Processo nº 19/2020 Data: 26.05.2021
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Processo de execução.
Embargos.
“Concessão de crédito para jogo” – (Lei n.° 5/2004; “Regime jurídico da concessão de crédito para jogo ou para aposta em casino”).
Obrigação natural.
SUMÁRIO
1. Com a aprovação da Lei n.° 5/2004 regulamentou-se a “concessão de crédito para jogo ou para aposta em casino na R.A.E.M.”, (passando-se a disciplinar esta “actividade” que antes não se encontrava “legalizada”).
2. Com a sua entrada em vigor, e em conformidade com o estatuído no seu art. 4° – onde se prescreve que “Da concessão de crédito exercida ao abrigo da presente lei emergem obrigações civis” – mostra-se de concluir que (todo) o “crédito para jogo em casino” concedido ao arrepio do novo diploma legal, dá apenas lugar a uma “obrigação natural”, à qual se aplica o regime que lhe é próprio, (cfr., art. 396° do C.C.M.), não sendo assim o seu pagamento judicialmente exigível.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 19/2020
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em sede dos Autos de Embargos que correm por apenso aos de execução no Tribunal Judicial de Base registados com a referência CV3-15-0074-CEO e em que é exequente “A”, (“甲”), sendo executado B (乙), proferiu a Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base sentença julgando procedentes os ditos embargos; (cfr., fls. 312 a 316 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Apreciando o recurso que do assim decidido interpôs a exequente/embargada (“A”), acordou o Tribunal de Segunda Instância na sua procedência, revogando a decisão recorrida, julgando improcedentes os aludidos embargos, e ordenando o prosseguimento da execução; (cfr., fls. 405 a 416).
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Inconformado, o embargante recorreu para este Tribunal, pedindo a inversão do decidido pelo Tribunal de Segunda Instância; (cfr., fls. 435 a 471).
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Após contra-alegações da embargada, (cfr., fls. 482 a 518), vieram os autos a esta Instância para decisão do recurso.
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Nada obstando, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Está dada como provada a seguinte matéria de facto:
“- O exequente deu à execução o documento de fls. 12 e 15 junto com a p.i. da execução e cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos, titulando, respectivamente, o valor de HKD$25.000.000,00 e HKD$22.000.000,00. (alínea A da Especificação)
- A exequente é uma companhia promotora de jogos, constituída em Abril de 2006, sendo titular de Licença de Promotor de jogo nºE0XX, junto a fls. 10 dos autos principais e cujo teor aqui se reproduz. (alínea B da Especificação)
- Em 28 de Junho de 2004, C, sócio da exequente, subscreveu o contrato junto a fls. 55 e ss. e cujo teor aqui se dá por reproduzido para os legais e devidos efeitos. (alínea C da Especificação)
Da Base Instrutória:
- Os documentos identificados em A) foram assinados pelo punho do executado. (resposta ao quesito 1º)
- … e surgiram na sequência da um acordo entre C (referido em C) e o executado, através do qual se reconheceu a entrega nas datas id. na parte final dos doc. dados à execução e id. em A), a este por aquele, com a obrigação de devolução, das quantias de HKD$25.000.00,00 e HKD$22.000.000,00. (resposta ao quesito 2º)
- Através desse acordo de 29 de Dezembro de 2010, o executado aceitou que as quantias que C lhe entregou em 2005 e em 2006 fossem devolvidas à exequente. (resposta ao quesito 3º)
- Antes de 14 de Março de 2006, a Embargada não obteve a licença de promotor de jogos. (resposta ao quesito 4º)
- Antes de 14 de Março de 2006, a Embargada nunca celebrou contrato com qualquer concessionário ou subconcessionária, por forma a autorizá-la a dedicar-se à actividade de concessão de crédito para jogo. (resposta ao quesito 5º)”; (cfr., fls. 312-v a 313, 408-v a 409 e 15 a 17 do Apenso).
