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Processo nº 55/2021 Data: 23.06.2021
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Procedimento disciplinar.
Decisão sobre a matéria de facto.
Forças de Segurança de Macau.
Pena de demissão.
Princípio da proporcionalidade.



SUMÁRIO

1. A competência do Tribunal de Última Instância para apreciar a “decisão proferida quanto à matéria de facto” é limitada pelo n.º 2 do art. 649° do C.P.C.M., (subsidiariamente aplicável por força do disposto no art. 1° do C.P.A.C.), nos termos do qual, “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Nesta conformidade, o Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional – como é o caso – não pode censurar a convicção formada pelas Instâncias quanto à prova; podendo, porém, reconhecer, (e declarar), que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, (quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto), sendo assim, uma censura que se confina à “legalidade do apuramento dos factos, e não respeita, directamente, à existência ou inexistência destes”.

2. Se provado estiver que o ora recorrente “desrespeitou gravemente” colegas das Forças de Segurança de Macau “em local de serviço e em público”, (cfr., art. 238°, al. a) do E.M.F.S.M.), inegável se apresentando que com a “conduta” que desenvolveu se relevou – absolutamente – “indigno das funções que lhe estavam confiadas”, implicando, simultaneamente, uma perda da necessária confiança para o exercício da função que vinha desempenhando como profissional dos Serviços de Alfandega, (cfr., al. n), nenhum reparo se nos mostra de fazer à decisão que por tal conduta entendeu como justa e adequada a pena da sua “demissão”.

3. A intervenção do Tribunal na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade por parte da Administração só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.

No âmbito do exercício do “poder discricionário” – como é o caso dos autos – à Administração cabe uma (certa) margem de livre apreciação e decisão, não cabendo ao Tribunal dizer se a decisão proferida seria a que teria proferido se a Lei lhe cometesse tal atribuição.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 55/2021
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em sede dos Autos de Recurso Contencioso n.° 29/2019 – em que era recorrente, A (甲), e recorrido, o SECRETÁRIO PARA A SEGURANÇA – (em 04.02.2021), proferiu o Tribunal de Segunda Instância o seguinte Acórdão:

