Processo n.º 8/2021
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança
Data da conferência: 19 de Março de 2021
Juízes: Song Man Lei (Relatora), José Maria Dias Azedo e Sam Hou Fai
Assuntos: - Concessão da autorização de residência
- Acto discricionário
- Princípios da proporcionalidade e da justiça
- Protecção da união familiar
SUMÁRIO
1. É verdade que, para efeitos de concessão da autorização de residência, a lei manda atender à finalidade pretendida com a residência na RAEM e laços familiares do requerente com residente da RAEM, para além de outros factores.
2. A consideração de tais elementos, mesmo favoráveis à pretensão do interessado, não conduz necessariamente à concessão da autorização de residência, sendo certo que, ao comando do n.º 1 do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003, a autorização de residência na RAEM “pode” ser concedida.
3. No caso de concessão, ou não, da autorização de residência, nos termos do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003, a Administração tem uma margem muito ampla de livre decisão.
4. Nos casos em que a Administração actua no âmbito de poderes discricionários, não estando em causa matéria a resolver por decisão vinculada, a decisão tomada pela Administração fica fora de controlo jurisdicional, salvo nos casos excepcionais.
5. E só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável – art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC.
6. A intervenção do juiz fica reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida pelo agente.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A, melhor identificada nos autos, interpôs recurso contencioso do despacho do Senhor Secretário para a Segurança proferido em 22 de Março de 2019 que indeferiu o seu pedido de concessão de autorização de residência na RAEM.
Por Acórdão proferido em 10 de Setembro de 2020 no Processo n.º 568/2019, o Tribunal de Segunda Instância decidiu julgar improcedente o recurso, mantendo o acto impugnado.
Inconformada com a decisão, vem A recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando nas suas alegações as seguintes conclusões:
a) Recorre-se do acórdão do TSI que recebeu como bons os argumentos aduzidos pelo Despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança datado de 22/03/2019, a este se referindo, por isso, a recorrente.
b) Este Despacho recorrido é aquele que nega “autorização de residência” à recorrente na R.A.E.M., basicamente, alegando que a finalidade pretendida com a residência requerida – o apoio diário normal a uma menor de 9 anos de idade, “residente permanente”, que na R.A.E.M. vive e estuda – “não é uma razão muito especial” que o justifique.
c) Com o devido respeito, o acórdão recorrido, recebendo como bons os argumentos aduzidos por aquele Despacho, padece de ilegalidade e de manifesta e total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário por parte da Administração.
d) O pedido de residência então formulado pela recorrente não padece de qualquer vício, do ponto de vista formal.
e) Então, na óptica da recorrente, o que está em causa é um errada interpretação do disposto no nº 2 do art.º 9 da Lei nº 4/2003, porquanto, ao contrário do que é referido no Despacho recorrido, a situação invocada pela recorrente para a fixação de residência – a necessidade imperiosa de “reunião familiar” da recorrente com a sua filha, que vive e estuda na R.A.E.M. – está devidamente coberta pelo disposto naquela norma, nomeadamente, nas alíneas 3) e 5).
f) Nada, na norma invocada pelo Despacho recorrido, deixa transparecer que a “reunião familiar” pretendida pela fixação de residência tenha que ser do menor com o progenitor na R.A.E.M.; e não possa ser do progenitor com o menor na R.A.E.M..
Aliás, o princípio que rege a norma é o mesmo: um menor não pode (e nos deve) viver desacompanhado da família.
g) O que interessa e, no caso, deve prevalecer é a “finalidade pretendida com a residência na R.A.E.M.” (alínea 3); e esta, com o devido respeito, foi minimizada pelo Despacho recorrido, porquanto a menor, filha da recorrente, tem o direito de residir e estudar na R.A.E.M. e não pode subsistir sozinha.
h) A menor tem o direito de residir na R.A.E.M.; o pai da menor não pode zelar pelos interesses da menor; o direito à educação está inerente à residência; a educação é, aliás, uma imposição legal; e é à recorrente que incumbe zelar pelo cumprimento dos direitos de residente da sua filha menor, uma vez que é ela que detém o respectivo poder paternal e, como tal, é ela quem representa a menor.