Do direito
3. Como se deixou relatado, com o presente recurso pelo embargante (executado) interposto, pretende o mesmo a revogação do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância para que em sua substituição fique a valer a decisão pelo Tribunal Judicial de Base proferida e que tinha julgado procedentes os embargos que deduziu.
A fim de se proporcionar um melhor – cabal – entendimento sobre as “razões” pelo Tribunal de Segunda Instância invocadas para a decisão que proferiu e que constitui o objecto do presente recurso, mostra-se útil aqui transcrever o excerto da fundamentação que com relevo para a “questão” a decidir aí se deixou exposta.
Assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:
“(…)
O Tribunal a quo procedeu à analise dos factos e depois julgou procedentes os embargos por entender que a obrigação exequenda resulta de empréstimos para jogo concedidos por um sócio da Embargada/Exequente (depois o sócio cedeu estes créditos à Embargada/Exequente e o Embargante aceitou e consequentemente subscreveu os documentos comprovativos do valor total dos empréstimos anteriormente concedidos e que estavam ainda em dívida), e como na altura o original credor (transmitente) não tinha a licença para conceder empréstimos para jogo, o Tribunal veio a julgar procedentes os embargos por inválidos os títulos executivos.
Será tão linear a situação em análise?
Vejamos de imediato.
1) – É certo que, conforme os factos assentes, as obrigações foram contraídas no período de 2005 a 2006 (o que resulta também dos próprios títulos executivos, para além dos factos alegados e confessados pelo Recorrido/Executado), altura em que o concedente de tais empréstimos não tinha obtido ainda a respectiva licença para conceder empréstimos para jogo, mas atenção: em 2002, aquando da publicação do Regulamento Administrativo nº 6/2002, de 1 de Abril, o legislador teve uma preocupação destas situações transitórias e assim consagrou uma norma transitória – artigo 36º - com o seguinte teor:
As entidades exercendo funções de promotor de jogo à data da entrada em vigor do presente regulamento administrativo podem, temporariamente, continuar a exercer a actividade de promoção de jogos, até à conclusão do primeiro processo de licenciamento dos promotores de jogo ao abrigo do presente regulamento administrativo.
2) – Depois, importa ponderar a informação fornecida pela DICJ, constante de fls. 99 dos autos:
Assunto: Pedido de Informação
Exma Srª Escrivã Judicial Especialista D,
Em resposta ao V/Ofício nº 1415/17/CV3-L, de 12/05/2017, e consultados os arquivos da DICJ, cumpre-me informar o seguinte:
1. A promotora de jogo A obteve a licença de promotor de jogos (Pessoa Colectiva), com o nº E0XX, esta licença foi só atribuída em 03 de Abril de 2006, e celebrou os contratos de autorização da concessão de crédito e de promoção de jogos com a F em 29 de Novembro de 2006, em que o Sr. C 丙 (BIRM nº XXXXXXX(X)) e E 戊 (BIRM nº XXXXXXX(X)) são Sócios Administradores da referida companhia;
2. Mais se informa que o Sr. C 丙 (BIRM nº XXXXXXX(X)) obteve uma licença de promotor de jogos (Pessoa Singular), com o nº IXXX, refere-se no entanto, que esta licença só foi atribuída em 23 de Setembro de 2008, e celebrou os contratos de autorização da concessão de crédito e de promoção de jogos com a F em 01 de Maio de 2010.
Com os melhores cumprimentos.
Ou seja, em 03/04/2006 a Recorrente/Exequente já obteve a respectiva licença para conceder empréstimos para jogo.
3) – Os 2 títulos de dívida (fls. 107 e 108), após submetidos à prova pericial, feita pela PJ, comprovadamente são da autoria do Recorrido/Executado (não obstante ter negado a sua autoria, e por este facto ele foi condenado em litigância de má fé pelo Tribunal recorrido).
