Processo nº 76/2021 Data: 30.07.2021
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Providência Cautelar Comum.
Divórcio.
Arrolamento.
Posição jurídica do cônjuge meeiro em participação social.
SUMÁRIO
Atento o estatuído em matéria de “administração dos bens comuns do casal”, assim como em relação aos “efeitos patrimoniais do divórcio”, (cfr., art. 1543°, 1546° e 1644° do C.C.M.), e decretado estando o “arrolamento” dos bens comuns, com a sua relação, tendo aquele como causa, razões não existem para se acolher um novo pedido no sentido de se decretar uma outra providência (comum) que pode bloquear totalmente a actividade das sociedades em que apenas o requerido é sócio.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 76/2021
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por apenso aos Autos de Divórcio Litigioso no Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base registado como Processo n.° FM1-17-0202-CDL, propôs, a Autora, A (甲), procedimento cautelar contra o Réu, B (乙), ambos com os sinais dos autos, onde, oportunamente, (e na parte que agora interessa), se veio a decidir:
“1. Proibir o requerido de praticar, sem notificação prévia à requerente, qualquer acto de alienação dos bens empresariais pertencentes ao património comum do casal ou de constituição de ónus;
2. Qualquer acto praticado ou contrato celebrado pelo requerido em desrespeito do ponto anterior não produz efeito em relação à requerente;
3. Notificar as conservatórias do Registo para recusarem o registo pretendido pelo requerido quando se verifique a violação do descrito no primeiro ponto”; (cfr., fls. 263 a 272 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o requerido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 10.02.2021, (Proc. n.° 1126/2020), concedeu provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida; (cfr., fls. 283 a 302).
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Do assim decidido, recorreu a requerente para este Tribunal de Última Instância, pedindo a revogação do referido Acórdão e a manutenção da decisão do Juízo de Família e de Menores; (cfr., fls. 313 a 317-v).
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Após resposta do requerido, (cfr., fls. 330 a 341), foram os autos remetidos a esta Instância.
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Adequadamente processados, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Está provada a seguinte matéria de facto:
“1. A requerente e o requerido celebraram matrimónio em Macau a 16 de Setembro de 1994, sem convenção antenupcial.
2. Em 24 de Novembro de 2017, a requerente intentou neste Tribunal acção de divórcio litigioso.
3. O Tribunal proferiu decisão em 24 de Janeiro de 2019.
4. Inconformado, o requerido interpôs recurso para o TSI, onde o processo se encontra pendente.
5. A requerente instaurou contra o requerido, em 6 de Dezembro de 2017, acção de arrolamento. Em 18 de Dezembro do mesmo ano, este Tribunal tomou decisão, deferindo apenas a elaboração da relação dos bens comuns do casal.
6. No supra mencionado processo de arrolamento, foi elaborada a relação dos bens comuns do requerente e requerido, incluindo as seguintes acções de empresas detidas pelo requerido:
1) O requerido e a [Sociedade(1)] ([公司(1)]) (doravante designada por [Sociedade(1)]) são, respectivamente, titulares de 79% e 21% das participações sociais na [Sociedade(2)] ([公司(2)]) (doravante designada por [Sociedade(2)]); o requerido é titular de 100% das acções da [Sociedade(1)]
2) O requerido detém 75% do capital social da [Sociedade(3)] ([公司(3)]) (doravante designada por [Sociedade(3)]).
3) O mesmo possui 50% das acções da sociedade limitada “[SOCIEDADE(4)]”.
4) Ele é titular de 100% das acções da [Sociedade(5)] ([公司(5)]) (doravante designada por [Sociedade(5)]).
5) É titular de 90% do capital social da [Sociedade(6)] ([公司(6)]) (doravante designada por [Sociedade(6)]), sendo o restante 10% detido pela requerente.
6) O requerido detém 60% das participações sociais na [Sociedade(7)] ([公司(7)]) (doravante designada por [Sociedade(7)]).
7) O requerido e a requerente possuem, respectivamente, 10% e 40% do capital social da sociedade limitada “[SOCIEDADE(8)]”.
8) O requerido é titular de 100% do capital social da [Sociedade(9)] ([公司(9)]) (doravante designada por [Sociedade(9)]).
9) O requerido é titular de 100% do capital social da [Sociedade(10)] ([公司(10)]) (doravante designada por [Sociedade(10)]).
10) O requerido é titular de 100% do capital social da [Sociedade(11)] ([公司(11)]) (doravante designada por [Sociedade(11)]).
11) O requerido é titular de 100% do capital social da [Sociedade(12)] ([公司(12)]) (doravante designada por [Sociedade(12)]).
12) O requerido é titular de 48,3% do capital social da [Sociedade(13)] ([公司(13)]) (doravante designada por [Sociedade(13)]).
13) O requerido é titular de 40% do capital social da [Sociedade(14)] ([公司(14)]) (doravante designada por [Sociedade(14)]).
14) O requerido é titular de 100% das acções da [Sociedade(15)] ([公司(15)]) (doravante designada por [Sociedade(15)]), com o valor nominal de 30.000 patacas.
15) O requerido é titular de 100% das acções da [Sociedade(16)] ([公司(16)]) (doravante designada por [Sociedade(16)]), com o valor nominal de 30.000 patacas.
16) O requerido é titular de 100% das acções da [Sociedade(17)] ([公司(17)]) (doravante designada por [Sociedade(17)]), com o valor nominal de 30.000 patacas.
17) O requerido é titular de 100% das acções da [Sociedade(18)] ([公司(18)]) (doravante designada por [Sociedade(18)]).
7. As supra mencionadas empresas, das quais o requerido é accionista único ou maioritário, possuem diversos activos de valor consideravelmente elevado, tais como bens imóveis e direitos a aproveitamento de terreno.
8. Em 26 de Março de 2020, o requerido alineou a favor da [Sociedade(19)] (doravante designada por [Sociedade(19)]), pelo preço de 60.000.000 de dólares de Hong Kong, as acções da [Sociedade(2)], com o valor nominal de 25.000 patacas, detidas pela [Sociedade(1)], cujo capital social é inteiramente detido pelo requerido (vide fls. 13 a 16 dos autos).
