Processo nº 1026/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 15 de Julho de 2021
ASSUNTO:
- Impugnação da matéria de facto
- Nulidade da sentença
- Excepção de incumprimento
- Contrato
- Responsabilidade por factos ilícitos
- Privação do uso
- Sanção pecuniária compulsória
SUMÁRIO:
- Para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal”, se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
- Para que ocorra a nulidade da sentença prevista na al. c) do artº 571º do CPC é necessário que entre a argumentação usada na decisão recorrida e a conclusão dela retirada haja uma contradição lógica, o que não se confunde com o erro de julgamento por ter havido uma errada interpretação e subsunção dos factos ao direito.
- A excepção de incumprimento só pode ser invocada quando se demonstre que entre as partes foi celebrado um contrato bilateral ou sinalagmático cujas prestações sejam o motivo determinante uma da outra.
- Para que se conclua que entre as partes foi celebrado um contrato é necessário que se demonstre que entre dois ou mais sujeitos houve declarações negociais contrapostas mas integralmente concordantes entre si.
- A privação do uso e disponibilidade da coisa que resulta para o legítimo titular do direito à mesma por aquele que ilicitamente a ocupa ainda que por mera culpa, constitui um dano que é indemnizável nos termos da responsabilidade por factos ilícitos.
- Resultando dos autos que a entrega e restituição da coisa vem sendo reclamada pelo titular do direito à mesma, recusando-se aquele que tem a disponibilidade da mesma a entregá-la sem ter título que o justifique, estão demonstrados os pressupostos para a fixação de sanção pecuniária compulsória.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 1026/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 15 de Julho de 2021
Recorrentes: A e B
Recorridos: C, D, E, F, G, H e I, na qualidade de herdeiros de Ré J
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A e B, ambos com os demais sinais dos autos,
vieram instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
J, entretanto falecida vindo a ser habilitados para prosseguirem na causa em seu lugar, C, D, E, F, G, H e I, todos com os demais sinais dos autos.
Pedindo que:
1. Fosse reconhecido o direito de propriedade dos Autores sobre o imóvel sito na Rua da XX, n.º XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XX0, do Livro XX, fls. XX;
2. Fosse a Ré condenada a devolver o referido imóvel aos Autores livre e devoluto de pessoas e bens, no estado em que legalmente se deve encontrar;
3. Fosse a Ré condenada a pagar aos Autores o valor de MOP$3.000.000,00, correspondente à indemnização pela privação do imóvel, acrescido dos montantes que se vencerem até efectiva entrega do imóvel, a par de juros de mora já vencidos e vincendos;
4. Fosse a Ré condenada a indemnizar o Autor em virtude do estado de degradação do imóvel, em montante a liquidar em sede de execução de sentença:
5. Fosse a Ré condenada a indemnizar o Autor pelos danos futuros, pelos riscos e danos potencialmente causados pelo estado de ruína do imóvel, em montante a fixar em sede de execução de sentença;
6. Em caso de procedência dos pedidos, fosse a Ré condenada no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória em valor não inferior a MOP$300,00, por cada dia de atraso no cumprimento da sentença que ordene a desocupação e entrega do imóvel.
Proferida a sentença a julgar a acção parcialmente procedente, vieram os Autores interpor recurso da mesma, apresentando as seguintes conclusões e pedidos:
A. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida no âmbito dos presentes autos, pela qual o Tribunal a quo, apesar de ter reconhecido o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio sito na Rua da XX, n.º XX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XX, a fls. XX do Livro XX (doravante apenas designado por “imóvel”), indeferiu quer a restituição do mesmo aos Autores (alínea b) do pedido), quer os demais pedidos (alíneas c) a f) do pedido) deduzidos na petição inicial.
B. Nos presentes autos de acção de reivindicação, os Autores e ora Recorrentes alegaram e lograram provar quer o título de onde resulta o seu direito de propriedade, quer a ocupação do imóvel pela Ré, aqui Recorrida.
C. Na sua contestação, a Ré e ora Recorrida veio invocar que o seu título de ocupação era o facto de ser comproprietária do imóvel - tese que foi definitivamente afastada, na medida em que todos os factos que a Ré alegou para o efeito foram dados como não provados -, invocando ainda um acordo celebrado informalmente com os Autores e ora Recorrentes, nos termos do qual, na sua tese, o imóvel objecto dos presentes autos só seria entregue depois da venda dos dois imóveis de que Autores e Ré são comproprietários em Hong Kong.
D. Efectuado o julgamento, o Tribunal a quo deu conta da existência de um acordo entre as partes, não tendo, porém, dado como provado se a entrega do imóvel objecto dos autos seria efectuada antes, durante ou depois da venda dos dois imóveis sitos em Hong Kong de que Autores e Ré são\eram comproprietários, tendo o Acórdão que procedeu à resposta à matéria de facto consignado expressamente que não se logrou apurar qual das partes incumpriu o acordo.
E. Não obstante tal circunstancialismo de facto, o Tribunal a quo na sentença ora recorrida “dá o dito por não dito”, vindo fundamentar a não entrega do imóvel objecto dos presentes autos com base na excepção de não cumprimento do contrato, passando o dizer que, afinal, foram os Autores e ora Recorrentes que incumpriram o tal “acordo”, cujos exactos contornos o próprio Tribunal a quo não determinou por falta de prova (cfr. Acórdão que procedeu à resposta da matéria de facto).
F. Com efeito, a sentença ora recorrida, num exercício que não se pode deixar de qualificar como complexo e, pelo menos no entender dos Recorrentes, confuso, parece desligar-se do que foi decidido em sede de resposta à matéria de facto e faz uma interpretação sobre os pressupostos da excepção de não cumprimento do contrato que, no entender dos Recorrentes, não tem cabimento legal.
G. É o que se verifica, por exemplo, quando na sentença recorrida se consigna que os Recorrentes estão obrigados a proceder à venda do imóvel sito em Hong Kong, quando tal questão não está em causa nos autos, nem tão-pouco sob a jurisdição do Tribunal a quo; quando o Tribunal a quo no sentido de fundamentar a correspectividade entre as prestações se desliga dos factos provados e não provados nos autos e volta aos articulados para retomar a tese da Ré sobre” a compropriedade” depois de ter dado todos os factos a propósito alegados pela Ré como não provados; quando o Tribunal a quo, depois de assumir que não se encontra fixada uma ordem de cumprimento das prestações, ainda assim fazer aplicação do instituto da excepção de não cumprimento do contrato, sabendo que, atentas as prestações em causa - venda de imóveis em situação de compropriedade em Hong Kong e entrega de um imóvel sito em Macau - , naturalmente, tais prestações não são simultâneas, nem resulta provado que o fossem.
H. Com efeito, nos presentes autos não se encontra dado como provado qualquer facto que consigne que os Autores e ora Recorrentes incumpriram qualquer acordo celebrado com a Ré e ora Recorrida, como não se encontra dado como provado que os dois imóveis sitos em Hong Kong teriam que ser vendidos antes e só depois seria entregue o imóvel sito na Rua da XX objecto dos presentes autos (cfr. resposta aos quesitos 47º e 51º da base instrutória).
I. Na ausência de determinação de que as prestações eram simultâneas ou da fixação de prazos diferentes para o cumprimento das respectivas prestações, no sentido de aferir qual das partes teria de efectuar a sua prestação em primeiro lugar, o Tribunal a quo não poderia ter feito aplicação do instituto da excepção de não cumprimento do contrato.
J. Na fundamentação do Acórdão que procedeu à resposta à matéria de facto, pode ler-se que: “(...) Por força disso e porque a prova também não permitiu, não ficou apurado qual das partes deixou de cumprir o referido acordo. (...)”
K. Contrariamente ao que sustenta o Tribunal a quo quem tinha o ónus de alegação e prova quanto à verificação de um título que permitisse ocupar validamente o imóvel objecto dos presentes autos, era inegavelmente a Ré e ora Recorrida (cfr. Ac. STJ de 13.01.2005, disponível em www.dgsi.pt).
L. Com base nisso, surge de forma desgarrada e totalmente incompreensível, em termos que não permitem sequer perceber porquê, a conclusão vertida na sentença recorrida no sentido de que, afinal, terão sido os Recorrentes a incumprir o dito acordo verbal a que se referem as partes.
M. Pelas razões expostas, verificando-se uma clara oposição entre os fundamentos de facto e a decisão, deverá ser declarada nula a sentença recorrida, nos termos do disposto no art. 571º, n.º 1, al. c) do C.P.C..
N. Entendem os Recorrentes que, no caso, o Tribunal a quo fez uma incorrecta subsunção dos factos ao direito, não se verificando no caso em apreço os pressupostos do instituto da excepção de não cumprimento do contrato, nos termos previstos no art. 422º do Código Civil de Macau.
O. Os factos dados como provados são insuficientes e não permitem suportar as conclusões do Tribunal a quo sobre a verificação dos pressupostos do instituto da excepção de não cumprimento do contrato.
P. Desde logo, não se verifica o primeiro pressuposto fundamental e que justifica o instituto da excepção de não cumprimento do contrato: existir um contrato bilateral com prestações correspectivas ou sinalagmáticas.
Q. Tal como acima mencionado, para fundamentar a correspectividade, a sentença recorrida parece desligar-se dos factos provados e não provados e volta ao contexto mencionado da contestação da Ré quanto à alegada situação de compropriedade do imóvel objecto dos autos, quando todos os factos alegados a esse propósito pela Ré foram dados como não provados.
