Processo nº 125/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 27 de Maio de 2021
ASSUNTO:
- Divórcio
- Separação de facto
SUMÁRIO:
- Sendo invocado o divórcio com base na separação de facto, basta a prova de que há mais de dois anos cessou a comunhão de vida e não há intenção de a retomar por parte de pelo menos um dos cônjuges para que o divórcio seja decretado.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 125/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 27 de Maio de 2021
Recorrente: A
Recorrido: B
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
B, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção especial de divórcio litigioso contra
A, também, com os demais sinais dos autos,
Pedindo que seja decretado o divórcio entre ambos com fundamento na existência de separação de facto.
Proferida sentença, foi a acção julgada procedente e decretado o divórcio entre Autor e Ré.
Não se conformando com a decisão proferida vem a Ré interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões:
A. O presente recurso tem como objecto a sentença do Tribunal a quo datada de 23 de Outubro de 2020.
B. Salvo o devido respeito pelo juiz a quo, a recorrente não se conforma com a sua decisão de declarar o divórcio entre o autor e ela, pelo que dela vem recorrer.
C. Segundo alega o autor nos pontos n.ºs 4 e 5 da petição inicial de divórcio, ele e a recorrente tiveram uma intensa discussão por causa de dinheiro em Fevereiro de 2016, o que resultou em que ele decidiu deixar de residir com esta última e mudar-se para a fracção sita em Macau, no XXXXXXXX. (Aqui se dá por integralmente reproduzido.
D. Tal facto foi incluído na Base Instrutória e foi dado como provado. (Aqui se dá por integralmente reproduzido)
E. O autor identificou tal facto como principal razão para o rompimento do casamento e para não querer voltar a residir com a recorrente.
F. A recorrente entende que o Tribunal a quo não ponderou as provas documentais por ela apresentadas na contestação, particularmente não considerou o facto de o casal viajar juntos para a Austrália no início de Abril de 2016 e tirar foto(s) íntima(s) onde se vê o autor abraçado à recorrente. (Fls. 56 a 57 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
G. Ao abrigo do disposto no artigo 1638.º, n.º 1 do Código Civil (CC), entende-se que há separação de facto quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.
H. De acordo com a lei, os dois fundamentos para instaurar acção de divórcio são: 1) um dos cônjuges violou culposamente os deveres conjugais; 2) o vínculo matrimonial rompeu-se de facto.
I. Como refere o TSI, no seu aresto proferido no processo n.º 267/2017, em termos de elementos objectivos, entende-se que já não há comunhão de vida entre os cônjuges quando o casal deixe de viver em comunhão de casa, leito e mesa e se verifique rompimento do vínculo matrimonial. Na verdade, em certos casos, o facto de os cônjuges não residir juntos não significa a ruptura da relação matrimonial, tais como nos casos em que um deles trabalhe, estude ou receba tratamento médico no exterior. No entender do TSI, o facto do casal residir separadamente, por si só, não significa que a “vida em comum” tenha deixado de existir ou que o vínculo conjugal se tenha rompido.
J. No caso vertente, o autor intentou a presente acção de divórcio com fundamento em separação de facto por dois anos. No entanto, o mesmo não mencionou nem provou, quer no requerimento do divórcio quer no articulado superveniente submetido em 6 de Julho de 2020, que a separação deveu-se à ruptura do relacionamento conjugal.
K. Como refere incisivamente o TSI no seu acórdão proferido no processo n.º 723/2013, citado no aresto do processo n.º 267/2017 do mesmo tribunal, “ao exigir a duração mínima de 2 dois anos de separação de facto, o nosso legislador está a olhar apenas para o requisito objectivo e não também o subjectivo.” (Aqui se dá por integralmente reproduzido)
L. Tal como ensina o Prof. XXX, esse requisito subjectiva só é de natureza complementar.
M. No caso dos autos, a recorrente apresentou, em 1 de Fevereiro de 2019, a certidão do registo de entrada e saída para provar que ela permaneceu em Macau em Setembro de 2018 vivendo com o autor por cerca de uma semana. (fls. 64 a 68 dos autos)
N. Todavia, o juiz a quo não considerou a referida prova documental nem os factos constantes da contestação da recorrente.
O. Dispõe o artigo 365.º, n.º 1 do CC que,
Artigo 365.º
(Força probatória)
1. Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade, oficial público ou notário respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; …
P. A referida certidão do registo de entrada e saída submetida pela recorrente tem plena força probatória, fazendo prova plena de que ela permaneceu em Macau pelo menos em Setembro de 2018.
