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Processo nº 69/2021
Data do Acórdão: 17JUN2021


Assuntos:

Recurso subordinado
Sucumbência recíproca
Princípio da livre apreciação das provas
Impugnação de matéria de facto
Erro de facto
Erro de direito
Empréstimo para jogo
Obrigações naturais


SUMÁRIO

1. Não se verificou a sucumbência recíproca de ambas as partes, exigida pelo artº 587º/1 do CPC, não há lugar ao recurso subordinado.

2. Para afirmar que uma parte fica vencida com a decisão recorrida, é preciso que ela sofra, com essa decisão, gravame ou prejuízo real.

3. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.

4. Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concedem a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento. Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, em princípio, não é sindicável.

5. O recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada. Para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.

6. Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente. Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância, só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.

7. Para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica. Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.

8. O empréstimo para jogo concedido por quem não esteja legalmente autorizado para o efeito não gera obrigações civis nos termos do artº 4º da Lei nº 5/2004.

9. Quando não abrangido pelo disposto no artº 4º da Lei nº 5/2004 o empréstimo para jogo constitui uma obrigação natural que não pode ser judicialmente exigível.


O relator



Lai Kin Hong


Processo nº 69/2021


Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I
Por apenso à execução ordinária nº CV1-18-0217-CEO que lhe move a A, veio a executada B deduzir os embargos de executado, com fundamento na falta de título executivo, subsidiariamente na nulidade do alegado negócio de mútuo, ou na extinção da dívida exequenda por cumprimento.

A final veio a ser proferida a seguinte sentença julgando procedentes os embargos com fundamento na nulidade do negócio subjacente por ser contrário aos bons costumes:
I- RELATÓRIO
  B, com outros elementos de identificação nos autos, intentou os presentes embargos de executado contra A, também com outros elementos de identificação nos autos, pretendendo que seja extinta a execução que a embargada lhe move e que contra si corre nos autos apensos para pagamento de quantia certa, uma obrigação de restituir originada num contrato de mútuo. Afirmou ainda que a embargada litiga de má-fé. Pediu entre o mais que seja declarada a nulidade do contrato de mútuo de onde alegadamente provém a obrigação exequenda.
  
  Como fundamento da sua pretensão, em síntese, alegou que:
- Falta o título executivo porquanto o documento que serve de título executivo não é o documento original, mas uma cópia do mesmo;
- A dívida exequenda provém de um empréstimo da exequente à executada para esta jogar jogos de fortuna e azar em casino, factualidade do conhecimento da exequente e que provoca nulidade do contrato de mútuo;
- A declaração de dívida da executada constante do título executivo foi emitida sob coacção física da exequente;
- A executada/embargante já pagou à exequente/embargada a dívida reconhecida no título executivo;
- A embargada, sabendo que o empréstimo se destinava ao jogo e era nulo, afirmou no requerimento inicial da execução, com o objectivo de evitar a declaração de nulidade, que a executada lhe solicitou empréstimo para acorrer a necessidade urgente de dinheiro por parte da sua família, pelo que deve ser condenada como litigante de má-fé.

  Contestou a embargada juntando o original do título executivo e negando que o empréstimo se destinasse ao jogo, negando que a declaração tivesse sido emitida sob coacção e negando que a executada tivesse procedido ao pagamento da quantia exequenda. Disse ainda a embargada que é a embargante que litiga de má-fé e que distorce a verdade ao afirmar que pediu o empréstimo à exequente informando-a que se destinava ao jogo. Em conclusão, pediu a condenação da embargante como litigante de má-fé e a improcedência dos embargos.

  A embargante não respondeu.
  
  Foi proferido despacho saneador e de condensação a fls. 36 e 37, o qual, além do mais, decidiu pela inutilidade superveniente do conhecimento da questão suscitada relativa à falta do original do título executivo.
*
II- SANEAMENTO
   
  A instância mantém-se válida e regular como decidido no despacho saneador, mesmo considerando que a litigância de má-fé praticada nos autos de execução é matéria que deve com mais propriedade ser apreciada nesses mesmos autos e não matéria que deve servir de fundamento de embargos de executado e mesmo considerando também que o pedido de declaração de nulidade excede a função dos embargos de executado, pois que estes se destinam a apreciar e decidir se a execução deve continuar ou cessar e não a declarar nulidades de contratos, sendo a nulidade fundamento de embargos, mas não devendo ser objecto de pedido de embargos.
*
III- QUESTÕES A DECIDIR

  Atentas as posições das partes atrás relatadas, a repartição do ónus da prova e o já decidido no despacha saneador, as questões a decidir consistem em saber se:
1- A dívida exequenda provém de um contrato de empréstimo nulo por se destinar ao jogo;
2- O título executivo foi emitido sob coacção;
3- A embargante já pagou a totalidade da quantia exequenda;
4- As partes litigam de má-fé.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO

A) - DE FACTO.
  Estão assentes os seguintes factos.
1. A embargante/executada celebrou, em 2012, a declaração de dívida junta a fls. 30 dos autos.
2. O embargado sabia perfeitamente que o empréstimo, concedido à embargante, se destinava ao jogo.
3. A embargada/exequente sabia bem que a declaração de dívida assinada pela executada dizia respeito a um empréstimo para o jogo, mas, mesmo assim, deduziu, junto do Tribunal, a execução apensa alegando que o empréstimo fora solicitado pela executada dizendo que “a família necessitava, urgentemente, de dinheiro”.
4. A embargada/exequente concedeu à embargante um empréstimo, no montante de noventa e cinco mil e cem dólares de Hong Kong (HKD95.100,00).
5. A embargada/exequente entregou, em numerário, à embargante/executada quantia não concretamente apurada.
6. A embargante/executada prometeu reembolsar a dívida até ao dia 25 de Janeiro de 2013.
7. A exequente interpelou por várias vezes a executada para que pagasse a quantia exequenda.
*

B) – DE DIREITO.
  O objecto dos embargos, considerando que já foi decidida a questão da falta do original do título executivo, resume-se à validade ou invalidade do contrato gerador da obrigação exequenda; à validade ou invalidade do título executivo; ao pagamento da obrigação exequenda e à qualidade da litigância das partes.

  Comecemos pelo alegado pagamento da dívida executiva.
  O pagamento, enquanto facto extintivo da obrigação e do direito correspectivo cabe no âmbito do ónus da prova da embargante, nos termos do disposto no art. 335º, nº 2 do Código Civil.
  A consequência do incumprimento do ónus de prova é a decisão desfavorável à parte onerada1.
  Ora, da consideração da matéria de facto provada e atentando na resposta negativa dada ao quesito 4º da base instrutória, onde se questionava o pagamento da dívida exequenda, conclui-se que a embargante não deu satisfação ao ónus de prova que sobre si impendia, razão por que improcede este fundamento de embargos em análise.
  
