Processo nº 108/2021(I) Data: 29.09.2021
(Autos de recurso jurisdicional)
Assuntos : “Aceitação – tácita – do acto”.
Decisão sumária.
Reclamação para a conferência.
SUMÁRIO
1. A qualificação dos factos com vista a integrá-los como “aceitação tácita”, ou não, é uma “questão de direito”.
2. Atento o estatuído no n.° 1 do art. 34° do C.P.A.C., tem-se entendido como “aceitação expressa” a manifestação de vontade livre e consciente no sentido claro e inequívoco de que alguém concorda com o acto administrativo praticado, (assim não sucedendo, v.g., quando a aceitação é feita sob “coacção física” ou “moral”, ou assente em “erro” ou “dolo”; cfr., art°s 239° a 250° do C.C.M.).
3. Por sua vez, uma aceitação do acto administrativo é “tácita” quando assente em “actos incompatíveis” com a vontade de recorrer, emergindo de actos e factos claros e concludentes que apontam, inequivocamente, no sentido de que alguém se conformou com o acto.
4. Na ponderação sobre tal “matéria”, importa ter em conta o estatuído no n.° 1 do dito art. 34°, onde para se evitar que uma “determinada conduta” seja interpretada como uma “aceitação tácita” de um acto administrativo, prevê, expressamente, a possibilidade de o seu destinatário manifestar (e produzir) “reserva por escrito”, (tal como previsto está no n.° 3 do aludido preceito).
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 108/2021(I)
(Autos de recurso jurisdicional) (Incidente)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Aos 28.07.2021, proferiu o relator dos presentes Autos de Recurso Jurisdicional a seguinte decisão:
“Ponderando no teor da decisão recorrida e nas “questões” pelo recorrente colocadas, entende-se que o presente recurso deve ser objecto de “decisão sumária”; (cfr., art. 149°, n.° 1 do C.P.A.C. e art. 621°, n.° 2 do C.P.C.M., podendo-se também, v,g., ver C. Pinho in “Notas e Comentários ao C.P.A.C.”, Vol. II, C.F.J.J., 2018, pág. 419, e as “decisões sumárias” proferidas nos autos de recursos jurisdicionais n°s 69/2020, 68/2020, 75/2020, 147/2020, 47/2021, 49/2021, 83/2021, 94/2021, 98/2021, 93/2021 e 107/2021).
*
Nesta conformidade, passa-se a decidir.
Relatório
1. Em sede dos Autos de Recurso Contencioso n.° 338/2020, tendo como recorrente A, (甲), com os sinais dos autos, e recorrido, o SECRETÁRIO PARA A SEGURANÇA, proferiu o Tribunal de Segunda Instância o seguinte Acórdão:
“I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Segurança de 25.02.2020 que rejeitou o recurso hierárquico necessário interposto pelo Recorrente do despacho que ordenava a restituição à Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau das remunerações recebidas entre Janeiro a Julho de 2019, formulando as seguintes conclusões:
1. O Secretário para a Segurança proferiu o despacho recorrido em 17 de Julho de 2019, e no dia 5 de Agosto de 2019, foi o Recorrente notificado de que o respectivo despacho autorizou a sua desligação obrigatória do serviço a partir de 1 de Janeiro de 2019, e exigiu que o Recorrente restituísse os vencimentos, prémios de antiguidade e subsídios recebidos desde 1 de Janeiro até 31 de Julho de 2019. Entendeu a entidade recorrida que a partir de 1 de Janeiro de 2019, o Recorrente, cuja situação jurídica já mudou, “automaticamente”, para aposentado, começou a receber a pensão de aposentação, e na verdade, não exerceu efectivamente as suas funções. Pelo que o Recorrente não tem direito a receber remunerações desde Janeiro até Julho de 2019, e deve restituir as quantias pagas a mais pela entidade recorrida.
2. No entendimento do Recorrente, o despacho recorrido fez uma decisão violadora da lei e do direito adquirido do Recorrente, que lhe causou a perda dos vencimentos, prémios de antiguidade e respectivos subsídios que devia receber pelo serviço desde 1 de Janeiro até 31 de Julho de 2019, e prejudicou a contagem do seu tempo de serviço para efeitos de antiguidade, o que podia resultar na redução da quantia da pensão mensal a receber após a aposentação.
3. O despacho recorrido entendeu, principalmente, que segundo o art.º 107.º, n.º 1, al. a) do ETAPM, a situação jurídica do Recorrente mudou, “automaticamente”, para aposentado, pelo que determinou que a data de aposentação do Recorrente retroagiu ao dia 1 de Janeiro de 2019.
4. O Recorrente prestou serviço até 5 de Agosto de 2019, data em que foi oficialmente notificado da decisão de autorização da sua aposentação.
5. Por isso, o que está em causa no presente recurso contencioso é o tempo de aposentação do Recorrente. Foi dia 1 de Janeiro de 2019? Ou dia 17 de Julho de 2019, data em que o Secretário proferiu o despacho? Ou dia 5 de Agosto de 2019, quando o Recorrente foi notificado da autorização da aposentação?
6. Assim, deve-se analisar se incorreu em erro o despacho recorrido ao citar o art.º 107.º, n.º 1, al. a) do ETAPM para fixar a data de aposentação do Recorrente em 1 de Janeiro de 2019, e em consequência, verificar se foi adequadamente aplicável o respectivo disposto legal.
7. Desta forma, o ponto controvertido no presente recurso é a relação entre “desligação automática do serviço” e “para efeitos de aposentação” previstos no art.º 107.º, n.º 1, al. a) do ETAPM.
8. Vemos o Parecer n.º 4/VI/2018 emitido pela 3ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa de Macau: … atingir o limite de faltas por doença previsto na lei, esta exige ou não que o trabalhador seja considerado incapaz para o serviço para poder ser aposentado, desligado do serviço ou ver o seu contrato administrativo de provimento cessar? Ou o decurso do prazo de faltas por doença é suficiente e determinativo da situação, como vem sendo defendido?
“De acordo com o Governo, estas dúvidas têm criado dificuldades no tratamento destas situações, sendo por isso da maior importância a clarificação do regime. Com vista a esta clarificação, as alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 107.º passam a estabelecer que, findos os prazos limite de faltas por doença previstos no artigo 106.º (18 meses ou 5 anos, conforme a doença), os trabalhadores são automaticamente desligados do serviço, sejam ou não considerados incapazes para o trabalho pela Junta de Saúde. O que passa a relevar são os prazos limite das faltas por doença. Atingidos estes, a regra passa a ser a da desligação automática do serviço, sem necessidade de quaisquer outros procedimentos ou pareceres…”
9. Daí que, conforme a resposta dada pelo legislador, o disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 107.º significa que findos os prazos limite de faltas por doença, terá lugar a desligação automática do serviço, sem necessidade de quaisquer outros procedimentos ou pareceres.
