Processo nº 16/2021 Data: 03.06.2021
(Autos de recurso jurisdicional)
Assuntos : Procedimento disciplinar.
“Ne bis in idem”.
Nulidade.
SUMÁRIO
1. Ainda que se possa dizer que o princípio “ne bis in idem” não tem “consagração expressa” no sistema jurídico da R.A.E.M., inegável é que o mesmo se deve ter como (plenamente) reconhecido (e estatuído), nomeadamente, por força do art. 14°, n.° 7 do “Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos” – onde se prescreve que: “Ninguém pode ser julgado ou punido novamente por motivo de uma infracção da qual já foi absolvido ou pela qual já foi condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal de cada país” – pela Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau tido como aplicável através do seu art. 40°, constituindo uma das suas evidentes manifestações o disposto no art. 6° e 65°, n.° 2 do C.P.M., quanto à matéria da “restrição à aplicação da lei penal de Macau” e no que toca à “determinação da medida da pena”.
2. De acordo com o princípio «ne bis in idem» – em língua chinesa, “一事不二審/不得重複審理/一罪不二罰”, e em língua inglesa, “double jeopardy” – “ninguém pode ser julgado/condenado mais do que uma vez (ne bis) pelo mesmo (idem) facto/crime”; (possível sendo a consideração no sentido de se tratar de um “conceito processual” ou “material jurídico”, o que pode, por sua vez, dar origem à sua vertente “processual” ou “substantiva”, respectivamente).
Isto é, o “princípio «ne bis in idem»” proíbe, assim, que na actividade sancionatória, se proceda a uma dupla (ou segunda) valoração do mesmo substrato material atenta a “paz jurídica” que ao arguido se deve garantir finda a perseguição de que foi alvo, evitando pronúncias díspares sobre factos unitários.
3. Atento o estatuído no art. 277° do E.T.A.P.M., onde se prescreve que “Aplicam-se supletivamente ao regime disciplinar as normas de Direito Penal em vigor no Território, com as devidas adaptações” – dúvidas não existem da aplicabilidade do referido “princípio «ne bis in idem»” ao “procedimento disciplinar”.
4. Verificando-se que com o 2° processo disciplinar (n.° 03/PD/2014) se efectuou uma “recuperação e reapreciação da (mesma) matéria de facto” que já tinha sido objecto de pronúncia em decisão (de fundo) que a deu como não provada em sede de anterior processo (n.° 02/04/ST/DSAL/2009) instaurado ao mesmo arguido, violado foi o “princípio «ne bis in idem»”, sendo de considerar que a “situação” integra a “nulidade” prevista no art. 122°, n.° 1, al. d) do C.P.A., onde se prescreve que são nulos os actos que “ofendem o conteúdo essencial de um direito fundamental”.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 16/2021
(Autos de recurso jurisdicional)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), com os restantes sinais dos autos, recorreu contenciosamente para o Tribunal de Segunda Instância do despacho do SECRETÁRIO PARA A ECONOMIA E FINANÇAS que lhe aplicou a pena disciplinar de suspensão de funções pelo período de 1 ano; (cfr., fls. 2 a 34 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, e adequadamente processados os autos, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 10.09.2020, (Proc. n.° 915/2018), julgando procedente o aludido recurso e anulando o acto administrativo recorrido; (cfr., fls. 97 a 114 e 4 a 41 do Apenso).
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Inconformada com o assim decidido, a referida entidade administrativa recorreu; (cfr., fls. 127 a 130 e 42 a 49 do Apenso).
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Por sua vez, pelo dito recorrente A foi também interposto recurso; (cfr., fls. 132 a 156 e 50 a 89 do Apenso).
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Por despachos do Exmo. Relator foram os recursos admitidos e remetidos a esta Instância; (cfr., fls. 120 e 124).
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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer onde conclui no sentido de que “Deve ser concedido parcial provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo Recorrente contencioso, anulando-se o acto administrativo com fundamento no vício de violação do princípio do ne bis in idem”; (cfr., fls. 178 a 185-v).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Tem a “decisão da matéria” de facto do Acórdão agora recorrido o teor seguinte:
“Resulta provada dos elementos constantes dos autos, designadamente do processo administrativo, a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão do recurso:
O recorrente é técnico superior da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais.
Houve indícios de que o recorrente teria praticado infracção disciplinar em 2009.6.25.
Foi instaurado em 2009.9.15 processo disciplinar contra o recorrente, registado sob o n.º 02/04/ST/DSAL/2009.
O recorrente foi ouvido em declarações no dia 2009.10.20.
Feitas as diligências, foi determinado pelo então Director dos Serviços para os Assuntos Laborais, por despacho de 2009.11.5, o arquivamento do processo, por entender não haver provas suficientes que permitissem demonstrar que o recorrente teria praticado alguma infracção disciplinar. (cfr. relatório e despacho constante de fls. 36 a 42 dos autos)
Por despacho do Director dos Serviços para os Assuntos Laborais, de 2014.9.12, foi ordenada a instauração de novo processo disciplinar contra o recorrente, autuado sob o n.º 03-PD/2014, baseado nos mesmos factos a que se aludia no processo disciplinar registado sob o n.º 02/04/ST/DSAL/2009, tendo o instrutor dado início à instrução em 2014.9.19.
A entidade recorrida ordenou em 2014.9.23 a suspensão do procedimento disciplinar, nos termos do n.º 2 do artigo 328.º do ETAPM, até o trânsito em julgado da sentença que viesse a ser proferida pelo Tribunal Criminal, no âmbito de um processo-crime em que figurava o recorrente como arguido.
Por Acórdão do TSI, transitado em julgado em 2018.6.5, foi confirmada a decisão de Primeira Instância que condenou o recorrente numa pena de 210 dias de multa, pela prática de um crime previsto e punível pelo artigo 347.º do Código Penal.