4) – É certo que os 2 títulos foram assinados em 29/12/2010, pelos quais se incorporam todas as dívidas contraída pelo Recorrido/Executado até a essa data, não é menos correcto que o Recorrido/Executado sabia esta situação e assinou tais documentos, aceitando a transmissão das dívidas de C para a Recorrente/Exequente! Ou seja, estamos perante uma confissão da dívida pelo devedor!
5) – Depois, o Recorrido veio a defender invalidade de tal transmissão da dívida, porque o transmitente/credor originário é sócio da transmissória/ Recorrente/Exequente, e nos termos do disposto no artigo 208º do Código Comercial, tal negócio é nulo!
Não é de acolher tal argumento, mesmo que se entenda que tal transmissão infringisse o artigo 208º do CCOM, este nunca sanciona tal violação com a consequência de nulidade! Mesmo que defenda que se trata de uma nulidade, certo é que o artigo 228º do CCOM fixa um prazo máximo de 5 anos para destruir negócios nulos. Ora, a cessão foi feita em 29/12/2010, já estamos em 2019! Já ultrapassaram mais do que 5 anos!
6) – Em suma, com a autorização da concessionária (F), C, no exercício da actividade de promotor de jogos, concedia empréstimos ao Executado/Embargante, altura não tinha ainda legislação que disciplinava esta actividade, mesmo depois, veio a publicada a respectiva legislação, esta contém uma norma transitória (artigo 35º do Regulamento Administrativo nº 6/2002, de 1 de Abril), que também permitia o exercício transitório da actividade de promotor de jogo por pessoas que já vinham a exercê-la. Pelo que os empréstimos devem ser considerados juridicamente válidos. E, mais tarde, o credor transmitiu o seu crédito para uma sociedade com o consentimento e conhecimento do devedor (executado), tal transmissão não padece de nenhum vício, nem formal nem substancial, o que impõe o reconhecimento deste crédito em juízo.
7) - Além disso, foi o próprio Recorrido que assinou os documentos comprovativos das obrigações, por força do princípio pacta sunt servanda, previsto no artigo 400º do CCM, o Recorrido devia cumprir rigorosamente o acordado, porque em matéria cível o princípio de boa fé assim manda.
8) - Por último, mesmo em face das normas do CC, o Recorrido também carece de fundamentos para embargar a execução em causa, visto que a transmissão de dívida foi feita com pleno conhecimento e consentimento dele, é o que resulta da assinatura dos respectivos títulos, e, não se verifica nenhum elemento fáctico que possa conduzir à nulidade do negócio em causa, tal transmissão deve ser considerada validamente realizada.
9) – Na verdade, entre o Senhor C e o Recorrido/Executado foi desencadeada uma relação de “empréstimo”, e como tal o mutuário/Recorrido deve restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artigo 1070º do CCM). Assim é que se realiza a justiça material.
Em face da argumentação acima desenvolvida, há-de proceder à revogação da sentença recorrida, julgando-se improcedentes os embargos do Recorrido/Executado e ordenando-se o prosseguimento da execução.
(…)”; (cfr., fls. 413-v a 415).
Perante o exposto, cabe agora verificar se existem motivos para se reconhecer razão ao ora recorrente, (embargante), decidindo-se, como pretende, pela revogação do (transcrito) Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado e agora recorrido.
Vejamos.
–– Começa-se por consignar que as posições e razões (jurídicas) pela exequente/embargada assumida nas peças que foi apresentando em sede do presente “processo” não se apresentam com a desejável clareza, o que, em certa medida, não deixou de dificultar a sua análise e estudo para se emitir pronúncia sobre o presente recurso.
Seja como for, (independentemente do demais), e em resultado do que se conseguiu captar e extrair do alegado, tem-se por adequado referir desde já que nos presentes autos de embargos à execução se constata uma “alteração da posição” pela dita embargada (inicialmente) assumida em sede da sua petição apresentada no âmbito da execução que moveu ao ora embargante, e, por ter ocorrido em sede de contestação aos embargos, deveria ter – ou, melhor seria que tivesse – sido objecto de oportuna e adequada apreciação e decisão.
