Processo n.º 187/2021
(Autos de recurso cível)
Data: 9/Setembro/2021
Recorrente:
- A (autora)
Recorrida:
- B (ré)
Objecto do recurso:
- Despacho que ordenou a suspensão da instância
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Inconformada com a decisão que decretou a suspensão da instância, interpôs a autora ora recorrente A recurso ordinário para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“A. O presente recurso é interposto do despacho proferido no passado dia 20 de Outubro de 2020, pelo Tribunal Judicial de Base de Macau a fls. 182 a 183 dos presentes autos que, nos termos do n.º 1 do artigo 223º do CPC, determinou a suspensão dos presentes autos pelo período de 3 meses e até que seja apurado o resultado dos procedimentos judiciais instaurados pela Ré, B.
B. Recorde-se que com a acção que constitui o objecto dos presentes autos procura a ora Recorrente, vir a ser declarada como única e legítima proprietária da fracção autónoma designada por XX, para habitação do prédio denominado “XX”, sito em Macau com os n.ºs 352 a 392 da Rua de Tai Lin, n.ºs 200 a 236 da Rua de Nam Keng, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXX, a folhas 22 verso do livro XXX, inscrito na matriz predial urbana sob o n.º XXX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa) (a “Fracção Autónoma”).
C. Para além disso, ora Recorrente pretende também que a ora Recorrida, seja condenada a reconhecer a propriedade da Recorrente sobre a dita Fracção Autónoma e que seja condenada a abster-se de praticar quaisquer actos que possam perturbar o gozo pleno da Fracção Autónoma.
D. Nesse sentido, a Recorrente peticionou no sentido de ser declarada ilegítima e ilegal a recusa da Recorrida em entregar a Fracção Autónoma de que a Recorrente é a única e legítima proprietária desde 17 de Janeiro de 2018, por virtude do falecimento do seu unido de facto, o Sr. C, anterior proprietário da Fracção Autónoma.
E. É que através de decisão proferida em 30 de Janeiro de 2019 nos autos de Inventário Facultativo que correram os seus termos pelo 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base de Macau sob o processo n.º CV1-18-0047-CIV e transitada em julgado em 21 de Fevereiro de 2019, a ora Recorrente foi declarada unida de facto do Sr. C e, como tal, a sua única herdeira, assim se tornando a actual, única e legítima proprietária da Fracção Autónoma.
F. Sucede que, na sua Contestação veio a ora Recorrida alegar serem falsas as declarações prestadas, sob juramento, pela ora Recorrente e por quatro testemunhas a propósito da relação de união de facto que existiu entre a Recorrente e o Sr. C, no âmbito dos supra referidos autos de Inventário Facultativo que correram os seus termos pelo 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base de Macau sob o processo n.º CV1-18-0047-CIV e cuja decisão transitou em julgado em 21 de Fevereiro de 2019.
G. De facto, a ora Recorrida alegou na sua Contestação ter apresentado uma denúncia junto do Gabinete do Procurador da RAEM, contra a ora Recorrente e as testemunhas no processo n.º CV1-18-0047-CIV, pela prática dos crimes de falsidade de depoimento e testemunho, ali juntando uma certidão extraída dos autos de inquérito criminal n.º 2339/2020, com o teor da referida denúncia.
H. Com a referida denúncia a Recorrida visa derrubar a decisão proferida nos referidos autos de Inventário, através da eventual interposição de um recurso extraordinário de revisão e a suspensão dos presentes autos até que sobrevenha uma decisão final no supra referido processo de natureza criminal.
I. Pelo que vem o despacho ora posto em crise considerar que a hipotética procedência do procedimento criminal acima referido, o consequente recurso extraordinário de revisão e a eventual necessidade de repetição de um processo de inventário, são circunstâncias que podem vir a ter influência nos presentes autos.
J. Consequentemente entendeu o tribunal a quo – mal, na modesta opinião da Recorrente – ser necessária a suspensão dos presentes autos pelo período de 3 meses, a qual se deverá manter em função do andamento dos eventuais processos judiciais aventados pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal Judicial de Base.
