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Processo n.º 224/2020 Data do acórdão: 2021-5-27
Assuntos:
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– erro notório na apreciação da prova
– fuga à responsabilidade
– art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário
– pedido de não transcrição da condenação no registo criminal
– antes do decurso integral do período da inibição de condução
– art.o 27.o, n.o 2, do Decreto-Lei n.o 27/96/M
S U M Á R I O

1. Não tendo a arguida alegado algum ou alguns outros factos na contestação então apresentada, todo o objecto probando do processo penal em tudo que lhe fosse desfavorável já ficou delimitado assim somente pela factualidade descrita no libelo acusatório, e tendo o tribunal recorrido especificado na fundamentação fáctica da sentença quais os factos acusados tidos por provados e qual o segmento da factualidade acusada tido por não provado, não se pode falar da existência do vício nominado na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal como insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, precisamente porque esse tribunal já investigou todo o objecto probando em causa, sem qualquer lacuna.
2. Ocorre o vício, nominado na alínea c) do n.o 2 do mesmo art.o 400.o, de erro notório na apreciação da prova, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
3. Antes do decurso integral do período da sanção de inibição de condução imposta pela prática do crime de fuga à responsabilidade do art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário, é inviável decidir do pedido de não transcrição da decisão condenatória no registo criminal (cfr. o n.o 2 do art.o 27.o do Decreto-Lei n.o 27/96/M).
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 224/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 132 a 135v dos autos de Processo Comum Singular n.° CR3-19-0273-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a arguida Lei Iok Lin, aí já melhor identificada, ficou condenada pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de fuga à responsabilidade, p. e p. pelo art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), na pena de 75 dias de multa, à quantia diária de MOP200,00, no total, pois, de MOP15.000,00 de multa (convertível em 50 dias de prisão, no caso de não pagamento, nos termos do art.o 47.o, n.o 1, do Código Penal (CP)), bem como na pena acessória de interdição de condução por quatro meses.
Inconformada, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando àquela decisão, na motivação apresentada a fls. 148 a 162 dos presentes autos correspondentes, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, respectivamente aludidos nas alíneas a) e c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP) (por entender ela que no caso dos autos não se poderia dar por assente, sem qualquer dúvida, que ela, ciente da já provocação do dano, tivesse deixado o local do acidente), para além do subsidiariamente esgrimido exagero na medida da pena, a fim de pedir a sua absolvição, ou, pelo menos, a redução da pena (para passar ela a ser condenada em 30 dias de multa, à quantia diária de MOP100,00, no total, pois, de MOP3.000,00), com também almejada não transcrição da decisão condenatória no registo criminal, à luz do art.o 27.o do Decreto-Lei n.o 27/96/M.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 167 a 170v dos autos, no sentido de improcedência do mesmo.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 178 a 179v, opinando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A sentença ora recorrida ficou proferida a fls 132 a 135v dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
2. Segundo a factualidade assente nessa sentença, a arguida tem por rendimento mensal cerca de MOP40.000,00, e precisa de sustentar a vida dos seus pais.
3. A arguida chegou a apresentar contestação escrita a fl. 87 dos autos, nela oferecendo o merecimento dos autos e fazendo requerimento probatório.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Pois bem, embora a arguida tenha indicado o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada da alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, como objecto do seu recurso, o certo é que os argumentos concretamente tecidos a respeito desse vício já têm a ver com a questão da suficiência, ou não, da prova incriminatória, questão esta que é do foro próprio do vício de erro notório na apreciação da prova da alínea c) do n.o 2 do mesmo art.o 400.o. Ademais, não tendo a arguida alegado algum ou alguns outros factos na contestação então apresentada aos autos, todo o objecto probando do subjacente processo penal, em tudo que fosse desfavorável para ela, já ficou delimitado apenas pela factualidade descrita no libelo acusatório deduzido pelo Ministério Público, e tendo o Tribunal recorrido especificado na fundamentação fáctica da sentença quais os factos acusados tidos por provados e qual o segmento da factualidade acusada tido por não provado, não se pode falar, assim, da existência do vício nominado na alínea a) do n.o 2 daquele mesmo art.o 400.o, precisamente porque o Tribunal recorrido já investigou todo o objecto probando em causa, sem qualquer lacuna (e sobre o sentido e alcance próprios deste vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cfr., de entre muitos, o acórdão do TSI, de 13 de Dezembro de 2007, do Processo n.o 721/2007).