“I – Relatório
A, melhor identificado nos autos, vem interpor o presente recurso contencioso contra o despacho do Secretário para a Segurança, de 04/12/2018, que lhe aplicou a pena de demissão, concluíndo que:
1. No dia 24 de Julho de 2018, no âmbito do processo disciplinar n.º 22/2018-1.1-DIS, foi o ora Recorrente formalmente acusado de violar vários dos deveres previstos nos artigos 5.º, 6.º, 8.º, 11.º e 12.º do EMFSM.
2. Porquanto, de acordo com acusação, na madrugada do dia 20 de Abril de 2015, fora do serviço, cometeu ele os crimes de injúria, resistência e coacção e gravações ilícitas.
3. Factos esses que deram também origem a processo-crime que se encontra presentemente em fase de recurso no Tribunal de Segunda Instância.
4. No dia 7 de Dezembro de 2018 foi o Recorrente notificado do acto do Senhor Secretário para a Segurança, de 4 de Dezembro, que lhe aplicou a pena de demissão, ao abrigo dos artigos 228.º e 238.º, n.º 2, alíneas a) e n) do EMFSM.
5. Já no âmbito do (já findo) processo disciplinar n.º 09/2012-1.1-DIS, fôra o Recorrente acusado de violar os seus deveres funcionais pela alegada prática do crime de lenocínio.
6. Enquanto decorria esse processo disciplinar foi-lhe instaurado um novo processo disciplinar, com o n.º 10/2015-2.213-DIS, pelos mesmos factos deram origem ao processo disciplinar aqui sub judice.
7. Tendo sido este último processo disciplinar suspenso para se aguardar decisão final no processo-crime que corria termos no Tribunal Judicial de Base.
8. O primeiro processo disciplinar (n.º 09/2012-1.1-DIS) resultou na aplicação ao Recorrente de uma pena de demissão.
9. No dia 19 de Maio de 2017 foi arquivado pelos Serviços de Alfândega, o processo disciplinar n.º 10/2015-2.213-DIS tendo por base a inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 132.º, n.º 2, al. b) do CPA, arquivamento esse notificado ao Recorrente.
10. O Recorrente recorreu contenciosamente da pena de demissão aplicada no âmbito do processo disciplinar n.º 09/2012-1.1-DIS, e por douta decisão do TSI, confirmada após recurso pelo Venerando TUI, foi anulada a pena de demissão aplicada.
11. Conhecida essa decisão, os Serviços de Alfândega decidiram reabrir o processo disciplinar com o n.º 10/2015-2.213-DIS, conferindo-lhe um novo número, tratando-se portanto da reabertura de um processo disciplinar que havia anteriormente sido arquivado, pelos mesmos factos acusatórios.
12. Tal reabertura, nessas circunstâncias, carece de base legal, porquanto nem o EMFSM nem o ETAPM prevêem a possibilidade legal de reabrir processos disciplinares anteriormente arquivados.
13. A possibilidade de reabertura de processos previamente arquivados é apenas prevista no CPP, aplicável subsidiariamente ao EMFSM, no seu art.º 261.º, e apenas nos casos em que surgirem novos elementos de prova.
14. Mas os fundamentos usados para reabrir o presente processo não foram a existência de novos elementos de prova, uma vez que esses já existiam plenamente nos autos ainda antes do despacho de arquivamento.
15. Esse despacho de arquivamento foi uma decisão tomada de livre resolução da Administração, que a tal não estava obrigada.
16. Afigurando-se estar o processo disciplinar que deu origem ao acto de que aqui se recorre ferido de nulidade, por ter sido (re)instaurado fora das condições legalmente admissíveis.
17. Nulidade essa suscitada pelo ora Recorrente na sua contestação, e portanto tempestivamente.
18. Da análise do processo administrativo instrutor resulta manifesto de que se tratou da "reabertura" dos processos disciplinares previamente instaurados, com os números 09/2012-1.1-DIS e 10/2015-2.213-DIS, e da correspondente apensação de ambos.
19. Sendo que a sentença penal, muito menos não transitada em julgado, não se trata de um novo elemento de prova, tanto que o acto recorrido não se fundou nessa sentença para proferir a pena de demissão agora aplicada, mas sim nas restantes provas produzidas.
20. O processo disciplinar sub judice foi reaberto, tão-só, porque a demissão que havia sido aplicada no âmbito do primeiro disciplinar, por outros factos, foi anulada judicialmente.
21. Sendo ponto assente que a reabertura do processo disciplinar verificada no processo sub judice é atentatória dos princípios da celeridade e da certeza jurídica processuais, que norteiam os processos disciplinares instaurados contra agentes militarizados.
22. Com a notificação efectuada ao Recorrente desse despacho de arquivamento estabilizou-se, plenamente, na ordem jurídica, esse arquivamento, por aqueles factos, e a sua reabertura ocorreu fora das condições legalmente admissíveis e contra princípios basilares que regem o processo disciplinar administrativo.
23. Por outro lado, o Recorrente foi acusado de injuriar agentes da polícia, resistir à sua autoridade e, posteriormente, já na esquadra policial, tirar fotografias ilícitas.
24. Mas a verdade é que toda a sua conduta resultou de estar alcoolizado no momento dos factos e portanto de estar incapacitado para avaliar a gravidade sua conduta nesse momento.
25. Trata-se de uma total privação das faculdades intelectuais no momento da prática dos factos, e tal facto resulta plenamente do processo instrutório.
26. Vários são os testemunhos constantes dos autos do processo administrativo instrutório, alguns provenientes das próprias vítimas da sua conduta, que confirmam que o Recorrente, na altura dos factos, não estava num estado emocional normal, que cheirava a álcool e que havia ingerido grandes quantidades de bebidas alcoólicas, e ainda confirmando que ele, em condições psicológicas normais, não levaria a cabo tais comportamentos.
27. Havendo portanto que se concluir que se encontra plenamente demonstrado que o Recorrente estava fortemente alcoolizado no momento da prática dos factos, estado esse que não lhe permitiu avaliar a gravidade da sua conduta (e muito menos conformar-se com ela) no momento da prática dos factos descritos na nota de culpa contra si impulsionada.
28. O Despacho decisório aceita como facto assente que o arguido se encontrava alcoolizado na altura dos factos mas afirma também que ele agiu de forma "consciente e livre", incorrendo portanto em erro nos pressupostos de facto, por partir de uma factualidade que, verdadeiramente, não existiu.
29. Afirmando-se posteriormente que o facto de estar alcoolizado não pode beneficiar o arguido, porquanto os seus hábitos privados não podem comprometer o prestígio da instituição.
30. Mas o estado de alcoolémia em que se encontrava o arguido afasta a sua culpa, uma vez que levou a que ele se encontrasse privado das suas habituais faculdades intelectuais, de forma acidental, o que constitui uma circunstância dirimente da sua responsabilidade disciplinar prevista no EMFSM.
31. Essa circunstância dirimente é resultado de uma análise que deve ser efectuada de forma puramente objectiva, não competindo à entidade decisória avaliar se a circunstância dirimente merece, no caso concreto, afastar ou não a responsabilidade disciplinar do arguido.
32. Porquanto a lei afasta essa margem, ao estabelecer uma norma de carácter imperativo, à entidade decisória competindo apenas avaliar se, objectivamente, existe ou não uma circunstância dirimente, mas já não se essa circunstância é juridicamente relevante.
33. Admitiu-se a existência da circunstância dirimente, mas ajuizou-se que essa circunstância não pode levar ao afastamento da sua responsabilidade disciplinar, sendo manifesto que tal conclusão é juridicamente inaceitável.
34. Porquanto a condição do Arguido exclui a sua culpa e a ilicitude da conduta, e estas são pressupostos da punição disciplinar, sendo de concluir que devia ter sido ele absolvido da prática de qualquer infracção disciplinar pelos factos descritos na acusação.
35. A entidade recorrida parece ter querido relevar o facto de o arguido não poder ingerir bebidas alcoólicas na quantidade e forma em que o fez, por isso colidir com o seu estatuto de militarizado, mas não era essa a conduta pela qual o Recorrente vinha acusado.
36. Ademais sempre se diga que a pena aplicável ao arguido nunca poderia ser a pena de demissão, mas sim a de aposentação compulsiva.
37. No âmbito do Estatuto dos Militarizados, tanto a pena de demissão como a pena de aposentação compulsiva são aplicáveis quando se trate de infracção disciplinar que inviabilize a manutenção da relação funcional.
38. O Despacho punitivo imputa ao Recorrente as condutas previstas nas alíneas a) e n) do n.º 2 do art.º 238.º, sendo que nenhuma delas cabe no artigo 240.º, que impõe a aplicação da pena de demissão em determinadas situações.
39. Já o art.º 239.º impõe a aplicação da pena de aposentação compulsiva quando "se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções" e o arguido tenha prestado pelo menos 15 anos de serviço, como é o caso do Recorrente, que foi admitido em 1998.
40. O Despacho punitivo conclui que a conduta do Recorrente o torna "indigno do exercício de funções das forças e serviços de segurança", conclusão essa que se insere na previsão normativa ínsita no art.º 239.º do EMFSM.
41. Da mesma forma que o artigo 240.º impõe à Administração Pública que opte pela pena de demissão em determinadas situações, o art.º 239.º impõe a escolha pela pena de aposentação compulsiva noutras.
