ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A, por si e em representação do seu filho menor B, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 29 de Junho de 2005, que, em recurso hierárquico, confirmou decisão do Comandante Substituto do Corpo de Polícia Segurança Pública, que indeferiu pedido de autorização de permanência em Macau do referido menor.
Por acórdão de 8 de Junho de 2006, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformados, interpõem os recorrentes recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a alegação com a formulação das seguintes conclusões:
1.ª - O caso dos autos reporta-se a matéria relativa a pedido de permanência em Macau de uma criança nascida a nascido a 29.9.97 para reunificação familiar com seus pais, ambos trabalhadores não residentes e requerida por ambos os progenitores;
2.ª - Para a contratação de trabalhadores não residentes ou mão de obra importada, vigoram em Macau dois regimes - o regime geral, do Despacho n.° l2/GM/88, de 01 de Fevereiro; e o regime da mão-de-obra especializada ou que não se encontre normalmente disponível em Macau, do Despacho n.° 49/GM/88, de 16 de Maio.1988 - tendo o requerente-pai sido contratado nos termos e ao abrigo daquele; e a requerente-mãe ao abrigo e nos termos do segundo;
3.ª - Dispondo o artigo 8.º n.° 5 da Lei n.° 4/2003: "trabalhador não-residente especializado, cuja contratação tenha sido do interesse da RAEM" e sucedendo que o regime aplicado à contratação do requerente-pai do menor (o regime regulamentado pelo Despacho n.° l2/GM/88) não define o conceito "especializado" nem de exigências qualificativas quanto ao trabalhador mas, pelo contrário, liberdade de julgamento e de intervenção no mercado laboral e produtivo de acordo com as políticas de dinamismo económico que a Administração eleger (n.° 5 do cit. Desp. 12/GM/88), é efectivamente de concluir que, quanto ao requerente-pai (e de todos os contratados sob tal regime), não se encontrá determinado o conceito de "especializado" referido no cit. art. 8.º n.° 5, cabendo à Administração determiná-lo quanto ao caso concreto de reunificação que lhe for colocado;
4.ª - Mas já quanto à requerente-mãe e de todos os trabalhadores não residentes contratados ao abrigo e nos termos do mesmo regime (o do Despacho n.° 49/GM/88, de 16.Maio) é esse próprio regime jurídico que define o conceito, fundindo num só conceito jurídico ou realidade jurídica como sendo mão de obra especializada ou mão-de-obra normalmente não disponível em Macau (quer no preâmbulo quer no seu n.° 1).
5.ª - Trata-se de despacho normativo e, consequentemente, não é lícito à Administração alterar tal conceito quanto a tal tipo de contratação a não ser por norma de hierarquia igual ou superior e nunca através do acto decisório da situação individual e concreta concretamente decidida pelo acto recorrido.
6.ª - Por força de tal norma do cit. Desp. 49/GM/88, deve pois a requerente-mãe ser considerada trabalhadora especializada para efeitos do cit. artigo 8.º n.° 5 da Lei n.° 4/2003 e reunificação familiar requerida, sendo também patente em tais diplomas que toda a contratação de não-residentes é, necessária e obrigatóriamente, do interesse da RAEM e imediatamente distratável e os trabalhadores recambiados quando a sua contratação se tornar contrária a esse interesse (indesejável, na linguagem daqueles 2 diplomas) ou se tornar desnecessária ainda que não contrária (dispensável-na linguagem daqueles 2 diplomas normativos).
7.ª - Caso se entenda que os autos não têm suficientemente claro qual o processo ou regime de contratação que foi utilizado para cada um deles (contratação em processo do regime do Desp. 12/GM/88. Ou foi a contratação do regime do Desp. 49/GM/88), então haverá insuficiência da matéria de facto quer para as conclusão de não especializado tirada pelo acto e pelo Acórdão recorrido quer, igualmente e naturalmente também, para a conclusão oposta tirada pelos recorrentes;
8.ª - E, consequentemente, deve ser revogado o douto Acórdão recorrido e decretando-se a anulação do acto ou, no caso da conclusão 7.ª, baixar os autos para apurar qual dos 2 regimes de contratação foi utilizado para cada um dos trabalhadores pais da criança se tal matéria não for dispensada pela procedência das conclusões 9.ª e seguintes;
9.ª - Além disso, o acto e o douto Acórdão recorrido violam também os artigos 7.º n.° 1, 9.º n.° 1 e "maxime" o art. 10.º n.° 1, todos da Convenção sobre os Direitos da Criança, razão pela qual, também por isso, deve o douto Acórdão ser revogado e o acto anulado.