R. Tal exercício desenvolvido na sentença recorrida afigura-se inadmissível, porquanto, consabidamente, a sentença só pode fundar-se nos factos provados ou admitidos por acordo, nos termos do disposto no art. 562º do C.P.C.
S. Com efeito, o que existe no caso ora em apreço é um mero acordo verbal entre as partes, em que a obrigação de venda de um dos imóveis sitos em Hong Kong - pois o outro imóvel de que eram comproprietários foi vendido em 14.07.2006 - não tem qualquer relação e, muito menos, qualquer dependência funcional com a entrega do imóvel objecto dos presentes autos.
T. Trata-se de situações que, juridicamente, têm total autonomia, não têm qualquer relação funcional, e que, para mais, estão submetidas a diferentes jurisdições: A venda do imóvel sito em Hong Kong de que os Autores, ora Recorrentes, são comproprietários, está sujeita à jurisdição de Hong Kong, sabendo que, em relação ao mesmo, quer os Autores, quer a Ré, na qualidade de comproprietários, têm precisamente o mesmo poder de desencadear o respectivo processo de venda, donde trata-se de prestação que, por si só, cria obrigações para ambas as partes; o imóvel objecto dos presentes autos pertence apenas aos Autores, tal como definitivamente fixado nos presentes autos, e encontra-se sob a jurisdição dos Tribunais de Macau, sabendo que, quanto ao mesmo, existe só uma obrigação de entrega que impende apenas sobre a Ré e ora Recorrida.
U. Trata-se de duas situações completamente distintas, com tratamento jurídico distinto e em análise em duas jurisdições distintas, pelo que é manifesto que não existe qualquer correspondência entre as prestações, não existindo, nessa medida, nenhum contrato bilateral com obrigações sinalagmáticas.
V. Por outro lado, tal como o próprio Tribunal a quo admite, é manifesto que também não se verifica o pressuposto da simultaneidade das prestações, sabendo que a simultaneidade é a regra base para que possa operar a excepção de não cumprimento do contrato.
W. Mas mesmo admitindo que a excepção de não cumprimento do contrato possa operar quando se encontrem estipulados prazos diferentes para o cumprimento, no caso em apreço nos autos, como resulta da própria sentença recorrida, não foi dado como provado qual a prestação que deveria ser cumprida em primeiro lugar.
X. Pelo que, na ausência de determinação sobre a simultaneidade das prestações ou sobre a ordem em que as prestações deveriam ser realizadas, contrariamente ao que concluiu o Tribunal a quo, afastado se encontra o pressuposto de aplicação da excepção de não cumprimento do contrato.
Y. Sendo de realçar que, contrariamente ao que consta da sentença recorrida, era à Ré e ora Recorrida - não aos Recorrentes - que cabia o ónus da prova quanto aos factos e pressupostos da excepção de não cumprimento do contrato, o que a mesma não fez.
Z. Por último, também não se verifica o fim que justifica o instituto em causa: um fim de justiça atendendo ao equilíbrio e dependência das prestações.
AA. Pelo contrário, o facto de o Tribunal a quo ter feito aplicação do instituto da excepção de não cumprimento do contrato, fazendo depender a entrega do prédio sito em Macau objecto dos presentes autos, da venda do outro imóvel sito em Hong Kong de que Recorrentes e Recorrida são comproprietários, gera uma situação de injustiça, de insegurança, de incerteza e de desequilíbrio entre as prestações.
BB. Desde logo, tendo em consideração que os Autores já foram intimados pelas Obras Públicas para realizarem obras no imóvel objecto dos presentes autos, atento o estado de degradação do mesmo (cfr. resposta aos quesitos 21º e 23º da base instrutória).
CC. Pelo que, no fundo, atenta a manifesta discrepância entre as partes nomeadamente no que diz respeito aos termos e alcance do “acordo verbal” referido nos presentes autos, o Tribunal a quo decidiu que o destino do imóvel sito em Macau e objecto dos presentes autos ficará na dependência do que for decidido pelos Tribunais de Hong Kong, com todos os riscos inerentes já alertados pelas Obras Públicas e o manifesto contrassenso de a Ré e ora Recorrida não proceder à entrega do prédio de Macau porque não quer, sabendo que não precisa do mesmo para nada, tanto mais que já não o habita há muitos anos.
DD. Acresce que, tendo em conta que um dos imóveis sitos em Hong Kong foi vendido em 2006, caso existisse incumprimento por parte dos Autores e ora Recorrentes - hipótese que por mera cautela de patrocínio se pondera, sem conceder - esse incumprimento seria apenas parcial, pelo que a excepcio só poderia ser invocada pela contraparte de forma parcial e proporcionalmente, desde que não viole o princípio da boa fé.
EE. Ora, tendo em conta que a Ré e ora Recorrida apenas ocupa o imóvel, mas já não o habita há muitos anos, que os Recorrentes já foram intimados pelas Obras Públicas para realizarem obras coercivas atento o estado de degradação do mesmo e que, enquanto a Recorrida não o entregar, encontram-se os Recorrentes impedidos de realizar quaisquer obras no mesmo, mesmo que o incumprimento parcial do acordo fosse imputável aos Recorrentes - o que não se admite - a invocação e aplicação da excepção de não cumprimento do contrato sempre violaria o princípio geral da boa fé, pelo que, também ao abrigo do referido princípio, sempre deveria ser recusada a aplicação do instituto da excepção de não cumprimento do contrato, o que ora se requer.
FF. Pelas razões expostas, entendem os Recorrentes que manifestamente não se verificam os pressupostos da excepção de não cumprimento do contrato, nos termos previstos pelo art. 422º do Código Civil, em termos que impõem a revogação da sentença recorrida, devendo, em consequência, ser declarado procedente o pedido de restituição do imóvel objecto dos autos aos Recorrentes livre e devoluto de pessoas e bens, deduzido na alínea b) do pedido.
GG. Sem prejuízo e sem prescindir da declaração de nulidade da sentença, bem como da apreciação das questões da errada subsunção dos factos ao direito e da não verificação dos pressupostos que justificam a excepção de não cumprimento do contrato, nos termos que acima se deixaram suscitados, não podem ainda os Recorrentes deixar de pôr em causa o pontos da matéria de facto - os quesitos 5º, 6º, 7º, 9º a 12º, 18º, 19º, 21º, 22º, 24º, 38º, 39º,45º,46º,47º (acima transcritos nas alegações) - que foram incorrectamente dados como não provados ou provados pelo Tribunal a quo.
HH. Nos termos do disposto no art. 599.º, n.º 1, als. b) e n.º 2 do C.P.C., os quesitos 5º, 6º, 7º, 18º, 19º e 45º da base instrutória deviam ter sido dados como provados, pois dos factos alegados pelas partes nos seus articulados, resulta que ambas as partes admitem que as negociações se iniciaram durante o ano de 2006. Isso mesmo resulta do próprio quesito 45º da base instrutória, pelo que, quanto ao início das negociações, os quesitos em referencia deviam ter sido dado como provados ao abrigo do disposto no art. 562.º, n.º 3 do C.P.C. No mesmo sentido, vejam-se os documentos juntos pelos ora Recorrentes por requerimento de 16.10.2017, bem como da escritura pública de compra e venda junta como Doc. 8 da petição inicial, dos quais resulta que um dos imóveis sitos em Hong Kong de que Recorrentes e Recorrida eram comproprietários- o imóvel sito em XX, XX Road, XXº andar, apartamento XX foi vendido em 14.07.2006, altura em que, obviamente, as partes já haviam concretizado o acordo verbal para venda dos imóveis de que eram com proprietários em Hong Kong e a entrega do imóvel sito em Macau, bem como as declarações da testemunha K.
II. Quanto à resposta aos quesitos 9.º, 10.º, 11.º e 12.º da base instrutória, a prova dos referidos quesitos resulta das declarações da testemunha K, bem como das testemunhas C e D, ouvidos na mesma sessão de julgamento de 01.11.2017, os quais também admitem que houve negociações em 2009 e 2012, pelo que os referidos quesitos devem ser dados como provados, devendo ser dado como provado o quesito 12.º da base instrutória, também com base nas declarações da testemunha K e L, a qual confirmou que acedeu ao imóvel, pela primeira vez, e que foi aí que verificaram que o imóvel estava muito degradado.
JJ. Quanto à resposta aos quesitos 21.º (na parte que menciona “pelo menos desde Janeiro de 2016”), 22.º e 24.º da base instrutória, a prova dos referidos quesitos resulta das declarações das testemunhas K e L. Quanto à resposta ao quesito 21º da base instrutória, entendem os Recorrentes que mal andou o Tribunal a quo ao ter consignado que o imóvel só se encontra degradado, pelo menos, desde Janeiro de 2016, porquanto um imóvel não se degrada de um dia para o outro, sendo que a Ré, na sua contestação, limitou-se a afirmar que o imóvel não se encontrava degradado. Da conduta processual da Ré e das próprias declarações dos seus filhos, C e D, resulta que os mesmos admitem que não procederam a quaisquer obras de conservação do imóvel. “pelo menos desde Janeiro de 2016”, devendo ser totalmente dados como provados os quesitos 22º e 24º da base instrutória.
KK. Em consequência da procedência da alteração da resposta à matéria de facto quanto aos referidos quesitos, deverão ser declarados procedentes os pedidos deduzidos sob as alíneas d) e e) da petição inicial.