42. Sendo de aplicar essa pena quando (1) se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções (2) o militarizado reúna pelo menos 15 anos de serviço (3) a infracção inviabilize a manutenção da relação funcional e (4) não se trate de uma das condutas que impõem a aplicação da pena de demissão.
43. É isto que resulta da conjugação dos artigos 238.º, 239.º e 240.º do EMFSM.
44. Impunha-se portanto a aplicação ao Recorrente da pena aposentação compulsiva, ao invés da pena de demissão.
45. O acto recorrido violou o princípio da legalidade administrativa, previsto no art.º 3.º do CPA por ter sido consequência de um processo disciplinar que se afigura ferido de nulidade.
46. O acto recorrido incorreu ainda em violação de lei, em específico os artigos 202.º e 196.º, n.º 1, ambos do EMFSM, por se ter ignorado a circunstância dirimente que saiu comprovada no processo disciplinar e ainda em erro nos pressupostos de facto, por ter considerado que o Recorrente agiu de forma "consciente e livre", quando tal não corresponde à factualidade assente.
47. Finalmente, e subsidiariamente, incorreu ainda em violação de lei por ter sido violado o disposto nos artigos 232.º e 239.º do EMFSM, ao se ter aplicado a pena de demissão ao invés da pena de aposentação compulsiva que se impunha.
48. Sendo vícios que tornam o acto passível de recurso nos termos previstos no art.º 25.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. b) (este quanto ao erro nos pressupostos de facto), ambos do CPAC.
*
Regularmente citada, a Entidade Recorrida contestou nos termos constantes a fls. 56 a 62 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pelo não provimento do recurso.
*
O Mº Pº emitiu o seguinte parecer:
“…
Nos presentes autos de recurso contencioso que foi interposto por A, melhor identificado nos autos, e que tem por objecto o acto do Secretário para a Segurança, datado de 4 de Dezembro de 2018, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão, vem o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 69.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), emitir parecer nos termos que seguem:
1.
Por despacho datado de 4 de Dezembro de 2018, cuja cópia consta de fls. 29 e 30 dos presentes autos, o Secretário para a Segurança aplicou ao ora Recorrente a pena disciplinar de demissão, por violação dos deveres de correcção e de aprumo previstos nas alíneas b) e d) do n.º 2 do artigo 11.º e na alínea f) e o) do n.º 2 do artigo 12.º, e por infracção ao dever geral de «constituir exemplo de respeito pela legalidade instituída e actuar no sentido de reforçar na comunidade o sentimento de confiança na instituição que serve», valor a que concretamente se refere o n.º 3 do artigo 5.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro.
Inconformado, com a referida decisão, dela veio o Recorrente interpor o presente recurso contencioso, imputando-lhe, em síntese, os seguintes vícios:
- Nulidade do processo disciplinar;
- Violação de lei, mais concretamente o artigo 202.º do EMFSM e erro nos pressupostos de facto;
- Errada escolha da pena disciplinar aplicada.
2.
2.1.
Para fundamentar a sua pretensão impugnatória, começa o Recorrente por alegar que o processo disciplinar que culminou com a prática do acto recorrido teve por objecto os mesmos factos que haviam estado na base da instauração do processo disciplinar n.º 10/2015-2.213-DIS que, com base na respectiva inutilidade superveniente a que se refere o artigo 103.º, n.º 2, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo (CPA), foi arquivado pelos Serviços de Alfândega, em 19 de Maio de 2017.
Assim, segundo o Recorrente, por via desse arquivamento, estava a Administração impedida de instaurar novo processo disciplinar pelos mesmos factos, dado que não há base legal que permita sustentar a verdadeira reabertura do processo que teve lugar, uma vez que a mesma não resultou da existência de novos meios de prova.
Daí que, sustenta, o processo disciplinar esteja ferido de nulidade que afecta o próprio acto recorrido.
Com o devido respeito, parece-nos que o Recorrente não tem razão.
É certo o que diz no que tange a ter havido um arquivamento de anterior procedimento disciplinar reportado aos mesmos factos motivado pelo facto de, em outro processo disciplinar, ter sido aplicada ao Recorrente a pena de demissão.
No entanto esse arquivamento do procedimento disciplinar foi motivado não por razões substanciais atinentes aos factos ou ao respectivo enquadramento jurídico mas, ao invés, a uma razão meramente formal, mais concretamente, pelo entendimento da Administração de que ocorria uma inutilidade superveniente do procedimento.
Sucede que, entretanto, o acto que havia aplicado a pena de demissão foi contenciosamente anulado. Por isso, face a essa circunstância superveniente, os Serviços de Alfândega determinaram a instauração de um novo procedimento disciplinar que culminou com o acto recorrido.
Não vemos que algum obstáculo exista à instauração deste novo processo disciplinar. Na verdade, à data da mesma, os factos que estiveram na base dessa instauração não haviam sido objecto de qualquer juízo ou apreciação disciplinar e, portanto, com a anulação da demissão aplicada no outro processo, a Administração ficou constituída no dever legal de perseguir disciplinarmente os ditos factos.
Só assim não seria se tivesse sobrevindo a prescrição do procedimento disciplinar cujo prazo é de 5 anos nos termos resultantes do artigo 205.º, n.º 1 do EMFSM. Mas essa prescrição não ocorreu, uma vez que estão em causa factos ocorridos no dia 20 de Abril de 2015.
Parece-nos, portanto, que não ocorre a nulidade do processo disciplinar invocada pelo Recorrente.
2.2
Alega depois o Recorrente que toda a sua conduta que levou à aplicação da pena disciplinar aqui em causa resultou de, no momento dos factos, estar alcoolizado e incapacitado para avaliar a sua conduta e, portanto, de estar totalmente privado das faculdades intelectuais no momento da prática dos factos.
Pelo que, diz o Recorrente, o estado de alcoolemia em que se encontrava quando da prática dos factos afasta a sua culpa, o que, nos termos do artigo 202.º, alínea b) do EMFSM, constitui uma circunstância dirimente da sua responsabilidade disciplinar.
Vejamos.
A questão foi objecto de pronúncia expressa por parte da Entidade Recorrida no despacho que agora se encontra sob impugnação. Disse-se aí a este propósito: «[o arguido] não pode beneficiar o facto de ao tempo se encontrar alcoolizado, atenta a responsabilidade que impende sobre qualquer agente das forças de segurança, de não comprometer o prestígio da instituição com hábitos privados e comportamentos socialmente adequados».
É incontroverso que a culpa constitui elemento constitutivo da responsabilidade disciplinar. Isso resulta, expressamente do n.º 1 do artigo 196.º do EMFSM: «constitui infracção disciplinar o facto culposo praticado pelo militarizado, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais a que está vinculado».
Também é pacífico que a inimputabilidade, isto é, a incapacidade de, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação (cfr. artigo 19.º nº 1 do Código Penal), afasta a culpa, ou, na lição de um Autor português, mais que uma causa de exclusão, constitui verdadeiramente um obstáculo à determinação da culpa, ou, noutra perspectiva, constitui um pressuposto da comprovação da culpa (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, págs. 569-570 apud Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.5.2019, processo n.º 382/14.7JALRA.C1, www.dgsi.pt).
No entanto, o facto de o Recorrente estar alcoolizado no momento da prática da infracção não implica a respectiva inimputabilidade, sequer acidental ou momentânea, com a virtualidade de excluir a sua culpa.
Sabe-se, por outro lado, que a chamada imputabilidade diminuída, decorrente do facto de o agente estar alcoolizado no momento da prática da infracção, não implica qualquer atenuação da culpa nem sequer qualquer atenuação da pena.
Assim, temos por irrepreensível, nesta parte, o acto recorrido.
2.3.
A última questão suscitada pelo Recorrente é a da que, segundo diz, ter sido uma errada escolha da pena disciplinar por parte da Entidade Recorrida.
Para o Recorrente, ao invés da pena de demissão, impunha-se, no caso, a pena menos gravosa, a saber a aposentação compulsiva uma vez que o artigo 239.º do EMFSM impõe a aplicação de tal medida «quando se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções».
Salvo o devido respeito, parece-nos que não tem razão.
Dispõe o n.º 1 do artigo 238.º do EMFSM que «as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional».
Por sua vez, do n.º 2 do dito artigo resulta que «As penas referidas no número anterior são aplicáveis ao militarizado que, nomeadamente:
a) Agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, em local de serviço ou em público;
(…)
n) Praticar, ainda que fora do exercício das suas funções, acto revelador de ser o seu autor incapaz ou indigno de exercer o cargo ou que implique a perda da confiança geral necessária ao exercício da função».
Por seu turno, o artigo 239.º do mesmo diploma estabelece:
«1. A pena de aposentação compulsiva é especialmente aplicável nos casos em que se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
