigor, impossibilitando deste modo o Autor de (...) a restituir à Senhoria na data acordado entre ambos” e, bem assim, que “No caso sub judice, a não desocupação da Fracção por parte do Réu consubstancia a prática de um facto ilícito voluntário e culposo, na medida em que, não obstante saber que a sua relação contratual tinha terminado e que, como tal, já não tinha direito a utilizar o imóvel em causa, não desocupou a Fracção”;
15. A este concreto respeito, impõe-se, uma vez mais recordar, que, contrariamente ao avançado (leia-se, “pressuposto”) pelo Autor/Recorrido ao longo dos presentes autos, o que se resulta da fundamentação da douta Sentença é que “(...) a denúncia não foi formalmente feita(...)” e/ou que se “desconhece(ndo-se) a data em que se tornou efectiva a denúncia do acordo”( ... ), razão pelo que não se mostra correcto concluir que o Réu/Recorrente sabia que o acordo de cedência tinha terminado e que não desocupou a fracção que o Autor lhe entregou depois do acordo de cedência deixar de estar em vigor... ;
16. E a ser assim, salta à vista que a não desocupação da Fracção por parte do Réu/Recorrente não consubstancia a prática de um qualquer facto ilícito voluntário e culposo, na medida em que, não tendo a relação contratual terminado, o Réu mantinha-se no direito a utilizar o imóvel em causa, por força do estipulado por ambos no acordo de cedência;
17. Razão pelo que se teria de concluir que não merece censura a conduta do Réu/Recorrente, nem existiu qualquer dolo - nem sequer “negligência consciente” - no comportamento por si adoptado, visto que não tendo o acordo de cedência “cessado” os seus efeitos, o Réu/Recorrente não estava obrigado a desocupar a fracção em causa, nem igualmente se justifica que o Réu/Recorrente fosse responsabilizado pela impossibilidade de o Autor/Recorrido não poder utilizar o imóvel “como bem entendesse” durante o período de tempo em que o acordo de cedência se encontrava ainda em vigor, contrariamente ao que terá sido concluído pelo Tribunal a quo;
18. Pelo exposto, não estando verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito - tal qual alegados pelo Autor/Recorrido - em caso algum se justifica que o Réu/Recorrente seja condenado a pagar ao Autor/Recorrido qualquer quantia, pelo que deve a douta Sentença de que se recorre ser julgada nula e sem nenhum efeito e o Réu/Recorrido absolvido de todos os pedidos pelo Autor formulados, o que desde já e para os legais efeitos se invoca e requer.
Sem prescindir,
19. Bem vistas as coisas, nos presentes autos, o Autor/Recorrido vem fundamentar o pedido de condenação do ora Réu/Recorrente na “sua” própria condenação resultante da Acção Especial de Despejo que contra si foi instaurada pelo Senhorio e que correu termos sob o Proc. n.º CV1-15-0013-CPE;
20. A este respeito impõe-se, antes de mais, sublinhar ter-se tratado de uma Acção NÃO CONTESTADA pelo aqui Autor/Recorrido, e durante a qual nunca o Autor e o Senhorio "interpelaram" o ora Réu com vista à devolução das fracções em causa;
21. Dito de outro modo, na referida Acção o Autor/Recorrente (ali, Réu) optou - conscientemente - não só por não contestar o Despejo contra si instaurado pelo Senhorio, como igualmente por não chamar o ora Réu aos referidos autos por forma a que este pudesse apresentar a sua defesa, vindo agora exigir do ora Réu/ recorrente o pagamento de todas as quantias em que foi condenado por força do referido Despejo e relativamente a uma fracção autónoma pela qual o Autor (ali Réu) era o único responsável pelo pagamento das rendas...;
22. Ora, salvo o devido respeito, não se compreende a razão pela qual o Autor (ali Réu) terá proferido “silenciar” e, bem assim, optado por não chamar o ora Réu à referida Acção Especial de Despejo, mais não fosse para informar o Senhorio que a casa estava a ser “utilizada” pelo aqui Réu/ Recorrente;
23. De onde, vir o aqui Autor (ali Réu) exigir do ora Réu o pagamento de “despesas” que o mesmo" alega" ter sido condenado a pagar no âmbito de uma Acção de Despejo que apenas correu contra si - e na qual o Autor (ali, Réu) preferiu “baixar os braços” - é abusivo e legalmente injustificado, razão pela qual se requer que a presente acção seja julgada improcedente, por manifesta carência de fundamento legal, o que desde já e para os devidos e legais efeitos se invoca e requer;
24. Entender o contrário será, salvo o devido respeito, aceitar que o ora Réu possa ser condenado num contexto contratual que só às próprias partes diz respeito e, neste sentido, aceitar “estender” os efeitos da condenação do Autor (ali, Réu) ao aqui Réu relativamente a um incumprimento devido apenas pelo primeiro (leia-se, pelo próprio Autor);
25. Em suma, será aceitar como admissível uma “eficácia externa das obrigações” resultantes do incumprimento por parte do Autor (ali Réu) das suas obrigações enquanto “arrendatário” e relativamente às quais o Autor em caso algum poderá ser responsável.