LL. Quanto à resposta aos quesitos 38.º, 39.º,46.º e 47.º (na parte relativa à expressão “em contrapartida”) da base instrutória, é totalmente incompreensível como o Tribunal a quo deu como provado que as partes acordaram na repartição de rendas no que diz respeito, pelo menos, a um dos imóveis - sem determinar qual (!) - sitos em Hong Kong, porquanto dos autos nada resulta nesse sentido, não tendo sido junto qualquer documento ou sido produzida prova testemunhal apta ou suficiente para o efeito.
MM. As únicas testemunhas que referiram de passagem ao pretenso acordo sobre repartição de rendas, foi o filho da Ré - M -, o qual, como o próprio Tribunal a quo consignou no Acórdão que procedeu à resposta à matéria de facto tinha e tem um interesse imediato na presente causa. Por seu turno, as testemunhas N e K afirmaram nunca ter ouvido falar de qualquer acordo de repartição de rendas.
NN. Acresce que, tal como resulta da Alínea I) dos factos assentes e da resposta ao quesito 4º da base instrutória, os Autores/Recorrentes nunca receberam qualquer valor a título de renda do imóvel em apreço nos presentes autos, apesar de o pai dos mesmos ter exigido ao tio dos Autores o pagamento de rendas pela ocupação do imóvel objecto dos presentes autos.
OO. Pelo exposto, devem os quesitos 38.º, 39.º e 46.º ser dados como não provados, na medida em que, nos presentes autos, não se encontra em discussão e, como tal, não pode ser feita prova em termos aptos ou suficientes para o Tribunal a quo poder dado como provados os termos de um qualquer acordo de partilha de rendas de imóveis sitos em Hong Kong, tanto mais que tais se encontram em apreciação nos Tribunais de Hong Kong.
PP. Mantendo-se como provado o quesito 47.º nos termos consignados pelo Tribunal a quo, eliminando-se apenas a expressão “em contrapartida”, na medida que não foi feita prova sobre o exacto teor dos acordos relativos à partilha de rendas em Hong Kong.
QQ. Pelas razões expostas e melhor desenvolvidas nas presentes alegações, entendem os recorrentes que a sentença recorrida procede a uma errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 422º e 1253º do Código Civil, violando ainda o disposto no art. 571º, no 1, al. c) do Código de Processo Civil.
Termos em que se requer a V. Exas. que seja declarado procedente o presente recurso e, em consequência:
- Seja declarada a nulidade da sentença recorrida por oposição dos fundamentos com a decisão;
- Seja declarado procedente o recurso sobre matéria de direito e, em consequência, declarado que, no caso, não se verificam os pressupostos do instituto da excepção de não cumprimento do contrato, o que implica a revogação da sentença recorrida e a procedência dos pedidos deduzidos sob as alíneas b) e f) da petição inicial;
- Ser declarado procedente o recurso interposto sobre a matéria de facto e, em consequência, declarados procedentes os pedidos c) a e) nos termos deduzidos na petição inicial.
Decidindo assim farão Vossas Excelências a costumada e sã JUSTIÇA!”
Contra-alegando vieram os Recorridos apresentar as seguintes conclusões:
1. Os Autores / Recorrentes não se conformando com o douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo, interpuseram recurso, tendo alegado essencialmente o seguinte: (i) verifica-se oposição entre os fundamentos de facto e a decisão, e deverá ser declarada nula a sentença recorrida; (ii) não se verificam os pressupostos da excepção de não cumprimento do contrato, nos termos previstos pelo artigo 422º do Código Civil, que impõem a revogação da sentença recorrida; e (iii) impugnação da matéria de facto que foi incorrectamente dada como não provada ou provada pelo Tribunal recorrido.
2. Em primeiro lugar, não se vislumbra a nulidade alegada pelos Recorrentes, isto porque estes apenas revelam discordar quanto à aplicabilidade da figura da excepção de não cumprimento .do contrato ao caso dos autos, por alegadamente faltarem elementos de facto para tanto, matéria que não cabe no âmbito do artigo 571.º do Código de Processo Civil, muito menos uma contradição entre os factos dos autos e a sentença impugnada;
3. Vem ainda o recurso apresentado pelos Recorrentes sustentar que o Mm.º Tribunal a quo incorreu em erro de direito ao considerar procedente a excepção de não cumprimento, porquanto falta o pressuposto relativo à correspectividade ou relação sinalagmática entre a venda dos dois imóveis em Hong Kong e a entrega do prédio em Macau, a que acresce o facto das prestações não serem simultâneas;
4. Ora, ao contrário do que alegam os Recorrentes, o Tribunal recorrido determinou que existe um acordo enquanto um todo que envolve obrigações de venda dos dois imóveis em Hong Kong e entrega de prédio em Macau, tal como foi alegado pelas partes em litígio, pelo que não poderia o Tribunal deixar de concluir que existe naquelas obrigações uma relação de reciprocidade ou interdependência sendo uma correspectiva da outra (cfr. fls. 20, linhas 19 a 21 da sentença).
5. Por outro lado, e não obstante o Tribunal a quo não ter conseguido apurar a ordem das prestações a serem realizadas, nada impede que seja tida em consideração a regra do cumprimento em simultâneo, o que permite que uma parte recuse a sua prestação enquanto a outra não oferecer a prestação respectiva;
6. Assim, não obstante não ficar demonstrada a existência de qualquer prazo para o cumprimento das obrigações ou qualquer sequência temporal de cumprimento, a verdade é que o Tribunal a quo não poderia deixar de concluir, então, que não foi estabelecido qualquer prazo para o cumprimento das obrigações constantes do acordo e, por conseguinte, a única possibilidade remanescente é a do cumprimento simultâneo das obrigações, não se vendo assim qualquer vício de falta de pressupostos na aplicação do instituto da excepção do cumprimento do acordo, invocada pela Recorrida;
7. Acresce que também não há qualquer violação de um fim de justiça ou de boa fé contratual, mal se compreendendo aliás que se permitisse aos Recorrentes que exigissem o cumprimento de uma obrigação sem correspectivamente oferecerem as contra prestações por si acordadas;
8. Finalmente, os Recorrentes insistem numa suposta “falta de jurisdição” sem sequer justificarem esse entendimento com base em qualquer norma legal, ao contrário do que impõe o artigo 598.º, n.º 2, do CPC, o que é bem revelador de um fundamento de recurso sem qualquer substância, dado que não há qualquer razão para obstar a que os Tribunais de Macau tenham em conta acordos celebrados pelas partes, sobretudo quando os próprios Recorrentes vêm invocar esse acordo na sua petição inicial;
9. Em suma, os fundamentos invocados pelos Autores / Recorrentes para obstaculizar a excepção de não cumprimento não têm qualquer razão de ser, devendo o recurso nesta matéria ser julgado absolutamente improcedente;
10. Vêm ainda os Recorrentes impugnar o julgamento da matéria de facto efectuado pelo Mm.º Tribunal recorrido, no entanto, após exame das alegações de recurso, o que aqui Recorrentes põem em causa é o princípio da livre apreciação das provas, pois em bom rigor os Recorrentes simplesmente não se conformam com a avaliação das provas feita pelo Tribunal a quo;
11. Neste âmbito, o recurso limita-se a valorar num certo sentido a prova (um reduzido excerto da mesma) produzida em audiência, o que não se afigura aceitável em face do princípio da livre apreciação das provas, indo ao ponto de colocar em causa a totalidade da matéria de um quesito (como o quesito 46.º da Base Instrutória), apenas porque discordam parcialmente de um trecho desse quesito (relativamente à repartição de rendas dos imóveis de Hong Kong);
12. Pelo que nesta matéria o recurso não deverá também proceder, sendo certo também que acabam por não explicitar de que modo é que a resposta diferente dada à matéria de facto implicaria a procedência dos restantes pedidos indemnizatórios formulados em sede de petição inicial e que foram julgados improcedentes;
13. É que, conforme sustentou o Mm.º Tribunal a quo, seria necessário a existência de um acto ilícito por parte da Ré para dar origem a uma indemnização extracontratual a favor dos Recorrentes, não se podendo esquecer que a ocupação do prédio pela Recorrida tem a sua origem numa razão histórica-familiar e ainda que ficou claramente demonstrado nos autos que há 1 acordo entre a Recorrida e os Recorrentes que permite a ocupação daquele prédio até (pelo menos) ao cumprimento simultâneo da obrigação de venda do imóvel em Hong Kong.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Factos
Na decisão sob recurso foi apurada a seguinte factualidade:
Da Matéria de Facto Assente:
- Por apresentação n º 130 de 24/07/2009, os Autores têm registada a seu favor, por sucessão de seu falecido pai, O, a aquisição do domínio útil do prédio sito na Rua da XX, n.º XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XX0, a fls. XX. do Livro XX (alínea A) dos factos assentes).
- Por sua vez, o pai dos Autores tinha registada a seu favor a aquisição do domínio útil do mesmo prédio por compra titulada mediante escritura pública de compra e venda de 30.12.1954 (alínea B) dos factos assentes).
- O pai dos Autores viveu no referido imóvel durante alguns anos, juntamente com a respectiva esposa, os avós dos Autores, o tio dos autores, P ou Q (P,另名Q) (irmão mais velho do pai dos Autores) e a mulher deste, a ora Ré (alínea C) dos factos assentes).