i) O Despacho recorrido – bem como o acórdão em apreço – é, assim, como se disse, uma clara violação do disposto na norma do art.º 9º da Lei nº 4/2003;
j) Bem como uma violação dos “direitos e deveres fundamentais dos residentes”, previstos na Lei Básica da R.A.E.M., nomeadamente, no art.º 37º – “Liberdade de exercer actividades de educação” – ; e
k) Art.º 40º, que impõe a aplicação à R.A.E.M. do “Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos”, de onde ressalta, no art.º 23º, que a “família é o elemento natural e fundamental da sociedade” e, aos filhos, deve ser assegurada a “protecção necessária”; e, art.º 24º, que impõe que a criança, na sua condição de menor, goza de “protecção da sociedade e do Estado”.
l) O Despacho recorrido é, por isso – além de uma errada interpretação das normas que regem a “autorização de residência” na R.A.E.M. – também uma clara violação dos princípios que regem o procedimento administrativo;
Nomeadamente,
m) O princípio da legalidade, ínsito no art.º 3º do C.P.A., porquanto “os órgãos da administração devem actuar em obediência à lei e ao direito”;
n) O princípio da protecção dos direitos e interesses dos residentes (art.º 4º do C.P.A.); e
o) O princípio da igualdade, (art.º 5º do C.P.A.), porquanto a “Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo ... privar de qualquer direito ... nenhum administrado em razão de ascendência ... situação económica ou condição social.”
p) O que está em causa são os superiores interesses de uma residente menor, na R.A.E.M., que impõem, no caso, a “reunião familiar” da recorrente com a menor.
Subidos os autos ao TUI, o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu nesta instância o douto parecer, no sentido de dever ser negado provimento ao recurso jurisdicional, mantendo-se em consequência a decisão recorrida.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.
2. Factos
Nos autos foram considerados provados os seguintes factos relevantes para a decisão da causa:
- A recorrente, de nacionalidade filipina, no dia 15 de Outubro de 2018, junto do Chefe do Executivo, requereu a autorização de residência, a fim de reunir-se com sua filha, nascida fora do matrimónio, que é residente permanente de Macau. (vd. fls. 281 do processo administrativo)
- A filha da recorrente nasceu em Fevereiro de 2009, portadora do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau e reside em Macau, enquanto o poder paternal da filha é exercido pela recorrente.
- A recorrente não contraiu matrimónio com o pai da filha, que é residente permanente de Macau e já constituiu família com outrem.
- Face ao supracitado pedido, o Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública manifestou a sua intenção de não autorização, e em 29 de Novembro de 2018, notificou a recorrente para pronunciar-se sobre a respectiva matéria. (vd. fls. 233 do processo administrativo)
- No dia 11 de Dezembro de 2018, a recorrente apresentou alegação escrita. (vd. fls. 231 a 229 do processo administrativo)
- No dia 1 de Fevereiro de 2019, o Chefe da Subdivisão de Residência do CPSP elaborou a proposta seguinte:
“Assunto: Pedido de autorização de residência
Informação complementar n.º XXXXXX/SRDARPFR/2019P
1. Relativamente ao pedido de fixação de residência em Macau formulado pela senhora A para se reunir com sua filha menor B, portadora do BIRPM, nascida fora do matrimónio, elaborámos, em 26 de Novembro de 2018, a Informação n.º XXXXXX/CESMFR/2018P.
2. Face ao dito pedido, o então Serviço de Migração manifestou a intenção de “não autorização”, pelo que, em 29 de Novembro de 2018, nos termos da audiência escrita prevista nos art.ºs 93.º e 94.º do Código do Procedimento Administrativo, notificámos oficialmente a requerente da razão concreta do indeferimento para que pudesse ela pronunciar-se sobre o teor da proposta, no prazo de 10 dias contado a partir de recepção da notificação (vd. notificação de audiência n.º XXXXXX/CESMFR/2018P, fls. 233)
3. No dia 30 de Novembro de 2018, a requerente, por escrito, conferiu aos advogados C, D e E os poderes forenses gerais em direito permitidos. (fls. 232)
4. O mandatário judicial da requerente, advogado C apresentou a alegação escrita e documentos seguintes:
- No procedimento de audiência escrita, o mandatário judicial da requerente, advogado C apresentou a alegação escrita cujo conteúdo é o seguinte:
“A interessada A, ora requerente da autorização de residência, nos termos dos art.ºs 93.º e 94.º do Código do Procedimento Administrativo, foi notificada da intenção de não autorização sobre a apreciação do seu pedido de residência, vem expor e apresentar os pedidos seguintes: “……
1) Tendo a requerente já requerido a residência em Macau nos termos do art.º 9.º, al. (5) da Lei n.º 4/2003, uma vez que sua filha B, de 9 anos de idade, reside, vive e estuda em Macau.