9. Em 2 de Abril de 2020, o requerido, aproveitando-se da sua qualidade de accionista de controlo da [Sociedade(10)], vendeu o direito de propriedade sobre um terreno situado no [Endereço(1)] à [Sociedade(20)] ([公司(20)]) (doravante designada por [Sociedade(20)]), pelo preço de 2.400.000 de dólares de Hong Kong (vide fls. 17 a 21 dos autos).
10. Em 2 de Abril de 2020, o requerido, aproveitando-se da sua qualidade de accionista de controlo da [Sociedade(9)], vendeu o direito de propriedade sobre um terreno situado na [Endereço(2)] à [Sociedade(21)] ([公司(21)]) (doravante designada por [Sociedade(21)]), pelo preço de 2.700.000 de dólares de Hong Kong (vide fls. 22 a 26 dos autos).
11. Em 3 de Abril de 2020, o requerido, aproveitando-se da sua qualidade de accionista de controlo da [Sociedade(11)], da [Sociedade(12)] e da [Sociedade(22)] ([公司(22)]) (doravante designada por [Sociedade(22)]), vendeu o direito de aproveitamento dum terreno possuído pela [Sociedade(22)] e sito na [Endereço(3)] à [Sociedade(23)] ([公司(23)]) (doravante designada por [Sociedade(23)]), pelo preço de 68.000.000 de dólares de Hong Kong.
12. O requerido é o único accionista da [Sociedade(1)], [Sociedade(10)], [Sociedade(9)], [Sociedade(11)] e [Sociedade(12)] (fls. 35 a 79 dos presentes autos), e detém, através das faladas empresas, a [Sociedade(2)] e a [Sociedade(22)], das quais é o único membro da administração (vide fls. 80 a 101 dos autos).
13. Em 3 de Janeiro de 2018, o requerido procedeu à alteração aos estatutos das supra mencionadas empresas, adicionado “a alienação das acções deve ser consentida pelo accionista B, que concorda em ter a primeira preferência” e “estão sujeitos ao consentimento de B os seguintes actos: nomeação e exoneração do membro do órgão administrativo, altercação do estatuto da empresa, alienação de bens sociais e constituição de encargos sobre estes” (fls. 35 a 94 dos autos).
14. Em 4 de Janeiro de 2018, o requerido alterou o artigo 9.º do estatuto da [Sociedade(22)] no sentido de referir expressamente que as duas accionistas/pessoas jurídicas [Sociedade(11)] e [Sociedade(12)] são representadas por B (fls. 95 a 101 dos autos).
15. A requerente não conseguiu ter acesso às contas das atrás mencionadas empresas, nem teve meio de saber ou impedir os supra aludidos actos do requerido.
(II) Na fase de oposição, ouvidas as testemunhas do requerido, C (丙), D (丁) e E (戊), e analisados os autos, é dado como provado o seguinte factualismo:
1. Da lista que a requerente junta como fls. 9 a 12v com o requerimento inicial pertencente a diferentes sociedades, resulta que apenas 4 dos mais de 202 bens integrantes dessa lista foram alienados.
2. Relativamente à participação do requerido de MOP60.000 no capital da [Sociedade(2)] (doravante “[Sociedade(2)]”), com a matrícula na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis (CRCBM) n.º XXXX SO, a que corresponde a inscrição n.º XT.1/XXXXXXXX, o requerente (sic) figura como “solteiro”, cfr. fls. 80 junto com o requerimento inicial da requerente.
3. A referida inscrição n.º XT.1/XXXXXXXX (DE CONSTITUICAO DA [Sociedade(2)]) é feita com base nas escrituras de 24/07/1992 e de 28/04/1995, aí constando que a [Sociedade(2)] iniciou operações em 24/07/1992, cfr. fls.81.
4. Além do requerido, a [Sociedade(2)] tem actualmente como sócios a [Sociedade(19)] ([Sociedade(19)]) e a [Sociedade(1)] ([Sociedade(1)]), cfr. fls. 88.
5. Os actuais sócios e respectivas participações sociais na [Sociedade(2)] nos termos do registo (cfr. fls. 88) correspondem a:
a) [Sociedade(19)] – 12,5%;
b) [Sociedade(1)] – 8,5%;
c) B (antes do casamento) – 30%;
d) B (depois do casamento) – 49%.
6. A [Sociedade(19)], que tem como administrador o Sr. F, cfr. fls. 102 a 105v.
7. Os bens listados sob os n.º 6 a 200 do cfr. fls. 9 a 12v junto com o RI vêm referidos como pertencentes à [Sociedade(2)]
8. Diga-se que os imóveis mencionados sob os n.ºs 192 a 195 de fls. 12v, ou seja, fracções B20, C20, D20 e E20 do prédio n.º XXXX, foram alienados pela [Sociedade(2)] a terceiros no ano de 2018 e 2019, cfr. fls. 138 a 165.
9. Os referidos terceiros efectuaram, respectivamente, o pagamento dos preços acordados pelas transmissões desses imóveis, por meio de cheques emitidos em nome da [Sociedade(2)], cfr. fls. 166 a 172.
10. Relativamente aos imóveis mencionados sob os n.ºs 199 a 200 a fls. 12v, os mesmos não existem porque o edifício tem apenas 20 andares, cfr. fls. 139.
11. A [Sociedade(2)] tem actualmente como único administrador o requerido, cfr. fls. 102 a 105v.
12. A [Sociedade(2)] tem como objecto, entre outros, o “comércio de bens imobiliários”, cfr. 102 a 105.
13. A alienação da quota com o valor nominal de MOP25.000 (equivalente a 12,5% do capital social) que a [Sociedade(1)] detinha na [Sociedade(2)] foi realizada pelo valor de MOP61.800.000 através do contrato de 26/03/2020 (inscrição n.º AP. XX/XXXXXXXX), cfr. fls. 87 a 88.
14. O pagamento do preço da transmissão foi realizado pela compradora, no equivalente em dólares de Hong Kong ao valor supra referido, através do cashier order emitido em nome da vendedora, a [Sociedade(1)], pelo [Banco(1)] ([Banco(1)]) n.º XXXXXXX de 25/03/2020 no montante de HKD$60.000.000, cfr. fls. 173.
15. A [Sociedade(1)] tem como objecto a gestão de participações sociais, cfr. fls. 35.
16. A transmissão do prédio registado na Conservatória do Registo Predial (CRP) sob o n.º XXXX, situado no [Endereço(4)], pela [Sociedade(10)] ([Sociedade(10)]) foi realizada pelo montante de HKD$2.400.000, através de escritura de 02/04/2020, cfr. fls. 17 a 21.