10. Por outra palavra, segundo a referida disposição, a condição da desligação automática do serviço é “findos os prazos limite de faltas por doença”, pelo que o decurso do prazo limite de falta por doença é a chave da desligação automática do serviço.
11. Decorrido o prazo limite de falta por doença, terá lugar a desligação automática do serviço, de modo a aguardar a autorização da aposentação.
12. Por isso, entende o Recorrente que na desligação automática do serviço prevista na referida disposição, a expressão “automática” significa que terá lugar a desligação automática do serviço sempre que decorra o respectivo prazo, sem necessidade de quaisquer outras condições (procedimentos ou pareceres).
13. Assim, o decurso dos prazos limite de faltas por doença é condição da desligação automática do serviço, mas não da aposentação automática.
14. Durante o supracitado período, o Recorrente nunca recebeu qualquer notificação da autorização da aposentação, pelo que entendeu, naturalmente, que ainda era funcionário efectivo, e ao abrigo dos dispostos no ETAPM, apresentou sempre atestados de falta por doença ao seu serviço, que por sua vez, elaborou sempre o horário de turno diário do Recorrente.
15. Segundo o horário de turno passado pelo Departamento de Gestão de Recursos do serviço do Recorrente, este ficava na situação de “falta por doença” desde 1 de Janeiro até 17 de Julho de 2019.
16. O horário de turno serve para organizar as actividades policiais diárias de cada agente militarizado. Se não conste do horário de turno o número do Recorrente, com anotação de “falta por doença”, não pode o Recorrente regressar ao serviço para trabalhar, e em caso de serviço externo, não pode ser distribuído qualquer equipamento (arma) ao Recorrente, pelo que este também não pode exercer as suas funções na rua.
17. O horário de turno tem a importância derivada de os actos praticados pelos trabalhadores na qualidade de agente policial fora do horário de trabalho (com anotação de “falta por doença”) constituírem a violação da lei.
18. Por outra palavra, no horário de turno, o Recorrente foi assinalado por “falta por doença” porque ele ainda exerceu funções, mas estava doente.
19. O Recorrente ainda era funcionário efectivo e estava doente durante o exercício das funções, pelo que ao abrigo dos dispostos no ETAPM, obrigou-se a apresentar ao seu serviço o atestado médico justificativo da falta por doença.
20. Por isso, tanto o Recorrente como o seu serviço consideraram o Recorrente como funcionário efectivo no período compreendido entre 1 de Janeiro e 17 de Julho do ano 2019, porque nunca foram notificados da aposentação automática do Recorrente, razão pela qual o Departamento de Gestão de Recursos procedeu sempre à organização do horário de turno do Recorrente nesse período.
21. Quer o recorrente, quer o seu serviço, é de perguntar quem ousou sair, sem autorização, do posto de trabalho, sem qualquer notificação da desligação do serviço do Recorrente? E como é que o Departamento de Gestão de Recursos ousou não proceder à organização do horário de turno do Recorrente sem autorização?
22. Isso porque, na verdade, tanto o Recorrente como o seu serviço não podem determinar automaticamente a data de aposentação do Recorrente, mesmo que forem exigidos a calcular a mesma. Assim, como é que podia o Recorrente desligar-se automaticamente do serviço?
23. Então, desde que permaneceu sempre a relação de trabalho entre o Recorrente e o serviço, como é que se podia exigir a reposição das remunerações recebidas por exercício das funções, com efeito retroactivo até mais de meio ano?
24. O respectivo acto não é nulo ou inválido, pelo que o órgão administrativo não tem direito a anular a relação jurídica do Recorrente naquele meio ano.
25. Se o Recorrente soubesse da desligação do serviço, porque é que ainda trabalhou de propósito (apresentar diariamente o atestado médico justificativo da falta por doença)?
26. O despacho recorrido determinou que aposentação do Recorrente retroagiu ao dia 1 de Janeiro de 2019, exigindo que o Recorrente restituísse todas as remunerações recebidas desde 1 de Janeiro até 31 de Julho de 2019. Parece-nos que o despacho recorrido exigiu que o Recorrente depositasse mensalmente os vencimentos recebidas desde 1 de Janeiro de 2019, e restituísse à entidade recorrida num dia no futuro (quando o Secretário decidiu autorizar a aposentação)?
27. Isso não foi a expectativa razoável do Recorrente durante o exercício das funções desde 1 de Janeiro até 17 de Julho de 2019.
28. De acordo com a norma acima referida, no dia 1 de Janeiro de 2019, o Recorrente satisfez a condição de desligação do serviço para efeitos de aposentação, mas não se encontrou, necessária e imediatamente, aposentado no mesmo dia, nem se aposentou automaticamente no mesmo dia.
29. Obviamente, o despacho recorrido interpretou erradamente o art.º 107.º, n.º 1, al. a) do ETAPM, entendendo que a desligação automática do serviço equivaleu à aposentação automática.
30. Além disso, a respectiva norma não estipula que a “aposentação” é automática.
31. O tempo da aposentação oficial do Recorrente dependeu do tempo em que foi proferido e notificado o despacho recorrido. Se o despacho recorrido fosse proferido 2 anos depois, o Recorrente também só podia aposentar-se oficialmente 2 anos depois. Não se pode exigir a reposição das remunerações recebidas nesses 2 anos. E o mais importante é que, a lei não dispõe assim.
32. Conforme os dados constantes dos autos, e o art.º 107.º, n.º 1, al. a) do ETAPM, o Recorrente só satisfez a condição de aposentação.
33. Porém, o tempo da aposentação oficial ainda dependeu da decisão oficial da entidade recorrida, e da sua notificação ao Recorrente nos termos da lei. Por outra palavra, a desligação automática do serviço não equivale à aposentação automática.
34. Por isso, no procedimento de autorização da aposentação do Recorrente, o despacho recorrido interpretou erradamente o art.º 107.º, n.º 1, al. a) do ETAPM, e em consequência, determinou que a data de aposentação do Recorrente retroagiu ao dia 1 de Janeiro de 2019 (data em que o Recorrente satisfez a condição de desligação do serviço).
35. O Recorrente descobriu nas fls. 15082 a 15085 do B.O. n.º 35, Série II, de 2019, que já se desligou do CPSP a partir de 1 de Janeiro de 2019.