2. Em qualquer caso, a pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o militarizado reunir, pelo menos, 15 anos de tempo de serviço, sem o que lhe será aplicada a pena de demissão».
E o artigo 240.º preceitua:
«A pena de demissão é aplicada ao militarizado que:
a) Tiver praticado qualquer crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, com flagrante e grave abuso da função que exerce e com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Tiver praticado, ainda que fora do exercício das funções, crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos que revele ser o seu autor incapaz ou indigno da confiança necessária ao exercício da função;
c) Praticar ou tentar praticar qualquer acto previsto nas alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do artigo 238.º».
A propósito da escolha da pena disciplinar, ponderou-se no acto recorrido:
«Esta conduta é indigna da manutenção de um vínculo funcional a uma instituição dotada de autoridade policial, como o são os Serviços de Alfândega, porquanto, injuriar e desrespeitar publicamente agentes de autoridade no exercício pleno das suas funções legais, torna-o indigno do exercício de funções das forças e serviços de segurança.
Na escolha da medida concreta da pena expulsiva exclui-se a pena concreta de aposentação compulsiva, atendo o elevado desvalor da conduta descrita, razão por que (…), puno o arguido A (…) com a pena de demissão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 228.º e 238.º, n.º 2 alíneas a) e n) do mesmo diploma legal».
Não vemos que o acto recorrido, nesta parte, possa censurar-se. A conduta do Arguido cabe, em pleno, nas previsões normativas das alíneas a) e n) do n.º 2 do Artigo 238.º de EMFSM, como se consignou no despacho recorrido, pelo que, nesse pressuposto, à Entidade Recorrida cabia escolher a pena disciplinar que considerasse adequada, sem que nada, nomeadamente o artigo 239.º do referido Estatuto, a vinculasse a escolher a pena de aposentação compulsiva. Trata-se, ao invés, do exercício de um poder discricionário, em cujo concreto exercício não se verifica, de todo, erro manifesto ou total desrazoabilidade.
Daí que este fundamento do recurso não possa, em nosso entendimento, deixar de ser julgado improcedente.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que o presente recurso deve ser julgado improcedente com a consequente manutenção na ordem jurídica do acto recorrido…”.
*
Por acórdão de 26/03/2020, este Tribunal julgou o recurso procedente com fundamento na nulidade do procedimento disciplinar e anulou o acto recorrido.
Dessa decisão veio recorrer a Entidade Recorrida para o Tribunal de Última Instância e este, por acórdão de 30/10/2020, concedeu provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e determinando a baixa dos autos para conhecer das restantes questões suscitadas pelo Recorrente em sede do recurso contencioso, cujo conhecimento foi considerado prejudicado no acórdão recorrido/revogado.
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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II – Pressupostos Processuais
O Tribunal é o competente.
As partes possuem a personalidade e a capacidade judiciárias.
Mostram-se legítimas e regularmente patrocinadas.
Não há questões prévias, nulidades ou outras excepções que obstam ao conhecimento do mérito da causa.
*
III – Factos
Com base nos elementos existentes nos autos e no respectivo P.A., é assente a seguinte factualidade com interesse à boa decisão da causa:
1- No dia 04/12/2018 o Senhor Secretário para a Segurança proferiu o Despacho nº 141/SS/2018, nos seguintes termos:
“…
Nos presentes autos consta suficiente provado que o arguido, A, Verificador Alfandegário n.º XXXXX, do quadro de pessoal alfandegário dos Serviços de Alfandega praticou, como consta da matéria da acusação, que aqui se dá por inteiramente reproduzida, os seguintes factos, com relevância disciplinar:
a) Cerca das 05:55 do dia 20 de Abril de 2015, o arguido foi abordado por três agentes policiais do Corpo de Polícia de Segurança Pública, porquanto, junto ao estabelecimento comercial Mcdonald's da Av. Horta e Costa desta cidade, gritava em voz alta, exibindo um comportamento socialmente desadequado;
Tendo-lhe sido pedida a identificação para efeitos de autuação porquanto deitara ao chão uma ponta de cigarro, não só recusou como repeliu, com agressividade, uma tentativa de o conter levada a cabo pelos agentes policiais, quando se preparava para abandonar o local, ao ponto de ter lhes ter causado ferimentos vários, como vem descrito. Simultaneamente dirigiu-lhes insultos, ameaças e outros impropérios ofensivos da dignidade de qualquer pessoa e, particularmente, de uma agente da autoridade, tudo como consta do libelo acusatório;
b) Cerca das 08h50, já no comissariado policial, e após uma passagem pelo Hospital Conde de S. Januário, onde fora conduzido em face do notório estado de perturbação emocional em que se encontrava, o arguido invocou indisposição pelo que foi requisitada uma ambulância ao Corpo de Bombeiros. Acto contínuo, o arguido subiu a uma cadeira e, enquanto prosseguiu com afirmações ofensivas dirigidas a quem o interpelava, filmou a instalação policial onde se encontrava, captando, ainda, imagens dos agentes policiais ali presentes, recusando-se, não obstante tal lhe ter sido pedido, a entregar-lhes o telemóvel com que o fazia ao mesmo tempo que os injuriava.
Com esta conduta, que arguido adoptou de forma consciente e livre, bem sabendo que estava perante agentes da autoridade, no cumprimento da sua missão, resistindo-lhes, injuriando-os e gravando ilicitamente a sua imagem no interior de uma instalação policial, violou de forma afrontosa e grave os deveres de correcção na formulação que lhes conferem as alíneas b) e d) do n.º 2 do artigo 11.º e de aprumo, na formulação que lhe conferem as alíneas f) e o) do n.º 2 artigo 12.º, para além de ter infringido, ainda, um dever geral de "constituir exemplo de respeito pela legalidade instituída e actuar no sentido de reforçar na comunidade o sentimento de confiança na instituição que serve", valor a que concretamente se refere o n.º 3 do artigo 5.º - todos do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n. 66/94/M, de 30 de Dezembro.
Pese embora a circunstância atenuante a que se refere a alínea a) do n.º 2 do artigo 200.º daquele Estatuto, a verdade é que o bom comportamento anterior de que formalmente beneficia o arguido, não diminui o desvalor da conduta que adoptou, como não o pode beneficiar o facto de ao tempo se encontrar alcoolizado, atenta a responsabilidade que impende sobre qualquer agente das forças de segurança, de não comprometer o prestígio da instituição com hábitos privados e comportamentos socialmente desadequados.
Esta conduta é indigna da manutenção de um vínculo funcional a uma instituição dotada de autoridade policial, como o são os Serviços de Alfândega, porquanto, injuriar e desrespeitar publicamente agentes de autoridade no exercício pleno das suas funções legais, torna-o indigno do exercício de funções das forças e serviços de segurança.
Na escolha da medida concreta da pena expulsiva exclui-se a pena concreta de aposentação compulsiva, atento o elevado desvalor da conduta infractora descrita, razão porque, usando dos poderes executivos que me advêm do disposto no n.º 1 da Ordem Executiva n.º 111/2014 e, bem assim, da competência conferida pelo Anexo G ao Artigo 211.º do citado EMFSM, puno o arguido A, Verificador Alfandegário n.º XXXXX, do quadro de pessoal alfandegário dos Serviços de Alfandega, com a Pena de DEMISSÃO, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 228.º e 238.º n.º 2 alíneas a) e n) do mesmo diploma legal.
Notifique o arguido do teor do presente despacho e, ainda, de que do mesmo cabe recurso contencioso no prazo de 30 dias, contados da data da efectiva notificação…”.
2- A factualidade constante da acusação disciplinar é o seguinte:
“…
(6)
Cerca das 05H55 do dia 20 de Abril de 2015, os guardas do Corpo de Polícia de Segurança Pública B (1.º ofendido), C (2.º ofendido) e D (3.º ofendido), no exercício de funções de verificação de documento junto ao Restaurante de Comida Rápida Mcdonald´s sito na Avenida de Horta e Costa, viram que o arguido A gritava em voz alta junto à Padaria Mário sita na mesma via, pelo que dirigiram-se a ele e perguntaram se precisava de ajuda, tendo o mesmo respondido negativamente. Depois de verificado o documento de identificação do arguido, os guardas deixaram-no sair.
(7)
Depois, o arguido A permaneceu na passagem de peões de zebra à frente da Padaria Mário sita na Avenida de Horta e Costa, e o 1.º ofendido, a fim de que o arguido não impedisse a circulação de veículos, dirigiu-se a ele para advertência e o arguido, espontaneamente, regressou ao passeio à frente da Padaria Mário e, em seguida, deitou ao chão uma ponta de cigarro. Por isso, o 1.º ofendido exigiu ao arguido que exibisse o documento de identificação para efeitos de autuação, mas o arguido se recusou e por várias vezes proferiu ao 1.º ofendido: “Fodo a tua mãe” e depois pretendeu entrar na Padaria Mário.
(8)
