Processo nº 84/2021 Data: 23.06.2021
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”.
Pena.
Circunstâncias favoráveis.
Redução da pena.
SUMÁRIO
1. Em “matéria de pena”, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena, (alterando-a), apenas e tão só quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, pois que o recurso não visa, nem pretende eliminar, a imprescindível margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de julgamento.
2. Verificando-se porém que na fixação da medida da pena não se deu adequada relevância a determinada matéria de facto provada favorável ao recorrente – v.g., “intensidade do dolo”, “fins que terminaram a prática do crime” e à “situação de carência económica” – justo e adequado se mostra uma redução da pena aplicada.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 84/2021
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A e B, (1ª e 2ª) arguidas, naturais da Guiné Conacri, e com os restantes sinais dos autos, vieram recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 29.04.2021, (Proc. n.° 275/2021), que confirmou anterior veredicto do Tribunal Judicial de Base proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR4-20-0302-PCC que as condenou como autoras materiais da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção resultante da Lei n.° 10/2016, na pena de 12 anos e 6 meses e 13 anos de prisão, respectivamente; (cfr., fls. 391 a 404, 419 a 425 e 411 a 418 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Após resposta do Ministério Público pugnando pela integral confirmação do decidido, (cfr., fls. 427 a 430 e 431 a 434), e remetidos os autos a esta Instância, em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer, opinando, também, no sentido da improcedência dos recursos; (cfr., fls. 412 a 412-v).
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Adequadamente processados os autos, e nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados nos Acórdãos do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância, (cfr., fls. 312-v a 315 e 396-v a 399-v), e que aqui se dão como integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, (notando-se que, adiante, aos mesmos será feita adequada referência).
Do direito
3. Vêm as referidas (1ª e 2ª) arguidas recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a (também já aludida) “decisão condenatória” do Tribunal Judicial de Base.
Entendem – tão só – que “excessiva” é a pena que lhes foi aplicada, batendo-se pela sua redução, e pedindo a recorrente A uma pena não superior a 8 anos de prisão; (cfr., fls. 419 a 425 e 411 a 418).
Impugnada não estando a “decisão da matéria de facto”, (que também não temos motivos para alterar), e da mesma resultando, claramente, que a “conduta” das recorrentes – surpreendidas à chegada ao Aeroporto Internacional de Macau com 54 e 76 embalagens de “Cocaína”, (cfr., fls. 18 e 51) – integra os elementos objectivos e subjectivos do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” pelo qual foram condenadas, vejamos.
Ao dito crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” pelas recorrentes cometido cabe a pena (abstracta) de 5 a 15 anos de prisão; (cfr., art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009 com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016).
Como sabido é, a “determinação da medida concreta da pena”, é tarefa que implica a ponderação de vários aspectos.
Desde logo, importa atentar que nos termos do art. 40° do C.P.M.:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
Sobre a matéria preceitua também o art. 65° do mesmo código que:
“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena”.
No caso, atento o que essencialmente dizem as ora recorrentes, constata-se que, de relevante, invocam a sua “primo-delinquência”, alegando, também, que “confessaram livre, integralmente, e sem reservas, os factos que lhes eram imputados”.
Porém, tendo sido detidas em “flagrante delito” (à chegada a Macau), pouco valor atenuativo se pode atribuir à alegada “confissão”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 31.10.2018, Proc. n.° 71/2018 e de 19.06.2019, Proc. n.° 49/2019).
Por sua vez, sendo as ditas recorrentes (A e B) nascidas a 11.06.1992 e 02.08.1995, e tendo, assim, à data dos factos, (17.02.2020), cerca de 27 e 24 anos de idade, respectivamente, o mesmo sucede com a sua invocada “primo-delinquência”.
E, assim, tendo presente a “factualidade” dada como provada, de onde resulta, nomeadamente, que as ora recorrentes, agindo em conformidade com um plano previamente traçado por um grupo não identificado de pessoas, viajaram da Etiópia – Bangkok e depois – para Macau, onde vieram a ser detidas à chegada ao Aeroporto Internacional de Macau com um total de 670,7g e 919,8g de “Cocaína”, respectivamente, acondicionados em 54 e 76 embalagens que ingeriram e eram assim transportadas nos seus corpos, que dizer das penas que lhes foram aplicadas?
Pois bem, como se viu, na completa ausência de qualquer “circunstância” que permita considerar a situação em questão como “excepcional” ou “extraordinária”, motivos não existem para qualquer “atenuação especial da pena” ao abrigo do art. 66° do C.P.M..
De facto, tratando desta “matéria” tem-se entendido que a figura da “atenuação especial da pena” surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.