36. Nos termos do art.º 267.º, n.º 2 do ETAPM, “2. Em caso de aposentação obrigatória, e sem prejuízo do disposto em matéria de aposentação compulsiva, a desligação do serviço é imediata, sendo devido, a partir da data em que a mesma ocorra e até fixação da pensão, o pagamento, pela verba destinada ao pessoal a aguardar aposentação, de uma pensão provisória calculada pelo serviço processador e comunicada ao Fundo de Pensões de Macau.”
37. Porém, segundo os dados constantes dos autos, no período compreendido entre 1 de Janeiro e 31 de Julho de 2019, o Recorrente recebeu sempre remunerações por exercício das funções, e nunca foi lhe fixada ou paga a respectiva pensão provisória.
38. O art.º 68.º no Capítulo III do CPA e os seguintes regulam as “notificações” e os seus efeitos.
39. Nos termos do art.º 117.º do CPA, o acto administrativo produz os seus efeitos desde a data em que for praticado.
40. Nos termos do art.º 122.º, n.º 1 do mesmo Código, são nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
41. Segundo as respectivas normas, o sentido das “notificações” é o de que, só através de notificação legal é que pode o interessado ter conhecimento do conteúdo do acto administrativo, e pode a Administração exigir que o interessado pratique o acto notificado.
42. Por outra palavra, se a Administração pratique um acto administrativo sem notificar o interessado nos termos da lei, tal acto não produz qualquer efeito em relação ao interessado.
43. O CPA regula rigorosamente a eficácia retroactiva de actos administrativos. Em conjugação do art.º 118.º do CPA, obviamente, o ETAPM não atribui eficácia retroactiva.
44. Relativamente à situação jurídica do Recorrente no período compreendido entre 1 de Janeiro e 17 de Julho de 2019, entende o Recorrente que ainda exerceu as respectivas funções nesse período, e o serviço ainda recebeu as suas justificações das faltas por doença e organizou o horário de turno dele.
45. Por outra palavra, no entendimento do Recorrente, ele ainda exerceu funções no supracitado período, e apresentou diariamente o atestado médico justificativo da falta por doença, reunindo os requisitos de falta justificada. Ademais, se o Recorrente recuperasse no respectivo período, precisaria regressar de imediato ao posto de trabalho para trabalhar.
46. O exercício das funções significa que o Recorrente tinha todos os direitos e deveres jurídicos, incluindo mas não se limitando a receber os vencimentos, prémios de antiguidade e subsídios correspondentes, bem como produzir o efeito de acumulação do tempo de antiguidade.
47. Por isso, o despacho recorrido interpretou erradamente a expressão “automaticamente” na lei e determinou que a data de aposentação do Recorrente retroagiu ao dia 1 de Janeiro de 2019, intentando exigir ao Recorrente a reposição de todas as remunerações para reconstituição natural.
48. Porém, os direitos derivados do período entre 1 de Janeiro e 31 de Julho de 2019 incluem não só os vencimentos, mas também a contagem de antiguidade (tempo) que já teve lugar, o que não pode ser objecto de reposição, porque o tempo passado é facto estabelecido.
49. Além disso, entende o Recorrente que não pode o tempo despendido no procedimento administrativo justificar a violação grave dos seus direitos, o que será injusto para o Recorrente. Se o órgão administrativo só notifique o Recorrente da aposentação 2 anos depois, e o Recorrente exerça efectivamente funções nesse período, não poderá receber qualquer vencimento? Ou deverá depositar os vencimentos desses 2 anos para devolver ao serviço no futuro?
50. Indicou-se na Proposta n.º 700414/DRHDGR/2019P o seguinte:
“5. Segundo os elementos deste Departamento, o guarda de primeira A tem actualmente 40 anos, e desde 13 de Janeiro de 1997 até 31 de Dezembro de 2018, completou, no CPSP:
5.1 21 anos e 11 meses de 28 dias de serviço para efeitos de aposentação;
5.2 21 anos e 11 meses de 28 dias de serviço para efeitos de prémio de antiguidade;
6. O guarda de primeira A recebe actualmente um vencimento mensal correspondente ao índice 300 da tabela indiciária, e tem direito a gozar do 4º prémio de antiguidade a partir de 8 de Janeiro de 2017.”
51. O despacho recorrido determinou que a data de aposentação do Recorrente retroagiu ao dia 1 de Janeiro de 2019, pelo que a entidade recorrida fixou erradamente o tempo de serviço do Recorrente em apenas 21 anos (até 31 de Dezembro de 2018), que deveria ser 22 anos (desde 13 de Janeiro de 1997 até 13 de Janeiro de 2019), violando o direito adquirido do Recorrente. Na verdade, a relação de trabalho do Recorrente permaneceu até 31 de Julho de 2019.
52. Obviamente, o despacho recorrido determinou erradamente a data de aposentação, incorreu no erro na contagem do tempo de serviço do Recorrente, e em consequência, afectou a contagem da respectiva antiguidade, causando danos ao montante da pensão de aposentação a receber pelo Recorrente, calculada com base na sua antiguidade (21 e 22 anos).
53. Nos termos dos art.ºs 264.º e 265.º do ETAPM, o índice da pensão de aposentação que o Recorrente deve receber é 165, e o índice fixado pelo despacho recorrido é 155, verificando-se, assim, uma diferença de 10.
Supõe-se que a relação de trabalho permaneceu desde 13 de Janeiro de 1997 até 5 de Agosto de 2019, o tempo de serviço é de 22 anos. A pensão de aposentação é calculada segundo a seguinte fórmula:
em que:
Vm – Média ponderada dos vencimentos únicos das categorias ou cargos exercidos nos 36 meses que precederem imediatamente o primeiro dia do mês em que se verificar a aposentação
T – Anos completos de serviço para efeitos de aposentação
No caso de 21 anos de serviço
No caso de 22 anos de serviço
54. Por isso, o Recorrente tem expectativa razoável da sua antiguidade, e o acto recorrido lesou directamente tal expectativa do Recorrente.
55. O despacho recorrido determinou independentemente que o Recorrente devia aposentar-se automaticamente em 1 de Janeiro de 2019, prejudicando, sem dúvida, a contagem da antiguidade do Recorrente, causando-lhe uma perda mensal de pensão de aposentação correspondente ao índice 10.
56. Por isso, o Recorrente tem expectativa razoável da sua antiguidade, e o acto recorrido lesou directamente tal expectativa do Recorrente.
57. O despacho recorrido determinou independentemente que o Recorrente devia aposentar-se automaticamente em 1 de Janeiro de 2019, prejudicando, sem dúvida, a contagem da antiguidade do Recorrente, causando-lhe uma perda mensal de pensão de aposentação.