Assim não tendo sucedido, e por nada estar agora invocado, não se mostra ser a presente lide recursória o local (e momento) processualmente adequado à resolução da referida questão, pelo que, sem mais delongas processuais, debrucemo-nos sobre o que consiste o (verdadeiro) “inconformismo” das partes.
–– Pois bem, como se viu, a razão que levou o Tribunal Judicial de Base a conceder provimento aos embargos pelo executado deduzidos assenta na consideração de que a “dívida exequenda era judicialmente inexigível”.
Para tal, entendeu que a dita “dívida” tinha como causa, (ou origem), um “empréstimo ao executado/embargante concedido para o jogo em casino”, e, nesta conformidade, de “natureza ilícita”, dado que ocorrido sem respeito dos condicionalismos por lei exigidos, no caso, da Lei n.° 5/2004 que regulamentou a matéria da “concessão de crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar em casino na Região Administrativa Especial de Macau, adiante designada por concessão de crédito”; (cfr., art. 1°).
Outro sendo – como igualmente já se viu – o “enquadramento” que em relação a tal questão efectuou o Tribunal de Segunda Instância, outra foi também a solução a que chegou, tendo-se decidido pela improcedência dos deduzidos embargos e consequente prosseguimento da execução.
Da análise aos autos, atenta a factualidade dada como provada, e da reflexão que sobre as aludidas “posições” pudemos efectuar, apresenta-se-nos que adequada é a “solução” encontrada pelo Tribunal Judicial de Base, passando-se a tentar explicitar este nosso ponto de vista.
Como sabido é, nos termos do art. 696°, n.° 1, do C.P.C.M., “O executado pode opor-se à execução por meio de embargos”.
Por sua vez, preceitua o seguinte art. 697° que:
“Se a execução se basear em sentença, os embargos só podem ter algum dos fundamentos seguintes:
a) Inexistência ou inexequibilidade do título;
b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;
c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;
d) Falta ou nulidade da citação para a acção declarativa, quando o réu não tenha intervindo no processo;
e) Incerteza, iliquidez ou inexigibilidade da obrigação exequenda, não supridas na fase preliminar da execução;
f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;
g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento, salvo tratando-se da prescrição do direito ou da obrigação, que pode ser provada por qualquer meio”.
Certo sendo que a execução pelo exequente (agora embargado) movida ao ora embargante se baseia “noutro título”, que não uma sentença, invocáveis também são os “fundamentos” previstos no transcrito art. 697° por força do estatuído no art. 699°, n.° 1 do mesmo C.P.C.M.”, (que para aquele preceito remete), preceituando-se aí que “Se a execução se basear noutro título pode o executado opor, além dos fundamentos referidos no artigo 697.º, na parte em que sejam aplicáveis, quaisquer outros que lhe seria permitido deduzir como defesa no processo de declaração”.
Assim, e cabendo notar que, in casu, dúvidas não há que a “dívida exequenda” tem a sua origem na “concessão de crédito ao executado/embargante para jogo em casino”, (“realidade” que, aliás, é pelas partes expressamente confessada nas peças processuais que apresentaram), visto está que a questão a apreciar e decidir, consiste, precisamente, em saber se a mesma é susceptível de ser “judicialmente exigível”.
Ora – na parte que para aqui interessa – resulta da factualidade dada como provada que:
- os ditos “créditos para jogo” (que deram origem à “dívida exequenda”) foram concedidos por C ao executado ora embargante em 2005 e 2006; e que,
- por acordo de 29.12.2010, o executado/embargante aceitou (acordou) que as quantias que C lhe tinha concedido de empréstimo fossem devolvidas à exequente/embargada; (cfr., matéria de facto dada como provada em resposta aos quesitos 1°, 2° e 3°).