Q. Por outro lado, a testemunha do autor, C, afirmou na audiência não ter ido a Austrália com o autor em 2018. Então, como pode ele provar que o autor e a recorrente nunca estiveram juntos em 2018?
R. Além disso, a recorrente entende existir contradição entre a prova documental por ela apresentada e os depoimentos da testemunha do autor: do registo de entrada e saída de Macau da recorrente pode constatar-se que ela de vez em quando vinha a Macau a viver com o autor e, mais importante, ela esteve em Macau em Setembro de 2018.
S. O Tribunal recorrido entendeu provado que os cônjuges tinham passado a residir separadamente a partir de 5 de Julho de 2018. No entanto, não foi apurado se o casal separou-se devido ao rompimento da relação conjugal.
T. Acresce que, no período de Janeiro a Julho de 2020, nenhum dos cônjuges pode entrar/sair de Macau devido às restrições fronteiriças impostas por causa da pandemia COVID-19.
U. Tal como se refere no aresto do TSI, processo n.º 635/2015, o mero facto de os cônjuges não partilhar a mesma casa, leito e mesa não basta para demonstrar, por diversas razões, que o casamento já se rompeu.
V. Razão pela qual, o preenchimento da definição de “separação de facto” referida no artigo 1637.º, alínea a) exige a satisfação cumulativa de dois requisitos: não existe comunhão de vida entre os cônjuges, e há o propósito de não a restabelecer. Só se entende que há separação de facto quando se verifiquem, concomitantemente, ambos os requisitos.
W. A contagem do prazo da separação de facto não deve começar a partir do momento em que os cônjuges passem a residir separadamente ou deixem de viver juntos. Pois nesse caso os cônjuges só estão a, objectivamente, viver separadamente um do outro, enquanto a verdadeira “separação” exige a ruptura do relacionamento conjugal.
X. Para o preenchimento dessa definição, também se exige, particularmente, que a gravidade ou reiteração da violação de qualquer dos cônjuges seja intolerável ao outro e comprometa a possibilidade da vida em comum.
Y. In casu, a recorrente não violou os deveres conjugais nem teve qualquer culpa. De resto, das provas documentais apresentadas pela mesma pode inferir-se que o relacionamento conjugal não foi rompido pelo facto de o autor passar a residir em Macau a partir do início de 2016.
Z. Face ao exposto, pede aos Venerandos Juízes que anulem a sentença recorrida.
Contra-alegando veio o Recorrido apresentar as seguintes conclusões:
1. No caso vertente, o Tribunal a quo declarou o divórcio entre o recorrido e a recorrente. Inconformada com tal decisão, a recorrente dela interpôs o presente recurso.
2. Os seus fundamentos de recurso podem ser resumidos nas seguintes duas questões: 1) não ficou provado, na sentença recorrida, que os interessados separaram-se por causa do rompimento do relacionamento conjugal. 2) O Tribunal a quo apenas admitiu os depoimentos testemunhais, mas não admitiu as provas documentais apresentadas pela recorrente, pelo que os factos e) e f) dos Factos Provados não deviam ter sido dados como provados.
3. Primeiro, a recorrente alega que o Tribunal a quo não provou que a separação deveu-se ao rompimento da relação conjugal. Com todo o respeito por opiniões diversas, o recorrido não acompanha esse entendimento.
4. Dos factos d), e), f) e g) dos Factos Provados resulta demonstrado que: antes da apresentação da petição inicial pelo recorrido, surgiram discussões entre as partes. Por isso, o recorrido decidiu deixar de viver em comunhão com a recorrente, quer no interior da China quer em Macau. A partir de 5 de Julho de 2018, data da entrada da petição inicial, o autor deixou de ter comunhão de mesa, leito e habitação com a recorrente, sem ter o propósito de restabelecer a vida em comum.
5. Obviamente que não se trata de um caso em que os cônjuges simplesmente residam separadamente, tendo antes a separação em causa resultado do rompimento da relação conjugal.
6. É indubitável que o relacionamento conjugal entre os interessados já se rompeu a partir da data da apresentação, pelo recorrido, da petição inicial de divórcio (5 de Julho de 2018). Desde essa data, os mesmos deixaram de viver em comunhão de mesa, leito e habitação, e o autor deixou de ter a vontade de ter vida em comum com ela.