K. Trata-se de uma decisão com a qual a ora Recorrente não concorda e que, a manter-se viola a lei, prejudicando desproporcionadamente os presentes autos protelando ilimitada e indefinidamente a decisão dos mesmos, acarretando prejuízos para a Recorrente que se sobrepõem manifestamente aos “interesses” que a suspensão da instância visa acautelar.
L. Recorde-se que com os presentes autos pretende a ora Recorrente ver ser-lhe reconhecida a exclusiva propriedade sobre a Fracção Autónoma e que, como tal, seja a ora Recorrida condenada não só ao reconhecimento da propriedade por parte da Recorrente, mas que também seja condenada a abster-se de praticar actos que diminuam ou perturbem o gozo da Fracção Autónoma por parte da sua legítima (e registada) proprietária.
M. Para o efeito, a Recorrente alegou os factos aquisitivos do seu direito de propriedade sobre a referida Fracção Autónoma e que, em síntese, se reconduzem à aquisição da propriedade por virtude de ter sucedido ao seu anterior proprietário, o Sr. C, unido de facto que foi da Recorrente, conforme definitivamente resolvido nos referidos autos de inventário facultativo que correram termos sob o processo n.º CV1-18-0047-CIV.
N. Através de uma denúncia contra a Recorrente (e suas testemunhas), pretende agora a Recorrida, abalar a solidez do caso julgado nos supra referidos autos de inventário, desmantelando a adjudicação ali feita e “deserdando” a ora Recorrente, para, no final do dia, reclamar para si e seus irmãos a sucessão na titularidade da Fracção Autónoma objecto dos presentes autos, de que era proprietário o seu irmão.
O. Mas em bom rigor, não existe relação directa entre o eventual desfecho do processo de natureza criminal instaurado pela ora Recorrida e o objecto dos presentes autos.
P. É que admitindo-se, por hipótese, que o processo de natureza criminal avançava para lá da fase do inquérito (o que, até à presente data não sucedeu) e que a ora Recorrente viria a ser acusada da prática de um crime relacionado com as declarações prestadas no âmbito do referido processo de inventário, - o que por mera cautela de patrocínio se equaciona – certo é que, no limite, o desfecho do referido processo criminal apenas poderia fundamentar a interposição de um recurso extraordinário de revisão da decisão proferida naquele inventário.
Q. E mesmo com o trânsito em julgado da hipotética procedência do eventual recurso extraordinário de revisão, e mesmo se admitindo que o mesmo seria favorável à ora Recorrida, - hipótese que, uma vez mais, apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona – ter-se-ia de retomar o processo de inventário destinado à nova partilha da herança do Sr. C.
R. Por fim, apenas a decisão definitiva sobre um eventual “renovado” processo de inventário para partilha da herança do Sr. C, que fosse também favorável à ora Recorrida, poderia influenciar a titularidade da Fracção Autónoma e, bem assim, tornar-se prejudicial face aos presentes autos.
S. Ou seja, na óptica do tribunal a quo a verdadeira prejudicialidade dos presentes autos estaria, afinal de contas, dependente do resultado favorável à Recorrente de três consecutivos processos judiciais, a saber: de um eventual processo de natureza criminal, de um eventual recurso extraordinário de revisão e, na prática, de um novo processo de inventário.
T. Sendo que todos os supra referidos hipotéticos processos judiciais estarão também hipoteticamente sujeitos a fases de recurso que podem fazer protelar cada um deles por alguns anos.
U. Ressalvado o devido respeito pelo tribunal a quo parece-nos que de uma mera denúncia apresentada junto do Gabinete do Procurador da RAEM, em relação à qual a Recorrente nem sequer foi constituída arguida, se estão a extrair efeitos que vão muito para lá da influência que esse processos criminal poderia ter sobre os presentes autos e que, no limite, podem injustificadamente fazer depender os presentes autos de um conjunto de decisões que se arrastarão por vários anos.
V. É que a denúncia pela Recorrida apresentada e os presentes autos só muito longinquamente estão relacionados, dado que a eventual procedência do processo crime de forma alguma seria apta a, per si, alterar a titularidade (registada!) da Fracção Autónoma por parte da ora Recorrente que, nos presentes autos, se pretende apenas ver reivindicada e não prejudicada pela Recorrida.