Nestes termos e nos de mais de Direito que V. Exas. encarregar-se-ão de suprir, deve a douta Sentença ser julgada nula e substituída por outra que absolva o ora Recorrente dos pedidos contra si formulados pelo Recorrido, assim se fazendo a já costumada JUSTIÇA!
Notificada da motivação do recurso, o Autor contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido pelo Tribunal a quo e oportunamente feito subir a esta instância.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso Professor José Alberto dos Reis de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CPC Anotado, Volume V – artºs 658º a 720º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
In casu, não houve questões de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões tecidas na minuta do recurso, o recorrente começou, a título principal, por arguir a nulidade da sentença recorrida, e subsidiariamente imputar vários erros à decisão de direito, nomeadamente o erro nos pressupostos jurídicos, quanto à ilicitude e à culpa, da responsabilidade civil de indemnização do Réu; a carência de fundamento legal para exigir ao Réu, ora recorrente, o pagamento de todas as quantias em que foi condenado o ora Autor na acção de despejo por este ter optado por não contestar nem ter chamado o ora Réu para nela intervir; e o erro de direito consistente na incorrecta responsabilização do ora Réu pelo pagamento das rendas em dobro em que foi condenado o ora Autor na acção de despejo.
São a arguida nulidade de sentença, e essas restantes questões, suscitadas na relação de subsidiariedade, que constituem o objecto do recurso.
Dada a relação de subsidiariedade em que nos foram colocadas as questões, a procedência da arguição da nulidade de sentença, deduzida a título principal, tornará desnecessário o conhecimento das restantes questões.
Então comecemos pela arguida nulidade de sentença por os fundamentos estarem em oposição com a decisão.
Sinteticamente falando, para o recorrente, se o Tribunal a quo chegou à conclusão de que a denúncia não foi formalmente feita e que se desconhece a data em que se tornou efectiva a denúncia do acordo de cedência de trabalhador, sendo certo que o gozo das fracções pelo Réu uma das regalias a que este tinha direito por força do acordo de cedência, não existe qualquer razão para obrigar o Réu a entregar ao Autor as fracções e consequentemente, nem a não restituição das fracções ao Autor pode conduzir à violação do direito do arrendatário do Autor, geradora da responsabilidade civil de indemnização.
Na óptica do recorrente, ao julgar ilícita, por ter violado o direito do titular do arrendamento das fracções, a ocupação pelo Réu das fracções, no período compreendido entre 20DEZ2014, data até à qual teria o Réu de entregar as fracções segundo a interpelação que lhe foi feita pelo Autor mediante a carta expedida em 20NVO2014, e 28AGO2015, data em que o Réu desocupou as fracções, o Tribunal a quo está a tomar uma decisão em contradição com os fundamentos.
Então, vejamos qual é o iter que conduz a esta conclusão a que se chegou o Tribunal a quo.
O Tribunal a quo fundamentou esse entendimento nos termos seguintes:
Contudo, o certo é que, em data que não ficou apurada nestes autos mas algures após aquelas o acordo de cedência deixou de produzir efeitos.
…… , sendo que, o que resulta dos autos é que as várias acções instauradas posteriormente entre os aqui sujeitos processuais e a entidade patronal do Réu são no sentido deste ser indemnizado, ou não, pela denúncia do contrato de cedência e despedimento.
Ou seja, válida ou não a denúncia do contrato de cedência o certo é que não se demonstra que se tenha reagido contra a mesma no sentido de suspender os efeitos desta.
Assim sendo, da factualidade apurada o que podemos aproveitar para a decisão da causa é que em 24 de Setembro o Autor comunicou verbalmente ao Réu que denunciava o contrato de cedência e algures após essa data o Réu deixou de prestar a sua actividade laboral para o Autor, sendo que não cabe no objecto destes autos cuidar da validade da denúncia desse acordo – até porque não intervêm todos os sujeitos da relação material controvertida -.
Porém, sendo a atribuição da habitação – traduzida no uso e fruição das fracções autónomas a que se reportam os autos – uma das regalias a que o Réu tinha direito por força do acordo de cedência de trabalhador, deixando este de produzir efeitos haveria o Reu de entregar a habitação em causa.