17. O aludido preço de HKD$2.400.000 foi pago através do cashier orders emitidos em nome da vendedora, [Sociedade(10)], pelo [Banco(1)] n.º XXXXXXX de 27/03/2020 no valor de HKD$800.000 e n.º XXXXXXX de 31/03/2020 no valor de HKD$1.600.000, cfr. fls. 176 a 177.
18. O prédio n.º XXXX foi avaliado pela imobiliária [Sociedade(24)] (doravante [Sociedade(24)]) pelo valor de HKD$2.500.000 à data de 24/03/2020, cfr. fls. 178 a 179 (extracto do relatório).
19. O prédio n.º XXXX é um terreno rústico, para construção, cujo edifício aí existente foi demolido em 25/02/2013, cfr. fls. 17 a 21.
20. O prédio n.º XXXX está rodeado de prédios antigos e degradados.
21. Ademais, embora ainda não tenha sido submetido nenhum projecto de construção, as autoridades competentes só permitem a edificação de prédios com um andar nessa localização, o que será igualmente aplicável ao prédio n.º XXXX, cfr. fls. 180v.
22. A transmissão do prédio n.º XXXX registado na CRP, situado na [Endereço(3)] pela [Sociedade(22)] ([Sociedade(22)]) por escritura de 03/04/2020, foi realizada pelo montante de HKD$68.000.000 (equivalente a MOP70.040.000 ao câmbio de HKD$1=MOP1,03), cfr. fls. 34.
23. O referido preço de HKD$68.000.000(MOP70.040.000) foi pago através dos cashier orders emitidos a favor da vendedora, [Sociedade(22)], pelo [Banco(1)] n.º XXXXXXX de 01/04/2020 no montante de HKD$25.000.000 e n.º XXXXXXX de 03/04/2020 no montante de HKD$43.000.000, cfr. fls. 181 a 182.
24. O valor matricial definitivo fixado em 01/07/2019 pela Direcção dos Serviços de Finanças (DSF) do Governo da RAEM para o prédio situado na [Endereço(3)] (ou seja, o prédio n.º XXXX) foi de MOP66.000.000, cfr. fls. 183.
25. O prédio n.º XXXX havia sido concedido à [Sociedade(22)] por despacho do Secretário dos Transportes e Obras Públicas n.º 70/2015 de 15/07/2015, cfr. fls. 31 a 32.
26. O prédio n.º XXXX é destinado a “pensão”, e a conversão da concessão em definitiva foi registada em 09/09/2019, cfr. fls. 28.
27. A [Sociedade(22)] é uma sociedade que se dedica ao investimento e formento predial, cfr. fls. 95.
28. A transmissão do prédio n.º XXX.º registado na CRP, situado na [Endereço(2)], pela [Sociedade(9)] ([Sociedade(9)]) através de escritura de 09/03/2012, foi realizada pelo valor de HKD$2.700.000, cfr. fls. 25 a 26.
29. O referido preço de HKD$2.700.000 foi pago através dos cashier orders emitidos a favor da vendedora [Sociedade(9)] pelo [Banco(1)] n.º XXXXXXX no montante de HKD$900.000 de 27/03/2020 e n.º XXXXXXX no montante de HKD$1.800.000 de 31/03/2020, cfr. fls. 184 a 185.
30. A [Sociedade(9)] adquiriu o referido prédio pelo montante de MOP825.200 em 2012, cfr. fls. 25.
31. O prédio n.º XXX é adjacente ao prédio n.º XXXX, se pode ver no website dos Serviços de Cartografia de Macau (webmap.gis.gov.mo), cujo screenshot ora se junta como fls. 186.
32. O prédio n.º XXX foi adquirido com o propósito de servir de apoio ao aproveitamento do terreno n.º XXXX, como uma espécie de depósito dos materiais de construção.
33. A [Sociedade(9)] cedeu o uso do prédio n.º XXX à [Sociedade(22)] durante o período de construção do edifício no terreno n.º XXXX, após a conclusão do qual, deixou de ter qualquer propósito.
34. O terreno é de reduzida dimensão (aproximadamente 28 m2), o que torna a edificação do mesmo pouco rentável.
35. O terreno em causa foi abrangido pelas delimitações geográficas que determinam a classificação dos prédios integrantes do património cultural nos termos do Reg. Adm. n.º 31/2018, e registado na CRP sob o averbamento oficioso n.º 2 de 1 de Abril de 2019, cfr. fls. 23.
36. O terreno foi avaliado pela [Sociedade(24)] pelo valor de HKD$3.500.000, cfr. fls. 188.
37. A [Sociedade(3)] ([Sociedade(3)]), transmitiu a G em 04/09/2015 a fracção C7 do prédio registado na CRP sob o n.º XXXXX, pelo montante declarado de MOP2.060.000, cfr. fls. 200.
38. A fracção C7 do prédio n.º XXXXX foi avaliada a respeito da data de 11.09.2015 pela [Sociedade(25)] ([Sociedade(25)]) pelo valor de HKD$7.400.000, cfr. fls. 203.
39. A [Sociedade(3)] foi representada nessa transacção pela requerente na qualidade de administradora, cujos poderes foram comprovados pelo notário meramente com base no registo comercial (ou seja, não decorrente de uma acta dos órgãos sociais), cfr. fls. 207, que se dá por integralmente reproduzido.
40. Em 17/07/2018, a referida fracção C7-XXXXX é transmitida a favor de H pelo valor declarado de HKD$6.880.000, cfr. fls. 201.
41. Em 19/10/2015, a [Sociedade(3)] transmitiu novamente a G uma quota de 1/123 da fracção B2 do prédio registado na CRP sob o n.º XXXXX, pelo valor declarado de MOP1.000.000, cfr. fls. 225.
42. Uma quota de 1/123 da fracção B2 nesse prédio n.º XXXXX foi avaliada a respeito da data de 11.09.2015 pela [Sociedade(25)] pelo valor de HKD$1.700.000, cfr. fls. 226.
43. A [Sociedade(3)] foi de novo representada nessa transacção pela requerente na qualidade de administradora, e também os poderes foram comprovados pelo notário meramente com base no registo comercial, cfr. fls. 227 a 230, que se dá por integralmente reproduzido.
