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Processo nº 306/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 22 de Julho de 2021
Recorrentes: A, B e C
Recorrida: D
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  D, com os demais sinais dos autos,
  vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
  A, B e C, também, todos com os demais sinais dos autos,
  Pedindo que:
a) Seja reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre a fracção designada pela letra D14, destinada a habitação, correspondente ao 14º andar “D” do prédio urbano sito em Macau, com os números XX da Avenida da XX e números XX da Rua do XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2XXX1-VI a folhas XX do Livro BXXM, inscrito na matriz sob o nº 7XXX8;
b) Sejam os Réus condenados a restituir de imediato à Autora a referida fracção;
c) Sejam os Réus condenados, ao abrigo do disposto n o artº 333º do CC, a pagar à Autora uma sanção pecuniária compulsória, fixada segundo a equidade, por cada dia de atraso no cumprimento da decisão do Tribunal.
  Proferida sentença, foi a acção intendada pela Autora julgada parcialmente procedente e improcedente a reconvenção, e em consequência:
  - Condenar os réus A, B e C a reconhecerem à autora o direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela Letra D14, destinada a habitação, correspondente ao 14º andar D do EDF. XX (TORRE XX) sito em Macau, com os números XX da Avenida XX e números XX da Rua do XX, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXX1-VI, a folhas XX do Livro BXXM;
  - Condenar os mesmos réus a restituir a referida fracção à autora;
  - Julgar improcedente o restante pedido da autora.
  - Julgar improcedente a reconvenção deduzida pelo 3º réu/reconvinte contra a autora/reconvinda, absolvendo-a do pedido reconvencional.
  Custas (incluindo as da reconvenção) pelos réus.
  Não se conformando com a decisão proferida vêm os Réus interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões e pedidos:
1. Na óptica do Tribunal recorrido, é indirecto o conhecimento da testemunha E sobre os factos pertinentes, uma vez que só os ouviu da mãe da autora.
2. No entanto, embora a testemunha os tenha ouvido da mãe da autora, é de salientar que esta última (F, mãe do 1º réu e avó do 3º réu) era a interessada. A testemunha pessoalmente ouviu F falar sobre a aquisição do imóvel em causa e o motivo da compra. Não se pode negar que ela tem conhecimento directo só porque não sabia dos pormenores da compra.
3. Na verdade, nem todas as pessoas contarão a terceiro todos os pormenores sobre a aquisição dum bem imóvel e o seu pagamento. Além disso, no caso dos autos, os pais da autora já faleceram.
4. Portanto, o depoimento da referida testemunha devia ter sido analisado em função das regras da experiência e bom senso, juntamente com os demais meios de prova existentes nos autos. Razão pela qual, a desvalorização da referida prova testemunhal violou gravemente as regras da experiência.
5. Quanto à reconvenção do 3º réu, o Tribunal recorrido entende que os réus quando se candidataram à compra de fracção de habitação económica já não se consideravam donos da fracção em causa. Naturalmente, o Tribunal diz isso porque entende que antes do referido requerimento de candidatura os réus pensavam que a fracção lhes pertencia.
6. Por outras palavras, o Tribunal recorrido deu como provado que os réus (particularmente o 3º réu) tinham o animus da posse antes de 1995.
7. De acordo com as respostas aos quesitos 17º a 19º da base instrutória, a partir de 1989, o 3º réu, legalmente representado pelos primeiros dois réus, começou a gerir e exercer o poder sobre a dita fracção, verificando-se deste modo o corpus.
8. O exercício do corpus faz presumir a existência do animus, pelo que o animus do 3º réu também existe. Ou seja, ele começou a exercer a posse sobre a fracção em causa a partir de 1989 (o Tribunal a quo também entende existir a posse antes de 1995).
9. Mesmo que a autora igualmente tivesse entretanto exercido posse sobre a mesma fracção (o que achamos nunca ter acontecido), tal posse já teria sido perdida em virtude da posse pacífica e pública do 3º réu (artigo 1192.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do CC).