  Passemos à alegada invalidade do título executivo.
  A embargante alegou que emitiu sob coacção a declaração de dívida que serve de título executivo à execução. Também cabe à embargante o ónus da prova de tal factualidade. Também, nesta parte não cumpriu o ónus da prova que sobre si impendia. Também, por isso, improcede este fundamento dos embargos de executado.
  
  Quanto à nulidade do contrato de mútuo de onde alegadamente provém a obrigação exequenda.
  Segundo a embargante, a nulidade adviria do facto de o mútuo ser contrario à lei, por ser oneroso e configurar a prática do crime de usura para jogo, previsto e punido pelo art. 13º da Lei nº 8/96/M de 22 de Julho e pelo art. 219º do Código Penal. Porém, tal crime tem como elemento subjectivo típico um dolo específico que consiste no facto de o agente ter a intenção de alcançar um benefício patrimonial para si ou para terceiro. Ora, não se tendo provado essa intenção da embargada respeitante à existência de juros remuneratórios, que constava quesitada nos quesitos 3ºA e 4º da base instrutória, não ocorre o alegado crime nem a correspondente contrariedade à lei que a embargante alegou como causadora da nulidade prevista no nº 1 do art. 273º do CC). Improcede, pois esta tese da embargante.
  Não se tendo provado factos subsumíveis ao crime de usura para jogo, previsto e punido pelo art. 13º da Lei nº 8/96/M de 22 de Julho, por falta de prova da intinção do agente de obter benefício, há que apurar se da restante factualidade não resulta a nulidade do contrato de mútuo alegada pela embargante, sem que isso implique excesso de pronúncia, pois que a actividade do tribunal se mantém dentro do pedido e da alegação da embargante.
  Pode resumir-se o regime dos contratos de concessão de crédito e de mútuo para jogo de um dos contraentes2 do seguinte modo:
- Se o concedente ou mutuante, autorizado ou não, explora situação de fragilidade da outra parte e visa benefício patrimonial, pode cometer o crime de usura previsto no art. 219º do Código Penal;
- Se o mutuante não explora situação de fragilidade e visa obter benefício patrimonial, pode cometer o crime previsto no art. 13º da Lei nº 8/96/M de 22 de Julho;
- Se o concedente não explora situação de fragilidade e visa obter benefício patrimonial, pode cometer o crime previsto no art. 13º da Lei nº 8/96/M de 22 de Julho se não está autorizado ou se, estando, o crédito for concedido por meio diverso da entrega de fichas, e não comete qualquer crime se estiver autorizado e conceder o crédito através da entrega de fichas (art. 16º da Lei nº 5/2004 de 14 de Junho);
- Se o crédito é feito sem exploração de situação de fragilidade e através da entrega de fichas por pessoa autorizada ao outro contraente para este jogar, onerosa ou gratuitamente, o contrato é válido, nos termos do art. 4º da Lei nº 5/2004 que afirma tal validade de uma forma que ainda se afigura estranha: “da concessão de crédito exercida ao abrigo da presente lei emergem obrigações civis”;
- Se o crédito ou mútuo é feito por pessoa não autorizada, sem exploração de situação de fragilidade nem intenção de obter benefício patrimonial, em dinheiro ou por entrega de fichas, o contrato pode ser válido.
  Este último negócio pode ser válido uma vez que o seu objecto não é contrário à lei, por não contender com nenhuma disposição legal de carácter imperativo3, e uma vez que o negócio em si (o conteúdo negocial ou o objecto imediato) não é contrário, à ordem pública nem ofensivo dos bons costumes, pois que o empréstimo e o crédito nada têm em si de juridicamente inaceitável e o art. 273º do Código Civil só comina a nulidade quando o objecto do negócio é física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável e quando o próprio negócio é contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes. Quer quanto ao seu objecto mediato (dinheiro, fichas de jogo, etc.), quer quanto ao seu objecto imediato ou conteúdo (empréstimo ou concessão de crédito com determinadas cláusulas), o negócio não tem vício. Na verdade, não se consegue encontrar na Lei nº 5/2004 que permite a concessão de crédito para jogo em determinadas condições, a proibição do empréstimo para jogo ao ponto de se poder afirmar que o objecto deste empréstimo é contrário à lei gerando nulidade contratual nos termos do art. 273º do CC4.
  Mas nem só do objecto do negócio vêm os vícios negociais. Também das vontades negociais podem advir vícios para o negócio. E de entre os vícios provenientes da vontade negocial um há que se reporta ao fim do negócio, ao fim último ou fim mediato, a finalidade última que as partes visam com o negócio. O fim imediato do mútuo ou do crédito é proporcionar a outrem um meio financeiro ou semelhante. O fim mediato pode ser permitir ao creditado ou ao mutuário pagar as despesas com uma operação cirúrgica de emergência do seu filho; estudar na universidade, fazer uma viajem de turismo, ou jogar jogos de fortuna ou azar em casino. Um dos pressupostos do negócio jurídico é a idoneidade do fim mediato. Assim como o objecto do negócio (objecto imediato: dinheiro, fichas; objecto imediato: clausulado como condição, termo, juros, etc.) tem de ser idóneo, o fim mediato também não pode ser contrário à lei nem à ordem pública nem ofensivo dos bons costumes. Porém, a inidoneidade do fim do contrato só gera nulidade se for comum a ambas as partes5. É o que resulta do art. 274º do Código Civil ao dispor que “se apenas o fim do negócio jurídico for contrário à lei, à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes”. Bem se compreende o critério: é válida a venda de uma faca de cozinha e mantém-se válida se a intenção do comprador, desconhecida do vendedor, for a de praticar um assalto, mas já é inválida a venda se comprador e vendedor souberem o destino criminoso da faca e quiserem celebrar o negócio com esse fim. É válida a venda de uma televisão, mas não se o fim do negócio comum a comprador e vendedor for destinar a televisão a reproduzir filmes obscenos em local onde isso não é permitido.
  Todo o empréstimo que tenha por fim mediato comum aos contraentes possibilitar ao mutuário a prática de jogo de fortuna ou azar em casino e que não seja concedido por pessoa autorizada e nas demais condições reguladas na Lei nº 5/2004 de 14 de Junho é nulo, não porque o seu objecto é contrário à lei, pois que emprestar dinheiro e conceder crédito, assim como vender uma faca de cozinha e uma televisão, não é objecto negocial contrário à lei, mas porque o seu fim é ofensivo dos bons costumes e é comum a ambas as partes. Não há dúvida que o costume de jogo não é um costume nobre e menos nobre é se o jogo é feito através de meios de que se não dispõe, pedindo-os a outrem e esperando conseguir meios para o restituir no futuro, designadamente através do resultado do próprio jogo. Não há dúvida que o contrato que visa auxiliar outrem a exercer o costume do jogo é um contrato favorável aos maus costumes e contra os bons costumes. Os bons costumes respeitam a normas do são convívio social conformado pelas normas e princípios estruturantes da ordem jurídica6. Na RAEM, o jogo em casino é, entre outros aspectos, uma actividade juridicamente relevantíssima e, por isso, cuidadosamente regulada. Em si, o jogo de fortuna ou azar é uma actividade humana de estrema complexidade, capaz de proporcionar excepcional lazer e capaz de viciar excepcionalmente a vontade negocial e não só; capaz de motivar comportamentos extremamente disciplinados e capaz de causar erosão de elementares regras de conduta. Os bons costumes em torno do jogo têm de ser encontrados por um prisma cauteloso como sendo aqueles que se destinam a evitar que tal actividade humana cause o pior que é capaz. O empréstimo para jogo não minuciosamente regulado nem devidamente autorizado e fiscalizado pelas entidades públicas competentes é seguramente um contrato com um fim contrário aos bons costumes por se situar numa zona onde podem surgir os referidos efeitos nefastos do jogo. Relativamente ao jogo, os bons costumes hão-de encontrar-se entre aqueles que se destinem a evitar que a actividade do jogo e as actividades conexas sejam praticadas de forma desregulada, descontrolada e desordenada, com tendência a afastar-se do conceito de uma ordem jurídica moderna e a aproximar-se do que seja mais próprio de uma ordem da selva. Nem de outra forma se concebe uma ordem jurídica boa para disciplinar a indústria do jogo com o relevo que, a vários níveis, tem na RAEM. Por isso, a Lei nº 5/2004 regula de forma tão apertada a concessão de crédito para jogo (apenas através da transmissão licenciada da titularidade de fichas de jogo) e estabelece sanções tão pesadas para os prevaricadores. Também por isso, a Lei nº 8/96/M de 22 de Julho qualifica com a maior ilicitude, a criminal, a conduta de, com intenção de obter benefício patrimonial, facultar dinheiro ou outro meio para jogo. Se o empréstimo para jogo com intenção lucrativa efectuado por pessoa não autorizada merece a maior reacção da ordem jurídica (penal), o mesmo empréstimo sem intenção lucrativa não pode merecer inteiro acolhimento da mesma ordem jurídica, sob pena de desarmonia devido à exagerada reacção contra a intenção lucrativa que é perfeitamente aceite no ordenamento jurídico da RAEM na generalidade das situações. A censura criminal advém da união de dois factores, o favorecimento do jogo fora de regras seguras e a intenção lucrativa. Nem o auxílio ao jogo, nem o lucro são proibidos na RAEM. Se a reacção penal surge em face do auxílio ao jogo fora das regras de controle e da intenção lucrativa, o mínimo é considerar contrário aos bons e honestos costumes o fim do negócio em que, na ausência de intenção lucrativa, ambos os contraentes, não autorizados nem fiscalizados, visam facultar a um deles meios financeiros para jogar jogos de fortuna ou azar em casino.
  Provou-se que o fim do contrato celebrado entre embargante e embargada de onde emerge a obrigação exequenda era permitir à embargante jogar jogos de fortuna ou azar em casino. Ora, ou se entende que tal fim é contrário à lei (Lei nº 5/2004) ou que é ofensivo dos bons costumes. Afigura-se que os Acórdão do TSI nº 225/2017 e 636/2016 antes referidos concluem que a Lei nº 5/2004 não proíbe o empréstimo para jogo, designadamente entre jogadores, situação apreciada no Acórdão nº 225/2017. Esta proibição sempre teria de encontrar-se a contrario sensu, pois a Lei nº 5/2004 não tem norma expressa proibindo tais empréstimos, apenas tendo normas permitindo a concessão de crédito para jogo em determinadas condições. Admitindo que não resulte da lei a proibição deste fim contratual, não pode deixar de considerar-se que tal finalidade é contrária aos bons costumes e que, por isso, é nulo o contrato em que ambas as partes visem permitir a uma delas a prática de jogo de fortuna ou azar em casino.
  