E como repetidamente temos vindo a considerar, “A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais” – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020 e de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020; mostrando-se de consignar, igualmente, que inverificados também estão os necessários pressupostos legais do art. 18° da Lei n.° 17/2009 para qualquer “atenuação especial” ao abrigo deste normativo, pois que, como se tem decidido: “Para efeito de atenuação especial da pena prevista no art.º 18.º da Lei n.º 17/2009, só tem relevância o auxílio concreto na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis do tráfico de drogas, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações, ou seja, tais provas devem ser tão relevantes capazes de identificar ou permitir a captura de responsáveis de tráfico de drogas com certa estrutura de organização, com possibilidade do seu desmantelamento”, cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 30.07.2015, Proc. n.° 39/2015, de 30.05.2018, Proc. n.° 34/2018, de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020, de 30.10.2020, Proc. n.° 165/2020 e de 27.11.2020, Proc. n.° 193/2020).
Por sua vez, há que se ter presente que, como temos afirmado, com o recurso não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020 e de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021).
Ora, a “factualidade provada” revela que as recorrentes desenvolveram uma conduta onde não se pode desconsiderar as (bastante impressionantes) “quantidades” e “natureza” do estupefaciente que a mesma envolveu, (tendo sido surpreendidas a entrar em Macau com 670,4g e 919,8g – respectivamente – de “Cocaína”, perfazendo, em conjunto, uma quantidade líquida superior a “1 Kilo e meio da Cocaína”), “directo” sendo o seu dolo e (extremamente) elevado o grau de ilicitude da sua conduta, (muito) fortes sendo, igualmente, as necessidades de prevenção criminal, (face aos graves malefícios e prejuízos que o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” em questão causa à saúde pública).
E como já se referiu, em “matéria de pena”, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena, (alterando-a), apenas e tão só quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, pois que o recurso não visa, nem pretende eliminar, a imprescindível margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de julgamento.
Com efeito, de forma repetida e firme temos vindo a entender que “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”; (cfr., v.g., Ac. de 07.04.2018, Proc. n.° 27/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 68/2019 e de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020).
Dest’arte, revelando-se pela decisão recorrida, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, imperativa é a confirmação da pena aplicada; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. deste Tribunal de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015 e de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I).
In casu, cremos que devida e adequada relevância não foi dada a determinada “matéria de facto” que do julgamento efectuado resultou provada.
Com efeito, “provado” está que as recorrentes desenvolveram a conduta em questão por estarem em “dificuldades económicas”, (cfr., factos referenciados com os números 3° e 4°), o que implica que se deva ponderar, igualmente, sobre a “intensidade do – seu – dolo” na prática do crime, assim como sobre os “fins e motivos que o determinaram”; (cfr., art. 65°, n.° 2, al. b), c) e d) do C.P.M.).
Por sua vez, retira-se também da factualidade do julgamento efectuado dada como provada, que as ora recorrentes foram “recrutadas” para a prática do crime dos autos por “indivíduos organizados” que, “controlando (à distância) todos os seus movimentos”, (v.g., quanto ao seu itinerário, aquisição de bilhetes de avião, reserva de quartos em hotéis, etc…), fazem da referida “situação de carência” em que se encontravam uma oportunidade para “dominar a situação”, não sendo de se olvidar, outrossim, que o método pelas recorrentes utilizado para “transportar a droga” – denominado de “body packers” ou “swallowers” – acarreta, directamente, para as mesmas, grandes riscos para a sua saúde, inclusivé, de morte, o que não deixa de evidenciar a “situação de aflição” em que se encontravam para aderir a tal plano e para o levarem a cabo em troca de quantias monetárias irrisórias; (cfr., v.g., sobre o tema, Stephen Traub, Robert Hoffman e Lewis Nelson in, “Body Packing — The Internal Concealment of Illicit Drugs”, “The New England Journal of Medicine”).
Em face do que se deixou exposto, e afigurando-se-nos que se não deve aligeirar as referidas “circunstâncias”, adequado se nos apresenta uma redução – de 1 ano e 6 meses de prisão – nas respectivas penas que lhes foram aplicadas, ficando as recorrentes condenadas nas seguintes penas:
- A – em 11 anos de prisão; e,
- B – em 11 anos e 6 meses de prisão.
Outra questão não havendo a apreciar, resta decidir como segue.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso da (1ª) recorrente A, (dado que pedia uma pena não superior a 8 anos de prisão), julgando-se procedente o da (2ª) recorrente B, ficando as mesmas condenadas nas penas de 11 anos e 11 anos e 6 meses de prisão, respectivamente.
Pelo seu decaimento, pagará a (1ª) recorrente A a taxa de justiça de 2 UCs.
Honorários aos Exmos. Defensores das arguidas no montante de MOP$3.500,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 23 de Junho de 2021
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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