Desconhecendo-se a data em que se tornou efectiva a denúncia do acordo, temos que em 20 de Novembro de 2014 o Autor interpelou o Réu para entregar as fracções autónomas a que se reportam os autos até 20 de Dezembro de 2014 – cf. al. t) da factualidade apurada -.
Logo, haveria o Réu de ter entregue as fracções até àquela data o que não fez.
A partir deste momento – 20 de Dezembro de 2014 – e até ao dia em que entrega as fracções autónomas – 28 de Agosto de 2015 (cf. al. g) da factualidade apurada) -, o Réu manteve-se a usufruir das fracções autónomas em causa sem ter para o efeito título algum que o legitimasse.
Ao fazê-lo actuou o Réu ilicitamente, violando o direito do titular ao direito de arrendamento daquelas.
Ou seja, foi dito pelo Tribunal a quo que, no dia 20DEZ2014, ou pelo menos a partir dessa data, nasceu na esfera jurídica do Réu a obrigação de desocupar as fracções.
E, por consequente, foi afirmado, embora indirectamente, que é o dia 20DEZ2014 a data em que cessou a vigência do tal acordo de cedência, o que fez extinguir o direito ao das fracções reconhecido ao Réu nos termos clausulados no acordo de cedência.
No fundo, o Tribunal a quo está a identificar essa data-limite, até à qual o Réu foi interpelado pelo Autor para desocupar as fracções, à data da efectivação da denúncia.
Salvo o devido respeito, não colhe a nossa concordância a identificação nos termos operada pelo Tribunal a quo.
Ora, ficou dito nesse segmento da fundamentação da sentença recorrida que …..o certo é que, em data que não ficou apurada nestes autos mas algures após aquelas (as acções instauradas posteriormente entre os aqui sujeitos processuais) o acordo de cedência deixou de produzir efeitos.….e que temos que em 20 de Novembro de 2014 o Autor interpelou o Réu para entregar as fracções autónomas a que se reportam os autos até 20 de Dezembro de 2014……Logo, haveria o Réu de ter entregue as fracções até àquela data o que não fez..
Para nós, ao dizer que foi dito, o Tribunal a quo não fez mais do que uma mera ficção, todavia sem suficiente suporte fáctico, de que, pelo menos a partir de 20DEZ2014, se efectivou o efeito extintivo da denúncia operada já numa data, sempre anterior a 20DEZ2014, embora não apurada.
Porquanto, se não tivesse validado, na decisão de direito, a denúncia do acordo de cedência de trabalhador, feita mediante a carta entregue em mão ao Réu em 28AGO2014, por inobservância das regras estipuladas no próprio acordo e regulativas da forma como se deve processar a denúncia do acordo, e na falta de outros elementos fácticos tidos por assentes capazes de demonstrar com segurança razoável a cessação da vigência do acordo, o Tribunal a quo não pode apoiar-se no simples facto de existência da interpelação feita pelo Autor ao Réu para a desocupação das fracções feita em 20NOV2014, precedida das várias acções instauradas em Portugal entre o Autor, o Réu e a entidade patronal do Réu, que têm por objecto a discussão das questões de indemnização pela denúncia do contrato de cedência e despedimento, para presumir a cessação da vigência do acordo e a data da sua efectivação.
Ao contrário do que se defendeu na sentença recorrida, no sentido de que não cabe no objecto destes autos cuidar da validade da denúncia desse acordo, entendemos que a questão de saber se houve denúncia validamente feita que fez extinguir o acordo de cedência e em caso afirmativo, qual é a data em que se tornou efectiva a denúncia, é uma questão prejudicial que nos cabe resolver.
Sendo questão prejudicial que é, a questão de saber se houve denúncia juridicamente válida e em caso afirmativo, qual é a data em que se tornou efectiva, é de solução prévia indispensável para se conhecer em definitivo da questão principal de saber o Réu tinha a obrigação de desocupar as fracções.
Isto é, enquanto não tiver sido resolvida a questão prejudicial, o Tribunal fica impossibilitado de decidir a questão principal de saber se o Réu violou o direito ao arrendamento das fracções de que é titular o Autor.
Para o Tribunal a quo, não estando demonstrado que haja sido feita comunicação alguma sobre a intenção de pôr termo ao acordo de cedência à entidade patronal do Réu, parece que a denúncia do acordo não pode ser tido por formalmente feita.
Em vez de decidir directamente esta questão prejudicial no sentido de que a denúncia não foi validamente feita, o Tribunal a quo procurou contornar a dificuldade resultante da não comprovação da observância das regras estipuladas no acordo para a denúncia (a comunicação da denúncia a ambos os outros contraentes, incluindo a entidade patronal do Réu), virou-se para, a partir dos factos objectivos instrumentais, nomeadamente as várias acções instauradas em Portugal entre o Autor, o Réu e a entidade patronal do Réu, que têm por objecto a discussão de indemnizações pela denúncia do acordo de cedência e despedimento, e a interpelação feita pelo Autor ao Réu para desocupar as fracções, para ficcionar uma data da efectivação do acordo de cedência, que por sua vez fez cessar o direito ao uso e à fruição das fracções autónomas.