  Em conclusão, é nulo o negócio celebrado entre a embargante e a embargada. Em consequência da nulidade, a embargante deve restituir à embargada a quantia que dela recebeu e que nos presentes autos se desconhece, mas não deve pagar a quantia que consta da declaração nem o na data que dela consta.
  Sendo o título executivo uma declaração unilateral de dívida a que se presume a causa nos termos do art. 452º do CC e tendo a embargante logrado provar a ausência de relação fundamental devido à nulidade do contrato de mútuo que está subjacente a tal declaração de dívida, falta o título executivo à execução apensa, devendo a mesma ser extinta nos termos combinados dos arts. 677º, 697º, al. a) e 699º do CPC.
  
  Da declaração de nulidade do contrato de mútuo.
  Como se disse em sede de saneamento, os embargos de executado não são o lugar próprio para declarar nulos os contratos. O lugar certo é a acção comum. A nulidade contratual nos embargos de executado deve ser causa de pedir e não pedido. Causa de pedir a extinção da execução e não causa de pedir a declaração de nulidade. Tudo visto e ponderado, não tendo sido rejeitado o pedido e estando o tribunal habilitado a dele conhecer, tendo presentes os princípios da economia processual e da adequação formal, será declarada a nulidade supra reconhecida.
  
  Da litigância de má-fé.
  Ambas as partes se acusam mutuamente de litigarem de má-fé por terem alegado factos contrários à verdade.
  A embargante afirmou que o empréstimo se destinava ao jogo e provou a sua alegação. Não se pode encontrar má-fé na sua litigância.
  A embargada alegou na execução que o empréstimo se destinou a ocorrer a necessidades da família da embargante. É nessa afirmação feita no requerimento executivo que a embargante, no requerimento inicial dos presentes embargos, vê litigância de má-fé. É certo que a embargada manteve a sua afirmação na contestação que apresentou aos embargos. Não se provou tal matéria de facto e provou-se que a embargante sabia que o empréstimo se destinava ao jogo. Porém, a embargante não necessitava de alegar qualquer causa para o empréstimo, pois tinha declaração unilateral de dívida que faz presumir a existência de causa ou relação fundamental ou subjacente, como se referiu (art. 452º, nº 1 do CC). Trata-se da alegação de um facto inútil. Só nos factos relevantes para a decisão da causa se deve ancorar a litigância de má-fé (art. 385º, nº 2, al. b) do CPC). Acresce que bem se compreende que a embargada queira receber a quantia que emprestou à embargante, menos se compreende que a embargante recuse pagar, caso não o tenha feito ainda.
  Do exposto, sopesando que o facto não verdadeiro alegado pela exequente é inútil para a decisão e não descurando que não é censurável o recurso à acção executiva, uma vez que é possível que exista a dívida exequenda, não originada num contrato de empréstimo, mas em consequência da nulidade desse mesmo contrato, conclui-se que não é de qualificar de litigância de má-fé a actuação da exequente.
  A tudo acresce, como se disse, que a litigância de má-fé nos autos de execução não é questão a apreciar e decidir em sede de embargos de executado, pois não é fundamento admissível de tais embargos.
  Não se vislumbra, pois, litigância de má-fé, quer por parte da exequente, quer por parte da embargante.
*
V- DECISÃO

  Pelo exposto, julgam-se os presentes embargos de executado procedentes e, em consequência, declara-se a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre embargante e embargada e determina-se a extinção da execução apensa.
   Custas pela embargada.
   Registe e notifique.
  