2) Tem como finalidade de residência em Macau auxiliar a filha a ir à escola, viver e reunir-se com ela.
3) Vem apresentar as provas seguintes:
* A filha menor é residente permanente de Macau;
* É a requerente quem exerce o poder paternal da filha menor;
* A filha menor está a estudar numa escola de Macau;
* O pai da filha menor não pode viver com a filha e prestar-lhe cuidados necessários por motivo familiar;
* Em Macau há casa de morada para a requerente e filha, não há problema no aspecto económico e com apoios financeiros necessários;
4) Contudo, o Serviço de Migração mostrou a sua intenção de “não autorização” sobre a apreciação do pedido em causa, alegando que, em circunstâncias gerais só aprova o pedido de residência com base no reagrupamento de filhos menores com seus pais e não aprova o caso contrário, ou seja o pedido de residência formulado pelos pais com fundamento de cuidar de filhos menores, salvo em situação especial e provada.
5) Alega o Serviço de Migração que pode a requerente levar sua filha a viver nas Filipinas sem qualquer obstáculo e o pai também pode cuidar da filha.
6) Não seja ridículo, por favor dê o devido respeito aos residentes de Macau, pode o governo proteger os interesses dos residentes menores?
7) A filha menor tem direito a viver em Macau, mas o pai da filha sempre está ausente de Macau, pelo que não pode cuidar dela; a filha menor tem ainda o direito inerente à educação e residência; segundo a decisão judicial, foi atribuído à mãe (requerente) o exercício do poder paternal da filha menor, se a requerente não viver em Macau, o estudo e residência da filha serão afectados, pelo que deve a Administração prestar auxílio à residente menor de Macau.
8) Assim sendo, a circunstância da requerente pertence à situação especial devendo ser considerada, a filha menor da requerente não pode viver sozinha em Macau, mas necessita de ser cuidada e apoiada pela mãe prolongadamente.
9) O governo da RAEM não pode “privar arbitrariamente as crianças do seu direito de residir em Macau, privar as suas mães dos direitos de apoiar e cuidar das suas filhas e privar as crianças dos seus direitos de estudar e viver em Macau. A requerente tem de assumir a sua responsabilidade como mãe. Pelo que, pede-se que à requerente seja concedida a autorização de residência de Macau, face ao pedido da requerente.” (vd. fls. 229 a 231)
- A requerente apresentou os registos de F, pai biológico da filha menor, relativos à entrada e saída de todos os postos fronteiriços de Macau, no período entre 1 de Outubro de 2017 e 5 de Novembro de 2018. (vd. fls. 221 a 228)
5. Em 3 de Dezembro de 2018, o Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência recebeu a resposta dada pela Polícia Judiciária quanto à solicitação se consta o registo da requerente (ofício n.º 33705/S). Depois de feita a verificação pela Polícia Judiciária com o sistema automatizado de identificação de impressões digitais, confirmou-se que as impressões digitais são iguais às quais constantes dos dois cartões depositados no banco de dados daquela Polícia, que foram fornecidos pelo CPSP, além disso, não há qualquer caso que envolve os mesmos vestígios de impressões digitais. (vd. fls. 211 a 220)
6. Feita uma análise sintética sobre o caso:
- Depois de consideradas as situações concretas da requerente, não existe qualquer circunstância especial que deva ter-se em consideração.
- Feita a verificação, conforme mostram os registos de entrada e saída do pai da filha da requerente (de 1/1/2018 até 31/12/2018), o pai permaneceu em Macau por 196 dias, vivendo em Macau maior parte do tempo, e como residente permanente de Macau, o pai pode cuidar da filha (vd. processo n.º 1 no saco plástico);
- Por outro lado, feita a verificação, conforme mostram os registos de entrada e saída da filha e do pai (de 14/2/2009 até 31/12/2018), os dois sempre tinham registos de entrada e saída de Macau juntos, daí pode-se verificar que o pai pode prestar cuidados à filha da requerente (vd. processo n.º 1 no saco plástico);
- Se cabe à mãe cuidar da filha, não é necessário viver em Macau, nas Filipinas também pode atingir a finalidade de reunião familiar. Além disso, não se verifica qualquer obstáculo para que a mãe leva a filha a viver nas Filipinas;
- Pelo acima exposto e tendo em consideração todos os elementos previstos no art.º 9.º, n.º 2 da Lei n.º 4/2003, em particular, als. 3), 5) e 6), propõe-se que não seja deferido o pedido da autorização de residência em causa.