44. De todo o modo, a requerente nunca providenciou os fundos que declarou em noma da [Sociedade(3)] ter recebido com as alienações supra-mencioandas (cfr. fls. 206 e 230), à referida [Sociedade(3)]”; (cfr., fls. 292 a 296-v).
Do direito
3. Em causa nos presentes autos está decidir do acerto do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que julgou procedente o recurso que lhe tinha sido apresentado, e, revogando a decisão da Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base, anulou a anteriormente decretada proibição do ora recorrido (B) de, sem notificação ou consentimento da recorrente, em nome próprio, como administrador, garante, representante ou por qualquer intermediário, “prometer alienar ou alienar, a qualquer título ou por qualquer forma, os bens sociais das empresas referidas (incluindo mas não se limitando aos bens móveis e imóveis e outros direitos), transferir o direito de propriedade ou jus possessionis destes, prometer constituir ónus e/ou constituir ónus sobre os mesmos, ou tomar deliberação no sentido de distribuir os lucros das empresas aos sócios ou de dissolver e liquidar as empresas”.
Colhe-se das alegações e conclusões da ora recorrente que – essencialmente – duas são as razões do seu recurso.
Entende que:
- (a) preenchidos estão todos os pressupostos legais para a (antes) decretada providência; e que,
- (b) assim não se entendendo, ao Tribunal caberá decretar a procedência que considere adequada à “situação” dos autos.
Ora, como de uma mera leitura à factualidade dada como provada se mostra de concluir, (cfr., fls. 4 a 12 do presente aresto), a pela ora recorrente peticionada e pretendida “providência” tem como razão de ser o seu receio de que o ora recorrido, seu ex-cônjuge, venha a proceder ao “desvio” dos “bens” – sobre os quais a providência incide – no período de tempo necessário até se efectuar a sua partilha em consequência do divórcio já decretado e cuja sentença, foi, entretanto, confirmada por Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 24.02.2021, (Proc. n.° 200/2020), já transitado em julgado.
E, atenta a dita situação, compreende-se o seu ponto de vista.
Porém, da reflexão que nos foi possível efectuar sobre (tudo) o que se consignou na decisão recorrida, cremos que bem andou o Tribunal de Segunda Instância, censura não merecendo o entendimento que aí se expôs (e que aqui se adopta como fundamentação da decisão que adiante se irá proferir).
Com efeito, apreciando o recurso que pelo requerido foi apresentado da decretada providência assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:
“(…)
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
1) Proibir o requerido de, sem notificação à requerente ou consentimento desta, praticar, em nome dele próprio, ou mediante constituinte(sic), representante ou qualquer intermediário, os seguintes actos comprometedores do valor do património comum:
․ Em nome de accionista, através de deliberação tomada na assembleia de accionistas ou de outros meios, prometer alienar ou alienar, a qualquer título ou por qualquer forma, os bens sociais das empresas acima referidas (incluindo mas não se limitando aos bens móveis e imóveis e outros direitos), transferir o direito de propriedade ou jus possessionis destes, prometer constituir ónus e/ou constituir ónus sobre os mesmos, ou tomar deliberação no sentido de distribuir os lucros das empresas aos sócios ou de dissolver e liquidar as empresas.
․ Em nome de administrador, gerente ou outro representante das empresas, prometer alienar ou alienar, a qualquer título ou por qualquer forma, os bens sociais das empresas acima referidas (incluindo mas não se limitando aos bens móveis e imóveis e outros direitos), ou prometer constituir ónus e/ou constituir ónus sobre os mesmos.
2) Proibir o requerido, o seu constituinte(sic), representante ou qualquer intermediário de praticar qualquer acto ou celebrar qualquer contrato em violação das ordens anteriores, sob pena de tais actos não produzir efeito em relação à requerente.
3) Notificar a Conservatória do Registo Predial, a Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis e os cartórios notariais, públicos e privados, para recusarem o registo ou a escrituração de actos em desrespeito das supra referidas ordens.
Da leitura da primeira parte do ponto 1 da decisão recorrida o que resulta é que o Requerido/Recorrente enquanto “accionista” – entenda-se sócio - das sociedades indicadas nos autos não pode votar a favor de deliberação ou decidir naquelas em que é único sócio, por si ou através de representante legal, no sentido de serem alienados, prometidos alienar, ou constituídos ónus sobre bens imoveis, moveis ou outros direitos que pertençam às sociedades, bem como qualquer decisão que implique a distribuição de lucros, dissolução ou liquidação da sociedade sem que para tal tenha obtido o consentimento da Requerente.
Na segunda parte do ponto 1 do dispositivo impõe-se que o Recorrente/requerido no exercício do cargo de administrador não possa praticar determinados actos (os supra indicados) sem autorização da Recorrida/Requerente.
É contra esta parte da decisão em que se impede que o Requerido delibere no sentido de serem alienados, prometidos alienar, ou constituídos ónus sobre bens imoveis, moveis ou outros direitos que pertençam às sociedades, e que no exercício das funções de administrador pratique esses actos que o Recorrente se insurge e ataca a decisão recorrida, invocando no início das suas alegações pela impossibilidade do ordenado face às sociedades serem pessoas jurídicas distintas da Requerente e do Requerido.
No fundo a ideia subjacente a esta providência cautelar é impedir as sociedades onde o Requerido/Recorrente tem participação social de praticar actos de disposição de bens que integrem o seu activo de modo a evitar que o valor das mesmas diminua protegendo os direitos e interesses da Requerente numa eventual (porque ainda incerta) partilha dos bens comuns do casal.
Porém, embora as participações sociais de que o Requerido seja titular nessas sociedades, incluindo as unipessoais, façam parte do acervo da comunhão conjugal se adquiridas na pendência do matrimónio, o certo é que, as sociedades são pessoas jurídicas distintas da Requerente e do Requerido.
Tendo casado em Macau em 1994 sem convenção antenupcial, estão Requerente e Requerido casados segundo o regime de bens de comunhão de adquiridos – artº 1717º do C.Civ. vigente em Macau ate 1999 -.
O que integrará o acervo dos bens comuns serão apenas as participações sociais e não o património das sociedades.
Por sua vez como o Recorrente também invoca, de acordo com o disposto no artº 328º do CPC a providência cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado.