A fim de não deixarem o abandono do arguido, os 1.º, 2.º e 3.º ofendidos, impediram o arguido de entrar na supracitadas padaria com mãos, altura em que o arguido mais uma vez proferiu ao 1.º ofendido: “Sou dos Serviços de Alfândega, fodo a tua mãe, ou tu morres ou eu morro”, bem como constantemente afastou os guardas com mãos, a fim de tentar abandonar o local.
(9)
Os três guardas decidiram conjuntamente controlar o arguido, mas este resistiu e no momento em que os seus dois braços já foram segurados pelos 2.º e 3.º ofendidos dos lados esquerdo e direito, o arguido esforçou-se para se livrar, causando, com seu movimento de mãos, lesão no lábio inferior do 2.º ofendido e também arranhadela na parte bucal direita do 3.º ofendido.
(10)
Finalmente os supracitados três guardas do CPSP conseguiram controlar o arguido A, conduzindo-o ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário por ele estar emocionado, e por volta das 07H20 do mesmo dia, depois de recebimento do tratamento no hospital, o arguido foi conduzido ao Comissariado Policial n.º 3 do CPSP para ser averiguado.
(11)
Por volta das 08H50 do mesmo dia, na sala de espera do Comissariado Policial n.º3 do CPSP, o arguido A referiu que não se sentia bem, pedindo que fosse receber tratamento no hospital. Por isso, agente policial comunicou ao Corpo de Bombeiros para mandar ambulância. Nesse momento, de repente, o arguido pôs-se de pé num banco da sala de espera e usou um telemóvel (da marca Apple, modelo IPhone A1524, de cor ouro branca com série n.º XXXXXXXXXXXXXXX) para filmar o funcionamento da sala de graduado de serviço que se localiza ao lado da sala de espera, tendo filmado os guardas incluindo E (4.º ofendido), F (5.º ofendido), G (6.º ofendido) e H (7.º ofendido).
(12)
O 4.º ofendido exigiu ao arguido A que entregasse o supracitado telemóvel para efeitos de verificação, mas o arguido se recusou e disse ao 1.º ofendido: “Vais para o caralho e vão morrer todos os membros familiares, se quer jogar joga o máximo, vejamos quem não consegue pagar”.
(13)
O acto de A causou directa e necessariamente contusões e escoriações no tecido mole do lábio inferior do 2.º ofendido que necessitou de um dia para se recuperar. O 2.º ofendido também sofreu contusões no tecido mole do tornozelo esquerdo.
(14)
O acto de A causou directa e necessariamente contusões e escoriações no tecido mole da parte bucal direita do 3.º ofendido que necessitou de um dia para se recuperar.
(15)
O arguido A, agindo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que os 1.º, 2.º e 3.º ofendidos eram os guardas do CPSP e que estavam a exercer funções profissionais, ainda deliberadamente e por várias vezes proferiu ao 1.º ofendido palavras capazes de ofender a fama de guarda, bem como atacou o corpo dos 2.º e 3.º ofendidos, a fim de impedi-los de exercer suas funções.
(16)
Na altura em que foi averiguado no comissariado policial, o arguido A usou telemóvel para filmar os 4.º, 5.º, 6.º e 7.º ofendidos sem razão justa e contra a vontade dos mesmos.
(17)
O arguido A tinha perfeito conhecimento de que os seus actos eram proibidos e punidos por lei.
…”
3- Por acórdão do TSI de 27/06/2019, proferido no Proc. nº 846/2018, o Recorrente foi condenado pela prática de um crime de injúria qualificada na forma continuada, um crime de resistência e quatro crimes de fotografias ilícitas, na pena única de um ano de prisão, com suspensão de execução de dois anos. Em cúmulo com as penas condenadas no Proc. nº CR2-16-0065-PCC, foi condenado na pena de prisão efectiva de 3 anos e três meses.
*
IV – Fundamentação
1. Do erro no pressuposto de facto e da exclusão da culpa na prática da infracção disciplinar:
No caso em apreço, o Recorrente foi punido disciplinarmente por ter injuriado agentes da polícia, resistido à sua autoridade e tirado fotografias ilícitas na esquadra policial.
Alega o Recorrente que toda a sua conduta resultou de estar, na altura, alcoolizado, pelo que estava incapacitado para avaliar as consequências da sua conduta, o que constitui uma circunstância dirimente da sua responsabilidade disciplinar nos termos da al. b) do artº 202º do EMFSM.
Nesta conformidade, o acto recorrido ao afirmar que ele ter agido de forma consciente e livre, errou nos pressupostos de facto.
Quid iuris?
Adiantamos desde já que não lhe assiste mínima razão.
Em primeiro lugar, em lado algum do acto recorrido se considerou como provado que o Recorrente, no momento da prática dos factos acima em referência, se encontrava no estado de embriaguez.
Bem pelo contrário.
Resulta dos autos que os mesmos factos também foram objecto de condenação penal já transitado em julgado (Ac. do TJB, de 06/07/2018, Proc. nº CR3-16-0128-PCC e Ac. do TSI, de 27/06/2019, Proc. nº 846/2018), nos termos da qual se considerou como provado que o Recorrente agiu de forma consciente e livre no momento da prática dos factos, uma vez que segundo o relatório do exame constante do Proc. nº CR3-16-0128-PCC, o Recorrente estava, naquele momento, consciente, não se revelando ter ingerido grande quantidade de álcool (cfr. página 12 do Ac. do TJB do Proc. nº CR3-16-0128-PCC e página 9 do Ac. do TSI do Proc. nº 846/2018).
Por outro lado, ainda que admitisse, por mera hipótese, que o Recorrente estivesse no estado de embriaguez no momento da prática dos factos, tal facto em si também não constitui uma circunstância dirimente da sua responsabilidade disciplinar ao abrigo da al. b) do artº 202º do EMFSM, já que para o efeito, a lei exige que tal privação acidental do exercício das faculdades intelectuais no momento da prática do acto ilícito tem de ser involuntária e no caso sub justice, nada foi alegado que o eventual consumo ou ingestão de bebida alcoólica por parte do Recorrente foi involuntário.
Face ao expendido, é de improceder esta parte do recurso contencioso.
2. Da violação do princípio da proporcionalidade e do erro na escolha da pena disciplinar:
Para o Recorrente, a aplicação da pena de demissão é excessiva, pelo que o acto recorrido ao optar aplicar-lhe tal pena disciplinar, violou o princípio da proporcionalidade
Na sua óptica, ao invés da pena de demissão, impunha-se, no caso, a pena menos gravosa, que é a aposentação compulsiva, uma vez que nos termos do artº 239.º do EMFSM, tal pena disciplinar é aplicada “quando se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções”.
Também não lhe assiste razão.
A Entidade Recorrida determinou a aplicação da pena de demissão por entender que a conduta do Recorrente “é indigna da manutenção de um vínculo funcional a uma instituição dotada de autoridade policial, como o são os Serviços de Alfândega, porquanto, injuriar e desrespeitar publicamente agentes de autoridade no exercício pleno das suas funções legais, torna-o indigno do exercício de funções das forças e serviços de segurança”.
Assim, atendo o elevado desvalor da conduta descrita, foi-lhe aplicada a pena de demissão ao abrigo dos artºs 228.º e 238.º, n.º 2 alíneas a) e n) do EMFSM.
Dispõe o n.º 1 do artigo 238.º do EMFSM que “as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional”.
E o seu n.º 2 estabelece que “As penas referidas no número anterior são aplicáveis ao militarizado que, nomeadamente:
a) Agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, em local de serviço ou em público;
(…)
n) Praticar, ainda que fora do exercício das suas funções, acto revelador de ser o seu autor incapaz ou indigno de exercer o cargo ou que implique a perda da confiança geral necessária ao exercício da função”.
Ora, face à factualidade apurada, não resta qualquer margem de dúvida de que a conduta do Recorrente cabe perfeitamente nas previsões normativas das als. a) e n) do n.º 2 do artº 238.º do EMFSM.
Na determinação da pena disciplinar concreta aplicável, como bem observou o Dignº Magistrado do Mº Pº junto deste TSI que “à Entidade Recorrida cabia escolher a pena disciplinar que considerasse adequada, sem que nada, nomeadamente o artigo 239.º do referido Estatuto, a vinculasse a escolher a pena de aposentação compulsiva. Trata-se, ao invés, do exercício de um poder discricionário, …”.
O TUI tem vindo a reiterar que a intervenção do Tribunal na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, “só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem” (Acs. do TUI, de 21/01/2015, Proc. nº 20/2014, de 13/11/2013, Proc. nº 23/2013, de 14/12/2012, Proc. nº 69/2012, de 25/07/2012, Proc. nº 8/2012, de 10/07/2020, Proc. nº 41/2020 e de 04/11/2015, Proc. nº 71/2015).
No caso em apreço, o Recorrente injuriou os agentes da PSP, impedindo-lhes o exercício normal de funções com emprego de violência e ameaça. Além disso, fotografou ilicitamente os agentes policiais dentro da esquadra.
A sua conduta é grave, pelo que nada a censurar o acto recorrido que lhe puniu com a demissão.
Não se vislumbra qualquer erro na escolha da pena disciplinar nem violação do princípio da proporcionalidade.
*
Tudo visto, resta decidir.
*
V – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar improcedente o presente recurso contencioso, mantendo o acto recorrido.
*
Custas pelo Recorrente com 10UC taxa de justiça.
Notifique e registe.
(…)”; (cfr., fls. 162 a 173-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformado com o assim decidido, traz o dito recorrente o presente recurso, alegando para, em conclusões, dizer o que segue:

“1.ª O Recorrente veio acusado de injuriar agentes da polícia, resistir à sua autoridade e, posteriormente, já na esquadra policial, tirar fotografias ilícitas de vários agentes, no entanto a verdade é que toda a sua conduta resultou de estar alcoolizado no momento dos factos e, portanto, de estar incapacitado para avaliar a sua conduta nesse momento.
2.ª Verdadeiramente, do que se trata, é de uma total privação das faculdades intelectuais no momento da prática dos factos, sendo que tal facto resulta plenamente do processo instrutório, nomeadamente das declarações prestadas pelas testemunhas inquiridas constantes de fls 99-100, 103-104, 172-173 e 177, em testemunhos amplamente criteriosos e esclarecedores.
3.ª Havendo, portanto, que se concluir que se encontra plenamente demonstrado que o Recorrente estava fortemente alcoolizado no momento da prática dos factos.
4.ª Estado esse que não lhe permitiu avaliar a gravidade da sua conduta (e muito menos conformar-se com ela) no momento da prática dos factos descritos na nota de culpa contra si impulsionada.
5.ª O Despacho contendo o acto administrativo decisório aceita como facto assente que o arguido se encontrava alcoolizado na altura dos factos, no entanto, ainda assim, é referido que o arguido agiu "de forma consciente e livre"; algo que, efectivamente, não aconteceu, porquanto o Recorrente agiu fruto do consumo de bebidas alcoólicas e da situação de descontrolo emocional em que se encontrava devido a esse estado.
6.ª Ao ter fundado a decisão na conduta "consciente e livre" do arguido incorreu o acto decisório em erro nos pressupostos de facto, por partir de uma factualidade que, verdadeiramente, não existiu.
7.ª Verdade é que o estado de alcoolémia em que se encontrava o arguido afasta a sua culpa, uma vez que levou a que ele se encontrasse privado das suas habituais faculdades intelectuais, de forma acidental, o que constitui uma circunstância dirimente da sua responsabilidade disciplinar, nos termos do artigo 202.°, al. b), do EMFSM, sendo essa circunstância dirimente é resultado de uma análise que deve ser efectuada de forma puramente objectiva.
8.ª Não compete à entidade decisória avaliar se a circunstância dirimente merece, no caso concreto, afastar ou não afastar a responsabilidade disciplinar do arguido, porquanto a lei afasta essa margem, ao estabelecer uma norma de carácter imperativo (no art.° 202.°, al. b), do EMFSM).
9.ª À entidade decisória apenas compete avaliar se, objectivamente, existe ou não existe uma circunstância dirimente, mas já não se essa circunstância é juridicamente relevante.
10.ª Ou seja, admitiu-se a existência da circunstância dirimente, mas ajuizou-se que essa circunstância não pode levar, no caso do Recorrente, ao afastamento da sua responsabilidade disciplinar, sendo, no entanto, que tal conclusão é juridicamente inaceitável, porquanto a culpa é um dos pressupostos da punição disciplinar, e esta encontra-se afastada no caso sub judice.
11.ª Essa condição do Arguido exclui a sua culpa e a ilicitude da conduta, e estas são pressupostos da punição disciplinar, sendo de concluir que devia ter sido ele absolvido da prática de qualquer infracção disciplinar pelos factos descritos na acusação.
12.ª A entidade recorrida parece ter querido relevar o facto de o arguido não poder ingerir bebidas alcoólicas na quantidade e forma em que o fez, por isso colidir com o seu estatuto de militarizado, no entanto não era essa a conduta pela qual o Recorrente vinha acusado.
13.ª E refira-se que o EMFSM até prevê a possibilidade de ser aplicada a pena de demissão ao agente que "abusar habitualmente de bebidas alcoólicas ou consumir ou traficar estupefacientes ou substâncias psicotrópicas", mas não foi sobre isso que versou a nota de culpa movida contra o Recorrente.
14.ª É certo que no processo-crime a que foi o Recorrente sujeito, não se logrou fazer a prova da sua incapacidade acidental, mas a sentença penal apenas forma caso julgado quanto à "existência material e autoria dos factos", já não quanto à existência de eventuais circunstâncias dirimentes (art.° 263.°, do EMFSM).
15.ª E face aos elementos de prova supramencionados, afigura-se que a decisão da administração só podia ter sido a de reconhecer a incapacidade do Recorrente ajuizar a ilicitude dos seus actos no momento da sua prática.
16.ª Ao não o ter feito, e ressalvado o devido respeito por opinião em sentido diverso, incorreu o acto recorrido em violação de lei, em específico dos artigos 202.° e 196.°, n.° 1, ambos do EMFSM, e em erro nos pressupostos de facto, bem como o douto Acórdão recorrido, ao não ter reconhecido esses vícios apontados.
17.ª Mesmo assim não se entendendo, a verdade é que nunca ao Recorrente poderia ter sido aplicada a pena de demissão, ao invés da pena de aposentação compulsiva, prevista no artigo 219.°, al. f), do EMFSM.
18.ª Pode ler-se no Despacho punitivo que "na escolha da medida concreta da pena expulsiva exclui-se a pena concreta de aposentação compulsiva, atento o elevado desvalor da conduta infractora descrita, razão porque (…) puno o arguido A (…) com a Pena de Demissão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 228.° e 238.°, n.° 2 alíneas a) e n) do mesmo diploma legal".
19.ª No âmbito do Estatuto dos Militarizados, tanto a pena de demissão como a pena de aposentação compulsiva são aplicáveis quando se trate de infracção disciplinar que inviabilize a manutenção da relação funcional, sendo que os artigos 238.°, 239.° e 240.° fixam as condutas às quais podem e devem ser aplicadas as penas de demissão e de aposentação compulsiva, sendo que o Despacho punitivo imputa ao Recorrente as condutas previstas nas alíneas a) e n) do n.° 2 do art.° 238.°.
20.ª Por seu lado, o art.° 240.° impõe a aplicação da pena de demissão em determinadas situações, sendo que nenhuma foi imputada ao Recorrente enquanto o art.° 239.° impõe a aplicação da pena de aposentação compulsiva quando "se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções", sendo certo que há um requisito adicional à aplicação desta pena: que o arguido tenha prestado pelo menos 15 anos de serviço, o que se verifica no caso dos autos.
21.ª O Despacho punitivo conclui que a conduta do Recorrente o torna "indigno do exercício de funções das forças e serviços de segurança", conclusão essa que se insere plenamente na previsão normativa ínsita no art.° 239.° do EMFSM: a falta de idoneidade moral para o exercício de funções.
22.ª Da mesma forma que o artigo 240.° impõe à Administração Pública que opte pela pena de demissão em determinadas situações, o art.° 239.° impõe a escolha pela pena de aposentação compulsiva noutras.
23.ª Sendo que todas as circunstâncias para a aplicação da pena de aposentação compulsiva estão verificadas no caso sub judice, pelo que a Administração estava obrigada a escolher esta pena, ao invés da pena de demissão.
24.ª É isto que resulta da conjugação dos artigos 238.°, 239.° e 240.° do EMFSM, bem como da factualidade apurada e constante dos autos administrativos, havendo, portanto, in casu, um dever vinculado da Administração na escolha da pena, ao contrário do que se deixou consignado no douto Acórdão recorrido.
25.ª É certo que, como se assinala no douto Acórdão recorrido vem a jurisprudência entendendo que a medida concreta da pena só à administração compete, por se tratar de matéria discricionária, mas essa discricionariedade não é absoluta, havendo que se reger por certos critérios, desde logo os princípios da justiça e proporcionalidade consagrados no CPA.
26.ª Ainda mais quando está em causa matérias que contendem com direitos fundamentais dos particulares, como sejam o direito ao emprego, que in casu saiu afectado pelo acto recorrido, bem como as regras próprias ínsitas no EMFSM, que impõem à Administração, em certas situações, uma escolha de pena vinculada, o que se afigura ser o caso dos autos.
27.ª Assim, impunha-se a aplicação ao Recorrente da pena aposentação compulsiva e, ao não o ter feito, incorreu o acto recorrido em violação de lei, mais concretamente dos artigos 232.° e 239.° do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, bem como o Douto Acórdão recorrido ao não ter reconhecido esse vício e ter mantido o acto na sua íntegra”; (cfr., fls. 181 a 196).