Nesta conformidade, e como se vê, confrontamo-nos com uma relação material – digamos que “triangular” – na qual figuram C como “concedente do crédito” cujo pagamento por parte do “executado/embargante” (e ora recorrente) é (agora) pelo “exequente/embargado” reclamado.
E se desde já se nos mostra de consignar que tal “triangulação” não se afigura constituir qualquer motivo (legítimo) que pudesse, (ou possa), obstar ao normal prosseguimento da execução instaurada, mostra-se, porém, de considerar que sendo a questão a resolver a da “(i)licitude da dívida”, dúvidas também não parecem existir que quanto a esta “circunstância” ou “qualidade”, a mesma terá de ser apreciada com referência ao “momento da sua constituição”, pois que a posterior “transmissão (ou cedência) do crédito” por parte do seu (efectivo) concedente (C) ao exequente, ora embargado, não tem, como se apresenta óbvio, a virtude ou o efeito de “branquear” qualquer “vício” com o qual estivesse inquinado logo na sua origem.
Assim, (e apresentando-se-nos adequadas e válidas as considerações tecidas), continuemos.
Sob a epígrafe “Concedentes de crédito” prescreve o art. 3° da atrás referida Lei n.° 5/2004 que:
“1. Estão habilitadas a exercer a actividade de concessão de crédito as seguintes entidades:
1) Concessionárias; e
2) Subconcessionárias.
2. Estão, ainda, habilitados a exercer a actividade de concessão de crédito os promotores de jogos de fortuna ou azar em casino, adiante designados por promotores de jogo, mediante contrato a celebrar com uma concessionária ou subconcessionária.
(…)
6. Apenas podem existir as seguintes relações de concessão de crédito:
1) Entre uma concessionária ou subconcessionária, na qualidade de concedente, e um jogador ou apostador, na qualidade de concedido;
2) Entre um promotor de jogo, na qualidade de concedente, e um jogador ou apostador, na qualidade de concedido; ou
3) Entre uma concessionária ou subconcessionária, na qualidade de concedente, e um promotor de jogo, na qualidade de concedido”.
Ora, in casu, (repete-se), o Tribunal Judicial de Base considerou “ilícita” a “concessão de crédito para jogo” que deu origem à dívida exequenda em virtude da falta da (necessária) “habilitação” e “qualidade” para tal por parte do seu (efectivo) concedente, (o atrás referido C).
Por sua vez, a tese do Acórdão agora recorrido assenta na interpretação e aplicação que efectuou do art. 36° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002, (que regula a “actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino”, cfr., art. 1°), pois que, como se viu, (e vale a pena recordar), assim ponderou:
“1) – É certo que, conforme os factos assentes, as obrigações foram contraídas no período de 2005 a 2006 (o que resulta também dos próprios títulos executivos, para além dos factos alegados e confessados pelo Recorrido/Executado), altura em que o concedente de tais empréstimos não tinha obtido ainda a respectiva licença para conceder empréstimos para jogo, mas atenção: em 2002, aquando da publicação do Regulamento Administrativo nº 6/2002, de 1 de Abril, o legislador teve uma preocupação destas situações transitórias e assim consagrou uma norma transitória – artigo 36º - com o seguinte teor:
As entidades exercendo funções de promotor de jogo à data da entrada em vigor do presente regulamento administrativo podem, temporariamente, continuar a exercer a actividade de promoção de jogos, até à conclusão do primeiro processo de licenciamento dos promotores de jogo ao abrigo do presente regulamento administrativo”; (cfr., fls. 413-v).
Porém, (e sem prejuízo do devido respeito a opinião diversa), não se mostra de sufragar a (transcrita) consideração no sentido de que o estatuído no art. 36° do referido Regulamento Administrativo n.° 6/2002 possa servir de justificação (e “legalização”) da “concessão de crédito para jogo em casino” em causa nos presentes autos, pois que tal “actividade” – de “concessão de crédito” – não está, nem se pode (ou deve) ter como automática (ou implicitamente) incluída na que (tipicamente) cabe aos “promotores de jogo”.