58. Se, conforme o despacho proferido pelo Secretário para a Segurança em 17 de Julho de 2019, é autorizada a desligação obrigatório do serviço do Recorrente, a partir de 1 de Janeiro de 2019, para efeitos de aposentação, será gravemente afectado o direito do Recorrente. Para o Recorrente, a sua expectativa legítima no período entre 1 de Janeiro e 17 de Julho de 2019 reside em não mudança da sua situação jurídica e exercício das funções, bem como o gozo duma série de vencimentos e subsídios legais, e a contagem da antiguidade nos termos da lei.
59. De acordo com as disposições jurídicas, o Recorrente, sendo um trabalhador da função pública, tem direito de receber vencimento, prémio de antiguidade, subsídio de férias, remuneração suplementar, subsídio de família, subsídio de residência e subsídio de refeição durante o exercício de funções, bem como receber a pensão de aposentação após a aposentação. E o mais importante é que, em 1 de Janeiro de 2019, o Recorrente encontrou-se em falta justificada, e o respectivo período entrará na contagem da sua antiguidade, o que é directamente relacionado com o montante da pensão de aposentação a receber pelo Recorrente, calculada com base na sua antiguidade.
60. De facto, os diversos direitos acima referidos, incluindo o vencimento, já foram distribuídos ao Recorrente conforme o procedimento determinado.
61. O recorrente já adquiriu, sem dúvida, uma série de direitos nos termos da lei. Mas no dia 17 de Julho de 2019, o Secretário para a Segurança proferiu despacho ordenando a reposição dos direitos adquiridos pelo Recorrente, incluindo vencimento, prémio de antiguidade, subsídio de férias, remuneração suplementar, subsídio de família, subsídio de residência, subsídio de refeição e contagem da antiguidade.
62. As remunerações mensais já foram utilizadas pelo Recorrente para sustentar os encargos da vida, e o recurso contencioso não tem efeito de suspender a eficácia de actos administrativos, razão pela qual o Recorrente tem que requerer à entidade recorrida a amortização, o que causa inconveniência ao Recorrente.
63. Por isso, o despacho recorrido violou o art.º 107.º, n.º 1, al. a) do ETAPM e o art.º 117.º do CPA, bem como os princípios da tutela de direito adquirido e da legalidade, e deve ser anulado.
64. Nos termos do art.º 39.º da Lei Básica, os residentes de Macau gozam do direito a benefícios sociais nos termos da lei. O bem-estar e a garantia de aposentação dos trabalhadores são legalmente protegidos.
65. Nos termos do art.º 41.º da Lei Básica, os residentes de Macau gozam dos outros direitos e liberdades assegurados pelas leis da Região Administrativa Especial de Macau.
66. O Recorrente tem direito de receber a pensão de aposentação com base na antiguidade, que serve de garantia da sua vida após aposentação. Porém, o despacho recorrido determinou arbitrariamente que o Recorrente encontrou-se obrigatoriamente aposentado a partir de 1 de Janeiro de 2019, e ignorou que no mesmo dia, o Recorrente ainda ficou em efectividade de funções, o que não só lesou todas as remunerações do Recorrente, mas também causou directamente a redução da antiguidade deste, afectando o montante da pensão de aposentação a receber pelo Recorrente, calculada com base na sua antiguidade.
67. A garantia de aposentação do Recorrente é protegida pela Lei Básica e pelo ETAPM, e é um direito fundamental do Recorrente.
68. Por isso, de acordo com o art.º 122.º, n.º 2, al. d) do CPA, deve ser nulo o respectivo acto administrativo por ofender o direito fundamental do Recorrente.
Citada a entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Segurança contestar com os fundamentos constantes de fls. 311 a 317.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, veio o Recorrente fazê-lo.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer.
Foram colhidos os Vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
Dos elementos constantes destes autos e do processo administrativo apenso apurou-se a seguinte factualidade:
1. Por despacho datado de 17.07.2019 do Secretário para a Segurança proferido na Proposta nº 700414/DRHDGR/2019P do CPSP, o Guarda de primeira A foi desligado do serviço com efeito a 1 de Janeiro do mesmo ano – cf. 49 a 52 do PA -;
2. Por despacho da Secretária para a Administração e Justiça de 19.08.2019 publicado na II Série do BO nº 35 de 28.08.2019 foi fixada a pensão de aposentação nos termos que constam da respectiva publicação e aqui se dão por reproduzidos com efeitos a 1 de Janeiro do mesmo ano – cf. fls. 60 -;
3. Por despacho do Director de Serviços das Forças de Segurança de Macau foi ordenado que o ora Recorrente devolvesse o valor de MOP300.311,90 referente aos montantes recebidos indevidamente entre 01.01.2019 e 31.07.2019;
4. Notificado daquela decisão veio o ora Recorrente reclamar da mesma a qual foi indeferida por despacho de 12.12.2019 vindo a interpor recurso hierárquico desta decisão – cf. fls. 32 a 37 -;
5. Por despacho datado de 25.02.20202 do Secretário para a Segurança veio aquele recurso hierárquico indeferido com os seguintes fundamentos:
Governo da Região Administrativa Especial de Macau
Gabinete do Secretário para a Segurança
DESPACHO NO. 022/SS/2020
Assunto: Recurso hierárquico
Recorrente: A, ex-guarda de primeira do CPSP n°. XXXXXX
Depois de ter verificado os conteúdos do recurso hierárquico e dos documentos anexados ao oficio da Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau nº. 238/DARH/DA/2020D, os factos importantes neles existentes incluem: o recorrente faltou ao serviço por motivo de doença no período compreendido entre 01 de Abril de 2016 e 21 de Outubro de 2017 que já atingiu acumulavelmente 18 meses. Dado a Lei nº. 18/2018 ter entrado em vigor a partir 01 de Janeiro de 2019 e nos termos da alínea a) do nº. 1 do artigo 107º do “Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau” alterado pelo referido diploma, é automaticamente desligado do serviço para efeitos de aposentação, independentemente de o recorrente ter capacidade ou não para o trabalho, nestes termos, eu próprio, proferi despacho em 17 de Julho de 2019 na proposta do CPSP nº. 700414/DRHDGR/2019P, tendo autorizado ao recorrente a desligação obrigatória do serviço para efeitos de aposentação a partir de 01 de Janeiro de 2019. O recorrente recebeu em 05 de Agosto de 2019 a notificação do CPSP sobre a desligação obrigatória do serviço para efeitos de aposentação. Posteriormente, a Secretária para a Administração e Justiça com a respectiva competência proferiu despacho em 19 de Agosto de 2019, sendo fixada, com início em 01 de Janeiro de 2019, uma pensão de aposentação do recorrente correspondente ao índice 155. O recorrente, no período compreendido entre 01 de Janeiro e 17 de Julho de 2019, sempre se encontrava em falta ao serviço por motivo de doença ou por gozo de férias anuais, não tendo efectivamente executado o serviço.