Não se conformando com essa sentença, vem agora a embargada A recorrer dela para este Tribunal de Segunda Instância.

Liminarmente admitido o recurso e notificadas ambas as partes da sua admissão, veio a embargante interpor o recurso subordinado da parte da sentença na parte respeitante à questão sobre a litigância de má-fé da embargada, suscitada pela embargante no âmbito dos presentes embargos.

Na petição do recurso principal interposto pela embargada, foi concluído e pedido que:
  1.a Instaurou a Exequente, ora Recorrente, acção executiva para reclamação de crédito por virtude de um empréstimo que concedeu à Embargante no valor de HKD$100,000.00.
  2.a A Executada deduziu embargos contra a execução declarados procedentes, ordenando-se a extinção da instância executiva.
  3.a Decidiu o douto Tribunal a quo que o contrato de mútuo celebrado entre as Partes é nulo por o objecto negocial ser ofensivo aos bons costumes.
  4.a Tal decisão decorre das respostas dadas aos quesitos primeiro e sexto da Base Instrutória onde se questiona se a Embargada bem sabia que o empréstimo concedeu era destinado ao jogo.
  5.a A prova produzida nos autos, no entanto, impunha uma resposta negativa a esses dois quesitos, para tal se requerendo ao Venerando Tribunal ad quem modifique a decisão de facto.
  6.a O Tribunal a quo julgou provado os quesitos 1.° e 6.° da BI fruto de declarações da Embargada no processo-crime com o n.º CR4-17-0221-PCC alegadamente confessando que a Embargante lhe havia pedido dinheiro para jogar e pela prova testemunhal produzida em julgamento, mais concretamente as quatro testemunhas arroladas pela Embarga.
  7.a Relativamente às declarações do processo crime não se descortina de onde resulta a conclusão de que a Embargada declarou que a Embargante lhe havia pedido dinheiro para jogar.
  8.a As declarações citadas pelo Tribunal a quo tratam-se das declarações da Embargada prestadas na Polícia Judiciária e constantes de fls. 33 dos referidos autos penais.
  9.a Resulta desse documento que a Embargada declarou que durante os meses de Março a Julho de 2012 a Embargante lhe disse que tinha perdido dinheiro no jogo e que lhe havia pedido que lhe emprestasse dinheiro para ultrapassar as dificuldades.
  10.ª Em lado nenhum declarou ela que o dinheiro mutuado se destinava ao jogo, sendo que uma coisa é precisar de dinheiro por que se perdeu a jogar, outra é precisar de dinheiro para ir jogar.
  11.a O que a Embargada declarou, efectivamente, foram os motivos pelos quais a Embargante precisava de dinheiro, mas já não o destino a ser dado ao capital mutuado.
  12.a A lógica é precisamente a de que as pessoas viciadas no jogo, após perderem dinheiro a jogar, precisem de dinheiro para fazer face a outros custos (ou seja, para "ultrapassar as dificuldades" criadas por terem perdido o dinheiro no jogo, tal como declarou a Embargada).
  13.a Nessas mesmas declarações na PJ disse a Recorrente que a Embargante lhe havia dado a conhecer a sua amiga C (1ª testemunha no julgamento destes autos), que lhe pediu dinheiro emprestado dizendo que precisava para os estudos da filha.
  14.a Pelo que se afigura ter o douto Tribunal recorrido incorrido em erro de julgamento na análise do processo CR4-17-0221-PCC, concretamente das suas fls. 33, retirando dele uma conclusão inconsistente com o que efectivamente foi declarado.
  15.a Formou também o Tribunal a sua convicção quanto aos quesitos 1.° e 6.° nos depoimentos das testemunhas arroladas pela Embargante, para tal relevando a coincidência destes depoimentos, afigurando-se, no entanto, que estas inquirições impunham solução diversa, por falta de credibilidade dos depoimentos.
  16.a A 1.a testemunha ouvida é amiga da Embargante e tem também um litígio contra a Embargada, que corre termos com o processo n.º CV3-18-0226-CEO, isto apesar de ter tentado esconder esse facto em tribunal.
  17.a Trata-se de uma testemunha que também contraiu empréstimos junto da ora Recorrente, e a quem será benéfico que esses contratos sejam considerados nulos, havendo também declarado em audiência que nunca assistiu às negociações entre as Partes.
  18.a Já a 2.a testemunha inquirida, na verdade, declarou que apenas sabe aquilo que a Embargante lhe contou, havendo prestado conhecimento meramente indirecto dos factos.
  19.a Limitando-se a deduzir que a Embargada tem obrigação de saber que o dinheiro mutuado é para jogo porque ela e a Embargante estavam sempre a jogar, ainda que sem a presença da Embargada nessas sessões de jogo.
  20.a A 3.a testemunha inquirida foi o marido da Embargante, que declarou nada saber quanto à finalidade do empréstimo tirando aquilo que a sua esposa lhe contou.
  21.a A 4.a testemunha, marido da segunda testemunha, tendo também, portanto, interesse indirecto no ganho de causa por parte da Embargante, foi a única que declarou em audiência que ouviu alegadas conversas na qual a Embargante declarou à Embargada que precisava de dinheiro para jogar, mas o seu depoimento é de credibilidade altamente duvidosa.
  23.a Prestou declarações inconsistentes com o que foi declarado pela 1.a testemunha, tendo alterado e variado várias vezes aquilo que declarou, ora dizendo que não assistiu, ora dizendo que assistiu duas vezes, para finalmente só se lembrar de uma ocasião, nem sequer conseguindo precisar o ano em que ocorreu.
  24.a O próprio Tribunal deixou consignado no douto Acórdão da matéria de facto que os testemunhos foram "de pendor tendencioso, pouco sereno, opinativo e conclusivo", afirmação redondamente acertada.
  25.a A credibilidade dos testemunhos é bastante diminuída, o que, aliando-se ao facto de nunca ter a Embargada declarado que a Embargante lhe pediu dinheiro para jogar, nos leva a concluir que o Tribunal a quo incorreu em erro no julgamento dos quesitos 1.°, 6.° e 12.° da Base Instrutória.
  26.a A valoração positiva do douto Tribunal recorrido destes testemunhos só teve lugar devido à sua conjugação com as declarações prestadas pela Embargada no processo crime, mas que na verdade foram incorrectamente interpretadas, porquanto nunca ela declarou aí que a Embargante lhe havia pedido dinheiro para jogar.
  27.a O ónus da prova dos factos consubstanciadores da nulidade do contrato cabia à Embargante, sendo que a ausência de prova produzida nesse sentido nos autos impunha resposta negativa aos 1.° e 6.° quesitos da B1.
  28.a Nos termos do art.º 629.°, n.º 1, do CPC, pode o Tribunal ad quem modificar a decisão da matéria de facto, afigurando-se que, in casu, dos autos decorrem todos os elementos para que seja alterada a decisão sem necessidade de reenvio dos autos para novo julgamento, devendo as respostas aos quesitos 1.° e 6.° da B1 ser alteradas para que passem a constar como não provados.
  29.a É ademais manifesto, pela prova produzida nos autos, que a Embargante, como forma de se esquivar às obrigações contratuais que livremente assumiu, inventou a teoria de que os empréstimos foram dolosamente concedidos para o jogo, devendo assim também a resposta ao quesito 12.° ser alterada para que passe a constar como provado.
  30.a Alteradas as respostas a esses quesitos nos termos requeridos, decai a nulidade do contrato, porquanto se tratou de um contrato de mútuo válido nos termos gerais.
  31.a Ainda que não se defira a impugnação do julgamento da matéria de facto acima desenvolvida, e não se alterem as respostas aos quesitos nos termos supra requeridos, ainda assim não devia ter sido declarada a nulidade do contrato sub judice por ofensivo dos bons costumes.
  32.a Foi declarada a nulidade do título executivo sub judice na presente acção, consubstanciado no contrato de mútuo celebrado entre as Partes, por se julgar ofensivo aos bons costumes, nulidade quanto ao objecto negocial prevista no art.º 274.º do Código Civil de Macau.
  33.a A actividade de jogo e aposta não é uma actividade necessariamente indigna, e nem tampouco ofensiva dos bons costumes, muito menos nos parece que tal possa ser defendido numa cidade como Macau, na qual a maior indústria, a maior fonte de rendimentos públicos e o maior motor da economia, é precisamente o jogo.
  34.a A actividade de jogo e aposta é uma actividade especialmente direcionada ao lazer e ao divertimento de quem o pratica, podendo de facto ser abusada, mas não podendo daí se concluir que um contrato de mútuo para jogo, sem qualquer tipo de juros ou exploração de situação de necessidade, seja ofensivo dos bons costumes.
  35.a É certo que a concessão de crédito para jogo é uma actividade amplamente regulada na legislação de Macau, mas tal decorre principalmente da necessidade de o Estado controlar os moldes em que é concedido crédito para jogo em casino
  36.a As instituições legalmente acreditadas concederem crédito para jogo em casino são as próprias concessionárias e os promotores de jogo, sendo que parte significativa dos frutos da actividade das concessionárias reverte para a fazenda pública do Território, através do imposto especial sobre o jogo.
  37.a É natural que tenha de existir um controlo sobre como e a quem é concedido crédito por parte daquelas instituições, não sendo do interesse público que fundos das concessionárias e promotores de jogo possam ser aleatoriamente concedidos a terceiros, sem o mínimo de cautela e supervisão.
  38.a Existem razões de tutela pública na actividade que extravasam o mero controlo fiscal, mas que estão ligadas a precauções necessárias que devem existir fruto das próprias vicissitudes deste tipo de actividade levada a cabo nos casinos, e já não à actividade em si: o jogo e aposta, bem a contratos de mútuo celebrados entre privados fora dos casinos.
  39.a A Lei n.º 5/2004 regula a concessão de crédito para jogo ou aposta em jogos de fortuna ou azar em casino, não sendo qualquer mútuo para jogo que é ali regulado, mas sim o mútuo em casino, e aquele que é concedido através da transmissão da titularidade de fichas de jogo.
  40.a Como foi declarado pelas próprias testemunhas arroladas pela Embargante, esta não tinha, segundo elas, graves problemas de endividamento na sua vida pessoal, não se pode defender que in casu se tratasse de um mútuo concedido a pessoa que estivesse em situação de necessidade.
  41.a O próprio Venerando TSI já se pronunciou em sentido contrário à potencial ilicitude deste tipo de negócios, nomeadamente no âmbito do Acórdão proferido no processo n.º 225/2017, doutamente decidindo que tais contratos devem ser pontualmente cumpridos, entendimento esse que aqui acompanhamos na íntegra.
  42.a Pelos fundamentos supra expostos, afigura-se ter a Sentença recorrida violado o art.º 274.° do Código Civil de Macau, por ter sido aplicado num quadro que não se impunha, havendo ademais incorrido em erro de julgamento nas respostas aos quesitos 1.°, 6.° e 12.° da BI.
  TERMOS EM QUE, pelos fundamentos expostos e nos demais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se a Sentença recorrida e substituindo-se por outra na qual se declare o prosseguimento da execução movida contra a Embargada, assim se fazendo a tão costumada,
   JUSTIÇA!