Importa pois ter presente que nos termos do art. 2° do mesmo Regulamento Administrativo n.° 6/2002 se estatui que: “Para efeitos do presente regulamento administrativo e demais regulamentação complementar, considera-se de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino, adiante designada por promoção de jogos, a actividade que visa promover jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, junto de jogadores, através da atribuição de facilidades, nomeadamente de transporte, alojamento, alimentação e entretenimento, em contrapartida de uma comissão ou outra remuneração paga por uma concessionária”, razoável não se mostrando de considerar que aí se quis incluir a “concessão de crédito para jogo em casino” que, no ordenamento jurídico da R.A.E.M., (apenas) foi – pela primeira vez – regulamentada com a referida Lei n.° 5/2004; (neste sentido, cfr., v.g., o Parecer da Assembleia Legislativa n.° 1/II/2004, sobre a Proposta de lei intitulada “Regime jurídico da concessão de crédito para jogo ou para aposta em casino”, onde se considera que “Não é a primeira vez que em Macau se coloca a questão da concessão de crédito para jogo, mas é certamente a primeira vez que se ensaia numa proposta de lei a introdução de uma disciplina jurí dica para a regulamentar”, e mais adiante, após transcrever o art. 13° da Lei n.° 8/96/M sobre o crime de “usura para jogo” se consigna que “É precisamente em relação a este artigo 13.º da Lei n.º 8/96/M, de 22 de Julho, que o proponente se propõe agora operar um recorte negativo, não se considerando usura para jogo, nos termos e para os efeitos deste artigo, «os factos praticados no exercício da actividade de concessão de crédito para jogo ou para aposta, por entidade habilitada»”, podendo-se também sobre a questão ver, Luís Pessanha in, “O Jogo de Fortuna e Azar e a Promoção do Investimento em Macau”, Revista Administração n.° 77, Vol. XX, 2007-3°, pág. 877, onde em apreciação da definição da noção de “promoção de jogos” dada pelo referido art. 2° salienta que: “manifestamente em falta nesta definição legal está o crédito para jogo que em 2002 ainda não se encontrava legalizado …”, e, no mesmo sentido, o recente trabalho de Hugo Luz dos Santos e José Miguel Figueiredo in, “Regime Jurídico da Concessão de Crédito para Jogo ou para Aposta em Casino – Anotado e Comentado”, onde se considera também e nomeadamente que a Lei n.° 5/2004 “não só operou uma descriminalização parcial de algumas situações de crédito para jogo (art. 16°), como a actividade em si mesma passou a estar regulamentada”; Jorge A. F. Godinho in, “Credit for Gaming in Macau” e “Crédito para jogo em Casino”, B.F.D.U.M., Vol. 25, 2009; Angela Leong in, “Usura ou Crédito para Jogo de Fortuna ou Azar”, Universidade de Coimbra; António Marques Baptista in, “Crimes de Seitas, Sua Prevenção e Formas de Combate – Macau”, Revista de investigação Criminal e Justiça, P.J.M., Ano 6, Separata n.° 10, 1999; Paulo Martins Chau in, “Casino Crimes in Macau”, Studies on Macau Civil Gaming Law, LexisNexis; João Guedes in, “As Seitas: Histórias do Crime e da Política em Macau”; e Bill Zander in, “Is Loan Sharking a Casino Problem”).
Aliás, a se acolher entendimento noutro sentido, estar-se-ia também a fazer descaso absoluto ao teor do ofício da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, (D.I.C.J.), e onde (concretamente) se diz que: “Mais se informa que o Sr. C 丙 (BIRM n° XXXXXXX(X)) obteve uma licença de promotor de jogos (Pessoa Singular), com o n° IXXX, refere-se no entanto, que esta licença só foi atribuída em 23 de Setembro de 2008, e celebrou os contratos de autorização da concessão de crédito e de promoção de jogos com a F em 01 de Maio de 2010”, (e que o próprio Tribunal a quo invocou na sua decisão).