Sendo que, a partir de 01 de Janeiro de 2019, a situação jurídica do recorrente já se transitou em aposentação e começou a receber a pensão de aposentação. De facto, o recorrente também não executou efectivamente o serviço. Pelo que, o recorrente não tinha o direito a receber as retribuições do período compreendido entre Janeiro de Julho de 2019. Nos termos do artigo 39º da Lei nº. 15/2017, o recorrente deve restituir à Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau as retribuições recebidas referentes ao período compreendido entre Janeiro e Julho de 2019.
Nestes termos, o Secretário para a Segurança, no uso de competência conferida pela Ordem Executiva nº. 182/2019 e nos termos do artigo 161º do Código do Procedimento Administrativo, indefiro o presente recurso hierárquico, reconhecendo o acto recorrido.
Ordeno que notifique o recorrente que, no prazo de trinta dias, possa interpor, junto do Tribunal de 2ª. Instância, o recurso contencioso contra o presente despacho. Aos 25 de Fevereiro de 2020, no Gabinete do Secretário para a Segurança da RAEM.
O Secretário para a Segurança,
(ass. - vide original)
Wong Sio Chak
6. Por carta registada recebida em 06.03.2020 foi o ora Recorrente notificado daquela decisão;
7. Em 03.04.2020 o Recorrente apresentou este recurso contencioso.
b) Do Direito
Nas suas alegações e conclusões de recurso vem o Recorrente impugnar o acto indicado na factualidade apurada em 3, mas todas as suas alegações e conclusões de recurso referem-se ao acto indicado na factualidade apurada em 1, ao qual vem imputar o vício de violação de lei e a ofensa do direito fundamental do Recorrente à aposentação nos termos do artº 122º nº 2 al. d) do CPA.
Porém, o acto relativamente ao qual o Recorrente imputa os vícios invocados nem é objecto destes autos nem consta que tenha sido impugnado.
É o seguinte o teor do Doutor Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
«1.
A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Segurança datado de 25 de Fevereiro de 2020 que indeferiu o recurso hierárquico por si interposto do acto praticado pela Directora dos Serviços das Forças de Segurança de Macau que determinou a reposição dos vencimentos, prémios de antiguidade e subsídios que lhe foram pagos no período situado entre 1 de Janeiro e 31 de Julho de 2019.
2.
2.1.
A leitura da petição inicial do presente recurso contencioso revela, salvo o devido respeito, que o Recorrente labora em erro.
Na verdade, a alegação do Recorrente tende a demonstrar a ilegalidade do acto administrativo praticado pela Entidade Recorrida em 17 de Julho de 2019 e que determinou a sua desligação do serviço com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2019.
No entanto, o presente recurso tem por objecto, de acordo com a respectiva identificação feita pelo Recorrente, o acto praticado em 25 de Fevereiro de 2020 que indeferiu o recurso hierárquico do acto da Directora dos Serviços das Forças de Segurança de Macau que determinou a reposição por parte do Recorrente de quantias por si indevidamente recebidas.
Ora, relativamente a este acto, que é o impugnado, não se consegue vislumbrar que vício ou vícios o Recorrente lhe imputa.
Observemos.
O Recorrente foi desligado do serviço para efeitos de aposentação por despacho da Entidade Recorrida datado de 17 de Julho de 2019, o qual que lhe foi devidamente notificado. Nos termos desse despacho, os efeitos da dita desligação do serviço do Recorrente produziram-se desde 1 de Janeiro desse ano de 2019.
Este acto administrativo que, como dissemos, foi objecto de notificação ao Recorrente, não foi por este impugnado, nem graciosa nem contenciosamente, em devido tempo e por isso se consolidou na ordem jurídica como caso decidido.
Ao contrário do que é agora alegado pelo Recorrente, o mesmo não enferma da nulidade a que se refere a alínea d) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) que possa aqui ser conhecida ex officio ao abrigo da norma do n.º 2 do artigo 123.º do CPA. Com efeito, ainda que o acto praticado pela Entidade Recorrida em 17 de Julho de 2019 implicasse uma verdadeira e autêntica retroactividade e não mera retrodatação, a verdade é que, ainda assim, estaríamos perante mera violação de lei, no caso, as normas dos artigos 117.º n.º 1 e 118.º, n.º 2 do CPA, conducente à respectiva anulabilidade e não perante uma nulidade por violação do conteúdo essencial de um direito fundamental que, de todo, não ocorre.
Como se sabe, um acto administrativo eficaz, como é o caso do referido acto que determinou a desligação de serviço do Recorrente, tem, além de outros, dois importantes efeitos que aqui importa salientar. Por um lado, (i) o chamado efeito vinculativo (Bindungswirkung) que se traduz no carácter obrigatório das determinações contidas no acto administrativo para os sujeitos da relação jurídica sobre a qual incide, sendo que tal efeito vinculativo abrange não só o destinatário do acto, mas também o seu autor e, por outro lado, (ii) um efeito de previsão (Tatbestandwirkung) que implica a necessidade de todos os órgãos públicos, incluindo os tribunais (com excepção, naturalmente, daquele perante o qual o acto seja impugnado), observarem o acto administrativo ainda que subsistam dúvidas acerca da sua legalidade, e de o tomarem como pressuposto das suas decisões (assim, MARCELO REBELO DE SOUSA – ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, 2007, p. 185, que seguem de muito perto a lição colhida na doutrina alemã: cfr., por todos, STEFFEN DETTERBECK, Allgemeines Verwaltungsrecht, Munique, 2018, p. 170).
Isto dito.
A Entidade Recorrida, como vimos, praticou um acto Admnistrativo através do qual desligou o Recorrente do serviço para efeitos de aposentação.
De acordo com o artigo 44.º, n.º 1, alínea d) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), o exercício de funções em cargo público cessa por desligação do serviço para efeitos de aposentação.
Decorre do n.º 1 do artigo 174.º do mesmo Estatuto que o abono da remuneração, seja o vencimento sejam remunerações acessórias, pressupõe o exercício de funções públicas [«(…) pela circunstância de exercer funções públicas»].
Deste modo, tendo o exercício de funções públicas por parte do Recorrente cessado em 1 de Janeiro de 2019 em virtude da sua desligação do serviço, irrelevando saber se o acto que determinou a desligação a partir dessa data com a consequente cessação é legal ou ilegal, é certo que, por força desse acto, deixou de existir fundamento legal, deixou, se quisermos, de haver título jurídico para, a partir de 1 de Janeiro de 2019, serem abonadas ao Recorrente as remunerações cuja restituição foi determinada pelo acto recorrido, podendo por isso dizer-se serem as mesmas juridicamente indevidas.