Por sua vez, a embargante motivou o recurso subordinado mediante a apresentação das alegações ora constantes das fls. 193 a 199 dos p. autos.

Notificadas das motivações apresentadas, ambas as partes contra-alegaram defendendo a improcedência do recurso interposto pela contra-parte.

Feitos subidos a esta segunda instância, foi liminarmente admitido apenas o recurso principal, enquanto o recurso subordinado interposto pela embargante não foi admitido com fundamento na inexistência do objecto e na inverificação da sucumbência recíproca exigida para a admissibilidade de recurso subordinado.

Inconformada com o despacho que lhe não admitiu o recurso, a embargante reclamou dele para a conferência mediante o requerimento onde alegou e pediu o seguinte:

  B,案中之上訴人,身份資料載於卷宗。獲法庭通知載於卷宗之不接納附帶上訴之批示內容,現依據《民事訴訟法典》第620條第1款之規定,向法庭提出
聲明異議
有關理由依據如下:
一、 該批示指出原審法院未有對惡意訴訟作出決定,以及闡述了上訴人不符合《民事訴訟法典》第587條第1款之規定,故此,本上訴人所提出之附帶上訴不應獲接納。
二、 對此法律理解,上訴人給予相當及充分之尊重,但未能認同。
三、 首先,在被上訴判決中,原審法院對於異議人及被異議人各自之惡意訴訟請求均作出了陳述及表明了不予接納之理由,並且在最後指出不論是異議人還是被異議人均不存在惡意訴訟(Não se vislumbra, pois, litigância de má-fé, quer por parte de exequente, quer por parte da embargante)。
四、 原審法院明顯地是對該請求作出了審理,及其意思正是對訴訟程序中存在惡意訴訟之事實不予支持,上訴人認為這已經是作出了決定。
五、 誠然,原審法院未有將此明顯地記載於 “V-DECISÃO”之中。
六、 然而,這不應視為原審法院未有作出決定。
七、 從另一角度看,上訴人是適時提出了“惡意訴訟”之請求的,原審法庭不可能對此請求拒絕作出審理。
八、 綜述之,上訴人認為被上訴判決已對惡意訴訟請求作出了決定。
九、 另一方面,上訴人亦有追加要求原審法院在裁定惡意訴訟成立後,判處被異議人向異議人支付一筆損害賠償。
十、 由於被上訴判決認為不存在惡意訴訟,因此,這亦必然導致異議人喪失了獲取前述之損害賠償。
十一、 由此可見,對於被上訴判決之內容,確實是直接導致了異議人喪失了利益或受到不利。
十二、 這就符合了《民事訴訟法典》第587條第1款規定之可提起上訴之情況。
綜上所述,請求法庭接納本聲明異議,並交由評議會作出處理,以便其裁定異議理由成立,及繼續審理附帶上訴之請求內容。

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Antes de entrarmos na apreciação do recurso interposto pela embargada, temos de nos debruçar sobre a reclamação deduzida pela embargante contra o despacho do Relator que lhe não admitiu o recurso subordinado.