7. Submete-se à consideração superior.”
- O chefe substituto do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência, em 20 de Fevereiro de 2019 propôs o seguinte: (vd. fls. 286 do processo administrativo)
“1. A requerente, sexo feminino, de 33 anos de idade, portadora do passaporte filipino, vem requerer a autorização para fixação de residência em Macau, a fim de reunir-se com sua filha menor, portadora do BIRPM, nascida fora do matrimónio.
2. Segundo os dados constantes dos autos, a requerente tem uma filha menor nascida fora do matrimónio, a recorrente não contraiu matrimónio com o pai da filha. O pai da filha é residente permanente de Macau e já constituiu família com outrem.
3. Em circunstâncias gerais, a autoridade de segurança responsável pela execução das políticas de imigração normalmente só aprova o pedido de residência com base no reagrupamento de filhos menores com seus pais e não aprova o caso contrário, ou seja o pedido de residência formulado pelos pais com fundamento de cuidar de filhos menores, salvo em situação especial e provada. Pelo que, o pedido em causa não deve ser aprovado.
4. No procedimento de audiência escrita (fls.233), o mandatário judicial da requerente, advogado C apresentou a alegação escrita e documentos (vd. ponto 4 da Informação complementar).
5. Considerados os conteúdos da alegação exposta pelo mandatário judicial da requerente advogado C na fase de audiência e dos documentos apresentados (vd. ponto 6 da Informação), verificou-se que não existe qualquer situação especial que deva ter-se em consideração, pelo que, após a consideração dos elementos previstos no art.º 9.º, n.º 2 da Lei n.º 4/2003, em particular, as als. 3), 5) e 6), propõe-se que não seja deferido o pedido da autorização de residência em causa.
6. Submete-se à consideração superior.”
- Em 22 de Fevereiro de 2019, o comandante substituto do CPSP proferiu o despacho seguinte: (vd. fls. 286 do processo administrativo)
“Concordo com o parecer do chefe subst.º do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência. Submeto à apreciação e autorização do Secretário para a Segurança.”
- Em 22 de Março de 2019, o secretário para a segurança proferiu o despacho seguinte: (vd. fls. 286 do processo administrativo)
“De acordo com os fundamentos expostos no parecer da presente Informação, não autorizo.”
3. Direito
Na tese da recorrente, o acórdão recorrido “padece de ilegalidade e de manifesta e total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário por parte da Administração”, com errada interpretação do disposto no n.º 2 do art.º 9 da Lei n.º 4/2003, com violação dos direitos e deveres fundamentais dos residentes previstos no art.º 37.º da Lei Básica da RAEM e dos princípios da legalidade, da protecção dos direitos e interesses dos residentes e da igualdade.
Pretende a recorrente fixar residência na RAEM, a fim de reunir-se com a sua filha, que é residente permanente de Macau, cujo poder paternal é exercido pela recorrente.
O pedido apresentado pela recorrente carece da autorização da Autoridade local.
Dispõe o art.º 9.º da Lei n.º 4/2003, que estabelece os princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência, o seguinte:
Artigo 9.º
Autorização
1. O Chefe do Executivo pode conceder autorização de residência na RAEM.
2. Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos:
1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei;
2) Meios de subsistência de que o interessado dispõe;
3) Finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade;
4) Actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM;
5) Laços familiares do interessado com residentes da RAEM;
6) Razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro país ou território.
3. A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência.
Alega a recorrente que a situação por si invocada para a fixação de residência – a necessidade imperiosa de “reunião familiar” com a filha, que vive e estuda na R.A.E.M. – está devidamente coberta pelo disposto no n.º 2 do art.º 9.º, nomeadamente, nas alíneas 3) e 5).
É verdade que, para efeitos de concessão da autorização de residência, a lei manda atender à finalidade pretendida com a residência na RAEM e laços familiares do requerente com residente da RAEM, para além de outros factores.
