Processo n.º 203/2020 Data do acórdão: 2021-7-12
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 203/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 651 a 655 do Processo Comum Colectivo n.o CR3-19-0092-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base que o condenou pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.o 324.o, n.o 3, do Código Penal, na pena de um ano de prisão, suspensa na execução por dois anos, veio recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) o arguido A, para pedir a revogação dessa decisão condenatória, com rogada absolvição desse crime, alegando, na sua essência, na motivação apresentada a fls. 663v a 669 dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– a propósito do facto provado n.o 6, ele nunca disse ao Tribunal Cível em causa que o preço aí referido foi de “649 dólares” de Hong Kong, mas sim que o preço foi “cerca de 600 dólares” de Hong Kong;
– por outro lado, ele nunca disse a esse Tribunal Cível que tinha dito o assunto do preço em 2012, pelo que o Tribunal penal ora recorrido errou na apreciação da prova ao considerar sobretudo provado o facto provado n.o 3, porquanto ele próprio só tinha dito tal assunto em 2009.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 673 a 675v dos presentes autos, no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, opinou, a fls. 688 a 689v dos autos, pela improcedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir nos termos constantes do presente acórdão, lavrado pelo primeiro dos juízes-adjuntos, por o M.mo Juiz Relator do processo ter ficado vencido quanto à solução do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à solução do recurso sub judice:
O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 651 a 655 dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
Segundo o relatório – elaborado pela Polícia Judiciária na fase de investigação do presente processo penal e ora constante de fls. 482 a 483 dos autos – de audição do conteúdo de dois discos compactos contentores da gravação da audiência de julgamento do Tribunal Cível referido no facto provado n.o 5 descrito na fundamentação fáctica do acórdão penal ora recorrido, o ora recorrente, então como testemunha nessa audiência de julgamento cível, chegou a dizer que o preço em causa era “cerca de 600”.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas ao mesmo tempo nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Começa o recorrente por defender que ele nunca disse ao Tribunal Cível atrás referido que o preço em causa foi de “649” dólares de Hong Kong, mas sim de “cerca de 600”.
Procede este argumento recursório dele, em face do teor do relatório de audição da gravação da audiência de julgamento então realizada perante o Tribunal Cível acima referido.
Entretanto, isto não é susceptível de invalidar a decisão condenatória penal ora recorrida, visto que mesmo que ele nunca tenha dito, como testemunha, àquele Tribunal Cível o preço de “649” dólares de Hong Kong, o Tribunal Penal sentenciador ora recorrido não cometeu nenhum erro notório na apreciação da prova quanto a toda a remanescente matéria de facto descrita como provada no seu acórdão, por seguintes razões:
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, após examinados todos os elementos probatórios então examinados pelo Tribunal recorrido e referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que a livre convicção desse Tribunal sobre os factos (com excepção do valor de “649” dólares de Hong Kong referido no facto provado n.o 6 descrito no acórdão recorrido) tenha sido formada com violação de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou de quaisquer regras da experiência da vida humana quotidiana, ou de quaisquer leges artis vigentes no campo de julgamento de factos, pelo que improcede o vício de erro notório na apreciação da prova esgrimido pelo recorrente a respeito sobretudo do facto provado n.o 3.
Portanto, improcede efectivamente a pretensão de absolvição do crime de falsidade de testemunho, dado que o sentido essencial do conteúdo do seu depoimento então prestado ao Tribunal Cível atrás referido, mesmo com consideração do valor (então dito por ele como testemunha a esse Tribunal) de “cerca de 600”, não deixou de ser falso, quando confrontado com a restante matéria de facto dada por provada, sem qualquer erro notório na apreciação da prova, no mesmo acórdão penal sob impugnação.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o pedido absolutório penal formulado na motivação do recurso do arguido A.
Custas do recurso pelo arguido, com quatro UC de taxa de justiça.
Macau, 12 de Julho de 2021.