Dest’arte, se o (próprio) concedente do “crédito para jogo” apenas obteve a licença de “promotor de jogo” em 2008, sendo esta uma das “qualidades” para se ficar “habilitado para exercer a actividade de concessão de crédito para jogo” (nos termos do atrás transcrito art. 3°, n.° 2 da Lei n.° 5/2004), evidente (e imperativo) se apresenta de concluir que a “concessão de crédito” efectuada ao executado/embargante e ora recorrente, porque ocorrida em data anterior, (em 2005 e 2006), não respeitou os para tal necessários requisitos legais nesta mesma Lei previstos.
Porém, sobre o “ponto” em questão, outro aspecto importa ponderar.
É que “provado” está que “em 28.06.2004, C subscreveu o contrato junto a fls. 55 que se dá como reproduzido”; (cfr., alínea C da Especificação).
Tal “documento” foi pelo exequente apresentado em sede da sua contestação aos embargos deduzidos, e com o mesmo (também) se pretende – ou tenta – “justificar a legalidade” daquela “concessão de crédito” através de uma “declaração” efectuada pela “F”, e de um “contrato” por esta com o dito C em 28.06.2004 celebrado para efeitos de “concessão de crédito para jogo em casino” por parte deste último.
Ora, cabe notar que a aludida Lei n.° 5/2004 entrou em vigor em 01.07.2004, (apenas 3 dias depois do dito contrato!!!; cfr., art. 18°), e, (volta-se a referir), na altura, (e segundo o aludido ofício da D.I.C.J.), C, ainda não possuía licença de “promotor de jogo”.
E, nesta conformidade, em face do exposto, não se pode deixar de dizer que a “situação” não deixa de ser algo “surpreendente” e até “estranha”…
Desde já, apresenta-se totalmente contrária à “informação” (oficial) sobre a matéria (especialmente) prestada pela autoridade competente, (no caso, a referida D.I.C.J.)…
E, seja como for, (e independentemente do demais), importa ter em conta que nos termos do art. 8°, n.° 1 e 2 da Lei n.° 5/2004:
“1. Os contratos referidos no n.º 2 do artigo 3.º e no n.º 3 do artigo 5.º estão sujeitos a forma escrita e são celebrados em 3 exemplares originais, sendo as assinaturas objecto de reconhecimento notarial presencial.
2. As minutas dos contratos, dos seus documentos complementares e de quaisquer alterações a esses instrumentos estão sujeitas a aprovação do Governo, o qual pode determinar a alteração de qualquer cláusula das referidas minutas por razões de legalidade ou de interesse público”.
Dest’arte, e atento o preceituado no n.° 2 deste art. 8°, cabe dizer que, in casu, nenhuma referência se encontra ou foi feita à (necessária) “aprovação da minuta” deste dito “contrato de fls. 55”, (no caso, assinado antes da vigência da própria Lei), e que, como é claro e evidente, (referindo-se a uma “minuta”), constitui, necessariamente, um “acto prévio” à celebração do “contrato” – sobre este aspecto, vd., o citado Parecer n.° 1/II/2004, pág. 27 e 28, e, Hugo Luz dos Santos e José Miguel Figueiredo in, “Regime Jurídico da Concessão de Crédito para Jogo ou para Aposta em Casino – Anotado e Comentado”, pág. 244 e 245 – impondo-se, assim a conclusão de que, como tal, do mesmo “contrato” celebrado em 28.06.2004, nenhum “efeito jurídico” válido e útil para a situação dos autos se pode retirar.