- Na década de 1960 os pais dos Autores foram viver para Hong Kong, tendo ficado a viver no referido imóvel, a avó dos Autores, bem como o tio dos Autores, P ou Q (P,別名Q), acompanhado de sua mulher, a ora Ré (alínea D) dos factos assentes).
- O pai dos Autores faleceu no dia 13 de Agosto de 2002 e P ou Q (P,別名Q), o tio dos Autores, faleceu em 2002 ou 2003 (alínea E) dos factos assentes).
- No final da década de 1940 e nos inícios da década de 1950, R, pai de Q e de O, ou seja, avô dos Autores, explorou uma famosa clínica tradicional chinesa na região de Cantão, na República Popular da China, tendo conseguido acumular uma fortuna considerável (alínea F) dos factos assentes).
- Na década de 1960, Q e O, compraram dois imóveis em Hong Kong em compropriedade (alínea G) dos factos assentes).
- No seguimento de negociação havida entre os Autores e a Ré, um dos imóveis sitos em Hong Kong foi vendido a terceiros (alínea H) dos factos assentes).
- O Tio dos Autores (P) nunca pagou qualquer renda pela ocupação do imóvel referido em A) (alínea I) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- O que consta da alínea D) dos factos assentes (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
- Em 27 de Junho de 2001, o tio dos Autores, P ou Q (P、Q), enviou ao pai dos Autores um carta com o seguinte teor (resposta ao quesito 3º da base instrutória):
“O:
收到來信你說大家年老。應辦妥的事係事實。我年已78你74。
辦法:
你將澳門XX街XX號舖轉名給我。
我將香港XX道及XX全部給你。
另給你現金壹拾萬港幣。如你合意者就帶契來澳門辦妥即收現金壹拾萬元,我同你往港到律師樓辦妥轉名手續。
P 2001.6.27”
- O pai dos Autores declinou a proposta constante da carta de 27 de Junho de 2001 pedido e exigiu ao tio dos Autores, P ou Q (P、Q), o pagamento de rendas pela ocupação do imóvel referido em A) (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
- Em de 2012, os Autores chegaram a entrar no prédio referido em A) dos factos assentes (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
- Depois de 2012, ainda sem se ter procedido à venda do segundo imóvel situado em Hong Kong referido em G) e H) dos factos assentes, nunca mais os Autores conseguiram ter acesso ao imóvel referido em A) dos factos assentes (resposta ao quesito13 º da base instrutória).
- A Ré faz depender a entrega do imóvel referido em A) dos factos assentes da venda desse segundo imóvel de que é comproprietária com os Autores em Hong Kong (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- A Ré ocupa o prédio referido em A) dos factos assentes com bens pessoais no seu interior apesar de nele não residir há muitos anos (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- No dia 8 de Abril de 2016, os Autores enviaram uma carta dirigida à Ré para a morada do prédio referido em A) dos factos assentes pedindo-lhe para proceder à desocupação do imóvel e ao pagamento aos Autores de uma indemnização pela ocupação ilegítima do prédio (resposta ao quesito 16º da base instrutória).
- Tal carta não teve resposta por parte da Ré que se tem recusado a proceder à desocupação do imóvel (resposta ao quesito 17º da base instrutória).
- A renda mensal do prédio referido em A) dos factos assentes é (resposta ao quesito 20º da base instrutória):
MOP$6.000,00 em 2006;
MOP$7.000,00 em 2007;
MOP$8.400,00 em 2008;
MOP$11.000,00 em 2009;
MOP$14.000,00 em 2010;
MOP$15.500,00 em 2011;
MOP$19.440,00 em 2012;
MOP$21.600,00 em 2013;
MOP$27.900,00 em 2014;
MOP$31.000,00 em 2015;
MOP$34.000,00 em 2016.
- O imóvel referido em A) dos factos assentes se encontra degradado, pelo menos, desde Janeiro de 2016, razão por que os Autores receberam uma intimação para a realização de obras de conservação, datada de 20 de Junho de 2017 (resposta ao quesito 21º da base instrutória).
- Enquanto a Ré não permitir aos Autores o acesso ao prédio referido em A) dos factos assentes, estes estão impedidos de proceder a quaisquer obras de conservação (resposta ao quesito 23º da base instrutória).
- Os avós paternos dos Autores, o tio dos Autores, P ou Q (P、Q), a Ré, e tia dos Autores, S chegaram a residir no prédio referido em A) (resposta ao quesito 30º da base instrutória).
- No prédio viveram não só o tio dos Autores, P ou Q (P、Q), e a Ré mas também os pais, os avós dos Autores e a tia dos Autores, S (resposta ao quesito 31º da base instrutória).
- Porque o pai dos Autores se encontrava a viver em Hong Kong, foi decidido entre este e o tio dos Autores P ou Q (P、Q), que aquele iria dar de arrendamento, pelo menos, um dos dois imóveis em Hong Kong, partilhando depois as rendas entre os dois (resposta ao quesito 38º da base instrutória).
- O pai dos Autores deu de arrendamento, pelo menos, um dos imóveis sitos em Hong Kong e, apesar de ter recebido as rendas, nunca as dividiu com o tio dos Autores, P ou Q (P、Q) (resposta ao quesito 39º da base instrutória).
- O que consta da resposta ao quesito 3º (resposta ao quesito 41º da base instrutória).
- O que consta da resposta ao quesito 3º (resposta ao quesito 42º da base instrutória).
- Em data não apurada, ficou acordado que os Autores e a Ré iriam proceder à venda dos dois imóveis em Hong Kong ficando cada uma das partes com metade do preço das vendas e que os Autores entregariam à Ré metade das rendas recebidas na sequência do arrendamento de, pelo menos, um dos dois imóveis em Hong Kong (resposta ao quesito 46º da base instrutória).
- Em contrapartida, a Ré iria proceder à entrega do prédio referido em A) aos Autores (resposta ao quesito 47º da base instrutória).
- Em 2007, os Autores fizeram o inventário judicial por falecimento do seu pai (resposta ao quesito 49º da base instrutória).
b) Do Direito
Na alínea GG das conclusões de recurso dizem os recorrentes o seguinte:
«Sem prejuízo e sem prescindir da declaração de nulidade da sentença, bem como da apreciação das questões da errada subsunção dos factos ao direito e da não verificação dos pressupostos que justificam a excepção de não cumprimento do contrato, nos termos que acima se deixaram suscitados, não podem ainda os Recorrentes deixar de pôr em causa o pontos da matéria de facto - os quesitos 5º, 6º, 7º, 9º a 12º, 18º, 19º, 21º, 22º, 24º, 38º, 39º,45º,46º,47º (acima transcritos nas alegações) - que foram incorrectamente dados como não provados ou provados pelo Tribunal a quo».
Ora pese embora, os Recorrentes entendam ser de conhecer em primeiro lugar da alegada nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão e do erro de aplicação do direito por não estarem verificados os pressupostos da excepção do não cumprimento do contrato, o certo é que, para se avaliar da primeira impõe-se também ter por assente a factualidade que ficou apurada nos autos, e da decisão sobre a matéria de facto poderá depender também o juízo a formular quanto á decisão da segunda questão suscitada, pelo que, iniciamos a apreciação do recurso pela impugnação da matéria de facto.
Assim sendo, devem os fundamentos de recurso ser apreciados pela seguinte ordem:
1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2. Da nulidade da sentença;
3. Da inexistência dos pressupostos da excepção de não cumprimento;
4. Caso o fundamento de recurso indicado na alínea anterior seja julgado procedente, impõe-se conhecer das demais questões suscitadas e cuja apreciação ficou prejudicada na 1ª Instância.
1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Vêm os recorrentes impugnar as respostas dadas aos quesitos da base instrutória 5º, 6º, 7º, 9º a 12º, 18º, 19º, 21º, 22º, 24º, 38º, 39º,45º,46º e 47º.
Relativamente aos quesitos 5º, 6º, 7º, 18º, 19º e 45º entendem os Recorrentes que os mesmos devem ser dados como provados.
Os quesitos 5º, 6º e 7º referem-se no essencial à interpelação da Ré para desocupar o imóvel a que se reportam os autos e situam a realização dessa interpelação no decorrer de umas negociações com vista a repartir o património em comum em Hong Kong, que alegam ter tido lugar em 2006.
Nestes quesitos o facto essencial que se pergunta é a interpelação da Ré para entregar, a data dessa interpelação e a não entrega por banda da Ré.
Entendem os Recorrentes que as partes estão de acordo que as negociações ocorreram em 2006.
Porém, o que resulta do artº 17º da p.i. e da 37º e 40º da contestação é precisamente a discordância quanto a ter havido interpelação e que essa tenha ocorrido em 2006 e que haja sido no âmbito das negociações que ali se indicam.
Invocam os Recorrentes uma passagem de um depoimento de uma das testemunhas K o qual é casado com a 1ª Autora e cunhado do 2º Autor, sendo que o tribunal “a quo” desvaloriza os depoimentos das testemunhas face ao manifesto interesse que têm no desfecho do litígio seja num sentido ou noutro, razão pela qual, face à incompatibilidade das versões apresentadas os desvalorizou, nada se trazendo agora que permita concluir em sentido contrário.
A fundamentação quanto ao momento em que as negociações ocorreram e à interpelação da Ré é no sentido de não ter sido feita prova desse facto, sendo certo que não é admitido por acordo que tenha sido em 2006 que houve negociações, sem prejuízo de se admitir que em 2006 se terá chegado a consenso em alguma coisa e até se vendeu um dos imóveis em Hong Kong, o certo é que, tal facto não permite concluir que tenha sido aí que a Ré haja sido interpelada para entregar.