Ora, nos termos do artigo 39.º da Lei n.º 15/2017, os dinheiros públicos indevidamente pagos devem ser objecto de reposição por parte de quem os recebeu, cabendo à entidade processadora dos pagamentos a decisão de ordenar tal reposição. Foi o que, no caso, sucedeu.
Não se vê, pois, razão para acolher a pretensão impugnatória do Recorrente (…).
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o presente recurso contencioso deve ser julgado improcedente.».
Concordamos integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer que antecede na parte em que é reproduzido supra, à qual integralmente aderimos sem reservas, e sufragando a solução nele proposta entendemos que o presente recurso contencioso apenas pode ser julgado improcedente uma vez que relativamente ao acto aqui impugnado nenhum vício é assacado.
E ainda que se quisesse atacar um acto anterior que tivesse levado à prática daquele, haveria que o fazer e identificar expressamente se ainda estivesse em tempo para tal.
Porém, o acto impugnado é expressamente identificado no introito da p.i. e sem margem para dúvidas o objecto do processo é a decisão proferida no recurso hierárquico necessário, relativamente ao qual, reitera-se nenhum vício se invoca.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
Pelo que, nada mais havendo a acrescentar e mostrando-se desnecessárias outras considerações, impõe-se decidir em conformidade.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, negando-se provimento ao recurso mantém-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente fixando a taxa de justiça em 6 Uc´s.
Registe e Notifique.
RAEM, 22 de Abril de 2021
(…)”; (cfr., fls. 367 a 376-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Ainda inconformado, o referido recorrente (contencioso) recorreu para esta Instância, pedindo a revogação do Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado; (cfr., fls. 384 a 404-v).
*
Após resposta da entidade recorrida pugnando pela improcedência do dito recurso, foram os autos remetidos a este Tribunal de Última Instância; (cfr., fls. 416 a 417).
*
Em sede de vista, e mantendo o teor do seu anterior Parecer de fls. 346 a 348, é o Ministério Público de opinião que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 427 a 427-v).
*
Cumpre decidir.
Fundamentação
2. Antes de mais, apresenta-se útil consignar a seguinte “nota preliminar”.
Compreende-se que o recorrente esteja inconformado com a “situação” em que se encontra, (de ter de “devolver” quantias que recebeu).
Porém, e com todo o respeito o dizemos, a mesma (situação) – como o Acórdão recorrido claramente o demonstra – apenas ao próprio (recorrente) se deve, afigurando-se-nos que importa ter presente que o direito de recorrer de qualquer decisão – seja ela “administrativa” ou “judicial” – não significa (nem pode ser) o “vale tudo”…
De nada serviriam as “normas processuais” sobre a matéria dos “recursos”, como no caso sucede com as estatuídas sobre o “recurso contencioso” na Capítulo II do C.P.A.C.; (cfr., art°s 20 e segs., sobre a sua natureza e finalidade do recurso, prazos, recorribilidade, legitimidade, etc…).
Isto dito, vejamos.
O (anterior) recurso contencioso no âmbito do qual foi proferido o Acórdão agora recorrido tinha como objecto a “decisão administrativa proferida em 25.02.2020” que confirmou anterior decisão que determinou a referida “devolução de quantias monetárias” por parte do recorrente.
E, como se colhe do dito Acórdão recorrido, assim sucedeu dado que:
- o ora recorrente, enquanto guarda do Corpo de Polícia de Segurança Pública, faltou ao serviço por motivo de doença por um longo período, nomeadamente, e para o que aqui interessa, no período compreendido entre 01.04.2016 e 21.10.2017;
- por tal motivo, (mais de 18 meses consecutivos de falta por doença, e por possuir 15 anos de serviço para efeitos de aposentação), por despacho do Secretário para a Segurança de 17.07.2019, (que lhe foi pessoalmente notificado em 05.08.2019), foi desligado de serviço para efeitos de aposentação com efeitos a partir de 01.01.2019;
- seguidamente, (na sequência do assim decidido), por despacho da (então) Secretária para a Administração e Justiça de 19.08.2019 publicado no B.O. n.° 35 de 28.08.2019, foi-lhe fixada a pensão de aposentação com efeitos referentes à dita data de 01.01.2019;
- posteriormente, a Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau detectou ter havido “duplicação de pagamento de quantias” a favor do recorrente, pois que, por vários meses recebeu, em simultâneo, o seu “vencimento” e a “pensão de aposentação”;
- e então, mantendo-se nesta situação, tão só em 28.11.2019, após notificado do despacho da Directora da Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau no sentido de que devia devolver MOP$300.311,90 por montantes indevidamente recebidos, “reagiu à situação”, reclamando, e, após o seu indeferimento, (em 12.12.2019), recorrendo hierarquicamente, sendo esta decisão de improcedência do recurso, (de 25.02.2020), o referido objecto do (anterior) “recurso contencioso” interposto no Tribunal de Segunda Instância, (que, como se viu, afirmando que o “acto administrativo” recorrido se apresentava legal em face do regime que lhe era aplicável, e, por sua vez, assente em anteriores decisões administrativas consolidadas na ordem jurídica – o despacho do Secretário para a Segurança de 17.07.2019, (como o qual foi deligado de serviço com efeitos a partir de 01.01.2019), e o despacho da Secretária para a Administração e Justiça de 19.08.2019 que lhe fixou pensão de aposentação – julgou-o improcedente).
Diz (agora) o recorrente que não impugnou dos ditos despachos de “17.07.2019” e de “19.08.2019” porque “ignorava que dos mesmos podia recorrer”, e, repetindo o que antes alegou perante o Tribunal de Segunda Instância, insiste em não querer devolver a referida “quantia indevidamente recebida”.
Sucede, porém, que em 20.03.2020 e em 25.03.2020, (cfr., fls. 12 e 13 do P.A.), e, assim, antes da apresentação do recurso contencioso no Tribunal de Segunda Instância, (em 03.04.2020), requereu o pagamento da dita quantia em prestações o que lhe foi deferido, tendo até efectuado 3 prestações; (cfr., fls. 5 a 7 do P.A.).
