打印全文
 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A interpôs recurso contencioso do despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças proferido em 26 de Setembro de 2018, que indeferiu o recurso hierárquico necessário por si apresentado, mantendo a liquidação oficiosa adicional de imposto sobre veículos motorizados promovida pelo Director dos Serviços de Finanças.
Por Acórdão proferido em 28 de Maio de 2020, o Tribunal de Segunda Instância julgou improcedente o recurso.
Inconformada, vem A recorrer para este Tribunal de Última Instância, que julgou procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido.
Vem agora a entidade recorrida apresentar reclamação, com a qual pretende que seja reformado o acórdão reclamado, em conformidade com a nulidade, por omissão de pronúncia obrigatória, de que o mesmo enferma, considerando-se após o devido apuramento do valor da causa inadmissível o recurso jurisdicional, que não deve ser conhecido.
Respondeu A, entendendo que não se verifica a nulidade imputada, pelo que se deve considerar totalmente improcedente a arguição.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, no sentido de indeferir a reclamação.

2. Fundamentação
Na óptica do reclamante, o acórdão reclamado enferma da nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil, uma vez que não efectuou o apuramento do valor da causa, que seria mister porque serve de critério para aferir da admissibilidade ou não do recurso jurisdicional decorrente da alçada do Tribunal de Segunda Instância.
Alega que, tendo em conta a quantia que está em causa na liquidação oficiosa adicional, in casu o valor da causa é manifestamente inferior a 1.000.000 patacas, alçada fixada no n.º 3 do art.º 18.º da Lei de Bases de Organização Judiciária para o Tribunal de Segunda Instância, pelo que não se afigura admissível o recurso jurisdicional interposto do acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância.
Evidentemente não lhe assiste razão.
Desde logo, a questão do valor da causa nunca tinha sido colocada (nem pelo próprio reclamante) ao longo dos presentes autos nem era objecto do recurso jurisdicional em sede do qual foi proferido o acórdão reclamado, daí que este Tribunal de Última Instância não tinha obrigação de se pronunciar, a não ser que por aquele valor se determine a não admissão do recurso, sendo que, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 247.º do CPC, ao valor da causa se atende para determinar a relação da causa com a alçada do tribunal.
Ora, não obstante a norma contida no n.º 3 do art.º 18.º da Lei de Bases de Organização Judiciária, que prevê as alçadas dos tribunais de primeira instância e do Tribunal de Segunda Instância em matéria de contencioso fiscal e aduaneiro, “quando o valor da causa seja susceptível de determinação”, o art.º 42.º do Código de Processo Administrativo Contencioso não exige a indicação do valor da causa como um dos requisitos da petição do recurso contencioso.
Mesmo com a aplicação do n.º 1 do art.º 389.º do Código de Processo Civil, por força do art.º 1.º do CPAC, segundo o qual na petição inicial com que propõe a acção, deve o autor “declarar o valor da causa”, certo é que a sua omissão não implica o indeferimento liminar da petição, mas sim o despacho de aperfeiçoamento, e só a não indicação do valor da causa após o convite para aperfeiçoar determina a extinção da instância (art.ºs 394.º, 397.º n.º 1 e 256.º n.º 3 do CPC).
Por outro lado, e tal como entende o Digno Magistrado do Ministério Público, no caso vertente a exigência da indicação do valor da causa deve considerar-se satisfeita porque resulta, com segurança, da petição inicial apresentada qual o valor da causa que a recorrente pretende atribuir ao recurso contencioso, valor este que o ora reclamante também toma conhecimento, conforme as suas alegações contidas na reclamação.
Na realidade, constata-se na petição inicial que, com a interposição do recurso contencioso, impugna a recorrente o acto administrativo que decidiu manter liquidação oficiosa adicional de imposto sobre veículos motorizados em falta, acrescido de juros compensatórios, promovida pelo Director dos Serviços de Finanças.
É de considerar a quantia concretamente indicada na petição inicial como o valor da causa do presente caso, que representa a utilidade económica imediata do pedido (art.ºs 247.º n.º 1 e 248.º n.º 1 do CPC).