*

Respondendo, e em conclusões, diz a entidade administrativa recorrida que o Acórdão recorrido não merece reparo; (cfr., fls. 199 a 202).

*

Em sede de vista, e em douto Parecer, considerou o Exmo. Representante do Ministério Público que o recurso não merecia provimento.

Tem este Parecer o teor seguinte:

“(…)
1.
O Tribunal de Segunda Instância, por douto acórdão proferido nos presentes autos e constante de fls. 162 a 173 julgou improcedente o recurso contencioso interposto por A, melhor identificado nos autos, do acto da Secretário para a Segurança que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão por violação dos deveres de correcção e de aprumo previstos nas alíneas b) e d) do n.º 2 do artigo 11.º e na alínea f) e o) do n.º 2 do artigo 12.º, e por infracção ao dever geral de «constituir exemplo de respeito pela legalidade instituída e actuar no sentido de reforçar na comunidade o sentimento de confiança na instituição que serve», valor a que concretamente se refere o n.º 3 do artigo 5.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro.
Inconformado com o assim decidido veio o Recorrente contencioso interpor o presente recurso jurisdicional do dito acórdão para o Tribunal de Última Instância.
2.
2.1.
A primeira questão suscitada pelo Recorrente é a de saber se o douto acórdão recorrido fez um errado julgamento ao ter decidido que o acto administrativo impugnado não está ferido do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto.
Salvo o devido respeito, cremos que o Recorrente não tem razão.
(i)
Em primeiro lugar porque coloca ao Tribunal de Última Instância uma questão de facto, qual seja a de saber se, no momento da prática dos factos que estiveram na base da decisão punitiva da autoria do Secretário para a Segurança, o Recorrente se encontrava em estado de embriaguez incapacitante susceptível de inviabilizar, quanto a ele, a formulação do juízo de censura em que a culpa se consubstancia.
Com efeito, apesar de a douta decisão recorrida não ser totalmente concludente, com todo o respeito o dizemos, parece-nos seguro que dela se pode extrair que o Tribunal a quo não deu como provada a alegada embriaguez ou, dizendo de outro modo, deu como provado que o Recorrente agiu de forma livre e consciente.
Ora, este julgamento de facto encontra-se subtraído aos poderes de cognição do Tribunal de Última Instância, mesmo quando este intervém em segundo grau de jurisdição, face ao que se encontra preceituado na norma do artigo 152.º do CPAC.
(ii)
Por outro lado, ainda que se pudesse considerar que o Recorrente, no momento da prática dos factos disciplinarmente relevantes se encontrava embriagado, nem por isso se poderia afirmar que tal seria suficiente para afastar a sua culpa e dar como verificada a circunstância dirimente da sua responsabilidade disciplinar a que se reporta a alínea b) do artigo 202.º do EMFSM.
Na verdade, como já tivemos oportunidade de referir no nosso anterior parecer proferido nos presentes autos, «é incontroverso que a culpa constitui elemento constitutivo da responsabilidade disciplinar. Isso resulta, expressamente do n.º 1 do artigo 196.º do EMFSM: ‘constitui infracção disciplinar o facto culposo praticado pelo militarizado, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais a que está vinculado’.
Também é pacífico que a inimputabilidade, isto é, a incapacidade de, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação (cfr. artigo 19.º nº 1 do Código Penal), afasta a culpa, ou, na lição de um Autor português, mais que uma causa de exclusão, constitui verdadeiramente um obstáculo à determinação da culpa, ou, noutra perspectiva, constitui um pressuposto da comprovação da culpa (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, págs. 569-570 apud Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.5.2019, processo n.º 382/14.7JALRA.C1, www.dgsi.pt)».
Todavia, ainda que se demonstrasse que o Recorrente estaria alcoolizado no momento da prática dos factos disciplinares aqui em causa tal não implicaria a respectiva inimputabilidade, sequer acidental ou momentânea, não podendo, portanto, de forma alguma, ver-se nessa circunstância uma causa de exclusão da sua culpa.
Além disso, a chamada imputabilidade diminuída que possa resultar do facto de o agente estar alcoolizado no momento em que pratica os factos constitutivos da infracção disciplinar não implica qualquer atenuação da culpa nem sequer se reflecte favoravelmente, de modo necessário, na determinação da pena (veja-se, neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 03.07.2014, processo 354/12.6GASXL.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Eis porque, em nosso modesto entendimento, a decisão recorrida não é merecedora de qualquer no que à primeira questão suscitada pelo Recorrente diz respeito.
2.2.
A segunda questão que o Recorrente coloca ao Tribunal de Última Instância prende-se com um alegado erro de julgamento da douta decisão recorrida no que tange à alegada ilegalidade cometida pela Administração na escolha da pena disciplinar que aplicou.
Para o Recorrente, ao invés da pena de demissão, impunha-se, no caso, a escolha da pena disciplinar menos gravosa, a saber a pena de aposentação compulsiva, uma vez que o artigo 239.º do EMFSM impõe a aplicação de tal medida «quando se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções».
Salvo o devido respeito, parece-nos que o Recorrente não tem razão.
Pelo seguinte.
Dispõe a norma contida no n.º 1 do artigo 238.º do EMFSM que «as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional».
Por sua vez, do n.º 2 do dito artigo 238.º do mesmo Estatuto resulta que as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis ao militarizado que, nomeadamente:
«a) Agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, em local de serviço ou em público;
(…)
n) Praticar, ainda que fora do exercício das suas funções, acto revelador de ser o seu autor incapaz ou indigno de exercer o cargo ou que implique a perda da confiança geral necessária ao exercício da função».
Por sua vez, a norma do artigo 239.º do citado Estatuto estabelece que:
«1. A pena de aposentação compulsiva é especialmente aplicável nos casos em que se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
2. Em qualquer caso, a pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o militarizado reunir, pelo menos, 15 anos de tempo de serviço, sem o que lhe será aplicada a pena de demissão».
E a disposição contida no artigo 240.º do EMFSM reza assim:
«A pena de demissão é aplicada ao militarizado que:
a) Tiver praticado qualquer crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, com flagrante e grave abuso da função que exerce e com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Tiver praticado, ainda que fora do exercício das funções, crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos que revele ser o seu autor incapaz ou indigno da confiança necessária ao exercício da função;
c) Praticar ou tentar praticar qualquer acto previsto nas alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do artigo 238.º».
A propósito da escolha da pena disciplinar, ponderou-se no acto administrativo que foi objecto de impugnação contenciosa o seguinte:
«Esta conduta é indigna da manutenção de um vínculo funcional a uma instituição dotada de autoridade policial, como o são os Serviços de Alfândega, porquanto, injuriar e desrespeitar publicamente agentes de autoridade no exercício pleno das suas funções legais, torna-o indigno do exercício de funções das forças e serviços de segurança.
Na escolha da medida concreta da pena expulsiva exclui-se a pena concreta de aposentação compulsiva, atendo o elevado desvalor da conduta descrita, razão por que (…), puno o arguido A (…) com a pena de demissão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 228.º e 238.º, n.º 2 alíneas a) e n) do mesmo diploma legal».
A douta decisão recorrida não vislumbrou ali qual ilegalidade. Bem, a nosso ver.
Com efeito, a conduta do Recorrente enquadra-se, por inteiro, nas previsões normativas das alíneas a) e n) do n.º 2 do Artigo 238.º de EMFSM e nesse pressuposto à Entidade Recorrida cabia escolher a pena disciplinar que considerada adequada, sem que nada, nomeadamente o artigo 239.º do referido Estatuto, a vinculasse a escolher a pena de aposentação compulsiva em desfavor da pena de demissão. Trata-se, como tem sido repetidamente afirmado pelos nossos Tribunais, do exercício de um poder discricionário.
Com efeito, está jurisprudencialmente consolidado o entendimento segundo o qual, relativamente às penas disciplinares, a aplicação, graduação e escolha da medida concreta cabem na discricionariedade da Administração. Portanto, só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei judicialmente sindicável, nos termos que resultam do disposto no artigo 21.º n.º 1, al. d) do CPAC. Daí que a intervenção sindicante do tribunal deva ficar limitada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida pelo funcionário (cf., por todos, o acórdão do Tribunal de Última Instância de 21.9.2015, Processo n.º 26/2014).
Como esse Tribunal de Última Instância tem vindo recorrentemente a considerar, ao tribunal não compete dizer se, no caso, aplicaria ou não a pena disciplinar de demissão. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é outro, é o de verificar se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, nomeadamente, em resultado da violação intolerável, flagrante, evidente do princípio da proporcionalidade ou de outro dos princípios gerais que regem a actividade administrativa (assim, Ac. do TUI de 19.11.2014, processo n.º 112/2014 e Ac. do TUI de 5.12.2018, processo n.º 65/2018).
Nesta como noutras situações, «há que pôr em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto administrativo restritivo ou limitativo e os bens e interesses individuais sacrificados por esse acto, para aferir da proporcionalidade da medida concretamente aplicada. E só no caso de considerar inaceitável e intolerável o sacrifício é que se deve concluir pela violação dos princípios orientadores do exercício de poderes discricionários, tais como da proporcionalidade, da razoabilidade e da justiça» (assim, veja-se o acórdão do Tribunal de Última Instância de 5.12.2018, processo n.º 65/2018).
No caso, atenta a concreta gravidade objectiva da infracção praticada pelo Recorrente, não vemos como possa apontar-se à decisão recorrida, quando nesta se optou pela demissão e não pela aposentação compulsiva, um flagrante mau uso do poder discricionário ou evidente e intolerável violação dos princípios gerais da actividade administrativa, nomeadamente, do princípio da proporcionalidade.
Trata-se, ao invés, do exercício de um poder discricionário, em cujo concreto exercício não se verifica, de todo, erro manifesto ou total desrazoabilidade.
Andou bem, pois, o Tribunal de Segunda Instância ao julgar improcedente a ilegalidade do acto administrativo objecto do recurso contencioso também na parte atinente à escolha da pena disciplinar. Daí que, no nosso humilde modo de ver, a douta decisão recorrida não seja merecedora de qualquer censura.
(…)”; (cfr., fls. 218 a 221-v).