10. Atento o depoimento testemunhal acima exposto, pode ter-se quase a certeza de que o 3º réu e os seus pais sabiam, no momento da aquisição da fracção em causa pelos pais da autora, de que o prédio iria ser doado ao 3º réu. É por essa razão que o Tribunal recorrido entendeu existir a posse antes de 1995.
11. Por outro lado, as duas candidaturas à compra de fracção de habitação económica foram respectivamente apresentadas pelo 1º réu e pela 2ª ré. Embora tendo sido estes representantes legais do 3º réu naquele tempo, não há elementos que permitam concluir que as candidaturas foram feitas em nome do 3º réu.
12. O facto de o 3º réu ser um elemento do agregado familiar não é suficiente para provar o seu abandono da posse.
13. Não se verificando nenhuma das situações acima referidas, e tendo o 3º réu vindo a utilizar a fracção em causa até hoje, pode concluir-se que ele nunca perdeu a posse, tendo antes sempre exercido a posse até agora.
14. Considerando que a posse do 3º réu é de boa fé, pacífica e pública, a usucapião deu-se no termo de 15 anos nos termos do artigo 1221 do CC. Portanto, o pedido reconvencional deve proceder.
15. Nestes termos e ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC, pede-se ao Venerando TSI que altere a decisão do Tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto, julgando provados os factos descritos nos referidos quesitos 9º a 16º, 25º-B e 30º a 33º-A e, em consequência, revogando a sentença recorrida, negando provimento aos pedidos da autora e concedendo procedência ao pedido reconvencional do 3º réu.
16. Mesmo que assim se não entenda, a sentença recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada por omissão de alguns factos instrumentais essenciais.
17. São também de conhecimento oficioso os factos úteis para a compreensão e análise dos factos principais.
18. No caso dos autos, os pais da autora e do 1º réu já faleceram, pelo que há de recorrer aos outros factos pertinentes para o descobrimento da razão por detrás da aquisição da fracção em nome da autora.
19. Portanto, é preciso indagar alguns factos (incluindo os descritos nos artigos 11.º, 12.º, 16.º, 17.º e 19.º da contestação) para analisar a veracidade da versão fáctica alegada pelos recorrentes na contestação, e ajudar o Tribunal a tomar uma melhor decisão sobre a matéria de facto descrita nos quesitos 9º a 16º, 25º-B e 30º a 33º-A da base instrutória.
20. A testemunha dos réus esclareceu bem claramente a situação de então, bem como a razão e finalidade por detrás da aquisição do imóvel em causa. A veracidade do seu depoimento pode ser comprovada pelo teor da carta (documento 2) junta à contestação e teor da carta (documento 6) anexa à réplica da autora.
21. Por conseguinte, o TSI deve ter condições para, nos termos do disposto no artigo 629.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC, considerar provados os atrás mencionados factos e proferir uma decisão diversa da já tomada.
22. Mesmo que se esteja contra a alteração imediata da decisão sobre a matéria de facto, pede-se que se decida, nos termos do artigo 629.º, n.º 4 do CPC, e com fundamento na errada decisão da matéria de facto por existência de grave deficiência, anular a decisão recorrida, ampliar a base instrutória e ordenar o reenvio dos autos à primeira instância para novo julgamento.
23. De resto, o Tribunal recorrido ao elaborar o despacho saneador omitiu os factos instrumentais relevantes para a valoração do referido depoimento testemunhal e para a apreciação do conjunto das circunstâncias factuais. O que levou à uma fundamentação demasiado superficial e manifestamente insuficiente.
24. A análise crítica do Tribunal vai além do mero significado das palavras dos depoentes, evidenciando a importância do modo como eles depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento; devendo o julgador fazer as observações que se impõem para que tal se torne transparente na audição da gravação feita, só, porém, a fundamentação revelará a medida em que tal terá sido decisivo para o convencimento do julgador.
25. Na apreciação da matéria de facto, o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado.