A imputação do reclamante tem na sua base a inferioridade manifesta do valor da causa em relação à alçada do Tribunal de Segunda Instância.
É verdade que, nos termos dos art.ºs 638.º n.º 1 e 583.º n.º 1, ambos do CPC e do art.º 18.º n.º 3 da Lei de Bases de Organização Judiciária, é admissível o recurso ordinário para o Tribunal de Última Instância nas causas de valor superior à alçada do Tribunal de Segunda Instância, que é de 1.000.000 patacas.
No entanto, com a alteração introduzida pela Lei n.º 4/2019, que entrou em vigor 30 dias após a data da sua publicação em 4 de Março de 2019, o referido art.º 18.º passou a ter um n.º 4 novo (o anterior n.º 4 passou a ser n.º 5), segundo o qual “Nas situações em que o Tribunal de Segunda Instancia conheça da causa em primeira instância, a alçada deste tribunal é a dos tribunais de primeira instância”, que é de 15.000 patacas, como se sabe.
Ora, o objecto do acórdão reclamado é precisamente um acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, que conheceu o recurso contencioso em primeira instância, daí que a alçada deste tribunal passou a ser 15.000 patacas.
Acrescentando, e sem intenção de ignorar a norma transitória constante do n.º 2 do art.º 16.º da Lei n.º 4/2019, segundo o qual o regime decorrente da redacção dada ao art.º 18.º da Lei de Bases de Organização Judiciária só se aplica aos processos instaurados após a entrada em vigor da Lei n.º 4/2019, cremos que a nova redacção do n.º 4 do art.º 18.º é aplicável aos presentes autos, conclusão esta que resulta da interpretação sistemática e teleológica da norma em causa.
É de frisar que as alterações legais ao art.º 18.º se referem não só à nova redacção do seu n.º 4, que baixou a alçada do Tribunal de Segunda Instância quando conheça da causa em primeira instância, mas também à alçada dos tribunais de primeira instância em matéria cível e laboral e em matéria de acções e pedidos do contencioso administrativo, que passou de 50.000 patacas para 1.000.000 patacas.
Se se procedesse à interpretação estritamente literal daquela norma transitória, tanto o aumento da alçada dos tribunais de primeira instância (n.ºs 1 e 2 do art.º 18.º) como a diminuição da alçada do Tribunal de Segunda Instância (n.º 4 do art.º 18.º) só teriam efeito para os processos instaurados após a entrada em vigor da Lei n.º 4/2019, o que implicaria uma situação de incoerência sistemática, na medida em que, nos processos pendentes, ao permitir a interposição do recurso para o Tribunal de Segunda Instância conforme a lei anterior (atendendo a alçada de 50.000 patacas), não se admite o recurso para o Tribunal de Última Instância com aplicação da nova alçada deste tribunal.
Tal como afirma, e muito bem, o Magistrado do Ministério Público, a norma transitória ora em causa “não pode deixar de ser objecto de redução teleológica face à sua evidente razão de ser. Na verdade, o sentido do comando normativo … tem como exclusiva finalidade salvaguardar as expectativas das partes nas situações em que era admissível recurso quando a acção foi instaurada e, por força do aumento da alçada, deixaria de o ser …. Não tem, como é evidente, aplicação na situação inversa, em que a mudança na alçada é para baixo e, por isso, vem tornar o recurso admissível em situações em que o não era, tal como no caso ocorreu, uma vez que aí não há quaisquer expectativas a salvaguardar, bem pelo contrário (veja-se sobre isto, ANTUNES VARELA – J. MIGUEL BEZERRA – SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, reimpressão, Coimbra, 2004, p. 59-60)”.
É de fazer uma interpretação restritiva da norma, que está conforme com o sentido do n.º 1 do art.º 72.º da Lei de Bases de Organização Judiciária sobre a admissibilidade de recurso nos processos pendentes, segundo o qual a inadmissibilidade de recurso por efeito da elevação da alçada dos tribunais nos termos do art.º 18.º “não é aplicável aos processos pendentes à data da entrada em vigor da presente lei”.
Assim sendo, o valor da causa é superior à alçada do tribunal de Segunda Instância, nada obstando à admissibilidade do recurso para o Tribunal de Última Instância.
Concluindo, não se verificando o vício imputado pelo reclamante, é de indeferir a reclamação por si apresentada.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Sem custas, pela isenção subjectiva do reclamante.

Macau, 23 de Junho de 2021
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
                  



1
Processo n.º 173/2020