Em consequência, foi ordenado o prosseguimento do processo disciplinar registado sob o n.º 03-PD-2014.
O instrutor do processo disciplinar veio propor que fosse aplicada ao recorrente a pena disciplinar de demissão.
Remetida a proposta ao Gabinete do Secretário, foi proposta a alteração da pena disciplinar, sugerindo que fosse aplicada ao recorrente a pena de suspensão de funções por um ano.
Por despacho de 2018.9.7, a entidade recorrida concordou com a supra proposta”; (cfr., fls. 100-v a 101-v).
Do direito
3. Como resulta do que até aqui se deixou relatado, 2 são os recursos trazidos a esta Instância, tendo ambos como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que julgando parcialmente procedente o recurso contencioso, decidiu pela anulação do acto administrativo punitivo aí objecto de recurso.
Para uma boa – melhor – compreensão das razões que levaram o Tribunal de Segunda Instância a decidir nos referidos termos, vale a pena atentar na fundamentação que expôs na decisão prolatada.
Na parte que agora interessa, tem o dito Acórdão o teor seguinte:
“Alegada violação do princípio ne bis in idem
De facto, no âmbito da responsabilidade penal, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime (cfr. artigo 6.º do Código Penal).
Manda o artigo 277.º do ETAPM que são aplicadas supletivamente ao regime disciplinar as normas de Direito Penal em vigor, com as devidas adaptações, sendo verdade que o princípio ne bis in idem constitui um dos princípios basilares do Direito e Processo Penal.
Embora aquele preceito se refira expressamente à perseguição criminal, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender que aquele princípio é aplicável também à perseguição de infracções de matriz disciplinar.
No caso vertente, foi instaurado em 2009.9.15 processo disciplinar contra o recorrente, mas por despacho proferido pelo Director dos Serviços para os Assuntos Laborais em 2009.11.5, foi decidido o seu arquivamento, por entender não haver provas suficientes de que o recorrente cometeu alguma infracção disciplinar.
Passados cerca de 5 anos, o Director dos Serviços para os Assuntos Laborais ordenou, em 2014.9.12, a instauração de novo processo disciplinar contra o recorrente, baseado nos mesmos factos a que se aludia no processo disciplinar anteriormente instaurado contra o recorrente e que já foi arquivado.
Quid iuris?
Ora bem, não obstante o processo disciplinar foi arquivado por falta de prova, mas nada impede que se instaure novo processo quando se verificar novos elementos de prova que indiciem a prática de infracção disciplinar por algum trabalhador da função pública.
É que resulta do disposto no artigo 288.º do ETAPM:
“1. A sentença que condene um funcionário ou agente, por qualquer crime, logo que transitada em julgado, determinará também a instauração de procedimento disciplinar, com relação a todos os factos nele dados como provados e que não tenham sido objecto de anterior processo, instaurado nos termos do n.º 3 do artigo anterior, sem prejuízo do que dispõe o n.º 2 do artigo 328.º
2. O processo disciplinar instaurado com base em decisão penal, ou o que então deva prosseguir os seus termos, será obrigatoriamente instruído com certidão da sentença proferida, após o trânsito em julgado.”
Em boa verdade, a lei manda instaurar processo disciplinar quando se verificar condenação de algum funcionário ou agente por qualquer crime, e a situação é semelhante àquela que está prevista no artigo 261.º do Código de Processo Penal, no sentido de que “o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento”.
No fundo, o artigo 288.º do ETAPM permite que a Administração instaure novo processo disciplinar, mesmo que o anterior já tenha sido arquivado. A nosso ver, só não haveria lugar a instauração de novo processo disciplinar se a questão em causa já tivesse sido objecto de apreciação por alguma decisão judicial, o que não é o caso.
Isto posto, improcedem as razões invocadas pelo recorrente quanto a esta parte.
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Suposta prescrição do procedimento disciplinar
O recorrente vem suscitar a prescrição do procedimento disciplinar.
Vejamos.
De acordo com os elementos constantes dos autos, assente está que os factos foram cometidos em 2009.6.25.
O prazo de prescrição é de 3 anos a contar da data em que a falta foi cometida, aplicando-se o prazo de prescrição estabelecido na lei penal se os factos imputados também constituírem infracção penal.
No caso vertente, atentas as disposições legais previstas nos artigos 347.º e 110.º, alínea d), ambos do Código Penal, bem assim o artigo 289.º, n.º 2 do ETAPM, o prazo de prescrição passa a ser de 5 anos, terminando, em princípio, o prazo de prescrição em 2014.6.25.
Entretanto, prevê-se no n.º 3 do artigo 289.º do ETAPM que, verificando-se a prática de qualquer acto instrutório com efectiva incidência na marcha do processo, a prescrição conta-se desde o dia em que tiver sido praticado o último acto, ou seja, neste caso há lugar a interrupção do prazo prescricional.
Mais, logo que seja instaurado processo disciplinar, há lugar a suspensão do prazo prescricional, ao abrigo do n.º 4 da mesma disposição legal.
No caso dos autos, apesar de os factos serem cometidos em 2009.6.25, e sendo o prazo de prescrição de 5 anos, mas como houve instauração do processo em 2009.9.15, o prazo prescricional ficou suspenso até que fosse proferido o despacho de arquivamento.
Por outro lado, tendo em conta que no primeiro processo disciplinar instaurado contra o recorrente, este foi ouvido em declarações no dia 2009.10.20, daí que a partir dessa data se verificou interrupção do prazo de prescrição, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 289.º do ETAPM, devendo a prescrição contar-se de novo desde aquela data.