Ora, o direito a acautelar no caso em apreço é a integridade e valor do património comum para efeito de partilhas evitando a dissipação do mesmo – daí o arrolamento dos bens comuns do casal -, mas com isto não se confunde a actividade comercial das sociedades onde os cônjuges tenham participações sociais.
No que concerne à primeira parte da decisão recorrida o que está em causa é o exercício do direito de voto e/ou decisão enquanto sócio inerentes às participações sociais tituladas pelo Recorrente/Requerido e que são bens comuns, nomeadamente no que concerne à tomada de posição quanto à disposição e oneração de bens imoveis, moveis e direitos, bem como distribuição de lucros, dissolução e liquidação das sociedades.
O direito de voto nos termos da alínea d) do artº 195º do C.Com. é um direito do sócio.
O exercício do direito de voto é feito nos termos dos artº 217º e 218º do C.Com, estando limitada a intervenção em assembleia geral ao sócio ou ao seu representante nos termos do nº 2 do artº 218º do C.Com..
O exercício do direito de voto pressupõe também a informação sobre todas as questões relativas à sociedade, informação essa que por força do sigilo da sociedade quanto à sua actividade apenas pode ser dispensada aos sócios e nos termos legalmente e estatutariamente fixados – artº 209º do C.Com. -.
Em casos de quotas indivisas estabelece o artº 365º do C.Com. que os direitos inerentes à quota são exercidos pelo representante comum.
Ou seja, sendo o direito de voto um direito inerente ao sócio é por este que deve ser exercido.
O facto da quota pertencer a alguém que seja casado num qualquer regime de comunhão não altera a forma de exercício do respectivos direitos e obrigações nem faz com que essa quota passe a ser indivisa.
Com fundamento no processo de divórcio autoriza o legislador que os cônjuges possam requerer o arrolamento dos bens comuns do casal – artº 368º do CPC – o que consiste na descrição de todos os bens que fazem parte do acervo comum ou de bens próprios sob administração do outro, providência essa já antes decretada e de onde supostamente constam as participações sociais do requerido objecto destes autos.
Permitir, como foi ordenado que determinadas deliberações sejam tomadas após obtido o consentimento do cônjuge do sócio é ir para além do que a própria lei permite no caso de quotas indivisas no artº 365º do C.Com., impondo à sociedade a ingerência nas suas deliberações de uma pessoa que não é sócia, relativamente a uma quota que não é indivisa, para além de, implicar uma limitação aos direitos do sócio sem qualquer fundamento legal.
Os actos que o cônjuge só pode praticar com autorização do outro resulta de disposição legal não sendo permitido ao tribunal impor restrições que não tenham fundamento na letra da lei.
Destarte, carece em absoluto de fundamento legal a imposição do direito de voto ou de decisão do sócio no caso das sociedades unipessoais (artº 392º) só poder exercido mediante o consentimento do cônjuge, pelo que nunca poderá subsistir a primeira parte do ponto 1 da decisão recorrida.
Outra questão é no que concerne à segunda parte do ponto 1 do dispositivo.
Nesta parte do dispositivo pretende impor-se que o Recorrente/Requerido no exercício do cargo de administrador e/ou gerente não possa praticar determinados actos sem autorização da Recorrida/Requerente.
Ora, a administração/gerência da sociedade é exercida por uma pessoa singular ainda que o exercício do cargo seja atribuído a uma pessoa colectiva – nº 2 do artº 234º do C.Com. -.
O administrador é nomeado pelos sócios e responsável perante a sociedade.
Admitir-se que a actuação enquanto administrador do Requerente esteja condicionada a autorizações de alguém alheio à sociedade desvirtua todo o regime ainda que relativamente a sociedades unipessoais cuja quota única seja bem comum do casal.
Dos elementos juntos aos autos – embora não tenha sido levado à factualidade assente – resulta que a administração das sociedades pode praticar actos de disposição e oneração dos activos destas.
Porém, os eventuais direitos patrimoniais dos cônjuges relativamente às quotas que integrem o património comum, não se confundem com o exercício do cargo de administrador.
Logo, não tem qualquer fundamento legal a sujeição do administrador das sociedades a autorização do cônjuge, para a prática de determinados actos no âmbito da administração da sociedade que lhe compete exercer.
Para além de que, qualquer limitação no que concerne aos actos que a administração da sociedade pudesse praticar sempre haveria de ser decidida em acção ou providência cautelar de que a própria sociedade fosse parte.
A menos que haja fundamento para instaurar providência cautelar contra as sociedades impedindo-as de praticar actos que diminuam o seu valor seja por redução do activo, seja por aumento do passivo, é impossível impor ao cônjuge titular da participação social injunções que evitem esse desiderato a menos que se recorra à figura da separação ou afastamento da personalidade jurídica da sociedade, se se verificarem os respectivos pressupostos, situação essa que no caso em apreço nem sequer é invocada, mas que, sempre haveria de ser dirimida em acção, também, instaurada contra a sociedade por se tratar de pessoa jurídica distinta dos sócios.
Resumindo, o que a Requerente pede é “a proibição do Requerido de praticar actos de alienação ou oneração de bens que façam parte dos activos das sociedades”.
Sendo as sociedades pessoas jurídicas distintas do Requerido e Requerente, ainda que sejam sociedades unipessoais, sendo o exercício da administração das sociedades um acto pessoal, não sendo a Requerente tão pouco sócia da maioria das sociedades, carece em absoluto a Requerente de legitimidade para formular tal pedido, para além de que, para se conseguir esse desiderato sempre haveria a providência de ter sido deduzida contra as sociedades por quem tivesse legitimidade e fundamento para o efeito, sendo certo que, o direito a acautelar nunca seria no âmbito de um processo de divórcio, pelo que, também nunca seria por dependência deste (do divórcio) que tal providência havia de ser instaurada.
Destarte, porque as participações sociais que o Requerido tem nas sociedades, algumas unipessoais, são bem comum do casal, não tem a Requerente legitimidade para intervir no giro comercial impondo regras de conduta e de decisão ao Requerido enquanto administrador da sociedade.
Logo, nunca poderiam ter sido ordenadas as injunções que constam do ponto 1 da decisão ou deferido o que se pedia em 3 do requerimento inicial.