Atente-se que tal como tem vindo a ser entendido unanimemente por este tribunal no que concerne à convicção do tribunal a lei consagra o princípio da livre apreciação da prova, salvo nos casos em que a lei atribua o valor de prova plena.
Destarte, porque resulta da imediação este tribunal só poderá sindicar a convicção formada pelo tribunal “ a quo” se tiverem sido violadas regras de prova tarifada ou vinculada, se se mostrar manifestamente contrária às regras da experiência da vida e da lógica – cf. Acórdão deste Tribunal de 13.05.2021 processo 228/2020 -, ou quando a fundamentação seja inexistente.
No mesmo sentido veja-se Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, Acção Declarativa Comum, 3ª Ed., pág. 523 e seguintes.
Logo, no que concerne à impugnação das respostas dadas aos quesitos 5º, 6º e 7º da base instrutória improcede o recurso.
No quesito 18º pergunta-se se a Ré sabe que o prédio não lhe pertence. Ora o que resulta da defesa apresentada pela Ré é que esta invocava que embora formalmente o prédio estivesse só em nome do pai dos Autores e depois em nome destes, aquela – a Ré – entendia que o seu marido era dono de metade do mesmo e consequentemente também a Ré. O facto desta versão não se ter provado, face à fundamentação da resposta à base instrutória não resulta em momento algum estar demonstrado que a Ré sabia que o prédio não lhe pertencia, pelo que, nada se invocando que justifique resposta diversa, pelas razões já supra referidas, também nesta parte improcede o recurso.
Quanto ao quesito 19º entendem os Recorrentes que decorre provado do restante, porém não concordamos, perguntando-se se é por força da ocupação da Ré que desde Junho de 2006 os Autores deixam de auferir rendas do imóvel, haveria de se ter provado que em 2006 aquela foi interpelada para o entregar, e não se provou, e que o imóvel poderia ser arrendado e teve quem o quisesse arrendar o que de modo algum é evidente que poderia ter acontecido quando se invoca que o mesmo está em perigo de ruína.
Não se confunda a possibilidade de arrendamento com a possibilidade de usufruir e a privação do uso e disposição.
Logo, também pelas razões já supra referidas, quanto à resposta dada ao quesito 19º improcede o recurso.
No que concerne à resposta dada ao quesito 45º nem se entende a impugnação dos Recorrentes uma vez que esta matéria faz parte da argumentação da Ré a qual não se provou, porque não se provou que o prédio de Macau pertencia em compropriedade às duas famílias, improcedendo também o recurso nesta parte.
Quanto aos itens 9º, 10º, 11º, 12º, 21º, 22º, 24º, 38º, 39º 46º e 47º, entendem os Recorrentes que as respostas dadas haveriam de ter sido diferentes.
Quanto aos quesitos 9º, 10º, 11 e 12º.
Relativamente a esta matéria entendem os Recorrentes que a resposta haveria de ter sido provado com base no depoimento da testemunha K relativamente ao qual já antes se explicou a razão porque o tribunal “a quo” não valorizou o depoimento da testemunha e a concordância com este argumento. Pelo que, mais uma vez pelas razões já expostas quanto aos termos em que se admite a sindicância por este tribunal da convicção do tribunal “a quo”, nesta parte não há reparo a fazer à decisão recorrida.
Mais invocam os Recorrentes que a matéria do item 12º é comprovada pelo depoimento das testemunhas filhos da Ré, no entanto não se indica a passagem da gravação do depoimento de onde se pode retirar essa ilação, pelo que de acordo com o disposto no nº 2 do artº 599º do CPC, não pode o recurso proceder nesta parte.
Relativamente às respostas dadas aos quesitos 21º, 22º e 24º a fundamentação do tribunal justifica-se no ofício da DSSOPT e a razão porque não se convenceu pelos depoimentos das testemunhas, sendo certo que as passagens dos depoimentos invocados pelos Recorrentes correspondem aos depoimentos do marido da 1ª Autora e do seu sobrinho, os quais o tribunal não valorizou pelo manifesto interesse que têm no desfecho da causa a favor dos Autores.
Por esta razão e tal como já antes se decidiu e fundamentou, nada se invoca que demande resposta diferente da que foi dada pelo tribunal “a quo”, improcedendo o recurso no que concerne a esta parte.
Quanto às respostas dadas aos quesitos 38º, 39º, 46º e 47º da base instrutória a fundamentação do tribunal “a quo” é a seguinte:
«Em relação às negociações e acordos alegados pelas partes, apenas as duas cartas acima referidas e algumas testemunhas deram conta dos respctivos factos das quais se retira que houve um acordo nos termos indicados nas respostas aos quesitos 46º e 47º da base instrutória. Porém, o tribunal não conseguiu concluir como e quando exactamente foram encetadas as negociações, se o pai dos Autores e o marido da Ré chegaram a qualquer acordo e qual das versões apresentadas pelas partes correspondia à verdade.
Com efeito, as testemunhas padecem dos problemas acima indicados e as duas cartas, como foi referido, não demonstram se o imóvel era do pai dos Autores e do marido da Ré ou apenas daquele e se o acordo de partilha incluía também o imóvel de Macau e as rendas de ambos os imóveis de Hong Kong.
Por força disso e porque a prova também não permitiu, não ficou apurado qual das partes deixou de cumprir o referido acordo. Está tão-só demonstrado que um dos imóveis sitos em Hong Kong ainda está por vender, metade das rendas de, pelo menos, um dos imóveis em Hong Kong por entregar à Ré e o imóvel de Macau por entregar aos Autores porque a Ré ainda o ocupa.».
Das cartas a fls. 32 e 36 ambas escritas pelo pai dos Réus/Recorridos ora como P ora como Q - que como resulta da factualidade apurada eram os nomes que usava - resulta apenas que este propôs ao seu irmão O (pai dos Autores) que residia em Hong Kong, que o imóvel sito de Macau ficava para o declaratário - P aliás Q – pagando ainda ao irmão HKD100.000,00 e cedendo-lhe a sua metade nos dois imóveis de Hong Kong.
Na segunda carta P aliás Q diz que não admite que lhe aumente a renda 25 vezes e que há mais de 10 anos que não recebe a sua metade das rendas dos imóveis de Hong Kong.
Estas cartas são juntas pelos Autores mas em momento algum confessam ou admitem que os ou algum dos imóveis em Hong Kong estivesse arrendado e que tivessem rendas a pagar aos Réus/Recorridos pelo arrendamento dos prédios de Hong Kong.
O tribunal “a quo” pelas razões já referidas desvalorizou os depoimentos das testemunhas por as versões apresentadas serem opostas e por nenhum deles ser credível face ao manifesto interesse que uns e outros tinham na decisão do pleito num ou noutro sentido.
Ora, se não resulta dos documentos juntos que um dos imóveis de Hong Kong estava arrendado e o valor da renda, não basta a declaração de uma das partes – no caso a beneficiada com essa declaração – para com a certeza jurídica necessária se concluir pela prova deste facto nos termos em que foi dado por assente na resposta dada ao quesito 46º.
Assim, não se invocando outra fundamentação que não sejam os documentos, deve proceder o recurso no que concerne a esta matéria alterando-se a resposta dada ao quesito 46º para:
“Provado apenas que em data não apurada, ficou acordado que os Autores e a Ré iriam proceder à venda dos dois imóveis em Hong Kong ficando cada uma das partes com metade do preço das vendas.”
Quanto à resposta dada ao artº 47º não podemos deixar de concordar com a impugnação dos recorrentes. O Tribunal “a quo” no artº 47º não deu como provado que após as vendas se faria a entrega do imóvel em Macau.
Como expressamente resulta da fundamentação usada apenas se provou que um dos imoveis de Hong Kong está por vender e o imóvel de Macau por entregar.
Ora a expressão “Em contrapartida, e só após aquelas vendas” faziam parte da mesma frase estabelecendo a relação entre o acordo de venda e pagamento das rendas a que se aludia no quesito 46º e a entrega do imóvel a que se aludia no artº 47º, pelo que, não se provando esta relação e que a entrega só ocorria após a venda do imóveis de Hong Kong a expressão em contrapartida isolada do restante fica com um sentido equívoco, quando na fundamentação o tribunal “a quo” expressamente diz que um imóvel está por vender e o de Macau por entregar porque a Ré ainda o ocupa, pelo que, também esta expressão tem de ser retirada por não fazer sentido sem o remanescente da frase em que estava.
Para além de que, respondendo deste modo fica a resposta dada ao quesito 46º no mesmo sentido da resposta ao quesito 14º, uma vez que, como deste resulta a entrega do imóvel de Macau não se faz porque a Ré a faz depender da venda dos imóveis de Hong Kong mas não porque haja acordo algum nesse sentido.
Pelo que, procede o recurso passando a resposta ao artº 47º da Base instrutória a ter a seguinte redacção:
“Provado apenas que a Ré iria proceder à entrega do prédio referido em A) aos Autores.”
2.Da nulidade da sentença
Invocando a nulidade da decisão proferida vêm os Recorrentes invocar que não se tendo provado quem deixou de cumprir o acordo a decisão recorrida vem a concluir que os Recorrentes incumpriram o acordo em clara contradição entre os fundamentos de facto e a decisão.
Pretendem os Recorrentes com a referida alegação imputar à decisão recorrida a nulidade decorrente da al. c) do nº 1 do artº 571º do CPC.