Atento o facto de que o segundo processo disciplinar foi instaurado em 2014.9.19, dúvidas de maior não restam de que nessa altura ainda não decorreram os 5 anos desde a última interrupção verificada em 2009.10.20.
E importa ainda realçar que por despacho de 2014.9.23, foi ordenada a suspensão do procedimento disciplinar nos termos consentidos pelo n.º 2 do artigo 328.º do ETAPM, só tendo a decisão penal transitado em julgado no dia 2018.6.5, pelo que aquando da prática do acto recorrido pela entidade recorrida, em 2018.9.7, ainda não se verifica prescrito o procedimento disciplinar.
Apenas mais uma asserção.
Em boa verdade, decidiu-se no Acórdão deste TSI, no âmbito do Processo n.º 28/2019, o seguinte:
“1 – Se é certo que o Direito Penal obedece ao princípio da intervenção mínima e é um “direito agressivo” porque toca à liberdade das pessoas, de modo geral, toca aos direitos fundamentais dos cidadãos, em que se o legislador fixa o limite máximo do prazo de prescrição do procedimento sancionatório, por que razão é que no direito de processo disciplinar não contém instituto semelhante? Entendemos que o artigo 113.º do CPM se aplica subsidiariamente à matéria de processo disciplinar, por força do disposto no artigo 277.º do ETAPM.
2 – Num hipótese extrema ― defender-se a inexistência do limite máximo do prazo de prescrição do procedimento disciplinar ― pode conduzir ao resultado de que não haja prescrição do prazo do procedimento administrativo, porque a Administração Pública poderia, quando o prazo de prescrição está quase esgotar-se, praticar um acto instrutório para suspender o prazo, com o que exercerá uma “pressão permanente” sobre o infractor do ilícito disciplinar! Pensamos que numa sociedade de Direito, tal não é permitido nem tolerável.”
Ora bem, na medida em que o n.º 3 do artigo 113.º do Código Penal é aplicável ao procedimento disciplinar, há-de saber até quando que o mesmo vai prescrever.
Dispõe o n.º 3 do artigo 113.º do Código Penal que “a prescrição do procedimento penal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade…”
No caso presente, provado está que o recorrente cometeu a infracção disciplinar em 2009.6.25; sendo o prazo de prescrição de 5 anos, acrescido de metade (2 anos e meio) e ressalvado o tempo máximo de suspensão (3 anos) previsto no n.º 2 do artigo 112.º do Código Penal, verifica-se que o procedimento já prescreveu em 2019.12.25.
Não obstante, como está em causa no presente recurso contencioso o acto praticado pela entidade recorrida em 2018.9.7, isso significa que nessa altura o procedimento disciplinar ainda não se encontrava prescrito, improcedendo, assim, o vício apontado.
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Ofensa do conteúdo essencial de direito fundamental (direito de defesa)
Assaca ainda o recorrente ao acto recorrido nulidade do acto com fundamento na ofensa do conteúdo essencial de direito fundamental, quanto ao seu direito de defesa.
Quanto a esta parte, julgamos assistir razão ao recorrente, e damos aqui por reproduzida a opinião do Ilustre Procurador-Adjunto quanto a essa questão, com a qual concordamos, nos termos seguintes:
“Repare-se que exarado no Parecer n.º 192/VC-SEF/2018 (doc. de fls. 210 a 215 do P.A. (2/2)), o despacho em questão reza concisamente “Subscrevem-se o parecer analítico e a proposta do assessor, aplica-se ao arguido a pena disciplinar de suspensão de funções por um ano. À DSAL a notificação ao arguido”. De acordo com o n.º 1 do art.º 115º do CPA, a expressa declaração de concordância implica que tal despacho absorve o referido Parecer na sua íntegra.
O próprio Parecer n.º 192/VC-SEF/2018 revela inequivocamente que a ilustre assessora autora desse Parecer não tocou a qualificação relativa aos dois deveres cuja culposa violação tinha sido imputada ao recorrente pelo instrutor na Acusação, quais são de os de isenção e de lealdade. Com efeito, tal Parecer introduziu duas alterações na Acusação traduzidas, de um lado, em retirar a circunstância de “conluio” consignado na alínea d) do n.º 1 do art.º 283º do ETAPM, de outro e sobretudo, em alterar a pena aplicável que passou da demissão indicada na Acusação para a suspensão por período de um ano.
Bem, na Acusação o instrutor sugeriu a pena de demissão ao abrigo do disposto nas alíneas n) e o) do n.º 2 do art.º 315º do ETAPM, e a ilustre assessora propôs a pena suspensão por período de um ano de acordo com o preceito na alínea e) do n.º 4 do art.º 314º deste Estatuto. Daí decorre que o Parecer supra referido alterou efectivamente a base legal a que alude a Acusação, e assim operou uma alteração da qualificação jurídica.
Sem prejuízo do elevado respeito pela opinião diferente, e em harmonia com a jurisprudência preconizada pelo Venerando TUI (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º 8/2001), a sobredita alteração da qualificação jurídica não se configura num minus relativamente à da acusação, e portanto exigiu a prévia comunicação da mesma alteração ao arguido/ora recorrente, sob pena de inquinar o processo de nulidade insuprível por falta de audiência do arguido, a que se refere o n.º 1 do art.º 298º do ETAPM.
Nesta linha de perspectiva, e considerando que antes do despacho em questão, aquela alteração da qualificação jurídica operada pela ilustre assessora no Parecer não foi comunicada ao arguido/recorrente, parece-nos que esse despacho enferma da nulidade insuprível prevista no n.º 1 do art.º 298º do ETAPM e, assim, é anulável (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º 52/2006).”
Isto posto, julgamos procedente esta parte do recurso, devendo o acto recorrido ser anulado.