10.ª - Tal Convenção foi introduzida no ordenamento jurídico de Macau, antes de 20.12.99, data do estabelecimento da RAEM, como Lei Internacional Convencional de valor supra-legal e infra-constitucional - publicada no BO n.º 37, de 14.Setembro.1998.
11.ª - E tendo a República Popular da China notificado o Secretário Geral da ONU em 19.0utubro.1999 da continuação da sua aplicação para além da data do estabelecimento da RAEM (cfr. Aviso do Chefe do Executivo n.º 5/2001, publicado no BO n.° 2/2001, II Série, de 10.Jan.2001, pág. 69) e a Lei Básica estabelecido a continuídade do direito anterior - arts. 8.º e 145.º do Lei Básica -, deve ser considerada com a mesma hierarquia anterior e, consequentemente, prevalecer sobre o referido artigo 8.º n.° 5 da Lei n.° 4/2003 na parte em que disponha ou seja interpretada no sentido feito pelo acto e acórdão recorridos;
l2.ª - Isto é, deve prevalecer sobre aquela norma na parte em que aqueles (acto e Acórdão) consideraram que o pedido de permanência para reunificação da criança com os trabalhadores não-residentes seus pais pelo tempo que estes ou algum destes permanecer em Macau só é procedível se estes forem "trabalhador não-residente especializado" (pois a parte em que dispõe "cuia contratação tenha sido do interesse da RAEM" nada interfere com a pretensão pois todas as contratações de residentes são feitas na prossecução do interesse público da RAEM e recusadas quando contrárias ou dispensáveis a tal interesse-cfr. normas supra) e improcedente quando se trate de crianças de trabalhadores não-residentes não especializados.
13.ª - Mesmo que a Convenção não fosse de hierarquia superior (que cremos sê-lo, por anterior à RAEM e ter sido mantida pelos cit. preceitos da Lei Básica e cit. notificação da ONU e inerente compromisso internacionalmente assumido pela RPC), ainda assim a esta Convenção prevaleceria quanto ao caso presente, aplicando-se aqueloutras normas à autorização de permanência de adultos do agregado familiar de trabalhadores não residentes que reunissem cumulativamente o alegado requisito da especialização laboral e interesse da RAEM e, esta Convenção, à autorização de permanência de membros crianças do agregado familiar, dado a Convenção ser lei especial em matéria de crianças (special lex, generalis derrogat) e suceder que esta estabelece a procedência do pedido sem a referida restrição em razão da contratação e tipo de estadia laboral que os pais gozam no Estado que recebeu o pedido de reunificação - a RAEM, China.
14.ª - E também andaram mal o acto e o Acórdão recorrido dados os meios de subsistência e amparo que a família aqui dispõe para si e para a criança;
15.ª - e porque não existem razões de ordem pública que afastem o disposto no cit. art. 10.º n.° 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança (que manda acatar "de forma positiva, com humanidade e diligência" os pedidos de reunificação familiar da criança com os pais) pois é patente que a permanência dos pais (e muito menos a da criança) atenta contra quaisquer valores de segurança e ordem pública, nem aumentam a população de Macau, dado o estatuto destes ser o de não-residentes recambiáveis logo que sejam contrários ou dispensáveis ao interesse da RAEM (cfr. normas in concl. 6.ª), a todo o tempo, e suceder que o pedido para aquela ser o de permanência indexada à de seus pais e com seus pais e, portanto, igualmente recambiável com seus pais a qualquer momento.
A Ex.ma Procuradora-Adjunta emitiu douto parecer no qual:
- Entende que não se deve conhecer da questão suscitada nas conclusões 9.ª a 15.ª, por terem os recorrentes suscitado questão nova;
- Considera que a recorrente não é trabalhadora especializada, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003.
II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
- em 25.01.2005, e por despacho do Exm.º Secretário para a Economia e Finanças, foi autorizada a contratação de A como trabalhadora não residente para o desempenho de funções de "assistente doméstica"; (cfr. fls. 86 a 88).