W. Ademais, nem o eventual sucesso do processo criminal seria garantia do insucesso dos presentes autos dado que, entre eles, como se disse, estarão necessariamente envolvidos outros processos judiciais.
X. Tal como aconselhado pela boa doutrina acima citada, para que uma causa seja prejudicial em relação a outra, determinante é que a decisão de uma tenha uma influência directa e determinante na análise da outra, o que, nos parece óbvio não ser o caso dos presentes autos.
Y. Ou seja, a denúncia pela Recorrida apresentada é uma mera ameaça ao caso julgado que se formou no âmbito do referido processo de inventário facultativo, mas que nem por isso pode servir como causa apta a perturbar os presentes autos que, conforme se demonstrou, encontram-se longe do seu alcance.
Z. Com pertinência, veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 16 de Julho de 1971, «B.M.J.», 210º-179, em relação a legislação em tudo semelhante à vigente em Macau: “I – A instauração contra o autor de uma acção de despejo e várias das suas testemunhas de processo crime por perjúrio que teria determinado a resposta afirmativa ao quesito que versava a alegada sublocação para o exercício da prostituição não é fundamento para a suspensão da instância, nos termos dos artigos 97º, n.º 1 e 279º do Código de Processo Civil. II – Não se verifica, nesse caso, a prejudicialidade que, como ensina Alberto dos Reis, Comentário, vol. IV, pág. 206º, supõe que a procedência de uma das acções tira razão de ser à outra, e, mesmo que todos os arguidos fossem condenados pelo crime de perjúrio, daí não adviria que o autor carecesse do invocado direito à resolução do contrato. III – a prova da relação de causalidade entre o perjúrio e o erro de julgamento só pode ser feita em recurso de revisão de sentença, nos termos da alínea b) do artigo 771º do Código de Processo Civil. IV – Seria fatalmente inútil, para uma pretensa alteração das respostas do Colectivo, a possível condenação dos arguidos, e, consequentemente, a suspensão da instância não passaria, também, de uma segura inutilidade.”
AA. Ou seja, o sucesso ou insucesso do eventual processo de natureza criminal eventualmente desencadeado pela Recorrida jamais poderá ter influência sobre a reivindicação da Fracção Autónoma da Recorrente, nos presentes autos.
BB. Com a suspensão da instância nos termos do despacho ora em crise a ora Recorrente vê-se agora a braços com a frustrante possibilidade de, continuando a ser proprietária legítima e registada da Fracção Autónoma, não poder gozar plenamente o seu direito enquanto não sobrevenha uma série de decisões judiciais alheias aos presentes autos e que, no limite, não alterarão a titularidade da Fracção Autónoma.
CC. E isto por parte de alguém que, ao contrário do que sucede com a Recorrente não é o proprietário registado da Fracção Autónoma, mas que a utiliza e frui, sem qualquer título.
DD. Para do que se vem concluindo e independentemente da hipotética influência da denúncia apresentada pela Recorrida ser extremamente difusa em relação aos presentes autos (em face da demonstrada teia de processos necessários para os abalar), certo é que ainda que não fossem necessários todos aqueles processos judiciais para ameaçar a propriedade da Recorrente sobre a Fracção Autónoma, sempre se diria que o mero facto de se apresentar uma denúncia junto do Gabinete do Procurador da RAEM não vale como “causa já proposta” para efeitos de aplicação da suspensão da instância nos termos do n.º 1 do artigo 223º do CPC.
EE. É que encontrando-se ainda aquele processo criminal na fase de inquérito, crê a ora Recorrente não ser legal, que se determine a suspensão da instância tout court, dado que nada leva a crer com segurança que aquele inquérito termine com um despacho de acusação da Recorrente e que, como tal, o referido processo criminal se constitua como causa apta a fazer suspender os presentes autos.
FF. É que a suspensão ordenada nos termos do despacho de que ora se recorre, vai ditar a paralisação dos presentes autos até que surja uma decisão sobre o processo criminal de que a referida denúncia constituirá um possível rastilho.
GG. Pelo que não pode deixar de se verificar que a suspensão é manifestamente ilegal e injustificada, para mais se se tiver em consideração o facto de assentar num processo criminal cuja fase de inquérito mal começou.