26. A decisão recorrida demonstra a manifesta insuficiência da fundamentação, uma vez que o Tribunal a quo não só não considerou as reacções apresentadas pela única testemunha dos réus e as detalhes das suas respostas às perguntas do Tribunal, como ainda omitiu analisar a prova documental submetida pelos réus, a relação entre as partes e a razão por que levou tanto tempo até a autora instaurar a acção.
27. Portanto, deve ordenar-se o reenvio dos autos à primeira instância para a explicitação detalhada dos fundamentos decisivos e relevantes para as respostas aos quesitos 9º a 16º, 22º a 25º-B e 30º a 33º-A da base instrutória.
Face ao exposto, pede-se que se julgue procedente o presente recurso e, em consequência:
A. Se revogue a sentença recorrida, julgando-se provados os factos descritos nos referidos quesitos 9º a 16º, 25º-B e 30º a 33º-A, negando-se provimento aos pedidos da autora e concedendo-se procedência ao pedido reconvencional do 3º réu.
Caso assim se não entenda,
B. Se anule a sentença recorrida, ampliando-se a base instrutória (devendo ser também incluídos, em particular, os factos descritos nos artigos 11.º, 12.º, 16.º, 17.º e 19.º da contestação e a demais factualidade que se julgue relevante) e ordenando-se o reenvio dos autos à primeira instância para novo julgamento.
Caso assim se não entenda,
C. Se ordene o reenvio dos autos à primeira instância para a explicitação detalhada dos fundamentos decisivos e relevantes para as respostas aos quesitos 9º a 16º, 22º a 25º-B e 30º a 33º-A da base instrutória.
Assim se fazendo a habitual justiça!
  Contra-alegando veio a Recorrida dizer o seguinte:
1. Salvo o devido respeito, não têm razão os RR., ora recorrentes, nas alegações de recurso e conclusões que formulam.
2. Os RR. recorrentes entendem que o Tribunal a quo julgou mal, tendo cometido erro na apreciação da prova, erro de apreciação de facto, tendo considerado matéria de facto insuficiente para emitir a sua decisão, e tendo justificado inadequadamente a sua decisão quanto à matéria de facto.
3. Contudo, o que se retira das alegações e conclusões dos RR. é que os mesmos, pura e simplesmente, não concordam com a apreciação da prova pelo Tribunal a quo. Os RR. não apontam nenhuma razão objectiva que possa colocar em causa a boa decisão do Tribunal a quo. Preferiam apenas que a decisão lhes tivesse sido favorável.
No entanto,
4. O Tribunal a quo apreciou livremente as provas, e formou a sua prudente convicção sobre os factos alegados pelas partes.
5. Relativamente ao peticionado pela A., ora recorrida, os RR. recorrentes não apresentaram qualquer prova que pudesse refutar as provas da A.. Tanto os documentos juntos ao processo como as testemunhas ouvidas em audiência demonstraram que a fracção em causa nos autos foi adquirida pela A., com o seu dinheiro. O contrato­promessa, a escritura, o registo, os documentos comprovativos do pagamento do preço da compra, a concessão de empréstimo bancário para aquisição da fracção, o pagamento das amortizações mensais, o pagamento das rendas e contribuições da fracção, está tudo em nome da A. e foi efectuado pela A.. Não podem, por isso, restar dúvidas de que a fracção é, desde o início e sempre foi, da A.!
Mais,
6. Relativamente ao peticionado pelos RR. em reconvenção - usucapião -, também os RR. não fizeram qualquer prova da sua posição, ou pelo menos prova minimamente atendível. Fizeram apenas prova de ter suportado algumas despesas relativas ao apartamento. Ora isso é normal, pois eram eles que lá moravam e foram eles que fizeram os consumos. Dado que viviam no apartamento por mera tolerância da A., sem lhe pagar nada, nada mais justo que suportassem algumas das despesas. Além de que os próprios vizinhos sabiam que o apartamento não era deles - e assim foi confirmado em audiência de julgamento. Nada disso faz supor que os RR. agissem como proprietários - situação que foi correctamente apreciada pelo Tribunal a quo.
7. Ou seja, os RR. não fizeram qualquer prova de que utilizavam o apartamento em nome próprio - aliás porque sempre souberam que a proprietária é a A., em nome de quem sempre possuíram o apartamento.
Acresce que,
8. Os RR. nunca inverteram o título da posse contra a A. – nem fizeram qualquer prova disso.
9. Pelo que, esteve bem o Tribunal a quo ao considerar procedente o pedido da A. e improcedente o pedido reconvencional dos RR.
  