É de ver se procede o vício de erro notório na apreciação da prova, levantado pela arguida na motivação do recurso:
Sempre se diz que ocorre este vício, nominado na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, o Tribunal a quo já teceu (a partir da l5.a linha da página 3 do texto da sentença a fl. 133 até à 5.a linha da página 5 desse texto a fl. 134) a fundamentação probatória da sua decisão sobre a matéria de facto.
Depois de vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos e então examinados pelo Tribunal recorrido, entende o presente Tribunal de recurso que não é patentemente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto a que chegou esse Tribunal.
Por isso, há que decidir do recurso ainda em conformidade com toda a factualidade já descrita como provada (mediante prova já bastante) na mesma sentença, não podendo proceder o vício de erro notório na apreciação da prova, apontado pela arguida.
Dessa factualidade provada, resulta cabalmente verificado, inclusivamente, o tipo-de-ilícito subjectivo da fuga à responsabilidade.
Naufraga, assim, a primeira parte, principal, do recurso.
É altura de ver agora a questão, subsidiariamente alegada pela arguida, do exagero na medida da pena:
O crime de fuga à responsabilidade é punível, no caso de se optar pela aplicação da pena de multa, com 10 a 120 dias de multa (cfr. o art.o 45.o, n.o 1, do CP e o art.o 89.o da LTR).
O Tribunal recorrido aplicou 75 dias de multa à arguida, à quantia diária de MOP200,00.
Considerando que a arguida não tem antecedentes criminais e que o dano patrimonial causado pela conduta dela à parede identificada na matéria de facto provada foi somente de MOP320,00, montante este já pago por ela, afigura-se mais equilibrado passar a condená-la em 30 dias de multa, convertível em 20 dias de prisão, nos termos do art.o 47.o, n.o 1, do CP.
No tocante à quantia diária da multa, ponderando o rendimento mensal da arguida que precisa de sustentar a vida dos seus pais, acha-se adequado passar a fixá-la em MOP130,00, com o que tem que pagar ela o total de MOP3.900,00.
Por fim, quanto à pretensão da arguida de não transcrição da decisão condenatória no registo criminal:
Dispõe o Decreto-Lei n.o 27/96/M, no seu art.o 27.o, o seguinte:
< (Não transcrição das decisões)
1. Os tribunais que condenem em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respectiva sentença nos certificados a que se refere o artigo 21.º
2. No caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas será observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma.
3. O cancelamento previsto no n.º 1 é revogado automaticamente no caso de o interessado incorrer em nova condenação por crime doloso.>>
Ante a norma do n.o 2 desse art.o 27.o do Decreto-Lei n.o 27/96/M, é realmente ainda prematuro o pedido de não transcrição da decisão condenatória no registo criminal, porque antes do decurso integral do período de quatro meses da inibição de condução dela (pena acessória esta que não foi obejcto de impugnação na sua motivação do recurso), é inviável decidir na presente sede recursória sobre esse pedido, o que não prejudica a faculdade que assiste à arguida de formular idêntica pretensão ao Tribunal recorrido após o cumprimento integral da pena de inibição de condução.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o recurso da arguida, com o que a pena de multa por que vinha ela condenada na sentença recorrida pela autoria material de um crime consumado de fuga à responsabilidade do art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário passa a ser de trinta dias, à quantia diária de cento e trinta patacas, no total, pois, de três mil e novecentas patacas, convertível em vinte dias de prisão, nos termos do art.o 47.o, n.o 1, do Código Penal, ficando intacta a pena acessória de quatro meses de inibição de condução aplicada nessa sentença, e sendo por enquanto prematuro o pedido dela de não transcrição da decisão condenatória no registo criminal.
Pelo decaimento na parte principal do recurso, pagará a arguida um terço das custas do recurso, e três UC de taxa de justiça, correspondentemente.
Macau, 27 de Maio de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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