E, nesta conformidade, (e independentemente do demais), cabe pois notar que o aludido “pedido de pagamento em prestações”, porque efectuado “sem reserva”, assim como o posterior pagamento de 3 prestações, não deixa de significar uma clara “aceitação – tácita – do acto” para efeitos do art. 34° do C.P.A.C., o que retira ao recorrente “legitimidade” para o recurso que apresentou, e que sendo de conhecimento oficioso, constitui causa de sua “rejeição liminar” nos termos do art. 46°, n.° 2, al. d) do C.P.A.C., com isto solucionada se apresentando a presente lide recursória; (sobre a matéria, cfr., v.g., V. Lima e A. Dantas in, “C.P.A.C. Anotado”, pág. 141 e segs.).
*
Uma nota final se mostra de consignar, apenas para dizer que, (seja como for), o inconformismo do ora recorrente não tem qualquer “razão de ser”, pois que as quantias cuja devolução questiona correspondem (apenas) a quantias que recebeu “indevidamente”, pois que de Janeiro a Julho de 2019, recebeu, simultaneamente, o seu “vencimento” e a “pensão de aposentação”, o que, como se mostra de fácil compreensão, não podia ocorrer, nada tendo o recorrente efectuado enquanto tal “duplicação” sucedia, em manifesto “enriquecimento ilegítimo”, e apenas “reagindo” quanto confrontado com a sua “devolução”.
E como citando o Ministério Público se diz no Acórdão recorrido: “nos termos do artigo 39.º da Lei n.º 15/2017, os dinheiros públicos indevidamente pagos devem ser objecto de reposição por parte de quem os recebeu, cabendo à entidade processadora dos pagamentos a decisão de ordenar tal reposição”, cabendo, igualmente, notar que ambas as decisões de “17.07.2019” e “19.08.2019” são “actos administrativos consolidados”, na ordem jurídica, nenhum motivo para a sua ilegalidade – “nulidade” – se vislumbrando.
Decisão
3. Nos termos e fundamentos expostos, decide-se rejeitar o presente recurso.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça que se fixa em 5 UCs.
Registe e notifique.
(…)”; (cfr., fls. 429 a 441 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
*
*
Notificado da decisão que atrás se deixou (integralmente) transcrita, da mesma veio o recorrente reclamar, dizendo o que segue:
“1. A decisão reclamada julgou improcedente o recurso, tendo como fundamento principal o seguinte:
“E, nesta conformidade, (e independentemente do demais), cabe pois notar que o aludido “pedido de pagamento em prestações”, porque efectuado “sem reserva”, assim como o posterior pagamento de 3 prestações, não deixa de significar uma clara “aceitação – tácita – do acto” para efeitos do art.º 34.º do CPAC, o que retira ao recorrente “legitimidade” para o recurso que apresentou, e que sendo de conhecimento oficioso, constitui causa de sua “rejeição limiar” nos termos do art.º 46.º, n.º 2, al. d) do CPAC, com isto solucionada se apresentando a presente lide recursória; (sobre a matéria, cfr.,, v.g., V. Lima e A. Dantas in, “C.P.A.C. Anotado”, pág. 141 e segs.).” (sublinhado e negrito nosso)
2. Salvo o devido respeito, o reclamante não concorda com o supracitado fundamento.
3. Nos termos do art.º 22.º do CPAC: “o recurso contencioso não tem efeito suspensivo da eficácia do acto recorrido;”
4. Por isso, por o recurso contencioso não suspender a eficácia do acto administrativo praticado pela entidade recorrida (ou seja a decisão administrativa de 25 de Fevereiro de 2020, que confirmou a “reposição das quantias” por parte do reclamante), e ao abrigo do disposto no art.º 39.º, n.º 3 da Lei n.º 15/2017, a falta de reposição de dinheiros públicos por parte do reclamante determinará a sua cobrança coerciva.
5. Daí que, na altura, se o reclamante não quisesse que a Administração Pública iniciasse o mecanismo de cobrança coerciva (que poderia resultar em mais despesas de justiça e recursos judiciais), não lhe restou qualquer alternativa senão efectuar a reposição à entidade processadora, ou interpor recurso contencioso!
6. Dito por outra palavra, a reposição em prestações, efectuada pelo reclamante à entidade processadora, não pode ser considerada como aceitação tácita da decisão de reposição de dinheiros públicos.
7. Por outro lado, de acordo com o art.º 267.º, n.º 2 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, e tomando como referência as formalidades do requerimento da pensão de aposentação do Fundo de Pensões, em caso de aposentação obrigatória, o requerimento da pensão de aposentação inicia-se por decisão ou proposta do serviço a que pertence o trabalhador. (vide o anexo)
8. Por isso, a atribuição da pensão de aposentação não depende da vontade do reclamante, que por sua vez, não tinha a vontade de requerer e receber, de forma activa e por iniciativa própria, a pensão de aposentação no período entre 1 de Janeiro e Julho de 2019.
9. Além disso, de acordo com o art.º 39.º, n.º 1 e n.º 2 da Lei n.º 15/2017, competem à entidade processadora o processamento e a decisão relativa à reposição de dinheiros públicos indevidamente ou a mais pagos, e o recurso contencioso não tem efeito suspensivo.
10. Dito por outra palavra, quando não haja decisão da entidade processadora de exigir ao reclamante a reposição de “dinheiros públicos indevidamente ou a mais pagos”, o reclamante não assume o encargo de restituir qualquer quantia à entidade processadora; e o reclamante só se obriga a restituir o “enriquecimento sem causa” depois da decisão feita pela entidade processadora no sentido de lhe exigir a reposição de dinheiros públicos.
11. Importa salientar que, como foi referido nos supracitados pontos 4 a 6, não obstante que o reclamante requeresse a reposição das quantias em prestações, tal conduta não equivaleu à aceitação tácita da respectiva decisão, estando em causa a eficácia do acto administrativo!
12. Porém, é de mencionar que, o que o reclamante tem impugnado é, no período entre 1 de Janeiro e 17 de Julho de 2019, ele apresentou sempre atestados médicos à Junta de Saúde, porque, obviamente, ele ainda exerceu cargo no CPSP, tendo assim o dever de apresentar à Junta de Saúde atestados médicos justificativos das suas faltas por doença.