O despacho ora reclamado fundamentou a não admissão do recurso subordinado no seguinte:

Notificada da admissão do recurso, interposto pela embargada, da sentença que julgou totalmente procedentes os embargos, a embargante interpôs o recurso, que designa subordinado, da decisão alegadamente contida naquela sentença que julgou improcedente o pedido da condenação da embargada como litigante de má-fé.

Todavia, este recurso, dito subordinado, nunca é admissível.

Em primeiro lugar, inexiste o objecto que visa atacar, pois, se bem interpretada a sentença recorrida, o Tribunal a quo absteve-se de decidir sobre os pedidos de condenação por litigância de má-fé, formulados reciprocamente pela embargante e pela embargada, pois foi dito na fundamentação da sentença que a litigância de má-fé nos autos de execução não é questão a apreciar e decidir em sede de embargos de executado, pois não é admissível de tais embargos.

Em segundo lugar, não se verificou in casu a sucumbência recíproca de ambas as partes, exigida pelo artº 587º/1 do CPC.

Na verdade, para que haja lugar ao recurso subordinado, a lei exige que se verifique a sucumbência recíproca de ambas as partes, pois o artº 587º/1 do CPC reza que “se ambas as partes ficarem vencidas, cabe a cada uma delas recorrer se quiser obter a reforma da decisão na parte que lhe seja desfavorável; mas o recurso por qualquer delas interposto pode, nesse caso, ser independente ou subordinado”.

Para afirmar que uma parte fica vencida com a decisão recorrida, é preciso que ela sofra, com essa decisão, gravame ou prejuízo real.

E conforme se vê na motivação do recurso subordinado, parece que a embargante está a alegar ter sofrido gravame com a improcedência do pedido da condenação da exequente-embargada como litigante de má-fé, e não com a decisão que julgou procedentes os embargos.

Não tendo a embargante sofrido de qualquer gravame ou prejuízo com a decisão que julgou totalmente procedentes os embargos, do facto de a embargada ter interposto o recurso dessa decisão nunca poderia advir à embargante qualquer legitimidade de recorrer subordinadamente dessa mesma decisão, muito menos de uma suposta decisão que julgou improcedente o pedido da condenação de outra parte na litigância de má-fé, que se prende com a altitude processual da parte.

Assim, mesmo na hipótese de existir uma decisão (que não existe) que julgou improcedente o pedido da condenação da exequente-embargada como litigante de má-fé, a ora embargante, se não conformada, só poderia reagir por via de recurso principal, e não de um recurso subordinado.

Pelo exposto, no uso do poder conferido pelo artº 619º/1-e) do CPC, não admito o recurso dito subordinado pela embargante B.

Para nós, de duas uma, ou por falta manifesta de uma decisão inserida na parte dispositiva da sentença sobre a questão de litigância de má-fé, não obstante uma referência à questão na fundamentação da sentença, ou por inexistência da chamada sucumbência recíproca, o recurso subordinado não pode deixar de ser rejeitado ou indeferido.

Portanto, não se vê razão alguma para não manter o despacho ora reclamado nos exactos termos em que foi proferido, pois, conforme se vê ai, foram bem expostas as razões que conduzem necessariamente à inadmissibilidade do recurso dito subordinado interposto da embargante.

Improcede assim a reclamação e fica mantida a não admissão do recurso subordinado.

Então só resta apreciar o recurso interposto pela embargada.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

A embargante, ora recorrente, coloca-nos, em sede de recurso, as seguintes questões:

1. Da impugnação da matéria de facto; e

2. Da nulidade do empréstimo;



Então vejamos.

1. Da impugnação da matéria de facto

A recorrente pretende impugnar a decisão de facto no que diz respeito à matéria dos quesitos 1º, 6º e 12º da base instrutória.

No saneador, foi levada aos quesitos 1º, 6º e 12º a seguinte matéria:


A embargada sabia perfeitamente que o empréstimo, concedido à embargante, se destinava ao jogo?


A embargada/exequente sabia bem que a declaração de dívida em causa era um empréstimo para o jogo, mas, mesmo assim, deduziu, junto do Tribunal, a pretensão de “a família necessitava, urgentemente, de dinheiro”?

12º
Para evitar o cumprimento da obrigação, a embargante/executada alegou, de forma falsa, que o aludido empréstimo fora concedido pelo embargado, sob o seu conhecimento de ele se destinar ao jogo, com a intenção de tornar ilegal a aludida relação de empréstimo?

Após o julgamento, foram julgadas provada a matéria do ponto 1º e não provada a do 12º, enquanto que relativamente ao quesito 6º, ficou provado que “a embargada/exequente sabia bem que a declaração de dívida assinada pela executada dizia respeito a um empréstimo para o jogo, mas, mesmo assim, deduziu, junto do Tribunal, a execução apensa alegando que o empréstimo fora solicitado pela executada dizendo que “a família necessitava, urgentemente, de dinheiro”.

A recorrente impugnou as respostas dadas a esses quesitos com fundamento no erro na valoração das provas produzidas em relação à matéria desses quesitos.

A recorrente apontou que a convicção do Tribunal a quo foi erradamente formada com base nas suas declarações, prestadas perante a PJ num inquérito-crime de um processo que nunca culminou com o julgamento, documentadas no auto de interrogatório inserido naquele inquérito, cuja cópia ora se juntou com a petição de recurso, e nos depoimentos de várias testemunhas.

A recorrente disse que o Colectivo a quo errou, por um lado, porque nas tais declarações a ora recorrente nunca disse que o dinheiro mutuado se destinava ao jogo, e por outro, os depoimentos testemunhais não merecem credibilidade, dada a existência de um litígio pendente de que são partes a embargada, ora recorrente, e a testemunha C, e a de relações familiares ou de relacionamento de amizade entre a ora embargante e algumas das restantes testemunhas, que tornam não credíveis os depoimentos.

A propósito da sindicabilidade e do controlo jurisdicional de decisões de facto de 1ª instância, é de relembrar a nossa jurisprudência que temos vindo a seguir de forma unânime.

Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.

Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concedem a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento. Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, em princípio, não é sindicável.

O recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada. Para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.

Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente. Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância, só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.

Para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica. Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.