Constata-se nos autos que, tanto na decisão administrativa como no acórdão recorrido, os elementos invocados pela recorrente foram já devidamente ponderados.
É de frisar que a consideração de tais elementos, mesmo favoráveis à pretensão da recorrente, não conduz necessariamente à concessão da autorização de residência, sendo certo que, ao comando do n.º 1 do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003, a autorização de residência na RAEM “pode” ser concedida.
Evidentemente está em causa um acto discricionário (e não vinculado), caso em que ao autor do acto é conferida a liberdade de conformar o conteúdo da decisão como entender dentro dos limites da lei1, sendo o poder discricionário quando o seu exercício fica entregue ao critério do respectivo titular, deixando-lhe liberdade de escolha do procedimento a adoptar em cada caso como mais ajustado à realização do interesse público protegido pela norma que o confere2.
No caso de concessão, ou não, da autorização de residência, nos termos do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003, a Administração tem uma margem muito ampla de livre decisão.
Tal como refere o Digno Magistrado do Ministério Público, “estamos, pois, perante uma norma de competência que confere aquilo a que alguma doutrina designa de 《discricionariedade aberta》, uma vez que ela investe o Chefe do Executivo no poder de proceder a uma 《determinação substancial do interesse público》, pios que embora nela tal não esteja expressamente dito está implícito que aquele órgão administrativo pode, por razões de interesse público ou de conveniência, conceder a autorização de residência em Macau. Mas a substanciação desse interesse é deferida, integralmente, à Administração. É o Chefe do Executivo que, segundo o seu critério, tem o poder de determinar ou identificar a presença de um interesse, de uma razão de mérito ou de oportunidade e, na sequência disso, caso assim o entenda, conceder a autorização de residência a quem tenha requerido (os《aspectos》referidos no n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 não constituem verdadeiros pressupostos justificativos da intervenção administrativa em causa).
A amplitude desta discricionariedade《decorre de a lei abdicar da indicação, ainda que de forma vaga, imprecisa ou indeterminada, da factualidade que deverá estar presente como fundamento do exercício da competência. É ao agente administrativo que cabe a determinação dessa factualidade, ou seja, é ao agente que está confiado o poder de proceder à ‘determinação substancial do interesse público’ que legitima a sua intervenção》(assim, PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual de Direito Administrativo, Volume I, p. 282).”
No caso vertente, constata-se nos autos que a entidade recorrida decidiu indeferir a pretensão da recorrente, tendo em consideração que normalmente só se aprova o pedido de residência formulado com base no reagrupamento de filhos menores com seus pais e não aprova o caso contrário em que os pais requerem a concessão da autorização de residência para cuidar de filhos menores, salvo em situação especial e provada, e que não se verifica no presente caso qualquer situação especial que deve ser ponderada para que seja concedida a autorização de residência.
Tendo em conta a discricionariedade muito ampla de que a Administração goza para a concessão de autorização de residência e a não verificação da situação especial normalmente ponderada que justifique a concessão, não se nos afigura que a entidade recorrida tenha cometido erro na interpretação do disposto no n.º 2 do art.º 9 da Lei n.º 4/2003, pois cabe a ela, ponderando os elementos apurados em caso concreto, substanciar o interesse público que está em causa e determinar segundo o seu critério a factualidade relevante para o efeito, concedendo em consequência a autorização de residência.
Para efeitos de concessão da autorização de residência, o que preocupam mais a Administração são, sem dúvida, os interesses públicos de ordem e segurança sociais, como muito bem se compreende.
Acrescentando, é de dizer que a Administração da RAEM não tem obrigação de conceder a autorização de residência a todos e quaisquer interessados que a pretendam, mesmo que eles tenham ligação muito próxima com Macau e a requeiram a título de união familiar, como no caso da ora recorrente. Está em causa a política de imigração que cabe à Administração a definir e fica fora do controlo judicial.3
Este Tribunal de Última Instância tem-se pronunciado muitas vezes sobre a utilização de poderes discricionários pela Administração e os poderes do tribunais na sindicabilidade de tais poderes, designadamente na questão se saber se foram violados os princípios da proporcionalidade e da justiça, enquanto limites internos do poder discricionário ou se houve erro notório ou uso desrazoável do poder discricionário.
Como é sabido, nos casos em que a Administração actua no âmbito de poderes discricionários, não estando em causa matéria a resolver por decisão vinculada, a decisão tomada pela Administração fica fora de controlo jurisdicional, salvo nos casos excepcionais.