Não podendo ser ordenada a injunção que consta do ponto 1 da decisão, igualmente não podia ser ordenado o que consta do ponto 2 e 3.
(…)”; (cfr., fls. 296-v a 301-v).
Seja como for, não se deixa de consignar o que segue.
Como já tivemos oportunidade de ponderar:
“(…) os Tribunais existem para afirmar e proteger os direitos por Lei reconhecidos às pessoas.
Porém, esta função, para ser eficaz, implica muitas vezes a rápida defesa de direitos ou interesses que, com a habitual e normal demora dos processos, poderiam ficar – irremediavelmente – prejudicados.
Daí se consagrar, logo no art. 1°, n.° 2, do C.P.C.M. que:
“A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção”.
Infere-se assim – da parte final – do normativo em questão que a (principal) função das (aí referidas) “providências” é de evitar a perda da utilidade do efeito jurídico-prático pretendido pelo autor entre o momento em que este recorre ao Tribunal e o momento em que é proferida decisão que lhe reconhece a existência do seu direito.
No que diz respeito às suas características, comum é dizer-se que estas “medidas” são “provisórias”, pois que visam a composição provisória do litígio até à decisão final na acção principal, sendo também “instrumentais”, porque dependentes do processo principal, e “sumárias”, dada a simplicidade no seu processamento.
Atentas estas “características” de “provisoriedade”, “instrumentalidade”, e “sumariedade”, considerava Manuel de Andrade que “através do mecanismo próprio destes procedimentos, pretendeu a lei seguir a linha média entre dois interesses: o de uma justiça pronta, mas com o risco de ser precipitada; e o de uma justiça cauta e ponderada, mas com o risco de ser platónica por não chegar a tempo”; (in “Noções Elementares do Processo Civil”, pág. 10).
Estes “procedimentos” são “especificados”, se especialmente previstos na Lei, porém, sendo a realidade da vida complexa, e não se podendo abarcar todas as situações com “risco de lesão”, prevêem-se também procedimentos “não especificados”, (inominados ou comuns).
No que toca à sua “finalidade”, podem ser agrupados em duas categorias distintas: os “conservatórios” e “antecipatórios”, consoante visem manter inalterada a situação existente ou prevenir um dano, obtendo-se, adiantadamente, a disponibilidade de um bem ou o gozo de um benefício; (sobre o tema, vd., A. dos Reis in, “C.P.C. Anotado”, Vol. I, pág. 624, Jorge Augusto Pais de Amaral in, “Direito Processual Civil”, pág. 32, e A. Abrantes Geraldes in, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. III, pág. 166 e segs.).
(…)”; (cfr., v.g., o Ac. desta Instância de 27.11.2020, Proc. n.° 181/2020).
Efectuadas as expostas considerações, continuemos.
Nos termos do art. 326° do C.P.C.M.:
“1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer, se ao caso não convier nenhuma das providências reguladas no capítulo subsequente, a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
2. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.
3. O tribunal pode decretar providência diversa da concretamente requerida.
4. O tribunal pode autorizar a cumulação de providências a que caibam formas de procedimento diferentes, desde que os procedimentos não sigam uma tramitação manifestamente incompatível e haja na cumulação interesse relevante; neste caso, incumbe-lhe adaptar a tramitação do procedimento à cumulação autorizada.
5. Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que tenha sido julgada injustificada ou tenha caducado”.
In casu, o transcrito preceito legal constitui a “base legal” da pela recorrente pretendida “providência” que, assim, é não especificada, inominada, ou comum.
Como nota Marco Carvalho Gonçalves in “Providências Cautelares Conservatórias: Questões Práticas Actuais”, (Comunicação apresentada no Centro de Estudos Judiciários de Portugal a 16.03.2018), as providências cautelares conservatórias inominadas visam manter inalterada a situação – de facto ou de direito – existente, assegurando, dessa forma, a efectividade do direito ameaçado; (cfr., v.g., José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto in, “C.P.C. Anotado”, Vol. II, pág. 8; Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego in, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 2.ª ed., pág. 342; e, José Chiovenda in, “Princípios de Derecho Procesal Civil”, pág. 281 e 282).
O mesmo é dizer que a finalidade destas providências não especificadas (inominada, ou comuns), é, essencialmente, a de “garantir o efeito útil da sentença a ser proferida na acção principal”; (cfr., v.g., António Santos Abrantes Geraldes in, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. III, 2.ª ed., pág. 90 e 91, e Rui Pinto in, “A Questão de Mérito na Tutela Cautelar – A Obrigação Genérica de não Ingerência e os Limites da Responsabilidade Civil”, pág. 292).
Como igualmente observa V. Lima:
“A principal função da tutela cautelar consiste, pois, em neutralizar os prejuízos a suportar pelo interessado que tem razão, derivados da duração do processo declarativo ou executivo e que não sejam absorvidos por outros institutos de direito substantivo ou processual com semelhante finalidade.
As providências cautelares ou visam acautelar os resultados da acção, mantendo o statu quo para que ele se não altere em condições tais que não seja susceptível de reintegração (medidas conservatórias), ou antecipam a realização do direito que venha, eventualmente, a ser reconhecido, dada a urgência na sua efectivação (medidas antecipatórias).
O arresto, o arrolamento, a suspensão de deliberações sociais e o embargo de obra nova visam a primeira das finalidades.
O arbitramento de reparação provisória, os alimentos provisórios e a restituição provisória da posse são do segundo tipo.
O novo Código previu um procedimento cautelar comum nos artigos 326.° a 337.°, que é aplicável sempre que ao caso não couber uma das providências cautelares especificadas, cujos procedimentos estão regulados nos artigos 338.° a 368.°.
(…)”; (in “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., 2018, C.F.J.J., pág. 620 e segs.).
Aqui chegados, vejamos.
A “questão” dos autos evidência aquilo a que se poderia eventualmente chamar de “conflito” entre os “direitos pessoais e patrimoniais” que surgem no âmbito do “direito familiar”, e os “interesses comerciais”, matéria do “direito societário”, já que se apresenta (intimamente) ligada à definição da “posição jurídica do cônjuge meeiro em participação social”.