Relembrada a jurisprudência que temos seguido, vamos ver o que foi dito na fundamentação da convicção do tribunal de 1ª instância, que se segue integralmente transcrita:
  Quanto aos quesitos 1°, 6° e 12° onde se questiona se a embargada sabia que o empréstimo que concedeu à embargante se destinava ao jogo e se a embargante invocou falsamente tal factualidade, o tribunal fundou a sua convicção na ponderação global dos depoimentos das testemunhas donde resultou ser a embargante viciada em jogos de fortuna ou azar e dedicar-se a embargada habitualmente a emprestar dinheiro para jogo a jogadores como a embargante. Na verdade, apesar de os depoimentos serem de pendor tendencioso, pouco sereno, opinativo e conclusivo, foram, com excepção do que foi prestado pela testemunha D, coerentemente coincidentes no sentido de a embargada se dedicar a emprestar dinheiro para jogo e de saber que a embargante era jogadora.

É de notar que o Colectivo de 1ª instância teve todo o cuidado de expor o inter para a formação da sua convicção em relação à matéria do thema probandum, com a devida identificação de meios de prova que produziu, examinou e valorou.

Ao passo que a recorrente mais não faz mais do que questionar a convicção do Tribunal a quo com a sua convicção, divergente daquela, formada a partir de determinados meios de prova produzidos na audiência e examinados pelo Tribunal a quo, não tendo, todavia, em lado algum, demonstrado que não tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta incoerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas.

Portanto, não tendo o recorrente logrado convencer este Tribunal de recurso de que o Tribunal a quo errou, é de naufragar a impugnação da matéria de facto.

2. Da nulidade do negócio de mútuo

Na hipótese de inêxito de impugnação da matéria de facto, a recorrente avançou com o fundamento subsidiário de que não deveria ter sido declarada a nulidade do mútuo por ofensivo aos bons costumes, tendo defendido, para sustentar a tese da licitude do negócio, que numa cidade como Macau, na qual a maior indústria, a maior fonte de rendimentos públicos e o maior motor da economia, é precisamente o jogo, a actividade de jogo e aposta não é uma actividade necessariamente indigna, e nem tampouco ofensiva dos bons costumes.

Ora, a propósito da questão de saber se o empréstimo, através da entrega das fichas de jogo, é lícito ou merece a tutela jurídica e judicial, este TSI já chego a pronunciar-se deste TSI no Acórdão datado de 09JUL2020, tirado no proc. nº 1239/2019, nos termos seguintes:
Da factualidade apurada resulta que na acção “sub judicie” entre o Autor e Réu foi celebrado um empréstimo para jogo, cuja disciplina se encontra regulada na Lei nº 5/2004 e cujo artº 4º estabelece que:
Artigo 4.º
Eficácia
Da concessão de crédito exercida ao abrigo da presente lei emergem obrigações civis.
Também em sentido idêntico estabelece o Código Civil no seu artº 1171º:
Artigo 1171.º
(Eficácia)
1. O jogo e a aposta constituem fonte de obrigações civis sempre que lei especial o preceitue, bem como nas competições desportivas, em relação às pessoas que nelas tomem parte; de contrário, o jogo e aposta, quando lícitos, são mera fonte de obrigações naturais.
2. Se houver fraude na sua execução, o contrato não produz qualquer efeito em benefício de quem a praticou.
3. Fica ressalvada a legislação especial sobre a matéria de que trata este capítulo.
A respeito de obrigações naturais estabelece o mesmo diploma legal no seu artº 396º:
Artigo 396.º
(Noção)
A obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça.
Ou seja, no nosso sistema jurídico as obrigações decorrentes de jogos de fortuna e azar, sejam elas o pagamento da aposta que perdeu ou o empréstimo contraído em fichas de jogo que permitem jogar (vulgo fichas mortas) não são fonte de obrigações civis (salvo se houver lei especial que o diga) dando origem apenas a obrigações naturais (e estas apenas se for lícito).
A diferença entre a obrigação civil e a obrigação natural reside precisamente na “exequibilidade”.
Enquanto a obrigação civil pode ser judicialmente exequível, isto é, o credor pode em sede de execução obter o cumprimento coercivo da obrigação do devedor, nas obrigações naturais o cumprimento nunca pode ser exigido judicialmente (artº 398º do C.Civ. “a contrário”).
Como resulta dos artº 397º do C.Civ. o devedor que queira cumprir a obrigação deve fazê-lo – poderemos até dizer que terá o dever “moral” de cumprir, de pagar – e se o fizer em regra não pode pedir a devolução do que prestou.
No entanto, nas obrigações naturais para além do cumprimento voluntário nunca há cumprimento coercivo da obrigação.
Ora, no caso em apreço houve um empréstimo feito em fichas de jogo, que também se pode dizer uma dívida decorrente da compra de fichas para jogo.
Por razões alheias aos contraentes veio a apurar-se que o mutuante não estava legalmente autorizado a fazer empréstimos para jogo, o mesmo é dizer, nem a ceder fichas sem que fossem imediatamente pagas.
Na sentença do processo de embargos que correu no TJB sob o nº CV2-15-0133-CEO-A conclui-se pela inexigibilidade da dívida com base no título executivo face ao disposto no artº 4º da Lei nº 5/2004 sem prejuízo da nulidade do mútuo com base no artº 287º do C.Civ..
A sentença sob recurso vem posteriormente a acompanhar a solução da nulidade do mútuo.
Estabelece o artº 287º do C.Civ. que «os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de caracter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei».
Sobre esta matéria e o fundamento teleológico desta invalidade remete-se para as anotações ao artigo em questão no Código Civil Anotado de João Gil de Oliveira e José Cândido de Pinho, Livro I, Tomo IV, pág. 395 e seguintes.
A questão que se coloca é a de saber se o empréstimo para jogo feito por quem não está habilitado para tal enferma de nulidade seja por violação do disposto no artº 273º ou do artº 287º ambos do C.Civ..
Ora, a realização de mútuos não é legalmente impossível ou contrária à lei, nem viola disposição legal de carácter imperativo.
O que sucede é que em determinadas circunstâncias o legislador entendeu condicionar a realização de mútuos à pré-existência de determinados requisitos.
Tal é o que acontece com o mútuo para jogo em determinadas circunstâncias.
O empréstimo para jogo ou aposta em casino, feito através da transmissão da titularidade de fichas de jogo de fortuna ou azar está regulado, como já referimos na Lei nº 5/2004.
Da conjugação do artº 4º da Lei nº 5/2004 com o artº 1171º do C.Civ., pode-se retirar que este empréstimo tendo sido para jogo e não obedecendo ao disposto no indicado diploma (por não ter sido feito por quem estava autorizado para tal) não gera obrigações civis, isto é, não pode ser coactivamente exigido.
Tal foi o que se decidiu no processo de embargos à execução que o aqui Recorrente (e Réu) deduziu contra a execução em que era exequente o aqui Recorrido (Autor).
Não sendo objecto desta decisão, mas bem se andou nos embargos à acção executiva quando se decidiu pela extinção daquela por não ser a obrigação exigível, mas já não tanto quanto à referência à nulidade que irremediavelmente arrastou a este processo7.
E a conclusão a que ali se chegou não poderia estar mais correcta na asserção de que o empréstimo feito em fichas de jogo por quem não está habilitado para tal não é exigível (porque não gera obrigações civis).
Porém, já não se concorda que seria um caso de nulidade.
Na esteira deste entendimento – de que o empréstimo seria nulo -, vem também a decisão sob recurso a concluir pela nulidade, havendo que repetir tudo o que foi prestado.
Porém, como referimos não é esta a solução jurídica.
Em momento algum o legislador quis cominar estes contratos (empréstimos para jogo) com a nulidade.
Tal solução equivaleria a que o mutuante não autorizado não correria praticamente risco algum com estes empréstimos para além de poder perder os juros, uma vez que da nulidade decorre sempre a repetição do que se prestou, o que pode ser judicialmente exigível.
Se fosse essa a intenção do legislador, não faria qualquer sentido o citado artº 4º da Lei 5/2004, bastando dizer que os contratos feito em desobediência do estipulado nesta lei seriam nulos.
No entanto não foi essa a solução do legislador.
Decorrendo do já estabelecido no Código Civil no artº 1171º para o jogo e aposta, o legislador vem dizer que os mútuos realizados nos termos da Lei 5/2004 geram “obrigações civis”, donde, aqueles (mútuos para jogo) que não forem celebrados nos termos desta lei, não geram obrigações civis.
São obrigações naturais quando lícitos. Ou seja, se o devedor quiser pagar, paga, e paga bem no cumprimento de uma obrigação natural (e que assumiu), não são é exigíveis coercivamente.
Mas não são nulos.
No entanto, como já vimos não podendo ser coactivamente exigido, ele (o empréstimo) não deixa de poder ser pago voluntariamente, sem que o devedor possa pedir a devolução do que prestou.
  Assim sendo, tendo havido um empréstimo para jogo por quem não estava legalmente autorizado a fazê-lo, não estando o mesmo abrangido pela Lei nº 5/2004, não pode gerar obrigações civis nos termos da indicada lei, pelo que, a acção terá de improceder, embora por fundamentos jurídicos diversos dos invocados nas conclusões de recurso.