7. No caso dos autos, não só ficou provado que a descontinuação da comunhão de vida entre os cônjuges deveu-se à ruptura do relacionamento conjugal, como o autor persistiu, por dois anos consecutivos, na intenção de não restabelecer a vida em comum.
8. São preenchidos todos os requisitos da separação de facto, quer em termos objectivos quer subjectivos.
9. A recorrente também alega que a decisão recorrida só admitiu os depoimentos testemunhais mas não admitiu as provas documentais por ela apresentadas. Argumenta, portanto, que os factos e) e f) dos Factos Provados não deviam ter sido dados como provados. Com o devido respeito por opiniões contrárias, o recorrido igualmente não acompanha essa argumentação.
10. Em primeiro lugar, a sua impugnação da matéria de facto não foi deduzida nos termos do artigo 599.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, pelo que o recurso deve ser rejeitado.
11. Além disso, a respectiva prova documental (a(s) foto(s)) apresentada pela recorrente, quanto muito, limita-se a demonstrar que ela e o recorrido viajaram juntos para a Austrália em Abril de 2016. No entanto, a separação de facto em causa ocorreu a partir de 5 de Julho de 2018, pelo que não faz nenhum sentido apresentar tai(s) foto(s).
12. Apesar da recorrente alegar ter vivido com o autor em Macau por cerca de uma semana em Setembro de 2018, tal facto não foi incluído pelo Tribunal recorrido nos Factos Provados nem na Base Instrutória. Não tendo impugnado a escolha da matéria de facto nem requerido oportunamente o alargamento da Base Instrutória, não pode agora a recorrente acusar o Tribunal a quo de não ter considerado o mencionado facto.
13. Quanto à certidão do registo de entrada e saída apresentada pela recorrente, tal documento só pode provar que a mesma permaneceu em Macau por um dia (de 8 a 9 de Setembro de 2018), mas não pode provar que ela e o recorrido viveram juntos por cerca da uma semana.
14. Quanto à questão de credibilidade dos depoimentos testemunhais suscitada pela recorrente, o Tribunal a quo na sua decisão da matéria de faco fundamenta pormenorizadamente a sua convicção sobre os referidos depoimentos. Não vislumbramos qualquer erro notório ou desvio em termos da sua apreciação da prova. A respectiva apreciação, ao contrário, mostra-se em linha com o princípio da prova legal bem como com as regras da experiência comum.
15. Ultimamente, a recorrente também invocou as restrições fronteiriças impostas por causa da pandemia COVID-19 como razão da separação do casal no período entre Janeiro e Julho de 2020.
16. No entanto, tal matéria não foi invocada pela mesma em nenhuma fase do julgamento de 1ª instância, pelo que o Tribunal a quo nunca analisou se a pandemia realmente teve impacto directo sobre a separação dos cônjuges. Razão pela qual, não pode agora a recorrente invocar tal facto no recurso.
17. Face ao expendido, a sentença recorrida deve ser mantida por total improcedência do recurso interposto.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Factos
Na decisão sob recurso foi apurada a seguinte factualidade:
a) O Autor e a Ré contraíram casamento civil, a 24 de Junho de 1978, no Governo Popular da Zona de Saertu, da Cidade de Daqing, da Província de Heilongjiang, R.P.China.
b) Na constância do casamento, o Autor e a Ré tiveram dois filhos, respectivamente de nome D e E, ambos maiores.
c) Após o casamento, o Autor e a Ré passaram a residir juntos no apartamento 201, da divisão 1 sita na R.P. China, na Província de Heilongjiang, Cidade de Daqing, XXXXXX.
d) Em data anterior à da entrada da petição inicial em juízo entre o Autor e a Ré surgiam discussões.
e) O Autor decidiu assim deixar de residir juntamente com a Ré, quer na China continental, quer na XXXXXX, sito em Macau, Taipa, na Rua de Coimbra n.º 434.
f) Desde a apresentação da petição inicial em 5 de Julho de 2018, o Autor deixou de residir e viver com a Ré, nomeadamente não partilhando o mesmo leito e mesa.
g) Pelo menos a partir de 5 de Julho de 2018, já não existiu da parte do Autor o propósito de reatar a vida em comum com a Ré.
b) Do Direito
Relativamente às conclusões A) a F) vem a Recorrente impugnar que se haja dado como provado o rompimento da relação conjugal em 2016, contudo, o fundamento da decisão recorrida é a separação de facto dos cônjuges a partir de 05.07.2018 e o facto de, desde essa data o Recorrido não querer reatar a vida em comum com a Ré, pelo que é inócuo o que nestas conclusões de recurso se invoca.