Como já salientava Maria Rita A. G. Lobo Xavier:
“Há já bastante tempo que as questões suscitadas pela participação de cônjuges em sociedades comerciais atraem as reflexões da doutrina portuguesa. A este propósito, ocorre distinguir, fundamentalmente, a situação em que um dos cônjuges participa numa sociedade com outros associados, daquela em que ambos os cônjuges participam na mesma sociedade – sozinhos ou juntamente com terceiros.
(…)
A situação em que apenas um dos cônjuges participa numa sociedade faz surgir, igualmente, algumas dificuldades. Sucede, frequentemente, que uma pessoa figura como sócia de determinada sociedade e que, pelo facto de se tratar de pessoa casada, a respectiva participação social não pode deixar de constituir um bem comum do casal. Ora, é justamente aqui que poderá nascer um conflito entre a disciplina societária e o regime matrimonial de bens. Como é sabido, todo o casamento comporta problemas de carácter patrimonial, comuns a ambos os cônjuges: essa comunhão de interesses patrimoniais implica um estatuto jurídico especial, o chamado regime de bens do casamento ou regime matrimonial de bens.
(…)
Em função do regime de bens do casamento aplicável é possível que uma determinada participação social tenha de fazer parte do acervo dos bens comuns do casal. E, em conformidade, é difícil conceber-se que ao cônjuge que não interveio no acto de aquisição da referida participação societária para a comunhão seja negado o exercício de quaisquer direitos sobre ela. Mas, por outro lado, é preciso também considerar o facto de uma sociedade ter uma natureza ligada à sua origem contratual e de a sua índole ser, essencialmente, «corporativa». Desse ponto de vista, é forçoso reconhecer que quem celebra um contrato de sociedade com uma pessoa casada, ainda que conheça o regime de bens aplicável, nem sempre quererá ser sócio do respectivo cônjuge, no qual, por exemplo, pode não encontrar as qualidades que o levaram a associar-se com o outro. Encarando o problema apenas da perspectiva dos interesses da sociedade e dos outros sócios, não admira, pois, que a tendência seja para negar o reconhecimento da qualidade de sócio ao cônjuge meeiro daquele que adquiriu a participação social para a comunhão conjugal.
(…)”; (in “Reflexões sobre a Posição do Cônjuge Meeiro em Sociedades por Quotas”, Separata do Volume XXXVIII – do Suplemento do B.F.D.U.C., onde são feitas referências sobre a questão no âmbito de outros sistemas jurídicos europeus).
A dita “questão”, foi, e tem sido, objecto de amplo debate, (em sede de direito comparado), várias sendo as posições defendidas.
Com efeito, discutia-se “se a qualidade de sócio numa sociedade em nome colectivo, em comandita ou por quotas, se transmitia ao cônjuge meeiro do adquirente ou subscritor da participação social. Mais especificamente, tratava-se de saber se o cônjuge do adquirente ou subscritor se encontrava legitimado para o exercício dos direitos sociais conferidos pela participação e se devia considerar-se como sócio ou terceiro para efeitos da transmissão da mesma, dada a prática frequente de sujeitar contratualmente a eficácia da cessão (a terceiros) para com a sociedade ao consentimento desta”; (cfr., v.g., João Espírito Santo in, “Sociedades e Cônjuges”, Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, pág. 403).
Partindo da natureza “intuitus personae” das sociedades civis e das sociedades comerciais em nome colectivo e em comandita, Ferrer Correia considerava que o problema da “comunicabilidade da qualidade social pelo sócio ao cônjuge” se resolvia a partir desta “natureza”.
Considerava pois o Ilustre Professor que “o cônjuge de um sócio casado em regime de comunhão de bens – quer o casamento se tivesse celebrado antes ou depois da constituição da sociedade – não adquiria por esse facto a qualidade social: na comunhão entraria apenas o valor patrimonial da quota ou do quinhão. (…)
Ou seja: sócio é apenas o cônjuge por quem a quota tenha vindo ao casal. Perante a sociedade, unicamente esse cônjuge é sócio – só é sócio aquele que outorgou na escritura social ou que posteriormente adquiriu a quota. Certo, a quota entrou na comunhão – mas apenas como valor, não como síntese ou fonte de direitos e deveres corporativos, não como título de socialidade. Ao cônjuge do sócio não competem mais direitos do que os que se reconhecem ao associado à quota. (…)
Em suma: para a sociedade e os demais sócios, a referida situação (quer provenha de um verdadeiro contrato de associação ou agregação à quota, quer da constituição de uma relação jurídico-matrimonial) é res inter alios”; (in “Sociedades por Quotas – Cessão de Quota a Meeiro de Sócio”, Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, 1989, Tomo 4, pág. 31 a 36).
Por sua vez, Raúl Ventura defendia uma solução oposta, afirmando a “irracionalidade da separação entre «quota-valor» (ou «valor da quota») e «qualidade de sócio»”, e considerando que “essa teoria parte do princípio, não demonstrado nem demonstrável, de que existe uma "qualidade de sócio" – separada da quota ou constituindo uma parte dela – que pode ser transmitida ou investida independentemente da titularidade da quota”, conclui que:
“- a quota adquirida por um cônjuge, casado em regime de comunhão geral de bens, constituía um bem comum (verificados que fossem os requisitos da entrada em comunhão);
- da natureza de bem comum da quota resultava que sobre esta incidia o regime de compropriedade de quota, estabelecido no art. 9.° LSQ, ressalvados aqueles aspectos em que o regime matrimonial de bens se lhe sobrepusesse;
- ambos os cônjuges, com proprietários da quota, deviam ser considerados sócios”; (in “Sociedades por Quotas – Cessão de Quota a Meeiro de Sócio”, Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, 1989, Tomo 4, pág. 37 a 45).
