Processo n.º 140/2020 Data do acórdão: 2021-7-1
Assunto:
– erro notório na apreciação da prova
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 140/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente:
– demandante A (A)
Recorridas:
– 1.a demandada civil Companhia de Seguros XXX, S.A.R.L.
– 2.a demandada civil C (C)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com a decisão tomada no acórdão final proferido a fls. 258 a 267v do Processo Comum Colectivo n.o CR5-19-0117-PCC (com enxertado pedido cível de indemnização emergente de acidente de viação) do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, veio recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) a ofendida e demandante civil A, alegando, na sua essência, e rogando, na motivação apresentada a fls. 274 a 280 dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– da matéria de facto descrita como provada nos pontos 1.o a 4.o da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, resulta que o ciclomotor conduzido por ela e o veículo automóvel ligeiro conduzido pela arguida demandada não estavam em circulação paralela, mas sim um estava à frente, seguido por outro, o que, em conjugação com o facto provado de a colisão se ter dado entre a parte frontal esquerda do corpo do veículo automóvel e o motociclo, dá para se concluir que, na altura, o automóvel ligeiro conduzido pela arguida não manteve distância lateral suficiente e segura em relação ao ciclomotor;
– a afirmação do Tribunal recorrido de que a colisão entre os dois se deu por causa não apurada contradiz com a matéria de facto provada, e ofende as regras da experiência;
– houve erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido;
– a arguida deve ter responsabilidade total pela ocorrência da colisão, por violação do disposto no n.o 1 do art.o 21.o da Lei do Trânsito Rodoviário;
– o montante fixado em MOP$80.000,00 no acórdão recorrido para reparação de danos não patrimoniais da própria ofendida recorrente é demasiado baixo, pelo que deve ser aumentado para ser não menos do que MOP$200.000,00;
– seja como for, a percentagem da responsabilidade pelo risco fixada no aresto recorrido em 40% para a ofendida recorrente não deixa de ofender o disposto nos art.os 487.o, 489.o e 560.o do Código Civil (CC), daí que se deveria passar a fixar em não menos do que 80% a percentagem da responsabilidade pelo risco da demandada arguida, com todas as consequências daí resultantes.
Ao recurso, respondeu a 1.a demandada Companhia de Seguros XXX, S.A.R.L., a fls. 288 a 299 dos presentes autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista dada a fl. 309, opinou que não tinha legitimidade para emitir parecer, por estar em causa matéria meramente civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à solução do recurso sub judice:
1. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 258 a 267v dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Nesse acórdão, o Tribunal recorrido absolveu a arguida da imputada prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência no exercício da condução contra a ofendida, e acabou por condenar a demandada seguradora a pagar a quantia indemnizatória (de danos patrimoniais e não patrimoniais) de MOP$195.794,08 a favor da ofendida demandante civil, calculada em função da percentagem de 60% atribuída à arguida demandada em sede de responsabilidade pelo risco.
3. No mesmo acórdão, o Tribunal recorrido fixou seguintes montantes indemnizatórios civis, no total de MOP$326.323,46 (sem entrar ainda, no seu apuramento, a repartição da responsabilidade pelo risco):
– MOP$78.619,00 (por despesas de tratamento médico);
– MOP$5.939,00 (por despesas de tratamento em clínica de Taiwan);
– MOP$2.137,46 (por despesas de transporte);
– MOP$34.200,00 (por percas salariais);
– MOP$80.000,00 (por danos não patrimoniais);
– MOP$580,00 (por despesas de reparação do ciclomotor);
– MOP$124.848,00 (pela incapacidade permanente parcial sofrida).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas ao mesmo tempo nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Começa-se por abordar o vício de erro notório na apreciação da prova, imputado ao Tribunal recorrido pela ofendida demandante civil recorrente, acerca dos factos com pertinência à aferição da culpa imputada à demandada arguida pela produção do acidente de viação.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, após examinados todos os elementos probatórios então examinados pelo Tribunal recorrido e referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que a livre convicção desse Tribunal sobre o tema probando do presente processo na parte com pertinência à decisão da questão da culpa pela produção do acidente de viação tenha sido formada com violação de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou de quaisquer regras da experiência da vida humana quotidiana, ou de quaisquer leges artis vigentes no campo de julgamento de factos, pelo que improcede o vício de erro notório na apreciação da prova esgrimido pela recorrente.
Com efeito, no caso dos autos, a recorrente não logrou oferecer prova bastante da esgrimida culpa à arguida pela produção do acidente, sendo de notar que não se detecta qualquer contradição insanável na fundamentação fáctica e probatória da decisão ora recorrida.
Havendo que respeitar assim a factualidade dada por assente no aresto recorrido, à luz da qual não se pode imputar culpa à demandada arguida nem culpa à própria demandante pela produção do acidente dos autos, por falta de factos provados concretos a demonstrar a culpa daquela ou a culpa desta, é de confirmar a decisão tomada pelo Tribunal recorrido pela aplicação do institututo da responsabilidade pelo risco.
Entretanto, é mister corrigir a decisão de repartição da responsabilidade pelo risco, passando a fixar em 70% a percentagem da responsabilidade pelo risco no lado do veículo automóvel conduzido pela demandada arguida, atendendo precisamente à circunstância de ser este um veículo com tamanho significativamente maior do que o do ciclomotor conduzido pela demandante (cfr. o art.o 409.o, n.o 1, primeira parte, do CC).
Por fim, quanto ao montante indemnizatório dos danos não patrimoniais sofridos pela demandante, afigura-se mais equitativo, atenta a factualidade provada em primeira instância e aos padrões do art.o 489.o, n.os 1 e 3, primeira parte, do CC, passar a fixá-lo em MOP$100.000,00 (antes da entrada da percentagem do risco no seu cálculo).
Em conclusão, procede parcialmente o recurso, passando a condenar a demandada seguradora a pagar à demandante a quantia total indemnizatória de MOP$242.426,40, calculada de seguinte maneira: (MOP$78.619,00 (tratamento médico) + MOP$5.939,00 (tratamento em clínica) + MOP$2.137,46 (transporte) + MOP$34.200,00 (percas salariais) + MOP$100.000,00 (danos não patrimoniais) + MOP$580,00 (reparação do ciclomotor) + MOP$124.848,00 (incapacidade permanente parcial)) x 70% = MOP$242.426,42 = MOP$242.426,40, a que acrescem juros legais a contar de hoje até efectivo e integral pagamento.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso da demandante civil, passando, por conseguinte, a condenar a demandada seguradora a pagar-lhe a quantia total indemnizatória de MOP$242.426,40 (duzentas e quarenta e duas mil, quatrocentas e vinte e seis patacas e quarenta avos), com juros legais a contar de hoje até efectivo e integral pagamento.
Custas do pedido cível pela demandante e pela demandada seguradora em ambas as duas Instâncias na proporção dos respectivos decaimentos.
Macau, Primeiro de Julho de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
Processo n.º 140/2020 Pág. 10/10