  Foram colhidos os vistos.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.
  
II. FUNDAMENTAÇÃO

a) Factos

  Na decisão sob recurso foi apurada a seguinte factualidade:
  
  Facto assente:
- A A. é proprietária registada no registo predial da fracção designada pela letra D14, destinada a habitação, correspondente ao 14º andar D do prédio urbano sito em Macau, com os números XX da Avenida XX e números XX da Rua do XX, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXX1-VI a folhas XX do Livro BXXM, inscrito na matriz sob o n.º 7XXX8. (alínea A) do facto assente)
  Base instrutória:
- Dada a saúde precária do irmão da A. e a existência de um filho menor, C, e tendo em consideração as dificuldades financeiras delas, a A. foi sempre permitindo que o seu irmão A (1º Réu), a sua cunhada B (2ª Ré) e o seu sobrinho C (3º Réu) permanecessem na fracção. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- A A. tentou por diversas vezes que os RR. lhe entregassem de volta a fracção. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- A A. enviou aos RR. as cartas registadas com aviso de recepção, em 20 de Março de 2018, a interpelá-los para entregarem a fracção, no prazo de 30 dias. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Cartas essas que, apesar de avisados, os RR. não levantaram. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- O 1º Réu é casado com a 2ª Ré. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- Antes de se casar, o 1º Réu habitava em Macau, com os seus pais, G e F. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Em 1987, a 2ª ré deu à luz o 3º réu (filho dela e do 1º réu) no interior da China, onde vivia com o filho. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- A partir da celebração do contrato-promessa de compra e venda, o 1º réu passou a residir na fracção autónoma em causa juntamente com os pais. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- O pai do 1º Réu faleceu. Nos anos 90s a 2ª Ré e o 3º Réu fixaram residência em Macau. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- Desde então, o 1º Réu passou a coabitar com a sua mãe F, 2ª Ré e seu filho, 3º Réu na fracção autónoma referida em A) dos factos assentes. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- A autora celebrou a escritura de compra e venda da referida fracção autónoma em 29 de Setembro de 1993. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- A mãe do 1º Réu faleceu. (resposta ao quesito 21º da base instrutória)
- Os Réus responsabilizaram-se pelas despesas diárias e pelas necessárias obras referentes à fracção autónoma. (resposta aos quesitos 26º a 29º da base instrutória)
  