- em 22.04.2005, deu entrada no Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau um requerimento subscrito pela referida A, portadora do T.I.T.N.R. n° XXXXXX/XXXX, pedindo a autorização especial de permanência nesta R.A.E.M. de B, nascido em 29.09.1997, filho da requerente e de C, portador do T.I.T.N.R. n° XXXXXX/XXXX; (cfr. fls. 70 do proc. inst.).
- em 29.04.2005, por despacho do Comandante Substituto do C.P.S.P. foi o pedido indeferido; (cfr. fls. 68 a 69 do proc. inst.).
- notificada do assim decidido, apresentaram a requerente A e C, "recurso hierárquico" ao Exm.º Secretário para a Segurança, onde, para além de alegarem essencialmente que juntos dispunham de um rendimento mensal de MOP$l0.000,00, consideravam o mesmo suficiente para os seus encargos; (cfr. fls. 65 a 66).
- sobre o referido recurso elaborou-se a seguinte informação:
"Exm.º Senhor: Chefe do Serviço de Imigração:
1. O presente Comissariado recebeu em 02/06/2005 o requerimento submetido pelo casal trabalhador não-residente filipino A (requerente) e C em que solicitou a autorização da permanência em Macau do seu filho B para reunião familiar: Indeferido o pedido pelo presente Corpo da P.S.P., a interessada interpôs, no prazo legal, o recurso hierárquico ao Exm.º Sr: Secretário para a Segurança, no qual formulou os seguintes fundamentos, pedindo ao Exmo.º Sr. Secretário para a Segurança que seja autorizada a permanência do seu agregado familiar em Macau.
1) O casal aufere mensalmente (MOP$3.000,00 + 7.000,00) que basta para alimentar a família de três pessoas;
2) Como os avôs (da parte paterna) que vivam nas Filipinas, muito idosos e estando os parentes a morar demasiado longe do filho, não há ninguém que conseguia tomar conta deste, pelo que desejam que o filho possa viver junto com os pais em Macau e receber educação aqui.
3) O filho ao saber que não havia autorizado o pedido, ficava com - medo e chorava muito.
4) Os avôs (da parte materna) são residentes de Macau (portadores do BIR), além disso o avô ainda trabalha e vai dar ajuda no caso de haver dificuldade financeira.
2. O presente Comissariado, através da Informação n.° MIG. XXX/XXXX/XXX, relatou que esta trabalhadora não-residente A submeteu um requerimento ao nosso Serviço, pedindo que nos termos do artigo 8.º n.° 5 da Lei n.° 4/2003, seja autorizada a permanência em Macau do seu filho B.
3. Uma vez que a trabalhadora não-residente A trabalha como assistente doméstica, o Exm.º Senhor. Secretário para a Economia e Finanças antes determinou proferir parecer de "indeferimento" para o presente Corpo da P.S.P quanto à permanência do agregado familiar requerida pelo trabalhador doméstico não - residente ou assistente familiar e trabalhador não especializado. Por isso o director substituto do presente Corpo da P.S.P em 29/04/2005 indeferiu o requerimento de "autorização especial de permanência" em Macau do filho desta trabalhadora não-residente.
4. Em 20/05/2005 a trabalhadora não-residente A recebeu e assinou a notificação em que o seu requerimento de "autorização especial de permanência" em Macau do filho foi indeferido.
5. Tendo consultado as respectivas fichas, verifica-se que
1) A trabalhadora não-residente A é titular do seguinte Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente:
TNR
Data de emissão
Prazo de validade
Data de cancelamento
Entidade/ Empregador
Profissão
Tipo de despacho
1
XXXXXX/XXXX
04/03/2005
04/03/2006
----
D
Assistente doméstica
Não especializado
2) O seu marido C é titular do seguinte Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente:
TNR
Data de emissão
Prazo de validade
Data de cancelamento
Entidade/ Empregador
Profissão
Tipo de despacho
1
XXXXXX/XXXX
05/11/2006
31/03/2006
----
E
Guarda
Não especializado
3) O filho B nascido aos 29/09/1997 nas Filipinas, encontra-se actualmente permanecido em Macau na qualidade de visitante.