*

Cumpre apreciar.

Fundamentação

2. Vem interposto recurso do Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado que negou provimento ao recurso contencioso pelo ora (também) recorrente aí apresentado, (notando-se que o Acórdão objecto do presente recurso é o datado de 04.02.2021, proferido na sequência do veredicto desta Instância de 30.10.2020; cfr., fls. 81 a 91-v e 134 a 149-v).

Como resulta das conclusões pelo ora recorrente, (A), apresentadas a final da sua motivação de recurso, (apenas) duas são as “razões” do seu inconformismo.

A primeira, relativamente à “decisão da matéria de facto”, e, a segunda, relativamente à “decisão de direito”, considerando, ambas, “incorrectas”.

Cremos porém que ao recorrente não assiste qualquer razão, muito não se mostrando necessário consignar para o demonstrar.

Aliás, o Ministério Público, com o douto Parecer que juntou aos autos, (e se deixou transcrito), “desmonta”, clara e cabalmente, (todos) os argumentos pelo recorrente apresentados para justificar as maleitas que assaca ao Acórdão recorrido, pouco havendo a acrescentar.

Seja como for, não se deixa de dizer o que segue.

–– No que toca à “decisão da matéria de facto”, o inconformismo do recorrente está na ausência de matéria de facto relativamente ao seu alegado “estado de embriaguez”.

Ora, como se apresenta evidente, nenhuma razão se lhe pode reconhecer.

Com efeito, (independentemente do demais), e como (repetidamente) já tivemos oportunidade de notar, a competência do Tribunal de Última Instância para apreciar a “decisão proferida quanto à matéria de facto” é limitada pelo n.º 2 do art. 649° do C.P.C.M., (subsidiariamente aplicável por força do disposto no art. 1° do C.P.A.C.), nos termos do qual, “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Nesta conformidade, o Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional – como é o caso – não pode censurar a convicção formada pelas Instâncias quanto à prova; podendo, porém, reconhecer, (e declarar), que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, (quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto), sendo assim, uma censura que se confina à “legalidade do apuramento dos factos, e não respeita, directamente, à existência ou inexistência destes”; (cfr., v.g., entre outros, e para citar os mais recentes, os Acs. de 31.07.2020, Proc. n.° 57/2020, de 09.09.2020, Proc. n.° 56/2020, de 16.09.2020, Proc. n.° 85/2020, de 23.09.2020, Proc. n.° 135/2020, de 14.10.2020, Procs. n°s 124/2020 e 125/2020, de 27.11.2020, Proc. n.° 157/2020 e 04.12.2020, Proc. n.° 175/2020).

Motivos não havendo para se não ter como adequado o entendimento exposto, vista está a solução para a questão.

–– Sem mais demoras, passemos para a segunda questão, relacionada com a “decisão de direito”, onde considera o ora recorrente que incorreu a entidade recorrida em “ilegalidade” por o ter punido disciplinarmente com a “pena de demissão”.

Porém, como já se deixou adiantado, também aqui ao recorrente não assiste razão.

Vejamos.

Dada a “qualidade profissional” do recorrente, (“Verificador Alfandegário” do quadro dos Serviços de Alfandega), à situação em questão aplica-se o estatuído no art. 238° do “Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau”, aprovado pelo D.L. n.° 66/94/M de 30.12, onde se preceitua que:

“1. As penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional.
2. As penas referidas no número anterior são aplicáveis ao militarizado que, nomeadamente:
a) Agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, em local de serviço ou em público;
(…)
n) Praticar, ainda que fora do exercício das suas funções, acto revelador de ser o seu autor incapaz ou indigno de exercer o cargo ou que implique a perda da confiança geral necessária ao exercício da função”.

No caso dos autos, e atenta a “factualidade” dada como provada, (e atrás retratada), foi a conduta disciplinarmente relevante do ora recorrente integrada nas previsões das alíneas a) e n) do transcrito art. 238° do aludido E.M.F.S.M., nenhum motivo havendo para qualquer censura.

Com efeito, e como sem esforço se colhe da dita factualidade, (cfr., fls. 16 a 18 deste aresto), o ora recorrente “desrespeitou gravemente” colegas das Forças de Segurança de Macau “em local de serviço e em público”, (cfr., al. a), inegável se apresentando que com a “conduta” que desenvolveu se relevou – absolutamente – “indigno das funções que lhe estavam confiadas”, implicando, simultaneamente, uma perda da necessária confiança para o exercício da função que vinha desempenhando como profissional dos Serviços de Alfandega; (cfr., al. n).

E, nesta conformidade, também aqui, nenhum reparo se nos mostra de fazer à decisão que por tal conduta entendeu como justa e adequada a pena da sua “demissão”.

De facto, firme (e pacífico) é o entendimento no sentido de que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade por parte da Administração só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem; (cfr., v.g., entre muitos, os Acs. deste T.U.I. de 21.01.2015, Proc. n.° 20/2014, de 13.11.2013, Proc. n.° 23/2013, de 14.12.2012, Proc. n.° 69/2012 e de 25.07.2012, Proc. n.° 8/2012).

Como cremos ser igualmente firme (e pacífico), importa pois reconhecer que, no âmbito do exercício do “poder discricionário” – como é o caso dos autos – à Administração cabe uma (certa) margem de livre apreciação e decisão, não cabendo ao Tribunal dizer se a decisão proferida seria a que teria proferido se a Lei lhe cometesse tal atribuição, não se podendo também olvidar que, para a generalidade das carreias que integram os “Serviços da Administração Pública”, e como se nos mostra de há muito adquirido, a aplicação de penas disciplinares dentro das espécies e molduras legais, é insindicável contenciosamente, ressalvando-se, (como se referiu), os casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade; (cfr., v.g., entre muitos, os Acs. deste T.U.I. de 15.10.2003, Proc. n.° 26/2003; de 29.06.2005, Proc. n.° 15/2005; de 12.01.2011, Proc. n.° 53/2010; de 25.07.2012, Proc. n.° 8/2012; de 14.12.2012, Proc. n.° 69/2012; de 13.11.2013, Proc. n.° 23/2013; de 21.01.2015, Procs. n°s 20/2014 e 26/2014; de 05.12.2018, Proc. n.° 65/2018; de 04.04.2019, Proc. n.° 11/2019; de 29.11.2019, Proc. n.° 107/2019; de 10.07.2020, Proc. n.° 41/2020; de 31.07.2020, Proc. n.° 59/2020 e de 12.05.2021, Proc. n.° 43/2021).

Dest’arte, atento o que se deixou exposto, e ponderando, em especial, na “natureza”, “circunstâncias” e “efeitos” da conduta disciplinarmente relevante pelo ora recorrente desenvolvida, apresenta-se que inteiramente correcta é a decisão do Tribunal de Segunda Instância que por reparo não lhe parecer merecer a decisão administrativa aí recorrida negou provimento ao anterior recurso contencioso, havendo, assim, que se julgar igualmente improcedente o presente recurso (jurisdicional).

Decisão

3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 6 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 23 de Junho de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

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