HH. Ressalvado o enorme respeito pelo tribunal a quo “causa já proposta” não se pode confundir com uma “mera” denúncia sob pena de assim se criar uma válvula de escape que permite em nome da prejudicialidade perigar toda e qualquer acção cível que se venha a instaurar mediante participação da alegada ocorrência de um crime junto do Ministério Público.
II. A propósito, veja-se o decidido pelo Acórdão da Relação de Lisboa (9-7-1992) no âmbito do processo n.º 0061982: “É preciso que haja uma relação de dependência ou prejudicialidade entre a questão cível e a questão criminal para se suspender a instância ao abrigo do citado preceito. A simples participação ao Ministério Público ou à Polícia Judiciária não reveste, para fins do artigo 279º do Código de Processo Civil, a natureza de causa e, muito menos a de causa “já proposta”. Não é de suspender a instância na acção cível, imediatamente antes da organização da especificação e do questionário, se ainda não tiver sido instaurada a acção penal considerada prejudicial e estando apenas a correr processo de inquérito, pois os prejuízos da suspensão superam as vantagens.”
JJ. E ainda, igualmente pertinente, Acórdão da Relação de Luanda, proferido em 1 de Outubro de 1968 (em «Acórdãos da Relação de Luanda», 1968º-449): “A pendência de processo por pretenso crime conexo não acarreta a suspensão de acção de posse judicial avulsa fundada no título translativo da propriedade e nem a própria acção de anulação deste título teria tal virtualidade por não serem dependentes os respectivos julgamentos.”
KK. Pelo que se considera que muito mal andou o tribunal a quo ao precipitadamente determinar a suspensão dos presentes autos até uma eventual decisão do processo criminal.
LL. Em face do exposto não pode deixar de se considerar que a suspensão da instância ordenada pelo despacho de que ora se recorre acarreta prejuízos para a Recorrente que superam manifestamente quaisquer eventuais vantagens legítimas que da referida suspensão se pudessem retirar.
MM. Desde logo, recorde-se que a propriedade da Fracção Autónoma encontra-se definitivamente registada a favor da ora Recorrente, por virtude, como se referiu, de a ter adquirido por via sucessória do seu anterior proprietário – o Sr. C.
NN. Pelo que, por força da aplicação do artigo 7º do Código do Registo Predial, é a Recorrente quem agora beneficia da presunção de ser a titular do direito de propriedade sobre a referida Fracção Autónoma.
OO. Sabe-se que o direito de propriedade atribui ao seu titular, neste caso a ora Recorrente, a faculdade de gozar de modo pleno e exclusivo (d)os direitos de uso, fruição e disposição das coisas – ius utendi, fruendi et abutendi.
PP. Ora, em face de tudo o que já se expôs parece resultar que não obstante o destino da denúncia que deu origem ao despacho ora em crise (que ordenou a suspensão dos presentes autos), certo é que um eventual processo criminal a que aquela pudesse dar origem não seria de per si, apto a produzir qualquer modificação na titularidade da Fracção Autónoma.
QQ. Ou seja, ainda que o referido processo criminal viesse a ser decidido em benefício da Recorrida – hipótese que apenas por cautela de patrocínio se concebe -, a Recorrente manter-se-ia sempre proprietária da Fracção Autónoma.
RR. É que conforme se demonstrou supra apenas na remota hipótese de vingarem todos os eventuais processos judiciais acima referidos, poderia a propriedade da Fracção Autónoma deixar de pertencer à Recorrente.
SS. Dado que a denúncia apresentada pela Recorrente se encontra ainda numa fase embrionária, mesmo se admitindo – por mera cautela de patrocínio – que o processo criminal “tem pernas para andar” e se desenvolveria para além da fase do inquérito (e eventual instrução), então será razoável supor que não surja uma decisão final (incluindo as eventuais fases de recurso da decisão que venha a ser proferida em primeira instância) sobre o dito processo, em menos de 3 anos.
TT. Depois, recorde-se que o sucesso ou insucesso do processo criminal seria sempre irrelevante para a causa que se discute nos presentes autos, uma vez que apenas após o eventual recurso extraordinário de revisão e hipoteticamente a repetição/renovação da partilha da herança do Sr. C, poderiam os presentes autos ficar condicionados por uma causa prejudicial.