Contudo, não lhes assiste razão.
Tal como se reconhece há um raciocínio na decisão recorrida que partindo da interpretação dos factos apurados e matéria constante dos articulados leva o julgador a concluir pela existência do acordo entre as partes que condicionava a entrega do imóvel a que se reportam os autos à venda do imóvel em Hong Kong e pagamento do valor das rendas devidas pelo arrendamento do imóvel em Hong Kong, o qual haveria de ser cumprido primeiro pelos Autores, os quais voluntariamente incumpriram o que legítima que a Ré invoque a excepção de não cumprimento, concluindo-se na parte dispositiva em conformidade.
A oposição entre os fundamentos e a decisão prevista na al. c) do nº 1 do artº 571º do CPC não se confunde com o erro de julgamento. Uma coisa é haver um erro lógico entre a fundamentação e a parte final desta concluindo-se em sentido contrário àquele que a argumentação fazia pressupor. Outra coisa diferente é o erro de julgamento o qual pode resultar de uma errada interpretação e subsunção dos factos ao direito.
Sobre esta matéria veja-se José Lebre de Freitas e outros em Código de Processo Civil Anotado, II Vol., pág. 670 «Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.».
Neste sentido veja-se em Jurisprudência comparada o Acórdão do STJ Português de 26.04.1995 citado em Código de processo Civil Anotado de Abílio Neto 20ª Ed., pág. 920, de cujo sumário consta «A nulidade da alínea c) do n.º 1 do art. 668.º pressupõe um erro lógico na parte fina da argumentação jurídica: os fundamentos apontam num sentido e, na parte final, vem a optar-se por fundamentação adversa.» e de 13.02.1997 citado no mesmo volume a pág. 921 «Ocorre a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 668.º do Cód. Proc. Civil – oposição entre os fundamentos e a decisão - «quando o raciocínio do juiz aponta num sentido e no entanto decide em sentido oposto ou pelo menos em sentido diferente»».
Destarte, uma vez que entre a argumentação usada na decisão recorrida e a conclusão dela retirada não existe contradição lógica, impõe-se concluir pela improcedência deste fundamento de recurso.
3. Da inexistência dos pressupostos da excepção de não cumprimento.
Relativamente à excepção de não cumprimento a matéria de facto apurada que poderá ter interesse para a decisão desta questão consiste no seguinte:
- A Ré faz depender a entrega do imóvel referido em A) dos factos assentes da venda desse segundo imóvel de que é comproprietária com os Autores em Hong Kong (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- A Ré ocupa o prédio referido em A) dos factos assentes com bens pessoais no seu interior apesar de nele não residir há muitos anos (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- No dia 8 de Abril de 2016, os Autores enviaram uma carta dirigida à Ré para a morada do prédio referido em A) dos factos assentes pedindo-lhe para proceder à desocupação do imóvel e ao pagamento aos Autores de uma indemnização pela ocupação ilegítima do prédio (resposta ao quesito 16º da base instrutória).
- Tal carta não teve resposta por parte da Ré que se tem recusado a proceder à desocupação do imóvel (resposta ao quesito 17º da base instrutória).
- Porque o pai dos Autores se encontrava a viver em Hong Kong, foi decidido entre este e o tio dos Autores P ou Q (P、Q), que aquele iria dar de arrendamento, pelo menos, um dos dois imóveis em Hong Kong, partilhando depois as rendas entre os dois (resposta ao quesito 38º da base instrutória).
- O pai dos Autores deu de arrendamento, pelo menos, um dos imóveis sitos em Hong Kong e, apesar de ter recebido as rendas, nunca as dividiu com o tio dos Autores, P ou Q (P、Q) (resposta ao quesito 39º da base instrutória).
- Em data não apurada, ficou acordado que os Autores e a Ré iriam proceder à venda dos dois imóveis em Hong Kong ficando cada uma das partes com metade do preço das vendas (resposta ao quesito 46º da base instrutória).
- A Ré iria proceder à entrega do prédio referido em A) aos Autores (resposta ao quesito 47º da base instrutória, recurso julgado procedente quanto à alteração do texto desta resposta).
A factualidade da base instrutória que não se provou significa apenas isso – não se provou -, o que não corresponde a que se demonstrou o contrário.
Contudo, nada obsta que na interpretação da factualidade dada por assente o tribunal tenha em consideração e recorra ao que consta da fundamentação usada aquando da resposta à base instrutória, a qual no que a esta matéria concerne já foi dada por reproduzida supra.
A matéria que constava dos quesitos 46º e 47º da base instrutória era o seguinte:
«46º
Tendo ficado acordado, por volta do ano de 2006, que os Autores e a Ré iriam proceder à venda dos dois imóveis em Hong Kong, ficando cada parte com direito a metade do preço das vendas e que os Autores devolveriam metade das rendas recebidas na sequência do arrendamento dos dois imóveis em Hong Kong?
47º
Em contrapartida, e só após aquelas vendas, a Ré iria proceder à entrega do prédio referido em A) aos Autores, renunciando a quaisquer direitos sobre o citado prédio, designadamente renunciando à sua quota-parte como comproprietária?»
Em resposta àquela matéria foi dado como provado que:
«Quesito 46º:
PROVADO que, em data não apurada, ficou acordado que os Autores e a Ré iriam proceder à venda dos dois imóveis em Hong Kong ficando cada uma das partes com metade do preço das vendas.
Quesito 47º:
PROVADO que, a Ré iria proceder à entrega do prédio referido em A) dos Autores.».
Ou seja, tal como os Recorrentes alegam ao se expurgar da resposta dada ao item 47º da Base instrutória a frase “e só após aquelas vendas”, isso significa que esta matéria não foi dada por assente.
Agora em sede de recurso e na sequência daquela outra redacção retirou-se a expressão “Em contrapartida”.
Entende-se, contudo, a determinado momento da decisão recorrida que os Autores/Recorrentes confessam não prosseguir com a venda do imóvel em Hong Kong recorrendo ao que consta do artº 21º da p.i. Ora, se é certo que nesse artigo os Autores aceitam que não prosseguiram com a venda do imóvel, não podemos desassociar o contexto em que a afirmação é feita e que resulta destes – os Autores – invocarem que a Ré haveria de ter entregue o imóvel em Macau após a venda que já havia sido realizada do outro imóvel que tinham em conjunto em Hong Kong.
O que nos leva de volta a um outro problema que a sentença recorrida tenta resolver e que tem a ver com a existência do acordo e em que termos e qual das prestações haveria de ser cumprida primeiro, se a dos Autores se a da Ré. Questões a que a factualidade apurada não responde.
Vejamos então.
Consagra o artº 422º do C.Civ. a “exceptio non adimpleti contractus”.
Artigo 422.º
(Noção)
1. Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
2. A excepção não pode ser afastada mediante a prestação de garantias.
Estabelece esta disposição legal como requisito da excepção de não cumprimento que se trate de um contrato bilateral ou sinalagmático, isto é, com obrigações para ambas as partes e que não haja prazos diferentes para o cumprimento das prestações1.
«A exceptio non adimpleti contractus a que se refere este artigo pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra. É o que se verifica nos contratos tradicionalmente chamados bilaterais ou sinalagmáticos.
(…)
Para que a exceptio se aplique, não basta que o contrato seja obrigatório, ou crie obrigações, para ambas as partes: é necessário que as obrigações sejam, como se disse, correspectivas ou correlativas, que uma seja o sinalagma da outra. No mandato (gratuito), por ex., pode haver a haverá normalmente obrigações para ambas as partes e, todavia, não se trata de um contrato bilateral (hoc sensu).
Dentro dos próprios contratos bilaterais, interessa ver quais são as prestações interdependentes, visto que outras podem existir ao lado delas na relação contratual e a exceptio só aproveita às primeiras. A obrigação de pagar a renda, imposta ao locatário, faz parte do sinalagma contratual, na medida em que se contrapõe à obrigação fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo da coisa ao locatário. Mas já o mesmo não sucede com a obrigação de restituir a coisa locada, uma vez finda a locação, nem com a obrigação de indemnização das benfeitorias.» - cit. Código Civil Anotado, Pires de Lima & Antunes Varela, 3ª Ed. pág. 380/381 -.
Antes de analisarmos a correlatividade das prestações há que apreciar se entre as partes foi celebrado algum contrato.
Estabelece o C.Civ. no seu artº 224º o seguinte:
Artigo 224.º
(Âmbito do acordo de vontades)
1. O contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo.
2. Se as partes tiverem deixado pendente a negociação de determinados pontos secundários, mas tiverem revelado, por meio do começo de execução ou por outra qualquer forma, uma vontade inequívoca de se vincularem ao contrato nos termos negociados, este considera-se concluído, aplicando-se as regras de integração quanto aos pontos omissos.
No caso em apreço mostra-se antes demais atentar no conceito de contrato enquanto fonte de obrigações, sendo esclarecedor o ensinamento de Luís Menezes Leitão em Direito das Obrigações Vol. I, pág. 187 a 189:
«1. O contrato
1.1. Generalidades
Os negócios jurídicos costumam ser distinguidos em unilaterais, que são os que possuem apenas uma parte, e contratos, que são os que possuem duas ou mais partes. Normalmente, o contrato possui apenas duas partes, e por isso, é designado de negócio jurídico bilateral. Pode, porém, o contrato ter cariz multilateral quando tem mais que duas partes, como sucede no contrato de sociedade (art. 980.º).