Aqui chegados, é momento de dedicarmos a nossa atenção ao estatuído no art. 4° desta Lei n.° 5/2004, onde se prescreve que “Da concessão de crédito exercida ao abrigo da presente lei emergem obrigações civis”, apresentando-se-nos assim que justo e adequado é concluir que da “concessão de crédito” referida nos presentes autos, (porque efectuada ao arrepio da dita Lei), não “emergem obrigações civis”, dando apenas lugar a uma “obrigação natural”, à qual se aplica o “regime legal” que lhe é próprio e que se retira da sua noção dada pelo art. 396° do C.C.M. onde se preceitua que: “A obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”; (sobre o tema, vd., v.g., A. Costa in, “Obrigações”, pág. 153 a 174; A. Varela in, “Obrigações”, pág. 719 a 741; G. Telles in, “Direito das Obrigações”, pág. 49 a 52; Rui Camacho Palma in, “Da Obrigação Natural”; Castro Mendes in, “Teoria Geral”, Vol. I, pág. 149; e Menezes Cordeiro in, “Obrigações”, pág. 321).
De facto, (e como se colhe do referido Parecer n.° 1/II/2004), o preceituado na versão (original) da Proposta de Lei foi especialmente alterado com a introdução desta redacção pois que: “Entenderam os membros da Comissão e o Executivo que, no texto do normativo do artigo 4.º, deveria ser esclarecido que só da concessão para crédito que for exercida nos termos e para os efeitos da presente proposta de lei podem emergir obrigações civis”; (cfr., pág. 17 do dito Parecer).
No mesmo sentido, comentando o preceito em questão salientam, nomeadamente, H. L. dos Santos e José M. Figueiredo, (in ob. cit., pág. 179), que: “Percebe-se a relevância central atribuída a esta questão: este é, de facto, um dos efeitos mais relevantes decorrentes desta norma, na medida em que, quando o crédito não é concedido de forma ilícita, os meios de cobrança do concedente são também eles não lícitos. Na verdade, se o crédito for concedido ilicitamente, o concedente não pode recorrer aos tribunais para fazer valer o seu crédito, circunstância que abre a porta ao recurso a meios torpes e pouco dignos na cobrança do crédito”, acrescentando também que, “Por fim, saliente-se que a emergência de obrigações civis só ocorre para a concessão de crédito concedida ao abrigo do presente regime, como resulta expressamente da norma, quando prescreve que da concessão de crédito exercida ao abrigo da presente lei emergem obrigações civis. Neste sentido: «só da concessão para crédito que for exercida nos termos e para os efeitos da presente proposta de lei podem emergir obrigações civis». A solução compreende-se: se a concessão de crédito celebrada fora do âmbito da presente lei não é admitida, então, a mesma nem sequer chega a produzir efeitos”.
Nesta conformidade, constituindo um dos traços essenciais das obrigações naturais a sua “inexibilidade”, (em que o devedor não pode ser compelido a efectuar – cumprir – a obrigação), imperativo se mostra de concluir que o Acórdão recorrido não se pode manter.
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–– Por fim, uma última nota.
Nos termos do art. 16° da já referida Lei n.° 5/2004:
“Os factos praticados no exercício da actividade de concessão de crédito, por entidade habilitada ao abrigo da presente lei, não se consideram usura para jogo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13.º da Lei n.º 8/96/M, de 22 de Julho”.
Atento o assim estatuído e o até aqui considerado, e não se mostrando ser os presentes autos o meio processual próprio para se tratar da eventual relevância criminal de determinada factualidade aqui referenciada, adequado se apresenta que, para os efeitos tidos por convenientes, se proceda à oportuna notificação do Ministério Público do presente acórdão.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido para ficar a valer a sentença do Tribunal Judicial de Base que julgou procedentes os deduzidos embargos.
Custas, (em ambas as Instâncias), pelo exequente/embargado, com taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.
Registe e notifique.
Oportunamente, nada mais vindo aos autos, remeta cópia do presente acórdão aos Serviços do Ministério Público e devolvam-se os presentes autos ao Tribunal Judicial de Base com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 26 de Maio de 2021
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 19/2020 Pág. 26
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