Processo n.º 298/2020 Data do acórdão:2021-6-17 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– prova livre
– prova bastante
– contraprova
– art.o 338.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Penal
– inquirição de polícias investigadores
– palavras ditas pelo suspeito aos polícias antes de ser arguido
– art.o 44.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
– art.o 48.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– art.o 47.o, n.o 3, do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. No concernente à temática da prova livre, as provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto.
2. Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
3. Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova.
4. No caso, da leitura da fundamentação probatória da decisão condenatória penal recorrida, não se vislumbra que o tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto, pelo que não pode ter havido erro notório na apreciação da prova por parte desse tribunal, aquando da formação da sua convicção sobre os factos respeitantes ao crime de emprego ilegal por que vinha condenado o arguido ora recorrente, nem pode ter existido violação do disposto no art.o 338.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
5. Com efeito, a conduta do tribunal recorrido de ouvir os depoimentos dos guardas policiais testemunhas, que então procederam à investigação no local, na parte respeitante às palavras ditas pelo ora recorrente não pode acarretar violação a essa norma processual penal, já que tais palavras foram ditas pelo recorrente antes de ele se constituir arguido no processo, e não se detecta qualquer indício de o momento da sua constituição como arguido ter sido retardado intencionalmente pela Polícia – cfr. as disposições dos art.os 44.o, n.o 2, 48.o, n.o 1, e 47.o, n.o 3, do mesmo Código.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 298/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Arguido A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 92 a 97 do subjacente Processo Comum Singular n.º CR5-19-0412-PCS do 5.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material de um crime consumado de emprego, p. e p. pelo art.o 16.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, na pena de quatro meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, com obrigação, imposta à luz do art.o 49.o, n.o 1, alínea c), do Código Penal, de prestar, dentro de um mês, uma contribuição pecuniária no valor de seis mil patacas, nos termos concretos definidos na própria sentença, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a sua absolvição penal, alegando, na motivação apresentada a fls. 102 a 118 dos presentes autos correspondentes, que essa decisão condenatória era violadora do princípio da livre apreciação da prova do art.o 114.o do Código de Processo Penal (CPP) e do princípio de in dubio pro reo, porquanto, para já, ele usou, na audiência de julgamento, o direito ao silêncio, mas o Tribunal sentenciador formou a sua convicção sobre os factos, ao arrepio do disposto no art.o 338.o, n.o 1, alínea a), do CPP, com base, inclusivamente, nos depoimentos de duas testemunhas policiais a quem ele próprio tinha confessado na fase preliminar do processo que tinha contratado a trabalhadora ilegal dos autos, e, por outro lado, restando apenas a versão fáctica daquela trabalhadora, essa não daria para se julgar existente o crime de emprego ilegal acusado.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 120 a 121 dos presentes autos, no sentido de improcedência da argumentação recursória.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, emitiu parecer a fls. 132 a 134, materialmente pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A sentença ora recorrida ficou proferida a fls. 92 a 97, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. A fls. 1 a 2v dos autos, consta um auto de participação policial, cujo teor se dá por aqui inteiramente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando:
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício previsto na alínea c) do n.o 1 do art.o 400.o do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, tendo esse Tribunal já explanado, com congruência lógica, sobretudo na página 7 (a partir da sua 8.a linha) e na 1.a linha da página seguinte, do texto da sentença, a fl. 95 a 95v dos autos, o processo de formação da sua convicção sobre os factos respeitantes ao crime de emprego ilegal por que vinha condenado o arguido ora recorrente, não havendo aí, pois, qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova, nem do princípio de in dubio pro reo, nem tão-pouco do disposto no art.o 338.o, n.o 1, alínea a), do CPP (é que para além do facto de na audiência de julgamento então realizada não terem sido lidas quaisquer declarações então prestadas pelo arguido na anterior fase do inquérito, a conduta do Tribunal recorrido de ouvir os depoimentos dos dois guardas policiais testemunhas – que então procederam à investigação do caso no local dos factos – na parte inclusivamente respeitante às palavras ditas pelo ora recorrente não pode acarretar violação a essa norma processual penal, já que, independentemente do demais, tais palavras foram ditas pelo recorrente antes de ele se constituir arguido no processo, e não se detecta qualquer indício de o momento da sua constituição como arguido ter sido retardado intencionalmente pela Polícia – cfr. o que resulta do teor do auto de participação de fls. 1 a 2v dos autos, por um lado, e, por outro, a posição jurídica já assumida por este TSI mormente no acórdão de 12 de Julho de 2018 do Processo n.o 363/2018, acerca da problemática de “conversas informais”, vista à luz das disposições dos art.os 44.o, n.o 2, 48.o, n.o 1, e 47.o, n.o 3, do CPP).
Improcede, assim, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso, com custas pelo recorrente, com três UC de taxa de justiça.
Macau, 17 de Junho de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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