Na definição tradicional, entende-se por parte, não uma pessoa, mas antes o titular de um interesse, o que poderia implicar que duas ou mais pessoas constituíssem uma única parte, quando tivessem interesses comuns. Daí a exigência de uma contraposição de interesses, na autoria das declarações negociais, contraposição essa que seria resolvida através precisamente da estipulação contratual. Falar-se-ia, por isso, em que o contrato consistiria num “acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação do outro) contrapostas, mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses” ou que nele existe “a manifestação de duas ou mais vontades, com conteúdos diversos, prosseguindo distintos interesses e fins, até opostos, mas que se ajustam reciprocamente para a produção de um resultado unitário”. Mas a referência a interesses tem sido criticada, não apenas por fazer apelo a uma realidade extra-jurídica, mas também porque os vários intervenientes num negócio unilateral podem ter interesses diversos, sem prejuízo da sua posição comum.
Recentemente, MENEZES CORDEIRO veio propor para distinção entre negócios unilaterais e contratos um critério baseado nos efeitos que venham a ser desencadeados, referindo que “nos negócios unilaterais os efeitos não diferenciam as pessoas que eventualmente neles tenham intervindo, pelo que tende neles a haver uma única pessoa, uma única declaração ou um único interesse”. Pelo contrário, nos contratos “os efeitos diferenciam duas ou mais pessoas, isto é: fazem surgir, a cargo de cada interveniente, regras próprias que devem ser cumpridas e possam ser violadas independentemente umas das outras; em moldes formais, há mais que uma parte; e em consequência, tendem a surgir várias declarações, várias pessoas e vários interesses”.
Não nos parece, porém, que seja um critério relativo aos efeitos que permite distinguir os negócios jurídicos unilaterais dos contratos, mas antes a necessidade de apenas uma declaração negocial ou de duas. Assim, a doação é um contrato, porque exige duas declarações negociais para a sua efectivação (cfr. art. 940.º). No entanto, a doação pura feita a incapaz é um negócio unilateral, uma vez que produz efeitos, mesmo em relação a este, independentemente da sua aceitação (art. 951.º, n.º 2). Mas, independentemente de ser constituida como contrato ou como negócio unilateral, os efeitos da doação são sempre os mesmos em relação ao doador e ao donatário (cfr, art. 954.º). Para além disso, se nos negócios unilaterais se vêm a produzir efeitos a quem não é parte no negócio, nos contratos tal também pode acontecer como sucede no contrato a favor de terceiro (arts. 443.º e 444.º, n.º 1).
Não são, por isso, os efeitos do negócio que permitem distinguir os contratos dos negócios unilaterais, mas antes o modo da sua formação. No negócio unilateral, há apenas uma única declaração negocial, da qual resultam todos os efeitos jurídicos estipulados, independentemente de ter um único autor ou vários. No contrato, a emissão de apenas uma das declarações negociais não se apresenta como suficiente para a produção dos efeitos jurídicos estipulados, uma vez que a lei os faz depender da emissão de uma segunda declaração negocial contraposta, mas integralmente concordante com a primeira (cfr. art. 232.º). O contrato assume-se assim como o resultado de duas ou mais declarações negociais contrapostas, mas integralmente concordantes entre si, de onde resulta uma unitária estipulação de efeitos jurídicos. Consequentemente, os contratos pressupõem sempre uma proposta e a sua aceitação, das quais deve resultar o mútuo consenso sobre todas as cláusulas sobre as quais uma das partes julgue necessário o acordo.».
Sobre esta matéria veja-se também Menzes Cordeiro em Tratado de Direito Civil, Vol VII, pág. 171 e seguintes.
Segundo os autores citados o conceito de contrato acaba por ser definido como o resultado de duas ou mais declarações negociais contrapostas mas integralmente concordantes entre si.
A compra e venda é o tipo de contrato que facilmente ilustra a definição, acordado o preço e definido o objecto da venda (v.g. uma coisa), as declarações negociais de que vende e de que compra são contrapostas, mas concordantes entre si no que concerne aos elementos do mesmo (v.g. preço, objecto, entrega, prazo).
É esta realidade que o artº 224º do C.Civ. pretende definir. Enquanto não houver a concordância sobre todas as clausulas do contrato este não se tem por realizado.
Na factualidade que seleccionámos e individualizámos supra, de entre a que ficou provada, para concreta análise desta questão temos várias questões objecto de declarações negociais das partes:
- Entre as partes foi acordado vender os dois imóveis que tinham em comum em Hong Kong dividindo entre si em partes iguais o preço da venda. O que ocorre aqui é que ambos declaram a sua intenção de contratar, isto é, o que aqui há são duas declarações negociais e unilaterais manifestando vontades iguais e ambas no sentido de vender a um terceiro que queira comprar os imóveis. Aqui entre Autores e Ré original não há um contrato.
Depois para além das questões enunciadas temos ainda a disputa da casa a que se reportam os autos.
Quanto a esta matéria não podemos deixar de considerar que nos articulados a Ré invocava que a casa lhe pertencia em compropriedade – veja-se artº 4º a 16º da contestação – e que no seguimento dessa alegação vem a invocar um acordo de partilha que envolvia o imóvel objecto destes autos e os de Hong Kong, ficando a família dos Autores com os imóveis de Hong Kong e recebendo ainda tornas (dinheiro) e a família dos Réus/Recorridos com o imóvel de Macau – artº 17º a 35º da contestação -.
A partir do artº 36º da contestação vem a Ré invocar um novo acordo, contrato de partilha, o qual continuava a ter subjacente que a Ré era dona – embora não formalmente – de metade do prédio de Macau.
Ora, para que este acordo se tivesse provado era necessário que se provassem os seus elementos nos termos em que foi invocado e que pressupunham que o imóvel de Macau pertencia em compropriedade a Autores e Réus/Recorridos o que não se provou.
Logo, não ficou demonstrada a factualidade que permitisse ter havido um acordo/contrato de promessa de partilha se assim lhe quisermos chamar, uma vez que o imóvel de Macau não pertence aos Réus/Recorridos, como aliás já está decidido com trânsito em julgado dado que nessa parte não foi interposto recurso da decisão.
Restaria a hipótese de se ter provado um acordo/contrato quanto à entrega do imóvel o qual seria de que entre as partes tivesse sido acordado que a entrega do imóvel de Macau ocorria depois da venda dos imóveis em Hong Kong.
Porém, essa factualidade quanto ao acordo relativo à entrega do imóvel de Macau não se provou.
Não só não se provou, como também nenhuma das partes invocou que alguma vez tivesse havido esse acordo nesses termos – quanto à condição a que se sujeitava a entrega do imóvel em Macau –, uma vez que para os Autores vendido um dos imóveis de Hong Kong a Ré haveria de ter entregue o imóvel de Macau o que não fez, para a Ré tratava-se de um acordo de partilha que envolvia os três imóveis, sendo certo que, nenhuma das versões se provou.
Aquilo que efectivamente se prova é que a “A Ré faz depender a entrega do imóvel referido em A) dos factos assentes da venda desse segundo imóvel de que é comproprietária com os Autores em Hong Kong”, facto este que como resulta da sua redacção já e posterior à venda de um dos imóveis de Hong Kong, e que, em momento anterior, quando ainda eram comproprietários dos dois imóveis em Hong Kong ao acordarem na venda dos mesmos “a Ré iria proceder à entrega do prédio referido em A) aos Autores”.
Mas como já se analisou não se provou que essa entrega ocorria “só após aquelas vendas”.
Ou seja, não se provou nem resulta em momento algum da factualidade apurada que entre as partes tenha havido um contrato segundo o qual se tenha feito depender a entrega do imóvel dos autos pela Ré aos Autores, da venda dos imóveis de Hong Kong.
Não havendo contrato não há prestações sinalagmáticas e menos ainda excepção de incumprimento que pudesse ser invocada.
No máximo o que resulta da factualidade é que a Ré aceitou entregar o imóvel uma vez alcançado o acordo no sentido de que se ia proceder à venda dos imóveis em Hong Kong, mas isto não é um contrato mas uma declaração negocial de assentimento por banda da Ré, o que se compreende uma vez que, estando sujeitos a jurisdições distintas – cf. artº 45º do C.Civ. e artº 20º do CPC -, nunca o equacionado contrato poderia ser executado coercivamente.
Não se tendo provado que a entrega do imóvel estava sujeita a condição incerta no tempo e que dependia da venda dos imóveis de Hong Kong, impõe-se concluir que não resulta dos autos a existência de causa que nos termos da lei autorize que se recuse a condenação a Ré a restituir o imóvel uma vez que, como resulta dos autos já transitou em julgado a decisão a condenar esta a reconhecer o direito dos Autores ao imóvel2.
Termos em que, deve ser concedido provimento ao recurso quanto à condenação da Ré a restituir aos Autores o imóvel a que respeitam os autos.
4. Dos demais pedidos formulados pelos Autores.
Pedem os Recorrentes que dando-se provimento ao recurso sejam declarados procedentes os pedidos c) a e) da petição inicial.
Uma vez que aqueles pedidos não foram apreciados pelo tribunal “a quo” por os ter considerado prejudicados face a decisão que havia sido tomada, de acordo com o disposto no nº 2 do artº 630º do CPC, cabe agora deles conhecer.