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Alegado erro nos pressupostos de facto
O recorrente alega ainda que, segundo a matéria de facto dada como provada na sentença condenatória, não se vislumbra que ele tivesse obtido qualquer interesse efectivo, daí que, no entender, não houve violação do dever de isenção.
Quanto a esta parte, damos aqui por reproduzido o teor do parecer do Ministério Público, com o qual também concordamos, na respectiva parte abaixo transcrita:
“O recorrente arguiu que a imputação da violação do dever de isenção a ele padecia do erro nos pressupostos de facto, fundamentando que a sentença tirada no Processo n.º CR1-14-0254-PCS não deu por provado que ele tivesse obtido efectivo interesse (art.º 86º da petição).
Prescreve o n.º 2 do art.º 279º do ETAPM: O dever de isenção consiste em não retirar vantagens que não sejam devidas por lei, directas ou indirectas, pecuniárias ou outras, das funções que exercem, actuando com imparcialidade e independência em relação aos interesses e pressões particulares de qualquer índole, na perspectiva do respeito pela igualdade dos cidadãos.
A segunda parte implica que o dever de isenção impede não só de retirar, directa ou indirectamente, ilícitas vantagens pecuniárias ou outras para o próprio trabalhador da Administração Pública, mas também obsta a retirá-las para terceiros.
No caso sub judice, a sentença supra aludida deu como provado o facto de que “Na altura do caso, o arguido, enquanto Chefe do DFP da DSAL, tinha poder ex officio de dispor e fazer uso dos lugares de estacionamento dentro do auto-silo do Bairro Social de Mong-Há tomados pela DSAL de aluguer. No entanto, o arguido abusou do seu poder e violou deveres inerentes às suas funções, autorizou às ocultas a B - não possuindo o direito de utilizar o lugar de estacionamento acima referido - usá-lo. Os seus actos fizeram que B obtivesse benefício ilegítimo.”
Tal facto provado conduz, sem margem para dúvida, a que não se verifica in casu o arrogado erro nos pressupostos de factos.”
Nesta conformidade, julgamos improcedente o recurso nesta parte.
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Alegada falta de verificação de circunstância agravante da responsabilidade disciplinar
Assaca ainda o recorrente ao acto recorrido vício de violação de lei, por não se verificar, na sua perspectiva, a circunstância agravante prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 283.º do ETAPM.
De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 283.º do ETAPM, a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral, nos casos em que o funcionário ou agente pudesse ou devesse prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta constitui uma circunstância agravante da responsabilidade disciplinar.
Diz o recorrente que provado não está na sentença condenatória nem na acusação formulada em processo disciplinar que foram causados prejuízos relevantes para o serviço público nem para o interesse geral, assacando, assim, ao acto recorrido, vício de violação de lei por erro de direito.
A nosso ver, julgamos não assistir razão ao recorrente.
Se atentarmos naquilo que foi escrito na sentença condenatória, verifica-se que o Juiz apenas afirmou que a conduta do recorrente não causou grandes prejuízos ao interesse público.
Mas não ter causado grandes prejuízos não significa que não causou prejuízos, são duas situações diferentes.
Segundo a matéria dada como provada no âmbito do processo disciplinar, verifica-se que o recorrente autorizou pessoa terceira a estacionar veículo particular no lugar de estacionamento da RAEM.
A nosso ver, não parece que a conduta do recorrente tivesse causado grandes prejuízos ao interesse público, mas ao ter autorizado pessoa terceira a usar o parque de estacionamento, estava a conceder-lhe um benefício ilegítimo em detrimento do interesse público, na medida em que ao Serviço estava vedado o uso do mesmo.
Sendo assim, preenchida está a circunstância agravante prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 283.º do ETAPM, improcede o recurso quanto a esta parte.
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Suposta violação do princípio da tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos residentes e do princípio da proporcionalidade
Finalmente, assaca o recorrente ao acto recorrido violação dos princípios da tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos residentes e da proporcionalidade, alegando que a pena disciplinar da suspensão de funções por um ano é demasiada severa, por que ele não obteve vantagem efectiva nem provocou grave lesão ao interesse público, é primário e apenas revela média intensidade do dolo.
Seguramente, os Tribunais da RAEM têm reiterada e pacificamente decidido que a violação dos princípios gerais da actividade administrativa só releva no âmbito do exercício de poderes discricionários, sendo apenas sindicável pelo Tribunal em caso de erro grosseiro ou utilização de critério manifestamente inadequado, o que não é o caso. Sendo assim, improcede esta parte do recurso.
Por tudo quanto acima deixou exposto, o Tribunal julga parcialmente procedentes as razões aduzidas pelo recorrente.
(…)”; (cfr., fls. 107-v a 114).
Aqui chegados, vejamos.
Como resulta do que se deixou exposto, o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância conheceu de todas as “questões” pelo então recorrente suscitadas, negando provimento às (assacadas ao acto administrativo aí recorrido e) relacionadas com a sua “violação do princípio «ne bis in idem»”, “prescrição do procedimento disciplinar”, “erro nos pressupostos de facto”, “falta de verificação de circunstância agravante da responsabilidade disciplinar” e “violação dos princípios da tutela dos direitos e interesses dos residentes e da proporcionalidade”, reconhecendo-lhe razão no que toca à imputada “ofensa ao seu direito de defesa”, e, assim, concluindo com a decisão de (parcial) procedência do recurso e consequente anulação do acto administrativo punitivo objecto do mesmo.
Percorrendo as alegações e conclusões de recurso pela entidade administrativa (então recorrida e) agora recorrente apresentadas, verifica-se que a sua discordância em relação ao pelo Tribunal de Segunda Instância decidido, assenta, (tão só, e como é óbvio), no que toca à (dada como verificada) “ofensa ao direito de defesa” do agora também recorrente A.