Como se pode ver, a questão dividia – e continua a dividir – a doutrina; (e nem mesmo o art. 8°, n.° 2 do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo D.L. n.° 262/86 – onde se prescrevia que “Quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal” – resolveu o “problema”, pois que abundantes são as posições sobre o mesmo, podendo-se, v.g., cfr., António Caeiro in, “Sobre a participação dos cônjuges em sociedades por quotas”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor A. Ferrer Correia, separata do B.F.D.U.C., 1984; Pinto Furtado in, “Comentário ao C.S.C.”; J. P. Remédio Marques in, “C.S.C. em Comentário”, e “O (ex)cônjuge de sócio de sociedade comercial adquire a qualidade de sócio? – Designadamente para o efeito de requerer inquérito judicial?”, B.F.D., Vol. 94, Tomo 2, pág. 1351 a 1397; J. E. Santo in, “Sociedades e Cônjuges”, Estudos em Memória do Professor João de Castro Mendes; J. Miguel Duarte in, “A Comunhão dos Cônjuges em Participação Social”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, 2005, Vol. II; M. R. Lobo Xavier in, “Participação Social em Sociedade por Quotas Integrada na Comunhão Conjugal e Tutela dos Direitos do Cônjuge e do Ex-Cônjuge do «Sócio»”, Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Vol. III; João Labareda in, “Direito Societário Português – Algumas Questões”, pág. 197 e segs.; Cláudia Martins in, “Efeitos Patrimoniais Especiais do Casamento nos Regimes da Comunhão: Cônjuges Titulares de Participações Sociais em Sociedades por Quotas ou Comerciantes”, Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, 2016, n.° 27; Inês Helena Martins Lopes in, “Sociedades familiares – Conflitos familiares/societários”, Universidade e Coimbra; Maria Miguel Carvalho in, “Breves Considerações sobre a Posição Jurídica do Cônjuge Meeiro Relativamente aos Dividendos Societários”, Revista Scientia Iuridica, Tomo LXVII, 2018, n.° 346, pág. 69 a 88; Joana Moreira Magalhães in, “A tutela dos direitos do cônjuge meeiro do sócio no contexto de divórcio quanto à participação social nas sociedades por quotas”, Universidade Católica do Porto; podendo-se, também, ver o recente Acórdão do S.T.J. de 26.01.2021, Proc. n.° 325/18, onde é citada outra jurisprudência sobre a questão).
Todavia, em nossa modesta opinião, e como deixamos adiantado, cremos que razoável e acertada se nos apresenta ser a decisão ínsita no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que revogou a pelo Tribunal Judicial de Base decretada “providência cautelar”.
Não se nega que (felizmente) – longe vão os tempos, (pelo menos desde 1977), que ao cônjuge homem cabia, enquanto “chefe da família”, administrar os bens do casal e os de cada um dos cônjuges, à sua esposa cabendo “cuidar dos filhos e da casa”, (o chamado, “governo doméstico”, cfr., art. 1674° do anterior C. Civil de 1966), e que (presentemente) – o art. 1532° do Código Civil de Macau consagra a “igualdade dos cônjuges” como um dos efeitos do casamento quanto (às pessoas e) aos seus bens.
Porém, importa atentar, igualmente, que nos termos do art. 1543°, n.° 2, al. c) e art. 1546°, n.° 1 do mesmo código, “cada um dos cônjuges tem a administração dos bens comuns por ele levados para o casamento”, não sendo “obrigado a prestar contas da sua administração”.
Por sua vez, não se mostra de olvidar que estatui o art. 11° do Código Comercial de Macau que:
“O empresário comercial, casado num regime de comunhão, não carece do consentimento do seu cônjuge para:
a) No curso normal da sua actividade, alienar e onerar os bens que compõem a empresa comercial;
b) Praticar actos de oneração ou disposição relativamente aos bens, independentemente da respectiva natureza, que representam o resultado da actividade da empresa comercial”.
Nesta conformidade, e ponderando ainda que nos termos do art. 1644°, n.° 1 do citado Código Civil, “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir da data em que a respectiva sentença transita em julgado ou a decisão se torna definitiva, mas retrotraem-se à data da proposição do processo quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges”, (sub. nosso), e também que, em sede do (já) requerido “arrolamento”, elaborada já está a “relação dos bens comuns do casal”, motivos cremos que não se vislumbram pois para se censurar a decisão recorrida, (que em nossa opinião, e face aos valores a tutelar, se mostra justa e equilibrada).
Na verdade, não se pode deixar de ter presente que a “providência” pela recorrente pretendida acaba por interferir, (profundamente, podendo, mesmo, “bloquear” totalmente) a própria actividade das “sociedades” em questão – que, note-se, nem são “parte” nos autos – desconsiderando-se, (assim), também, (totalmente), a sua (própria) “personalidade” enquanto “entes” distintos (e autónomos) dos seus “sócios”, não sendo, por sua vez, de se olvidar outros interesses de “terceiros” com os quais aquelas se relacionam, e que importa, igualmente, tutelar e salvaguardar.
Por outro lado, (e independentemente do demais), outro aspecto cremos que se nos mostra de aqui ponderar.
Nos termos do art. 368° do C.P.C.M.:
“1. Como preliminar ou incidente da acção de divórcio ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro.
2. Se houver bens abandonados, por estar ausente o seu titular, por estar jacente a herança, ou por outro motivo, e tornando-se necessário acautelar a perda ou deterioração desses bens, pode também requerer-se o respectivo arrolamento.
3. Não é aplicável aos arrolamentos previstos nos números anteriores o disposto no n.º 1 do artigo 362.º”.
In casu, (em conformidade com o assim estatuído), e como se referiu, decretado já foi o arrolamento com a “relação de bens comuns do casal”.
E, para o acolhimento do que agora pretende a recorrente necessário não deixa de ser o requisito do “fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável” de seus direitos consagrado no art. 326°, n.° 1 do mesmo C.P.C.M..
Ora, a factualidade dada como provada não permite concluir que o recorrido se esteja a dedicar a qualquer tipo de “gestão ruinosa” prejudicial aos interesses da recorrente, ou que esteja a “delapidar o património do casal”…
Como comerciante – dono, administrador e/ou sócio de empresas e sociedades – natural é que celebre ou participe na celebração ou outorga de contratos (e outros negócios, como é normal e sempre terá feito), motivos – sérios, fundados e seguros – não se vislumbrando existir (nestes autos) para se inverter ou alterar esta situação.
Dest’arte, e decretado estando o “arrolamento” com a “relação dos bens comuns do casal”, cabe pois para finalizar consignar que, (atento o alegado e provado), não se divisa que outra “providência” possa ser decretada, (que a própria recorrente também não identifica), havendo, assim, que se julgar improcedente o recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas do recurso a cargo da recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.
Registe e notifique.
Oportunamente, nada vindo aos autos, proceda-se à sua devolução ao Tribunal Judicial de Base.
Macau, aos 30 de Julho de 2021
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 76/2021 Pág. 12
Proc. 76/2021 Pág. 13