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Processo n.º 559/2021 Data do acórdão: 2021-7-29
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 559/2021
(Autos de recurso penal)
 Recorrentes: 1.o arguido A (A)
2.a arguida B (B)




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 425 a 434 do Processo Comum Colectivo n.° CR1-20-0363-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o 1.o arguido A e a 2.a arguida B, aí já melhor identificados, ficaram condenados como co-autores materiais, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro), doravante abreviada como Lei de droga, em cinco anos e nove meses de prisão para aquele, e em três anos e seis meses de prisão para esta (após beneficiada da atenuação especial da pena nos termos dos art.os 66.o, n.os 1 e 2, alínea f), e 67.o, n.o 1, alíneas a) e b), do Código Penal (CP)).
Inconformados, vieram os dois recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Alegou o 1.o arguido, na motivação apresentada a fls. 451 a 454 dos presentes autos correspondentes, no seu essencial, que houve excesso na medida da sua pena de prisão no acórdão recorrido, ao arrepio do disposto nos art.os 40.o, n.o 2, e 65.o, n.o 1, do CP, já que, no entender dele, mereceria ele até a atenuação especial da pena ao abrigo do art.o 18.o da Lei de droga, e fosse como fosse, não deveria ser aplicada a ele pena de prisão superior a cinco anos e três meses.
Enquanto a 2.a arguida, na sua motivação de fls. 481 a 503 dos presentes autos, na sua essência, o seguinte:
– a decisão recorrida violou o princípio de in dubio pro reo e o princípio da livre apreciação da prova, com vício, pois, de erro notório na apreciação da prova, ao julgar ter ela praticado sobretudo com dolo os factos do crime de tráfico ilícito de estupefacientes;
– e fosse como fosse, não deixaria de haver excesso na medida da pena de prisão dela, com verificação também do vício de falta de fundamentação, devendo ela passar a ser punida com nova pena de prisão nunca superior a três anos, com sempre pretendida suspensão da execução da pena.
A esses dois recursos, respondeu o Ministério Público a fls. 507 a 511 e a fls. 527 a 533v dos autos, respectivamente, no sentido de não provimento do recurso do 1.o arguido, e de provimento do recurso da 2.a arguida apenas na parte respeitante à medida da pena, com opinada aplicação de nova pena de prisão a esta, inferior a três anos de prisão, com entendida possível suspensão da execução da pena.
Subidos os autos, emitiu o Digno Procurador-Adjunto parecer a fls. 544 a 547v, pugnando pela improcedência manifesta do recurso do 1.o arguido, e pelo provimento parcial do recurso da 2.a arguida, com entendida devida determinação do reenvio do processo para novo julgamento relativamente à 2.a arguida, por verificação dos vícios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova na decisão condenatória, ora recorrida, dessa arguida no crime de tráfico ilícito de estupefacientes.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão recorrido consta de fls. 425 a 434, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde já, por uma questão de lógica das coisas, é de conhecer primeiro do vício de erro notório na apreciação da prova esgrimido pela 2.a arguida à decisão judicial recorrida.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, após examinados todos os elementos probatórios então examinados pelo Tribunal recorrido e referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que a livre convicção desse Tribunal sobre os factos controvertidos relativos ao crime de tráfico ilícito de estupefacientes da 2.a arguida ora recorrente tenha sido formada com violação de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou de quaisquer regras da experiência da vida humana quotidiana, ou de quaisquer leges artis vigentes no campo de julgamento de factos, pelo que não se verifica qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova do art.o 114.o do CPP, nem do princípio de in dubio pro reo.
Ante toda a matéria de facto descrita como provada no acórdão recorrido, é indubitável a prática pela 2.a arguida ora recorrente, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes.
E agora da questão, suscitada também por essa arguida, da falta de fundamentação no acórdão recorrido, no referente à medida da sua pena: A razão não está no seu lado, porquanto depois de lido todo o texto desse aresto, não se mostra patente ao presente Tribunal de recurso o incumprimento, pelo Tribunal sentenciador recorrido, do dever de fundamentação do acórdão na parte da medida da pena dela.
Por fim, no tangente ao alegado (pelos dois arguidos nas respectivas motivações de recurso) exagero da medida da pena feita no aresto recorrido:
Desde logo, é inviável o pedido do 1.o arguido de activação da cláusula especial da atenuação especial da pena do seu crime de tráfico ilicito de estupefacientes, porquanto, no entender do presente Tribunal Colectivo, a correspondente norma do art.o 18.o da Lei de droga visa propriamente para a situação de desmantelamento de grupo, com dimensão, de estupefacientes.
Outrossim, consideradas todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância aos padrões da medida concreta da pena vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, dentro das molduras penais aplicáveis, não se afigura que haja injustiça notória nas penas de prisão já aplicadas no acórdão recorrido aos dois ora recorrentes.
Improcede, pois, o recurso de ambos os arguidos, sem mais indagação por prejudicada, sendo de louvar mesmo a decisão recorrida, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não providos os recursos.
Pagarão os 1.o e 2.a arguidos as custas dos seus recursos, com duas UC de taxa de justiça para aquele, e quatro UC de taxa de justiça para esta.
Macau, 29 de Julho de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Chao Im Peng
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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