Por sua vez, analisadas as alegações e conclusões por este recorrente apresentadas, colhe-se que o mesmo insiste nas “questões” atrás já identificadas e que pelo Tribunal de Segunda Instância foram consideradas improcedentes.
Em face do que se deixou exposto, que dizer?
A primeira observação que se mostra de aqui deixar consignada consiste em salientar a “boa prática processual” que o Acórdão recorrido e o Parecer do Ministério Público demonstram, pois que como as referidas peças processuais evidenciam, em ambas elas procedeu-se à apreciação de todas as questões suscitadas, sobre as mesmas emitindo-se discriminada pronúncia.
Isto dito, e ponderando na “natureza das questões” pelos agora recorrentes, (agora, novamente), trazidas à apreciação deste Tribunal de Última Instância, e cabendo-nos a sua apreciação e decisão, mostra-se-nos desde já adequado atentar no estatuído no art. 74° do C.P.A.C., onde – sob a epígrafe “ordem do conhecimento das questões” – se prescreve que:
“1. Na sentença ou acórdão, o tribunal começa por resolver as questões que obstem ao conhecimento do recurso e que tenham sido suscitadas nas alegações, na vista final do Ministério Público ou pelo juiz ou relator, ou cuja decisão tenha sido relegada para final.
2. Quando nada obste ao julgamento do recurso, o tribunal conhece prioritariamente dos fundamentos que conduzam à declaração de nulidade ou de inexistência jurídica do acto recorrido e, depois, dos que determinem a sua anulação.
3. Nos referidos grupos, a apreciação dos fundamentos é feita pela ordem seguinte:
a) No primeiro grupo, a dos fundamentos cuja procedência determine, segundo a prudente convicção do tribunal, mais estável ou mais eficaz tutela dos direitos ou interesses lesados;
b) No segundo grupo, a ordem indicada pelo recorrente, quando estabeleça entre os fundamentos apresentados uma relação de subsidiariedade, ou, na sua falta, a que resulte da regra prevista na alínea anterior.
4. Quando o Ministério Público invoque novos fundamentos de anulação do acto, é observada, na ordem de apreciação dos fundamentos alegados, a regra prevista na alínea a) do número anterior.
5. A procedência de um dos fundamentos não prejudica a apreciação de outros, na ordem prevista, quando o tribunal, face à eventualidade de renovação do acto recorrido, o entenda necessário para melhor tutela dos direitos ou interesses do recorrente.
6. A errada qualificação pelo recorrente dos fundamentos do recurso não impede o seu provimento com base na qualificação que o tribunal considere adequada”.
Nesta conformidade, (da reflexão que se nos foi possível efectuar), e tendo como inteiramente justas e acertadas as considerações pelo Ministério Público tecidas no seu Parecer sobre a questão da “violação do princípio «ne bis in idem»”, adequado se apresenta – em face do seu “efeito” em relação às restantes questões colocadas – que se passe a proceder à sua apreciação e decisão; (cfr., n.° 2 do transcrito art. 74° do C.P.A.C.).
E decidindo…
Pois bem, como se deixou dito, é o Ministério Público de opinião que a decisão administrativa punitiva objecto do recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância colide com o “princípio «ne bis in idem»”.
Com efeito, pronunciando-se sobre esta questão, considera (nomeadamente) que:
“(…)
A aplicação do dito princípio no direito disciplinar significa, por um lado, que não pode aplicar-se ao mesmo funcionário ou agente mais do que uma pena disciplinar por cada infracção e dele também resulta, por outro lado, que, se em relação a uma mesma infracção já foi instaurado um processo disciplinar no âmbito do qual foi proferida uma decisão final de «absolvição» por parte da entidade com competência decisória, nos termos do artigo 338.º do ETAPM, ou seja, uma decisão que considere não estarem verificados os pressupostos de facto e/ou de direito indispensáveis à aplicação de uma sanção disciplinar, não pode ser instaurado novo processo disciplinar tendo por objecto os mesmos factos nem nele ser aplicado uma decisão punitiva, em razão do caso decidido que entretanto se formou.
No caso em apreço, foi instaurado um primeiro processo disciplinar contra o Recorrente no âmbito do qual não foi produzida qualquer acusação. Pelo contrário, tal processo veio a culminar com um despacho de arquivamento nos termos do artigo 332.º, n.º 1 do ETAPM.
Em nosso entender, tal acto administrativo de arquivamento impõe-se à própria Administração, autovinculando-a, como caso decidido, a isto não obstando o disposto no artigo 288.º, n.º 1 do ETAPM.
Na verdade, esta norma tem de ser entendida nos seus devidos termos. A condenação penal de um funcionário ou agente transitada em julgado determinará a instauração de processo disciplinar apenas nas situações em que tal processo não tenha sido já instaurado. Não haverá lugar a tal instauração, como parece óbvio, naquelas situações em que tal processo não só tenha sido instaurado, como, além disso, tenha sido concluído com uma pronúncia «condenatória» ou «absolutória» por parte da Administração, em razão de um juízo quanto ao «mérito» da pretensão punitiva.
Não podemos, por isso e com todo o respeito, acompanhar o douto acórdão recorrido quando aí se considerou que a situação em apreço é semelhante à que se encontra prevista no artigo 261.º do Código de Processo Penal, nos termos do qual, o inquérito pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos constantes do despacho de arquivamento.