UU. Convém não olvidar que, nos termos do n.º 3 do artigo 661º o recurso extraordinário de revisão não só está sujeito a prazo, como admite também o recurso ordinário a que estariam originariamente sujeitas (as decisões) no decurso da acção em que foi proferida sentença impugnada.
VV. Pelo que, é também razoável supor que o eventual processo de recurso extraordinário de revisão (comportando as eventuais fases de recurso) não se resolva definitivamente em menos de 2 anos.
WW. Recorde-se, com relevância para o presente argumentário que o recurso de revisão não tem efeito suspensivo, pelo que também durante este hipotético futuro processo judicial, a decisão proferida nos autos de inventário manter-se-ia, pelo que a propriedade da Fracção Autónoma se conservará na esfera jurídica da ora Recorrente.
XX. E mesmo admitindo, por hipótese, que as eventuais decisões finais proferidas no eventual processo criminal e no eventual recurso extraordinário de revisão são favoráveis à ora Recorrida, mesmo assim, para que a propriedade da Fracção Autónoma pudesse ser discutida e eventualmente modificada seria necessário que a causa (leia-se, o inventário facultativo) fosse novamente instruída e concluída.
YY. Pelo que se julga ser razoável supor que a repetição/renovação do processo de inventário (com eventuais fases de recurso) se prolongue também por um certo prazo.
ZZ. Mas mais, nem a repetição/renovação do processo de inventário por óbito do Sr. C implica que a ora Recorrente deixe de ser proprietária da Fracção Autónoma, dado que nele pode muito bem voltar a provar-se e concluir-se que a Recorrente foi efectivamente unida de facto do falecido e, portanto, é a sua única herdeira.
AAA. Em face de tudo o exposto, crê a ora Recorrente que a violência imposta pela suspensão da instância nos presentes autos é manifestamente ilegal, dado que (i) não só a denúncia apresentada pela ora Recorrida não constitui uma “causa já proposta” para efeitos de aplicação do n.º 1 do artigo 223º do CPC, como (ii) jamais poderia o hipotético processo de natureza criminal emergente da referida denúncia valer como causa prejudicial em relação aos presentes autos.
BBB. Com efeito, sem que nunca a Recorrente deixe de ser proprietária (inscrita no registo!) da Fracção Autónoma, vê-se forçada a não poder lutar pelo direito de gozar de modo pleno o referido imóvel, enquanto passam pelo menos 7 anos da sua vida.
CCC. Podendo ainda dar-se o caso de no final de todos estes hipotéticos pleitos judicias, se chegar à irónica conclusão de que – como a Recorrente sabe ser verdade – afinal a Recorrente é, e sempre foi a única legítima herdeira do Sr. C.
DDD. Conforme alegado na sua petição inicial, que a privação do gozo pleno da sua própria Fracção Autónoma, acarreta evidentemente prejuízos económicos para a Recorrente.
EEE. Enquanto perdurar a suspensão dos presentes autos e, consequentemente, enquanto perdurar a ocupação ilegítima da Fracção Autónoma por parte da Recorrida, fica a Recorrente impedida de a dar de arrendamento, vendo-se assim privada de auferir a respectiva renda mensal.
FFF. Pelo que, a suspensão da instância nos termos em que foi ordenada pelo despacho ora em crise, para além de legalmente inadmissível é absurda, prejudica efectivamente a Recorrente, perturbando injustificadamente o gozo do seu direito de propriedade, coarctando-lhe, para além do mais, evidentes vantagens económicas.
GG. Em suma, deve a referida decisão do tribunal a quo ser revogada por se encontrar viciada de ilegalidade e deve, por essa razão, ser revogada com fundamento nos termos apresentados no presente recurso.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente deve ser revogado o despacho ora em crise.
Só assim se fazendo a habitual e acostumada JUSTIÇA!”