b) Do Direito
  
  Nas suas alegações e conclusões de recurso vêm os Réus invocar que o tribunal “a quo” haveria de ter dado como provado os quesitos da base instrutória 9º a 16º, 25ºB e 30º a 33ºA (conclusão 15º), ou nas alegações 9º a 16º, 22º a 25ºB e 30º a 33ºA.
  Para o efeito invocam que se havia de ter dado credibilidade ao depoimento da testemunha E, reproduzindo a parte que do respectivo depoimento que entendem sustentar a sua posição e indicando a parte da respectiva gravação a que a mesma respeita em obediência ao disposto no nº 2 do artº 599º do CPC.
  Relativamente a esta matéria a fundamentação constante do Acórdão sobre as respostas dadas à base instrutória é a seguinte:
  «A convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, nos documentos de fls. 6 a 36, 85 a 163, 206 a 278, 315 a 317, 321 a 324, 340 a 383 e 388 a 391 dos autos, cujo teor se dá reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permite formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos.
  Em particular, sobre os factos se a fracção autónoma foi adquirida pelos seus pais e pelo 1º Réu mas registada em nome da Autora, por parte dos Réus, tem somente o depoimento da única testemunha, sendo o seu conhecimento indirecto, ouvindo dizer da mãe da Autora, sem conhecimento concreto e detalhado as circunstâncias fácticas em que foram efecutados os pagamentos para a aquisição da fracção, para além disso, conforme os documentos constantes de fls. 340 a 383, o agregado familiar dos Réus requereram, em 1995 a aquisição da casa económica junto do Instituto de Habitação, a conduta dos Réus ilustra que, na altura, eles já não se acharam a fracção ser da sua pertença. Ao contrário, por parte da Autora, para além do depoimento das testemunhas, foram apresentadas pela Autora documentos inerentes à aquisição da fracção autónoma, tais como o contrato-promessa, os documentos comprovativos de pagamento do preço da compra, da concessão de empréstimo bancário em nome dela para a aquisição da fracção, assim como da pagamento das amortizações mensais, de pagamento das rendas e contribuições prediais da fracção autónoma, perante essas provas sólidas em contrário, não merce acolhimento do Tribunal a versão dos Réus quanto à fracção autónoma ter sido adquirida com o dinheiro do 1º Réu e seus pais para ser, posteriormente, transmitida ao 3º Réu. Nestes termos, não se deram por provados os factos dos quesitos 9º a 16º, 22º a 25º-B, 30º a 33º-A.
  As duas testemunhas da Autora deram conta de que a Autora deixou os seus pais, assim como os Réus a residir na fracção autónoma, conforme a certidão da sentença de fls. 387 a 390, e das cartas escritas pela 2ª Ré de fls. 235 a 240, o 1º Réu tem sofrido problema mental e que os 2ª Ré e 3º Réu só imigraram do interior da China para Macau nos anos 90s, não tendo condições económicas para auto-sustento, como a Autora é titular da fracção autónoma e irmã do 1º Réu, sendo natural que lhes deu acolhimento, pelo que convencemos pelos factos qua a Autora deixou os Réus a residir na fracção por causa dessa relação de parentesco, assim, deram-se por provados os factos dos quesito 1º, 7º e 17º a 19º.».
  De realçar que das cartas a fls. 235 a 240 também referidas na fundamentação supra reproduzida, endereçadas pela 2ª Ré à Autora, aquela pede a esta dinheiro para pagarem a alguém que lhes irá conseguir a autorização de virem viver para Macau, o que terá acontecido nos anos 1990/91, o que, é bastante para desacreditar toda a versão apresentada nos quesitos 9 º a 16º, uma vez que, se em 1990 e 1991 os Réus não tinham dinheiro – e pelos vistos os pais do 1º Réu e da Autora também não, caso contrário segundo a tão invocada regra da experiência seria a estes (pais e sogros) que pediam e não à Autora – para pagar vinte ou trinta mil a quem lhes arranjasse uma autorização legal para passarem a viver em Macau, pelo que, menos dinheiro teriam para comprar uma fracção autónoma em Macau.
  O que resulta da fundamentação referida é que a testemunha E é a única a vir contar que “ouviu” da mãe da Autora e do 1º Réu que tinha sido esta a pagar a aquisição da fracção autónoma a qual seria para passar para nome do neto quando este fizesse 18 anos e que até lá ficava em nome da filha porque o filho teria problemas mentais e tinha medo que a nora se apoderasse dela.
  Para além deste “ouvir dizer” nada traz esta testemunha que afaste a prova documental e também testemunhal apresentada pela Autora e também referida na fundamentação da decisão da matéria de facto.
  A aquisição e transmissão de imóveis tem de ser feita através de documentos autênticos lavrados por oficiais (públicos ou privados) com competência legalmente reconhecida para o efeito.
  O que os Réus pretendem é que o tribunal com base num depoimento testemunhal de “ouvir dizer” a alguém que por acaso até já morreu e não pode confirmar as declarações, sem prova documental alguma que confirme aquelas declarações se acredite por uma versão perfeitamente contrária ao que consta de documentos autênticos e demais prova documental junta aos autos.
  Mal andariam os tribunais se os depoimentos de ouvir dizer a uma senhora que às vezes ia a casa da mãe tomar o pequeno almoço valessem mais que declarações prestadas perante oficial com competência para as receber, entender e explicar o alcance das mesmas.
  Atente-se que tal como tem vindo a ser entendido unanimemente por este tribunal no que concerne à convicção do tribunal a lei consagra o princípio da livre apreciação da prova, salvo nos casos em que a lei atribua o valor de prova plena.
  Destarte, porque resulta da imediação, este tribunal só poderá sindicar a convicção formada pelo tribunal “a quo” se tiverem sido violadas regras de prova tarifada ou vinculada, se se mostrar manifestamente contrária às regras da experiência da vida e da lógica – cf. Acórdão deste Tribunal de 13.05.2021 processo 228/2020 -, ou quando a fundamentação seja inexistente.
  No mesmo sentido veja-se Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, Acção Declarativa Comum, 3ª Ed., pág. 523 e seguintes.
  Pelo que, considerando que o depoimento testemunhal cabe no âmbito da livre apreciação do tribunal, que o tribunal “a quo” beneficiou da imediação quando o depoimento foi prestado o que permite um percepção em nada comparável à leitura ou audição de depoimentos gravados, e que, concluiu não ser o mesmo bastante, para em face da prova documental existente nos autos comprovar a versão apresentada pelos Réus nos indicados quesitos, não só não há reparo algum a fazer à fundamentação apresentada, como, pelo contrário, segundo as regras da experiência e de acordo com o valor da prova apresentada, se nos apresenta a decisão tomada como a única possível.
  Pelo que, improcede o recurso no que concerne à impugnação das respostas dadas aos quesitos 9º a 16º, 22º a 25ºB e 30º a 33ºA da Base Instrutória.
  