Mais alega a Recorrente que não ficou provada a “ruptura do relacionamento conjugal”. Salvo melhor opinião não usa a Recorrente este conceito na sua correcta asserção.
A “ruptura do relacionamento conjugal” ou a “ruptura da vida em comum” é para além da “violação culposa dos deveres conjugais” a segunda ordem de causas do divórcio1.
Para algumas legislações, nomeadamente a Brasileira após a alteração do Código Civil de 2003, uma das causas possíveis para que o tribunal possa decretar o divórcio, consiste na constatação de que, mesmo não havendo violação dos deveres conjugais, a convivência conjugal não é mais possível por outras razões, v.g. incompatibilidades de temperamento, ausência de amor, de afecto, separação de facto, etc..
Contudo, nesta asserção mais ampla, a ruptura da vida conjugal ou a ausência de amor como alguns autores Brasileiros também lhe chamam é uma causa de divórcio que não está prevista na legislação de Macau.
De acordo com a legislação de Macau, havendo violação dos deveres conjugais impõe-se apurar se essa violação é de tal modo grave que seja impeditiva da manutenção da vida em comum – artº 1635º do C.Civ. -, situação esta diferente daquela.
Na legislação de Macau apenas se alude à ruptura da vida em comum na epígrafe do artº 1637º do C.Civ., o qual consagra como fundamentos do divórcio a alteração das faculdades mentais, a ausência e a separação de facto, e que são tradicionalmente classificadas como as causas do divórcio-ruptura2, na acepção da legislação de Macau, mas que nada tem a ver com aquela outra.
No caso da alínea a) do artº 1637º demonstrada a inexistência de vida em comum e ausência de vontade ainda que seja apenas por banda de um dos cônjuges de a restabelecer, demonstrados estão os requisitos para que seja decretado o divórcio, não havendo que se apurar a causa.
No que concerne às demais conclusões de recurso vem a Recorrente impugnar a matéria de facto dada por assente porquanto segundo diz esteve em Macau em Setembro de 2018 o que seria fundamento bastante para justificar que a separação de facto não ocorreu em data anterior, para além de impugnar também o depoimento de uma das testemunhas.
Ora, o facto da Ré se ter deslocado a Macau e aqui permanecer de 8 para 9 de Setembro – cf. fls. 67 -, não permite por si só concluir que se tenha sequer encontrado com o Autor, e ainda que o tivesse feito, que isso significasse que havia comunhão de vida entre ambos.
Muitas das vezes a ruptura da comunhão de vida entre os cônjuges ocorre continuando estes a viver na mesma casa, pelo que, nunca a circunstância de estarem na mesma cidade poderá ser indício ou princípio de prova de que aquela existia.
No que concerne à impugnação do depoimento da testemunha a Recorrente não indica qual a passagem da gravação do depoimento que impunha uma decisão diversa da recorrida, o que de acordo com o disposto na al. b) do nº 1 e nº 2 do artº 599º do CPC, impõe que se negue provimento ao recurso com este fundamento.
Destarte, quanto à impugnação da matéria de facto, reparo algum há a fazer à decisão recorrida.
No que respeita aos fundamentos de direito, demonstrado que não há comunhão de vida entre os cônjuges por pelo menos dois anos consecutivos e que não há por banda de um dos cônjuges vontade de a restabelecer estão reunidos os pressupostos para o divórcio de acordo com o disposto na al. a) do artº 1637º do C.Civ. como se conclui na decisão recorrida, nada mais havendo a acrescentar.
Destarte, não havendo reparo a fazer à decisão recorrida, pelos fundamentos da mesma constante para os quais se remete nos termos do nº 5 do artº 631º do CPC, impõe-se decidir em conformidade negando provimento ao recurso.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo da Recorrente.
Registe e Notifique.
RAEM, 27 de Maio de 2021
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
1 Veja-se Abel Pereira Delgado em O Divorcio, Livraria Petrony 1980, pág. 37.
2 Veja-se Abel Pereira Delgado em O Divorcio, Livraria Petrony 1980, pág. 12 e 67 e sgts.
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125/2021 CÍVEL 4