Não é assim. O arquivamento do processo disciplinar com base na falta de prova dos factos constitutivos da infracção disciplinar é um verdadeiro acto administrativo, sujeito, como tal, a impugnação contenciosa e que, findo o prazo desta sem que a mesma seja deduzida se consolida na ordem jurídica como caso decidido mercê da sua inimpugnabilidade (caso decidido formal) com todos os efeitos que lhe estão associados, nomeadamente o efeito vinculativo (caso decidido material), o qual se traduz no carácter obrigatório das determinações contidas no acto administrativo para os sujeitos da relação jurídica sobre a qual incide (assim, MARCELO REBELO DE SOUSA – ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, 2007, p. 185).
Assim, da mesma forma que uma sentença penal transitada em julgado que absolve o arguido com base na falta de prova dos factos que lhe foram imputados na acusação impede um novo julgamento pelos mesmos factos, também um acto administrativo tornado inimpugnável pelo decurso do prazo do recurso contencioso ou da revogação anulatória, também chamada de anulação administrativa, que arquive o processo disciplinar por falta de prova dos factos constitutivos da infracção disciplinar obsta a que se instaure um novo processo disciplinar tendente à apreciação dos mesmos factos (neste sentido, pode ver-se o acórdão desse Tribunal de última Instância de 16 de Maio de 2018, processo n.º 40/2018 e, na doutrina comparada, referindo-se precisamente a situação em tudo semelhante à que se encontra sob juízo, PAULO VEIGA E MOURA – CÁTIA ARRIMAR, Comentários…, p. 520. Em bom rigor, o acto administrativo aqui em causa e contra o qual o Recorrente contencioso reagiu, constitui uma revogação anulatória implícita por substituição com fundamento em invalidade do acto revogado por erro nos pressupostos de facto que é, ela própria, ilegal por ter sido efectuada depois do prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 130.º do Código do Procedimento Administrativo).
Concluímos, desta forma, que a decisão recorrida não andou bem ao julgar improcedente o arguido vício do acto administrativo gerador da respectiva anulabilidade (cfr. artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo) consistente na violação do princípio non bis in idem e que, portanto, com esse fundamento, tal acto deveria ter sido objecto de anulação.
(…)”; (cfr., fls. 181-v a 182-v).
E, como se deixou adiantado, temos como acertadas as considerações assim tecidas.
Eis o porque deste nosso ponto de vista.
Antes de mais, e sem prejuízo do muito que se poderia dizer sobre o “princípio «ne bis in idem»”, tem-se por adequado considerar o mesmo – o que também sucede com o princípio da “legalidade”, da “tipicidade”, da “irretroactividade”, da “presunção”, da “inocência” e outros – como um “direito fundamental e transnacional”, (universal), que há muito, e ainda que de forma não totalmente coincidente, tem sido aceite nos mais variados ordenamentos jurídicos; (sobre a sua origem e evolução, vd., v.g., entre muitos, Inês Ferreira Leite in, “Ne (Idem) Bis In Idem – Proibição de Dupla Punição e de Duplo Julgamento: Contributos para a Racionalidade do Poder Punitivo Público”, Vol. I, pág. 41 e segs.; Vânia Costa Ramos in, “Ne bis in idem e União Europeia”; Alberto Medina de Seiça in, “A aplicação do princípio ne bis in idem na E.U.”; Filipa M. A. Marques Pais de Aguiar in, “Direito Constitucional Comparado: Evolução histórica do ne bis in idem – China e Portugal”, Polis n.° 1, Janeiro/Junho 2020, pág. 101 e segs.; e, Zhang Jun, Shan Changzong e Miao Youshui in, “China's Theory and Practice on Ne Bis In Idem”, Revue Internationale de Droit Penal, Vol. 73, pág. 865 a 872).
Por sua vez, e ainda que se possa – eventualmente – considerar que o mesmo não tem “consagração expressa” no sistema jurídico da R.A.E.M., inegável cremos ser que o mesmo se deve ter como (plenamente) reconhecido (e estatuído), nomeadamente, por força do art. 14°, n.° 7 do “Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos” – onde se prescreve que: “Ninguém pode ser julgado ou punido novamente por motivo de uma infracção da qual já foi absolvido ou pela qual já foi condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal de cada país” – pela Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau tido como aplicável através do seu art. 40°, constituindo uma das suas evidentes manifestações o disposto no art. 6° e 65°, n.° 2 do C.P.M., quanto à matéria da “restrição à aplicação da lei penal de Macau” e no que toca à “determinação da medida da pena”; (inegável sendo a sua relevância prática, como aliás nos dá clara conta Zhao Bingzhi e Shi Yan’an nos seus estudos “Concepção sobre o regime de resolução eficaz do conflito de competência penal inter-regional da China”, in “Administração”, n.° 63, pág. 209 a 254 e n.° 64, pág. 557 a 607; Chen Yongsheng in, “O Princípio ne bis in idem e a Resolução do Conflito de Competência Penal Inter-regional da China”, Graduate Law Magazine, n.º 1; e Shan Changzong, Zhao Songling e Liu Benyong in, “Divisão da Competência Judicial Penal entre o Interior da China e a Região Administrativa Especial de Macau”, Estudos sobre o Direito Penal Inter-regional e a Cooperação Judiciária Penal da China, com coordenação de: Gao Mingxuan e Zhao Bingzhi, Law Press, Editora Zhongguo Fangzheng, 2000, pág. 129).
Não sendo este o local para grandes elaborações sobre o tema – que aliás, temos como inesgotável – e numa modesta tentativa de ponderar da sua (concreta) aplicação e respectivos efeitos relativamente à situação dos presentes autos, apresentam-se-nos adequadas as considerações seguintes.
Como é sabido, de acordo com o princípio «ne bis in idem» – em língua chinesa, “一事不二審/不得重複審理/一罪不二罰”, e em língua inglesa, “double jeopardy” – “ninguém pode ser julgado/condenado mais do que uma vez (ne bis) pelo mesmo (idem) facto/crime”; (possível sendo a consideração no sentido de se tratar de um “conceito processual” ou “material jurídico”, o que pode, por sua vez, dar origem à sua vertente “processual” ou “substantiva”, respectivamente).