E a jurisprudência também entende assim, tendo este Tribunal de Última Instância decidido que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.4
E só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável – art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC.
Daí que a intervenção do juiz fica reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida pelo agente.
No caso vertente, não se nos afigura existir erro manifesto ou grosseiro da Administração ao não conceder a autorização e residência pretendida pela recorrente.
Imputa a recorrente a violação dos direititos e deveres fundamentais dos residentes previstos nos art.ºs 37.º e 40.º da Lei Básica da RAEM, dos art.ºs 23.º e 24.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e dos princípios da legalidade, da protecção dos direitos e interesses dos residentes e da igualdade, invocando o direito de residir e o direito à educação da sua filha, enquanto residente permanente da RAEM.
Nos termos do art.º 37.º da Lei Básica, “os residentes de Macau gozam da liberdade de exercer actividades de educação, investigação académica, criação literária e artística e outras actividades culturais”.
Tal como as letras revela, a norma em causa prevê a liberdade dos residentes de Macau em exercer actividades, incluindo as de educação.
Rigorosamente falando, exercer actividades de educação não é a mesma coisa que “estudar na escola” ou “acesso à educação”.
Sem intenção de pôr em causa os direitos invocados da menor, é de frisar que os direitos da menor invocados pela recorrente não ficam prejudicados pela não concessão da autorização de residência por si requerida.
Na realidade, a não concessão da autorização de residência não impõe nem obriga o abandono da menor de Macau, não sendo ela forçada a sair de Macau.
Conforme a factualidade assente nos autos, a menor nasceu em Macau, tendo aqui residido e estudado. Apesar de ser a mãe, ora recorrente, quem exerce o poder paternal, não é ela a única progenitora que pode tomar conta da filha.
De facto, o pai biológico da menor é residente permanente da RAEM. Os registos de entrada e saída da menor e do seu pai mostram que o pai passa em Macau maior parte do tempo e os dois sempre tinham registos de entrada e saída de Macau juntos. Daí que se deve concluir que o pai da menor pode prestar cuidados à menor e, ao contrário da afirmação da recorrente, a menor não vive em Macau desacompanhada da família.
Alega a recorrente que o pai da menor não pode zelar pelos interesses da filha, facto este que não ficou, porém, provado.
Ora, se a menor tem vivido e estudado em Macau, na ausência da sua mãe, e nos autos não ficou provado que o pai da menor não está em condições de continuar a cuidar da filha, não se vê prejudicados os direitos da menor de residir e de estudar em Macau.
Daí que não se mostra violado o disposto no art.º 37.º e 40.º da Lei Básica da RAEM nem nos art.ºs 23.º e 24.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, que visam, em termos genéricos, oferecer orientação estratégicas gerais sobre a protecção de famílias, de filhos e de crianças, sendo de salientar que a protecção de famílias e de crianças não é, por si só, motivo suficiente para autorização de residência, que só deve ser concedida após a apreciação de todos os elementos concretamente apurados no caso.
E mesmo tomando em consideração a disposição do art.º 2.º da Lei n.º 6/94/M, que visa também a unidade e estabilidade familiar, não se pode dizer que é sempre legalmente garantida a concessão da autorização de residência a não-residentes que tenham uma relação familiar muito próxima com residentes da RAEM e que pretendam união familiar.
A protecção da união familiar e da estabilidade familiar, conferida aos residentes da RAEM pela Lei Básica da RAEM e pela Lei n.º 6/94/M, não se revela, por si só, suficiente para que seja concedida a autorização de residência aos não-residentes casados com residentes da RAEM com vista à união da sua família.
Finalmente, vistas as alegações apresentadas pela recorrente e as circunstâncias concretas do presente caso, não se vislumbra a violação dos princípios da legalidade, da protecção dos direitos e interesses dos residentes e da igualdade, também imputada pela recorrente.
Concluindo, afigura-se-nos não merecer censura a decisão recorrida.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 6 UC.
Macau, 19 de Março de 2021
Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
1 Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. III, 1989, pág. 108.
2 Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10.ª Edição, pág. 214.
3 Cfr. Ac do TUI, de 15 de Dezembro de 2016, Proc. n.º 69/2016, entre outros.
4 Cfr. Acórdão do TUI, de 15 de Outubro de 2003, Proc. n.º 26/2003, entre outros.
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