Pedido formulado em c) da petição inicial:
- Condenação da Ré a pagar aos Autores o valor de MOP3.000.000,00, correspondente à indemnização pela privação do imóvel, acrescido dos montantes que se vencerem até efectiva entrega do imóvel, a par de juros de mora já vencidos e vincendos;
No que a esta matéria concerne provou-se que a Ré em 8 de Abril de 2016 foi notificada para desocupar o imóvel e o entregar aos Autores e que o valor locativo do mesmo nesse ano era de MOP34.000,00, bem como, que pelo menos desde esse ano o imóvel em causa se encontra degradado tendo os Autores sido notificados para realizarem obras de conservação.
Nos termos do nº1 do artº 477º do C.Civ. «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São, assim, pressupostos da responsabilidade civil:
- O facto;
- A ilicitude;
- A imputação do facto ao lesante;
- O dano;
- Nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Quanto ao facto este tanto pode ser positivo, traduzido num acto ou acção, como também, negativo traduzido numa omissão quando «haja o dever jurídico de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente teria impedido a consumação desse dano»3.
«Por isso, facto voluntário significa apenas, no caso presente, facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade. Para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o acto ou omissão; não é necessária uma conduta predeterminada, uma acção ou omissão orientada para certo fim (uma conduta finalista). Fora do domínio da responsabilidade civil ficam apenas os danos causados por causas de força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas (pessoa que é irresistivelmente impelida por força do vento, por efeito da vaga do mar, por virtude de uma explosão, de uma descarga eléctrica, da deslocação de ar provocada pelo arranque de um avião, ou de outras forças naturais invencíveis).» - Obra citada a pág. 449 -.
A ilicitude pode consistir na violação do direito de outrem (entre as várias formas que aquela pode revestir).
Esta privação do uso provocada pela Ré original sem ter qualquer título que a legitimasse para o efeito constitui uma violação do direito dos Autores, estando assim preenchidos os dois primeiros requisitos – facto ilícito -.
A imputação do facto ao lesante traduz-se na culpa do agente, ou seja da violação ter sido praticada com dolo ou mera culpa.
A culpa pressupõe a imputabilidade do agente, ou seja de que este é capaz de discernir os efeitos da sua actuação ou omissão e que tem liberdade de determinação (capacidade intelectual e emocional e capacidade volitiva)4.
Age com mera culpa aquele que em face das circunstâncias do caso podia e devia ter agido de outro modo, sendo este factor apreciado em função do homem médio.
Ora, ao não entregar o imóvel ao seu legítimo proprietário os Réus, ora Recorridos, actuaram contra aquilo que era espectável em face do homem médio.
Actuação essa que à míngua de outra prova e não se tendo provado que sabia não ter direito algum ao imóvel em causa, se deve ter por negligente.
O dano consiste no prejuízo que a conduta do agente causou a outrem.
Por fim é necessário o nexo de causalidade entre o facto (acção/omissão) e o dano, ou seja, que este resulte daquele.
Não precisa de prova que a ocupação que a Ré tem vindo a fazer do imóvel os priva de o utilizarem como bem entenderem por resultar das regras da experiência, sendo certo que, ainda assim está também provado que os Autores desde 2012 que não conseguem ter acesso ao imóvel.
Ora, independentemente do imóvel se apresentar degradado o certo é que, resulta das regras da experiência que estando na posse e fruição do mesmo poderiam os Autores ter-lhe dado o uso que tivessem por conveniente fosse ele o de o arrendarem ou usarem, o que apenas não aconteceu em consequência da actuação da Ré.
Essa privação do uso de um bem imóvel é um prejuízo para os possuidores e titulares do direito sobre o imóvel que ficaram impedidos de exercer essa sua posse.
Destarte, dúvidas não há que nos termos do artº 477º do C.Civ. a actuação da Ré configura um facto ilícito, culposo do qual resultaram danos, que a faz incorrer na obrigação de indemnizar os Autores.
Nos termos do artº 556º do C.Civ. «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação».
Ora, no caso dos autos o evento que obriga à reparação foi a ocupação do imóvel o que em termos de benefício/prejuízo corresponde a um valor que poderá ter por referência o valor locativo do mesmo, o que no caso em apreço se apurou que em 2016 era de MOP34.000,00.
Contudo, também é óbvio que o uso e fruição que se pode fazer deste género de imóveis, considerando a sua antiguidade e o provado estado de degradação fica aquém daquilo que aconteceria com outros mais modernos ou em bom estado de conservação.
Assim sendo entendemos que a indemnização devera ter por referência cerca de 2/3 do valor locativo, pelo que, considerando a interpelação da Ré em Abril de 2016 e o tempo decorrido se considera equitativo a fixação do valor indemnizatório em MOP1.500.000,00.
Quanto aos pedidos formulados em d) e e) da p.i. - fosse a Ré condenada a indemnizar os Autores em virtude do estado de degradação do imóvel, em montante a liquidar em sede de execução de sentença e fosse a Ré condenada a indemnizar os Autores pelos danos futuros, pelos riscos e danos potencialmente causados pelo estado de ruína do imóvel, em montante a fixar em sede de execução de sentença -, os fundamentos legais da condenação resultariam dos mesmos pressupostos legais que o anterior.
Contudo, não resulta demonstrado facto algum que permita imputar a degradação do imóvel à ocupação feita pela Ré, pelo que, à míngua de factualidade que os sustente devem estes pedidos improceder.
Finalmente pedem os Autores a condenação da Ré no pagamento de sanção pecuniária compulsória não inferior a MOP300,00, por cada dia de atraso no cumprimento da sentença que ordene a desocupação e entrega do imóvel.
De acordo com o disposto no nº 1 do artº 333º do C.Civ. o autor pode pedir a condenação do Réu a pagar ao ofendido uma quantia pecuniária por cada dia de atraso culposo no cumprimento da obrigação.
O tribunal considerando-a justificada poderá cominar a sanção segundo critérios de equidade – nº 3 do indicado artigo -.
Ora, no caso em apreço um dos pedidos a proceder é o da condenação dos Réus/Recorridos a entregarem aos Autores o imóvel objecto destes autos.
Imóvel este, cuja entrega tem vindo a ser exigida já ao longo de um tempo razoável e recusada sem que haja justificação para o efeito, sendo certo que, a Ré original já nem o prédio habitava, usando-o para guardar artigos e estando o mesmo a necessitar de obras de conservação.
Destarte, fundamenta-se que sejam os Réus/Recorridos condenados no pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia que se atrasem na entrega da coisa após o prazo a fixar pelo tribunal, o qual, considerando as circunstâncias do caso se mostra razoável ser de 20 dias após a data desta sentença.
De acordo com o disposto no nº 3 do artº 333º do C.Civ. na míngua de elementos sobre a capacidade económica dos Réus/Recorridos, considerando o valor locativo do imóvel usado para o cálculo da indemnização, mostra-se adequado o montante diário pedido de MOP300,00.
III. DECISÃO
Termos em que, pelos fundamentos expostos, concedendo-se parcialmente provimento ao recurso, revoga-se parcialmente a decisão da matéria de facto e a decisão recorrida e em consequência:
1. Altera-se as respostas dadas aos quesitos 46º e 47º da base instrutória as quais passam a ter a seguinte redacção:
46º
Provado apenas que em data não apurada, ficou acordado que os Autores e a Ré iriam proceder à venda dos dois imóveis em Hong Kong ficando cada uma das partes com metade do preço das vendas.
47º
Provado apenas que a Ré iria proceder à entrega do prédio referido em A) aos Autores.
2. Condenam-se os Réus/Recorridos a restituir aos Autores livre de pessoas e bens o prédio sito na Rua da XX, n.º XX e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XX0, a fls. XX. do Livro XX, no prazo de vinte dias a contar da data desta sentença;
3. Condenar os Réus/Recorridos a pagar aos Autores a indemnização de MOP1.500.000,00, acrescida dos juros moratórios vincendos à taxa dos juros legais a contar da data desta decisão até efectivo e integral pagamento;
4. Condenar os Réus/Recorridos a pagar aos Autores a sanção pecuniária compulsória à razão de MOP300,00 por cada dia de atraso na entrega do imóvel a que respeitam estes autos livre de pessoas e bens, após o decurso do prazo de 20 dias a contar da data desta sentença;
5. Julgar improcedentes os demais pedidos formulados pelos Autores.
Custas em ambas as instâncias a cargo dos Recorrentes e Recorridos na proporção do decaimento.
Registe e Notifique.
RAEM, 15 de Julho de 2021
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Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
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Lai Kin Hong
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Tong Hio Fong
1 Sendo hoje pacifico que se os prazos forem diferentes mas o contraente inadimplente for o que tiver de cumprir primeiro, pode o que haveria de cumprir em segundo lugar recorrer à excepção.
2 Quanto a esta parte não podemos deixar de fazer referência que na decisão do tribunal “a quo” se condena a Ré a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o imóvel, decisão esta que transitou em julgado, sendo certo que, o que consta da certidão do registo predial é serem os Autores titulares do domínio útil, contudo, e uma vez que da condenação da Ré, agora dos seus sucessores, no reconhecimento do direito dos autores não resulta uma condenação universal, sendo a enfiteuse um direito real menor relativamente à propriedade, entendendo-se aquela decisão como na condenação a reconhecer o direito dos autores embora se qualifique em mais do que é, nada contendendo com o que consta do registo predial são inócuos os efeitos da mesma.
3 Cit. João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol. I, 4ª ed., pág. 448.
4 Obra citada pág. 481.
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1026/2018 CÍVEL 1