6. A trabalhadora não-residente A declarou que a família dela é composta por três elementos (ela própria e dois filhos).
7. Considerando que a trabalhadora não residente A não está conforme ao requisito consagrado no artigo 8.º n.° 5 da Lei n.° 4/2003: "trabalhador não-residente especializado, cuja contratação tenha sido do interesse da RAEM", para isso, venho submeter à consideração do superior quanto às ditas circunstâncias para, como se tratasse da situação particular, determinar se nos termos do art. 8.º n.° 5 da Lei n.° 4/2003 autoriza como se tratasse da situação particular; a permanência do filho B em Macau como agregado familiar da trabalhadora não-residente A."
- após parecer do Exm.º Comandante substituto da P.S.P. concordando com o informado, proferiu o Exm.º Secretário para a Segurança despacho datado de 29.06.2005, indeferindo o peticionado "nos termos e com os fundamentos do parecer e informação"; (cfr. fls. 62).
Este é o acto recorrido.
III – O Direito
1. As questões a apreciar
Nas conclusões 9.ª a 15.ª os recorrentes suscitaram questão nova, nunca antes abordada por eles, designadamente no recurso contencioso. Ora, os recursos jurisdicionais destinam-se a apreciar a bondade de uma decisão de que se recorre e não questões novas, a não ser em matéria de conhecimento oficioso, o que não é o caso.
Não se conhecerá, pois, de tal matéria.
A questão a apreciar é a de saber se a recorrente A deve ser considerada trabalhadora especializada, nos termos e para os efeitos do art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003.
2. Trabalhador especializado
A recorrente A requereu que, ao abrigo do art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003, fosse autorizada a permanência em Macau, de seu filho menor B.
A Lei n.º 4/2003 estabelece os princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
O art. 8.º trata da autorização especial de permanência na RAEM.
No seu n.º 5, dispõe que:
“5. A autorização de permanência do agregado familiar de trabalhador não-residente especializado, cuja contratação tenha sido do interesse da RAEM, é concedida pelo período pelo qual o referido trabalhador estiver vinculado, sob parecer da entidade competente para a autorização da contratação de mão-de-obra não-residente”.
O Acórdão recorrido considerou provado que a contratação da recorrente A, como trabalhadora não-residente, foi autorizada para o desempenho de funções de assistente doméstica.
No presente recurso jurisdicional, o Tribunal de Última Instância apenas conhece de matéria de direito (arts. 47.º, n.º 1 da Lei de Bases da Organização Judiciária e 152.º do Código do Processo Administrativo Contencioso), não lhe sendo lícito censurar a decisão de facto do Tribunal recorrido desde que, como é o caso, não tenha ocorrido violação de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (n.º 2 do art. 649.º do Código de Processo Civil).
O trabalhador especializado ou especialista é aquele que possui determinadas habilidades ou conhecimentos especiais em determinada prática, actividade, ramo do saber, ocupação ou profissão. Opõe-se ao trabalhador indiferenciado, que é o que não pratica uma actividade que exija conhecimentos ou habilidade particular.
Pois bem, uma assistente doméstica, também designada por ajudante familiar ou empregada doméstica, não pode ser considerada uma trabalhadora especializada, sendo, manifestamente, uma trabalhadora indiferenciada.
Nem se diga, como faz a recorrente, que, por ter sido contratada ao abrigo do Despacho n.º 49/GM/88, Boletim Oficial de 16 de Maio de 1988, tem de ser considerada trabalhadora especializada.
Não é assim. O mencionado Despacho ocupa-se da importação de mão-de-obra não-residente, quer se trate de trabalhadores especializados quer “de trabalhadores que, consideradas as condições do mercado de trabalho local, não se encontram normalmente disponíveis em Macau”. Daqui, decorre, portanto, que o Despacho n.º 49/GM/88 não se refere apenas à importação de trabalhadores não-residentes especializados.
E, tendo a recorrente sido contratada para trabalhar como assistente doméstica, não sendo trabalhadora especializada, bem andou o Acórdão recorrido ao considerar não lhe ser aplicável o disposto no art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003 e em negar provimento ao recurso contencioso.
IV - Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC.
Ao Ex.mo Patrono, atribui-se a quantia de MO$1,500,00 (mil e quinhentas patacas) a título de honorários no recurso jurisdicional.
Macau, 15 de Novembro de 2006.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei
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Processo n.º 38/2006