Tal como dissemos supra, tal ficção não se pode aceitar.
Para nós, a validade da denúncia não é aferida de acordo com as altitudes dos sujeitos intervenientes, mas sim e só depende da observância das regras reguladoras da forma como se deve processar a denúncia, especificamente estipuladas no acordo de cedência e supletivamente previstos na lei reguladora da matéria, assim como da verificação de todos os demais pressupostos, formais e materiais.
Na verdade, não tendo sido validamente denunciado, o acordo de cedência de trabalhador permanece vigente, e o direito ao uso das fracções, que lhe foi conferido a título da regalia ao abrigo do acordo, mantem-se na esfera jurídica do Réu.
Assim, o Tribunal a quo não andou bem, ao decidir como decidiu, que a não desocupação das fracções até 20DEZ2014 violou o direito ao arrendamento das fracções do Autor.
Ora, em vez de se apoiar na validade jurídica da denúncia feita em 24AGO2014, o Tribunal a quo fundamentou a ilicitude da ocupação das fracções pelo Réu no período compreendido entre 20DEZ2014 e 28AGO2015 na ficção que fez, para nós errada, da efectivação da denúncia numa data, embora não apurada, mas sempre anterior a 20NOV2014.
Portanto, o vício de que padece a sentença recorrida não é a nulidade processual, por os fundamentos estarem em oposição com a decisão, tal como assim qualificou o recorrente, mas sim deve ser o erro do julgamento de direito, por insuficiência da factualidade necessária à fundamentação da solução jurídica adoptada na sentença recorrida, quer a montante quanto à questão prejudicial sobre a validade da denúncia do acordo, quer a jusante quanto à questão principal sobre a ilicitude da ocupação das fracções pelo Réu até 28AGO2015.
Resultando do inêxito da demonstração desse facto essencial (o alegado pré-aviso da rescisão do acordo, enviado ao Banco D de Investimento, S.A., empregador do Réu) para sustentar a sua tese da ilicitude da ocupação das fracções pelo Réu, o non-liquet probatório terá de jogar em desfavor do Autor, sobre quem impende o ónus da prova nos termos prescritos no artº 335º/1 do CC.
Há que portanto revogar a sentença recorrida, o que prejudica o conhecimento das restantes questões, suscitadas a título subsidiário, e em substituição, passar a julgar improcedente a acção.
Ex abundantia, não aceitamos que, perante a factualidade assente na 1ª instância, se deva considerar demonstrada a efectivação da denúncia do acordo de cedência numa determinada data sempre anterior à desocupação das fracções em 28AGO2015, pois em parte alguma da factualidade assente encontramos matéria que aponta para esse sentido.
Ainda que pudesse ser tida por efectivada a denúncia do acordo de cedência numa determinada data não apurada mas sempre anterior à desocupação das fracções em 28AGO2015, o Tribunal não poderia julgar procedente a presente acção condenando no que se liquidar em execução de sentença, uma vez que a data da efectivação da denúncia não pode deixar de ser considerada um facto essencial para a fixação do quantum das indemnizações que só deve e pode ser apurado na acção declarativa e nunca se pode relegar para a liquidação em execução de sentença, que por natureza não é concebida nem vocacionada para investigar matéria essencial do thema probandum que as partes têm o ónus de alegar e provar no âmbito do processo de declaração.
É de proceder o recurso, embora com fundamento diverso, e ficar prejudicado o conhecimento das restantes questões, colocadas a título subsidiário.
Em conclusão:
Se o Autor não logrou provar que a denúncia do acordo de cedência de trabalhador foi feita com a observância da formalidade essencial estipulada e exigida no próprio acordo para a denúncia, sendo certo que o gozo das fracções autónomas pelo Réu uma das regalias a que este tinha direito por força do acordo de cedência, não é ilícita a ocupação pelo Réu das fracções autónomas nem existe qualquer razão para obrigar o Réu a desocupar as fracções autónomas. E nestas circunstâncias, a não restituição das fracções autónomas ao Autor não pode conduzir à violação do direito do Autor sobre as fracções autónomas nem gerar ao Réu responsabilidade civil de indemnização.
Resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, julgando improcedente a presente acção e absolvendo o Réu de todos os pedidos ai formulados.
Custas pelo recorrido em ambas as instâncias.
Registe e notifique.
RAEM, 06MAIO2021
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Ac. 272/2020-23