Comentando o princípio em questão referem Gomes Canotilho e Vital Moreira que o dito princípio “comporta duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. (…)”; (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª ed., Vol. I, Coimbra, pág. 497 a 498).
Também o Prof. Damião da Cunha entende que este princípio deve ser entendido como “garantia subjectiva para o arguido não ser submetido duas vezes a um julgamento pelos mesmos “factos” e, consequentemente, e de acordo com um processo regido pelo princípio de acusação, não ser “acusado” duas vezes pelos mesmos factos”, esclarecendo que “o caso julgado penal em relação a futuros processos penais teria um efeito meramente negativo – a obrigação, para o juiz, de declinar a decisão sobre a questão já resolvida”; (in “Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória”, Universidade Católica, pág. 484).
Para poder responder à questão de saber quando é que um “facto” se pode considerar o “mesmo” e, assim, saber se está a ser objecto dum “duplo julgamento”, encontramos arrimo no que professam T. Pizarro Beleza e F. L. da Costa Pinto:
“De acordo com a doutrina dominante, o conceito de identidade do facto é de natureza material e não puramente processual e, por outro lado, é um conceito normativo e não um conceito naturalístico.
Significa isto que não é o processo que determina se o facto é ou não o mesmo, mas sim as características materiais do facto que podem infirmar ou confirmar a identidade do mesmo.
A identidade do facto é, por seu turno, um conceito normativamente modelado para o qual concorrem não só aspectos naturalísticos do objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado, acontecimento em causa, como também as conexões normativas que lhe conferem as qualidades que justificarão a sua integração no objecto dum processo.
Nesse sentido, a doutrina aponta três vectores da identidade do facto que devem ser tipos em conta, a saber: a identidade do agente, a identidade do facto legalmente descrito e a identidade de bem jurídico agredido. Agente, facto e bem jurídico são os três crivos de identificação da identidade do acontecimento que se pretende submeter a um processo.
Só perante a identidade destes três conjuntos de elementos (agente, facto legalmente descrito e bem jurídico) é que se pode afirmar que o facto que se pretende submeter a um certo processo é o mesmo ou é distinto de outro facto submetido, anteriormente ou concomitantemente, a outro processo.
(…)
Existirá dupla valoração sobre o mesmo facto quando o juízo de valor jurídico formulado incida sobre o mesmo agente e o mesmo facto em função da tutela do mesmo bem jurídico. Isto acontecerá independentemente da natureza da sanção aplicável. Para além destes casos de identidade plena de factos, ainda será necessário ponderar as situações de identidade parcelar dos factos em função das relações lógicas e axiológicas de identidade (i.e. consunção e, eventualmente, especialidade) e subordinação (i.e. subsidariedade) entre as normas que valoram as situações jurídicas. O que vale por dizer que a dupla valoração só é realmente evitada quando se sujeita o material analisado às regras vigentes que regulam as relações de concurso de normas. Só assim se pode garantir que uma pessoa ou entidade não é duplamente julgada ou condenada pelo mesmo facto, no seu todo ou em parte.
(…)”; (in “Direito Processual Penal I, Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado”).
Como também salienta Frederico Isasca, “crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio-temporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, (...), a expressão crime não pode ser tomada ao pé da letra, mas antes entendida como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evita. (…)”; (in “Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português”, pág. 220 a 221).
Igualmente, e como sobre “matéria idêntica” já ensinava Manuel de Andrade, “vale a máxima segundo a qual o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível» ou «tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat»”, ficando, por isso, precludida a possibilidade de se vir, “em novo processo, invocar outros factos instrumentais, ou outras razões (argumentos) de direito não produzidas nem consideradas oficiosamente no processo anterior”; (in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 1979, pág. 324; R.L.J., ano 70°, p. 235; Castro Mendes in, “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, pág. 178; e Anselmo de Castro in, “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, 1982, pág. 394).
Ora, atento o estatuído no art. 277° do E.T.A.P.M. aprovado pelo D.L. n.° 87/89/M de 21.12 – onde se prescreve que “Aplicam-se supletivamente ao regime disciplinar as normas de Direito Penal em vigor no Território, com as devidas adaptações” – dúvidas não parece que existam quanto à aplicabilidade do referido “princípio «ne bis in idem»” ao “procedimento disciplinar”, e, assim, ao que se refere a presente lide recursória e que culminou com a decisão de “suspensão do exercício de funções” proferida no âmbito do processo disciplinar n.° 03-PD/2014, na atrás retratada matéria de facto dada como provada identificado como o “2° processo”; (no mesmo sentido de que o dito princípio se aplica ao “processo disciplinar” já decidiu também este Tribunal de Última Instância no seu Acórdão de 13.09.2006, Proc. n.° 22/2006, de 10.06.2011, Proc. n.° 23/2011 e, mais recentemente, de 16.05.2018, Proc. n.° 40/2018, onde se tratou de questão muito próxima à agora em apreciação; igualmente, opinando pela extensão e aplicação do aludido princípio ao ilícito disciplinar, vd., v.g., Inês Ferreira Leite in, ob. cit., pág. 373 e segs.; Gomes Canotilho e Vital Moreira in, ob. cit., pág. 497 a 498; e Jorge Miranda e Rui Medeiros in, “Constituição Portuguesa Anotada”, Tome I, pág. 331).
E, nesta conformidade, atento o processado nos dois “processos disciplinares” em questão – o (1°) com o n.° 02/04/ST/DSAL/2009, e o (2°) com o n.° 03/PD/2014; cfr., os respectivos P.A. em apenso aos presentes autos – temos, para nós, que (com a “decisão administrativa punitiva” proferida neste 2° processo) se incorreu em clara violação do já aludido princípio.