*
Devidamente notificada, respondeu a ré ora recorrida, pugnando pela negação de provimento ao recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Findos os articulados, pelo tribunal recorrido foi dada a seguinte decisão:
“在本案中,被告請求中止本案訴訟程序,理由是被告已刑事檢舉本案原告連同另外四名人士於財產清冊卷宗CV1-18-0047-CIV內提供虛假的聲明,認為原告誤導法庭,致使法庭採信原告與被繼承人C之間具有事實婚關係,最終使本案原告能繼受被繼承人的全數遺產,並成為本案討論不動產(獨立單位“R10”)登記上的所有人(見卷宗第29頁)。
被告認為,一旦透過相關刑事裁判確認原告的上指犯罪行為,被告將以此為據針對財產清冊卷宗CV1-18-0047-CIV內的已轉為確定的判給判決提起再審上訴,而一旦再審上訴理由成立,原告即失去作為獨立單位“R10”的所有人地位,倘不具所有人的身份,原告亦失去提起本訴訟的正當性,故被告認為本案的審理取決上述一系列的司法裁判,應中止本案訴訟程序,並等待刑事案件的結果,乃至日後提起的再審上訴的結果。
原告反對被告的立場,認為即使刑事案件的結果為有罪裁判,亦不等於原告因此失去所有權人的身份。
現須審理有關問題。
事實上,根據被告在答辯提出的理由,被告之所以提出刑事檢舉,是希望在日後針對財產清冊卷宗CV1-18-0047-CIV內的判給裁決提起再審上訴。
根據《民事訴訟法典》第653條b項的規定,再審上訴得以經判決確認陳述或證言屬虛假為依據提起,只要將予再審之裁判可能因該虛假情況而作出。
經審閱財產清冊卷宗CV1-18-0047-CIV的案件材料(見卷宗第111頁至第181頁),可以發現法院在該卷宗內向本案原告(該案的待分割財產管理人)作出財產判給的理由是認定本案原告與被繼承人C存有多年的事實婚關係。
而作出上述認定的主要原因是採信了本案原告的聲明,以及該案證人D、E、F和G的證言,所以,一旦該等人士的證供被刑事判決裁定為虛假(以原告和C沒有事實婚關係為理由),可以合理預見本案原告將失去繼承C遺產的資格,因為C尚有生存的旁系血親。
上述結果都會成為日後提起再審上訴的有力依據,一旦再審上訴理由成立,定必導致財產清冊程序須重新進行,不論最終遺產分割結果為何(其中一種可能是本案被告也被確認為被繼承人的其中一位合法繼承人),都會影響對本案實體問題的審理,甚至可以説本案的審理受以上一系列的司法審判活動結果所約束。
雖然相關刑事案件的結果不能被視為具直接關係的先決問題,但透過上述的分析可知,本案的審理是同時取決刑事案件、倘有的再審上訴、以及倘再審成立後須重新進行的財產清冊程序結果。
綜上所述,法庭認為有中止本案的需要,現決定根據《民事訴訟法典》第223條第1款的規定,命令中止本案訴訟程序3個月,以逐一等待上指司法程序的結果,期間屆滿後,通知被告向法庭告知有關司法程序的進度和結果,並視乎情況,決定是否繼續維持中止訴訟程序。
作出通知及採取適當措施。”
*
Decidiu o tribunal recorrido suspender a instância por três meses, findo o prazo irá ponderar novamente, consoante o caso, se vai haver lugar a prorrogação da suspensão.
Prevê o n.º 1 do artigo 223.º do CPC que “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”
Como observamCCCândida Pires e Viriato de Lima, “pode dizer-se que existe entre duas causas uma relação ou nexo de dependência quando a decisão de uma delas depende do julgamento da outra, ou pode ser por ele decisivamente influenciada; ou, por outras palavras, verifica-se uma relação de dependência quando a decisão de uma acção (a dependente) é atacada ou afectada pela decisão emitida noutra (a prejudicial); ou ainda, quando na causa prejudicial se discutir questão cuja decisão pode destruir o fundamento ou razão de ser da causa dependente/subordinada”.1
Nesse aspecto, o legislador não confere ao tribunal um poder discricionário, mas sim um poder legal limitado, dominado por razões de conveniência tendo em vista a economia e coerência dos julgamentos.2
No caso dos autos, a ré ora recorrida alegou na sua contestação ter apresentado uma denúncia junto do Gabinete do Procurador da RAEM contra a autora ora recorrente e as testemunhas que prestaram depoimento no âmbito do processo CV1-18-0047-CIVC, pela prática de crimes de falsidade de depoimento e testemunho.