______________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
______________________
Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
______________________
Choi Mou Pan
(Relator do processo)
(附表決聲明)
上訴案第203/2020號
表 決 聲 明
作為原裁判書製作人,在評議會的表決中落敗,特發表一下不同意見。
在本案中,上訴人被認定曾作虛假陳述的內容重點是其於2012年曾向B及C提及須補回建築差價(已證事實第7點),但上訴人在2014年於民事法庭上作證時,向法官聲稱「有關的港幣649元是其隨便替第三人向B提出的購買有關單位的每呎呎價,而不是要求B作為預約買受人須向“D有限公司”支付建築成本差價的價格」(已證事實第6點)。
原審法院在判決書中事實之判斷部份指出:「證人B在審判聽證中作出聲明。…而當時涉案樓盤的市場價格約為高層3500元/呎,低層3,000元/呎。」
「司警偵查員譚麗園在審判聽證中作出聲明…網上調查結果顯示,2012年時,涉案樓盤的網上報價至少為呎價2,000多元。」
最後原審法院作出結論,「根據本案所得之證據,特別是各證人的聲明,合議庭認為:根據2012年相關樓盤市場價格判斷,嫌犯的主張並不足以採信。依照經驗法則,嫌犯被控之事實獲證明屬實。」
問題在哪?
關於作虛假之證言罪,根據《刑法典》第324條第1款規定,身為證人、鑑定人、技術員、翻譯員或傳譯員,向法院或向有權限接收作為證據方法之陳述、報告、資料或翻譯之公務員,作虛假陳述、提交虛假報告、提供虛假資料或作虛假翻譯者,構成作虛假之證言、鑑定、傳譯或翻譯罪,處六個月至三年徒刑,或科不少於六十日罰金;同條文第3款規定,如行為人在宣誓後,且已被警告將面對之刑事後果後,作出第一款所指之事實,處最高五年徒刑,或科最高六百日罰金。該罪規範於《刑法典》第四章妨害公正之實現之中,所保護和保障的法益是維護司法公正以及社會公平。
證言是由對有關具有法律上的重要性的事實或者這些事實所發生的情節有認識並向法律上有權聽取其聲明者作出的陳述。這些陳述在很多情況下是唯一的證據,而令審判者在之後作出裁判的時候,因這些事情來自卷宗之外而不能對其不能作出審理,並必須在法律上推定為真,並構成訴訟的標的或者判斷的基礎。1
一般來說,證人是對法院所調查的案件沒有任何的利害關係,並且其證言也不帶有任何的個人主觀色彩。那麼,如果證言涉及任何其他不正確的判斷,或者個人的結論或者觀點,都不應該成為虛假證言的標的2, 即如果嫌犯非對客觀發生的事實的直接陳述,而是對事實的一種主觀判斷,這種不真實的判斷不能構成本罪的不法性這個客觀要素。3
那麼,就本案而言,首先,嫌犯在民事案件中被列為證人,但是由於他一直是該保全措施的被申請人“D有限公司”的代表,明顯在案件中有利益關係,但是,由於它並沒有拒絕作證人,也不妨礙他依照事實作出陳述。
其次,原審法院所認定其作出虛假證言的部分是其對已證事實第7點(2012年曾向B及C提及須補回建築差價每呎港幣649元)的事實作出解釋,並向法官解釋道「有關的港幣649元是其隨便替第三人向B提出的購買有關單位的每呎呎價,而不是要求B作為預約買受人須向“D有限公司”支付建築成本差價的價格」(已證事實第6點)。
很明顯,嫌犯所作出的對之前的說法的解釋,先不論其是否虛假,正因其附帶著個人的主觀判斷,不符合本罪名所要懲罰的行為。
因此,本案所要解決的問題並非僅僅是與原審法院認定事實過程中的瑕疵的問題,而是一個可以對事實的解釋並作出嫌犯的行為不構成被判處的罪名的法律問題,應該以不同理由裁定上訴人A所提出的上訴理由成立,開釋其被判處的罪名。
澳門特別行政區,2021年7月12日
1 參見NELSON HUNGRIA 在其著作《Comentário ao Código Penal Brasileiro》第9冊,第472-473頁。
2 參見Leal-Henriques在其著作《Anotação e Comentário ao Código Penal de Macau》, CFJJ 2018, 第VI卷,第312頁。
3 參見本院於2020年3月26日在第954/2019號上訴案中的判決。
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
Processo n.º 203/2020 Pág. 11/11