Estamos de acordo.

E não obstante estar em causa aqui a entrega de dinheiro e não de fichas de jogo, os mesmos argumentos nesse Acórdão vertidos valem, por identidade de razão, para não reconhecer a natureza civil ao empréstimo que ficou provado nos presentes autos.

Assim, damos por reproduzido aqui e aproveitamos o segmento da fundamentação, ora transcrito supra, do Acórdão deste TSI datado de 09JUL2020, tirado no proc. nº 1239/2019 e com base no qual, iremos revogar a sentença recorrida no sentido de declaração de nulidade do empréstimo por ser ofensivo aos bons costumes e passamos a julgar improcedente o recurso nesta parte, o que por sua vez, conduz à extinção da execução por a dívida exequenda não ser judicialmente exigível.

Em conclusão:

10. Não se verificou a sucumbência recíproca de ambas as partes, exigida pelo artº 587º/1 do CPC, não há lugar ao recurso subordinado.

11. Para afirmar que uma parte fica vencida com a decisão recorrida, é preciso que ela sofra, com essa decisão, gravame ou prejuízo real.

12. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.

13. Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concedem a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento. Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, em princípio, não é sindicável.

14. O recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada. Para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.

15. Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente. Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância, só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.

16. Para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica. Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.

17. O empréstimo para jogo concedido por quem não esteja legalmente autorizado para o efeito não gera obrigações civis nos termos do artº 4º da Lei nº 5/2004.

18. Quando não abrangido pelo disposto no artº 4º da Lei nº 5/2004 o empréstimo para jogo constitui uma obrigação natural que não pode ser judicialmente exigível.


Tudo visto resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:

* Julgar improcedente a reclamação deduzida pela embargante do despacho do Relator que lhe não admitiu o recurso subordinado;

* Julgar improcedente o recurso, revogando a sentença recorrida; e

* Em substituição, julgar procedentes os embargos de executado, determinado a extinção da execução, nos termos consignados supra.

Custas do recurso subordinado pela embargante e custas do recurso principal pela exequente/embargada.

Registe e notifique.

RAEM, 17JUN2021

Lai Kin Hong
(Relator)

Fong Man Chong (Primeiro Juiz-Adjunto)

Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Cfr. Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ., nº 110, pág. 113. Ac. R. Coimbra, de 87/11/17 (CJ, ano XII, Tom 5, p. 80) “o ónus da prova traduz-se, para a parte a quem compete, no dever de fornecer a prova do facto visado, sob pena de sofrer as desvantajosas consequências da sua falta”. Art. 346º C.C. e 516º do C.P.C.

2 Estão fora do campo de análise os contratos não destinados a possibilitar o jogo a uma das partes contratuais, como ocorre nos empréstimos e créditos entre “intermediários de jogo”. Estão também fora de cogitação as questões de âmbito criminal como seja o facto de o mutuário receber dinheiro para jogo e não o aplicar efectivamente nesta actividade.
3 Cfr. Acórdãos do TSI nº 225/2017, de 04/07/2019, Relator: Dr. Fong Man Chong e nº 636/2014, de 10/05/2018, Relator: Dr. Chan Kuong Seng.
4 No mesmo sentido vão os Acórdãos do TSI referidos na nota anterior e ainda o Acórdão do mesmo tribunal com o nº 121/2017 de 18/05/2017, Relator: Dr. Ho Wai Neng.
5 Com Menezes Cordeiro, Tratado…, II, p.572, conclui-se que não se exige que o fim último do negócio seja pretendido por ambas as partes, bastando que uma dela vise alcançá-lo e que seja do conhecimento da outra.
6 Cfr. acórdãos do TSI nº 854/2018, de 27/02/2020, Relator: Dr. Lai Kin Hong e nº 639/2010, de 14/04/2011, Relator: Dr. Gil de Oliveira.
7 Estamos a referir-nos quando se diz, na decisão dos embargos «que o Embargado carece de título executivo para fundamentar a obrigação eventualmente emergente do aludido negócio nulo» – fls. 12 da versão traduzida (a fls. 2 a 14 do apenso de traduções) da sentença a fls. 38 a 41 -. Diga-se ainda que no caso em apreço é por esta passagem, que independentemente da posição que se tenha sobre ela faz parte dos fundamentos da decisão e nessa medida também é abrangida pelo “caso julgado” que, entendemos que no caso em apreço a segunda decisão (e aqui objecto deste recurso) não viola o caso julgado formado pela anterior, que no fundo já se tinha pronunciado sobre a exigência/validade da obrigação subjacente ao título executivo, porque esta passagem contém um comando/sugestão de que haveria que instaurar uma acção declarativa para obter a declaração de nulidade.

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69/2021-35