Com efeito, mostra-se aqui adequado realçar que o (1°) processo n.° 02/04/ST/DSAL/2009 “findou” com uma “decisão” (expressamente proferida) de concordância com a “proposta de arquivamento” apresentada em sede do Relatório elaborado nos termos do art. 332° do referido E.T.A.P.M., e após uma série de “diligências (de investigação) efectuadas” pelo seu instrutor, no âmbito das quais, (para além de uma visita deste ao parque de estacionamento considerado abusivamente utilizado), se procedeu à recolha de declarações do próprio arguido e de várias outras pessoas na qualidade de testemunhas; (cfr., fls. 48 a 68 do P.A.).
Ora, como atrás se referiu, o “princípio «ne bis in idem»” prevê a inadmissibilidade, (em sentido amplo), de um “segundo procedimento” que vise o “mesmo sujeito” e que incida sobre “factos que já constituíram objecto de um outro processo”, apresentando-se, como já se referiu, como um princípio que comporta uma dimensão “subjectiva” – como um direito do cidadão que tem na base a necessidade de assegurar a sua paz jurídica – e uma dimensão “objectiva” – que impõe ao legislador a definição do direito processual e do caso julgado material para evitar a existência de um duplo julgamento sobre os mesmos factos; (ou, como nota Zhao Bingzhi in, ob. cit., pág. 222, “são dois os argumentos do princípio ne bis in idem: defender a dignidade das leis e a autoridade dos tribunais e proteger os direitos humanos do arguido”).
Isto é, o “princípio «ne bis in idem»” proíbe, assim, que na actividade sancionatória, se proceda a uma dupla (ou segunda) valoração do mesmo substrato material atenta a “paz jurídica” que ao arguido se deve garantir finda a perseguição de que foi alvo, e também no interesse de evitar pronúncias díspares sobre factos unitários, (o que, em nossa opinião, foi o que sucedeu no caso dos presentes autos).
Não se olvida que em sede do Acórdão deste Tribunal de 30.10.2020, (Proc. n.° 99/2020), se procedeu à apreciação de uma situação em que em causa estava um “novo processo disciplinar após o arquivamento de um outro, (anterior)”.
Porém, e em nossa opinião, (aí), a “situação” era – completamente – distinta (à que agora nos é colocada no presente recurso).
Como no referido aresto se teve oportunidade de consignar:
“Importa atentar que no dito processo disciplinar (arquivado) não foi sequer “deduzida acusação”, e que o decretado arquivamento não teve por causa (ou fundamento), nenhuma “razão substancial” (ou material), relacionada com o “mérito do processo”, (“fundo da causa”), onde em causa estaria a sua procedência ou improcedência, tendo, tão só, por motivação uma questão meramente formal ou processual, de “utilidade” (ou conveniência no seu prosseguimento), uma vez que se considerou – infelizmente, de forma não acertada – que por o arguido já estar disciplinarmente punido com uma pena de demissão, (com a qual se extinguia o vínculo jurídico funcional que tinha), necessário já não era prosseguir-se com o procedimento disciplinar (então em curso).
Na verdade, não se pode também olvidar que em conformidade com o que tem sido entendimento que se tem como o mais adequado, a “extinção da instância por inutilidade da lide”, (como foi o caso), apenas extingue a “relação jurídica processual” existente, mantendo-se – intacta – a “relação jurídica substancial”, não obstando a que sobre o mesmo objecto se proponha nova acção; (cfr., v.g., C. Pires e V. Lima in, “C.P.C.M. Anotado e Comentado”, Vol. II, pág. 98 e segs., e R. Pinto in, “C.P.C. Anotado”, Vol. I, pág. 428 e segs.)”.
In casu, e como cremos que de forma clara resulta do que já se deixou retratado, outra é a situação.
A “decisão de arquivamento” – após devida instrução processual de cerca de 2 meses – proferida no âmbito do (1°) processo n.° 02/04/ST/DSAL/2009, assentou num “Relatório” que concluía no sentido da inexistência de prova da eventual responsabilidade disciplinar do arguido, (cfr., fls. 69 a 74) – não constituindo assim, de forma alguma, uma decisão (meramente) “formal”, sendo antes de se entender que com a mesma se pôs (definitivamente) fim àquela “relação substantiva material”, não se apresentando possível uma segunda (ou nova) valoração do mesmo substrato material.
No caso, o que efectivamente sucedeu com o 2° processo n.° 03/PD/2014, foi ter-se efectuado uma “recuperação e reapreciação da (mesma) matéria de facto” que já tinha sido objecto de pronúncia em decisão (de fundo) que a deu como não provada em sede do anterior processo n.° 02/04/ST/DSAL/2009; (o 1°).
E assim, violado que foi o “princípio «ne bis in idem»” com a “decisão administrativa punitiva” em questão, vista está a solução para a presente lide recursória, havendo que se ter por prejudicado o conhecimento de todas as outras questões suscitadas.
Com efeito, imperativo é considerar-se que a “situação” integra a “nulidade” prevista no art. 122°, n.° 1, al. d) do C.P.A., onde se prescreve que são nulos os actos que “ofendem o conteúdo essencial de um direito fundamental”.
Dest’arte, e tudo visto, resta decidir como segue.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso por A trazido a esta Instância, declarando-se a nulidade do acto administrativo que o puniu disciplinarmente com a suspensão de funções pelo período de ano, (prejudicada ficando a apreciação das restantes questões colocadas).
Sem tributação, (dada a isenção).
Registe e notifique.
Macau, aos 03 de Junho de 2021
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
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