  Mais se invoca nas alegações de recurso que o tribunal “a quo” entendeu que houve posse por banda do 3º Réu antes ou até 1995.
  Porém, laboram os Recorrentes em erro de interpretação.
  O que se diz na fundamentação da matéria de facto é que a atitude dos Réus em 1995 quando requerem a aquisição de casa económica já ilustra que eles bem sabiam que a fracção onde viviam – a fracção autónoma a que respeitam os autos – não era de sua pertença.
  Em momento algum se diz que antes tinham a posse no sentido jurídico do conceito – corpus e animus – como sendo os donos da coisa, nem facto algum se provou nesse sentido.
  Sendo certo que, esta argumentação é meramente instrumental daquela outra que resultou em não se aceitar o único – entre muitos outros – depoimento prestado num sentido que convinha à versão dos Réus e que já antes aludimos.
  
  Por fim os factos que os Réus entendem ser instrumentais dos artº 11º, 12º ainda que se provassem não permitem retirar a conclusão alguma, seja pela forma vaga e imprecisa como foram formulados, seja porque à míngua de outra factualidade nunca seriam suficientes para se extrair a conclusão que se pretende, sendo que os factos 16º, 17º e 19º nem instrumentalmente têm interesse algum para a decisão da causa ou esclarecer a factualidade que lhe está subjacente, pelo que, também nesta parte o recurso só pode improceder.
  
  Destarte, louvando-nos na fundamentação do tribunal “a quo” quanto às respostas dadas à Base Instrutória, impõe-se negar provimento ao recurso.
  Em sentido idêntico veja-se Acórdão deste tribunal de 09.05.2019, processo nº 240/2019, «II - para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal”, se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.».
  
III. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
  
  Custas a cargo dos Recorrentes.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 22 de Julho de 2021
_________________________
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
_________________________
Lai Kin Hong
_________________________
Fong Man Chong
  

306/2021 CÍVEL 4