Mais precisamente, vem dizer a ré ora recorrida que as declarações prestadas, sob juramento, pela recorrente e pelas testemunhas a propósito de união de facto que existiu entre a recorrente e o Sr. C, no âmbito do referido processo de inventário facultativo, eram falsas, e cuja decisão já transitou em julgado.
Daí que a recorrida veio pedir a suspensão da instância, esperando que o acima referido processo de crime venha proceder para, posteriormente, interpor um recurso extraordinário de revisão e, finalmente, repetir a tramitação do processo de inventário.
Em boa verdade, não obstante a decisão resultante do procedimento criminal poder ter algum efeito, mas não podemos deixar de assinalar que aquele efeito não é imediato, antes bastante remoto ou longínquo.
Melhor dizendo, a procedência do processo de crime apenas permite demonstrar que o recorrente ou as testemunhas prestaram falso depoimento, mas essa situação não implicará necessária e directamente a nulidade de toda a tramitação do processo de inventário, uma vez que o interessado ainda terá que intentar um recurso extraordinário de revisão, e quando este proceder é que poderá repetir a tramitação do processo de inventário.
Face ao alegado pela ré ora recorrida, entendemos que existe entre a presente acção e o procedimento criminal uma relação ou nexo de dependência, na medida em que a decisão dos presentes autos, ou seja, indagar se a autora ora recorrente é a única e legítima proprietária da fracção autónoma e se a ré ora recorrida está a ocupar ilegitimamente aquela fracção e se é obrigada a restituí-la à recorrente, não depende definitivamente do julgamento daquele procedimento criminal nem pode ser por ele decisivamente influenciada.
A nosso ver, a intenção do legislador é permitir a suspensão quando a decisão da causa está dependente do julgamento de outra (causa) já proposta.
No caso dos autos, é bom de ver que a decisão da causa está dependente do resultado favorável à ré ora recorrida de três processos judiciais consecutivos, a saber: um processo criminal, um recurso extraordinário de revisão e um novo processo de inventário.
Em bom rigor, a situação dos autos está longe de integrar-se na previsão do n.º 1 do artigo 223.º do CPC, aliás, podemos observar que tanto o eventual recurso extraordinário de revisão como o suposto novo processo de inventário ainda não se encontram propostas, pelo que, salvo o devido e mui respeito, entendemos que verificado não está o pressuposto de que depende a suspensão da instância.
Mesmo que assim não entenda, igualmente não assiste razão à ré ora recorrida quanto ao pedido de suspensão da instância, pois estatuindo-se no n.º 2 do artigo 223.º do CPC que “Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as suas vantagens.” – sublinhado nosso
No caso vertente, a autora intentou uma acção alegando ser a verdadeira e única legítima proprietária da fracção autónoma, entretanto a mesma se encontrava ocupada pela ré, tendo esta se recusado a proceder à entrega da fracção à autora livre de pessoas e devoluta de bens.
Não obstante a ré ora recorrida ter apresentado uma denúncia alegando serem falsas as declarações prestadas pela recorrente e pelas testemunhas no processo de inventário, a verdade é que esse processo criminal ainda se encontra numa fase inicial, não sendo justo que a autora ora recorrente, sendo proprietária da fracção autónoma em causa face à presunção derivada do registo, estaria privada do seu gozo pleno por tempo indeterminado, em virtude de prosseguimento de todos os eventuais processos a interpor pela ré ora recorrida.
Isto posto, mesmo que se entenda estar verificado o pressuposto da suspensão da instância previsto no n.º 1, somos a concluir que os prejuízos da suspensão são muito superiores do que as suas vantagens, pelo que não há lugar a suspensão, ao abrigo do n.º 2 do artigo 233.º do CPC.
Procedem, assim, as razões da recorrente.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pela recorrente A, revogando a decisão recorrida que concedeu a suspensão da instância formulada pela recorrida B.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.
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RAEM, 9 de Setembro de 2021
Tong Hio Fong
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong
1 Cândida Pires e Viriato de Lima, Código de Processo Civil de Macau Anotado e Comentado, Volume II, pág. 81
2 Obra citada, pág. 80
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Recurso Cível 187/2021 Página 20