13. Em termos directos, o reclamante não está a discordar da reposição, mas entende que no supracitado período, ainda trabalhou na força policial e era razoável a recepção do vencimento, podendo a entidade processadora exigir a reposição da pensão de aposentação paga ao reclamante naquele período, mas não os vencimentos e subsídios, pelo que o despacho recorrido incorreu, obviamente, em erro nos pressupostos de facto e de direito, e deve ser anulado;
14. Se assim não for entendido, por mera cautela de patrocínio, e como foi referido na petição de recurso, o Secretário para a Segurança proferiu, em 17 de Julho de 2019, despacho determinando a desligação do serviço para efeitos de aposentação do reclamante a partir de 1 de Janeiro de 2019, e face à impossibilidade de impugnação desse despacho, entende o reclamante que naquele período, ainda exerceu cargo na força policial e constituiu-se na situação de ausência justificada por motivo de doença, pelo que o supracitado período deve ser contado como tempo de serviço para efeitos do cálculo da pensão de aposentação. (vide os pontos 1 a 28, 29, e 56 a 69 da conclusão da petição de recurso)
15. Pelo exposto, o reclamante não concorda com a decisão sumária proferida pelo TUI no dia 28 de Julho de 2021, e vem, nos termos do art.º 620.º do CPC, aplicável por força do art.º 149.º, n.º 1 do CPAC, pedir ao MM.º Juiz para conhecer de novo do recurso”; (cfr., fls. 446 a 448 e 5 a 12 do Apenso).
*
Oportunamente, após adequada tramitação processual, foram os autos conclusos para visto dos Mmos Juízes-Adjuntos e, seguidamente, (nada vindo de novo), inscritos em tabela para apreciação da reclamação em conferência.
*
Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.
Fundamentação
2. Como resulta do que até aqui se deixou relatado, vem o recorrente reclamar da “decisão sumária” pelo ora relator proferida.
Constatando-se que a dita decisão sumária deu como verificada uma “aceitação tácita” do acto administrativo pelo ora reclamante impugnado, daí concluindo pela “rejeição do recurso trazido a esta Instância”, importa ver do seu acerto.
Contra o entendimento assumido na referida decisão, diz o ora reclamante que “a reposição em prestações, efectuada pelo reclamante à entidade processadora, não pode ser considerada como aceitação tácita da decisão de reposição de dinheiros públicos”; (cfr., ponto 6°).
Somos porém de opinião que labora o ora reclamante em equívoco, muito não se mostrando necessário dizer para o demonstrar.
Vejamos.
Nos termos do art. 34° do C.P.A.C. (invocado na decisão ora reclamada):
“1. Não pode recorrer quem, sem reserva, total ou parcial, tenha aceitado, expressa ou tacitamente, o acto, depois de praticado.
2. A aceitação tácita é a que deriva da prática espontânea de facto incompatível com a vontade de recorrer.
3. A reserva é produzida por escrito perante o autor do acto.
4. A execução ou acatamento por funcionário ou agente de acto de que seja destinatário não se considera aceitação tácita do acto executado ou acatado, excepto quando dependa da sua vontade a escolha da oportunidade da execução”.
Como nota Vieira de Andrade, a qualificação dos factos com vista a integrá-los como “aceitação tácita”, ou não, é uma “questão de direito”; (in “A aceitação do Acto Administrativo”, B.F.D.U.C., Vol. Comemorativo, 2002, pág. 27).
E sendo, exactamente, esta a questão a tratar, e atento o estatuído no n.° 1 do dito art. 34°, cabe referir que se tem entendido como “aceitação expressa” a manifestação de vontade livre e consciente no sentido claro e inequívoco de que alguém concorda com o acto administrativo praticado, (assim não sucedendo, v.g., quando a aceitação é feita sob “coacção física” ou “moral”, ou assente em “erro” ou “dolo”; cfr., art°s 239° a 250° do C.C.M.).
Por sua vez, mostra-se de considerar que uma aceitação do acto administrativo é “tácita” quando assente em “actos incompatíveis” com a vontade de recorrer, emergindo de actos e factos claros e concludentes que apontam, inequivocamente, no sentido de que alguém se conformou com o acto.
E, na ponderação sobre tal “matéria”, importa ter em conta o estatuído no n.° 1 do transcrito art. 34°, onde para se evitar que uma “determinada conduta” seja interpretada como uma “aceitação tácita” de um acto administrativo, prevê, expressamente, a possibilidade de o seu destinatário manifestar (e produzir) “reserva por escrito”, (tal como previsto está no n.° 3 do aludido preceito).
Ora, sobre esta “circunstância”, vale também a pena atentar no que salienta J. Cândido de Pinho, (citando V. de Andrade in, “Justiça Administrativa”, 8ª ed., pág. 305 a 306; e 3ª ed., pág. 226), que observa que, “Para afastar o perigo da aceitação, deve o interessado fazer uma declaração de reserva: o declarante reserva-se o direito de impugnar oportunamente a decisão administrativa pelo meio mais adequado. Esta declaração de reserva deve ser expressa e por escrito (n° 3).
Não fazendo essa declaração de reserva e tendo-se comportado de forma a que o seu comportamento possa ser interpretado como aceitação, o uso de meio reactivo pela via contenciosa poderá ser encarado como "venire contra factum proprium" e, por isso, atentatório do princípio da boa fé”; (in “Notas e Comentários do C.P.A.C.”, Vol. I, pág. 263, nota II).
Sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, cremos ser a situação dos autos.
Na verdade, in casu, o ora reclamante não só “requereu o pagamento em prestações” do montante do qual tinha sido notificado para reembolsar, como efectuou, (efectivamente), o pagamento de (não uma, nem duas, mas de) três “prestações”, sem que em momento algum tenha manifestado qualquer “reserva” (ou qualquer outra referência) quanto à sua pretensão recursória que, agora, afirma ter e pretende manter.
Alega também que tinha que efectuar o pagamento porque o recurso não tinha “efeito suspensivo”.
É verdade.
Todavia, em nossa opinião, devia então “produzir a dita reserva (por escrito)”, pois que, esta, cremos nós, tem exacta aplicação para idênticas situações.
Vale a pena uma outra, (última), consideração.
Tem a ver com o preceituado no n.° 4, que poderia, (eventualmente), dar outra aparência à situação dos autos.
Porém, cabe atentar que este normativo tem como (claro) objectivo proteger o “funcionário” ou “agente da administração” em face do dever de obediência e respeito aos seus superiores hierárquicos.
E, como igualmente, nota Cândido de Pinho:
“O n.° 4 é dirigido especialmente aos casos de execução ou de acatamento de actos que têm por destinatários os próprios funcionários administrativos. Pelo melindre ou pela fragilidade da sua situação jurídica substantiva na sua relação com os seus superiores e, também, tendo em atenção o quadro de uma relação de emprego que aconselha cautelas reactivas, o legislador preocupou-se em criar aqui uma salvaguarda”.
Ora, no caso, o preceito em questão não tem aplicação dado que o ora reclamante já se encontrava “desligado do serviço”.
Assim, (e afigurando-se-nos clarificado o equívoco do ora reclamante), resta decidir como segue.
Decisão
3. Nos termos que se deixam expostos, em conferência, acordam indeferir a apresentada reclamação.
Pagará o reclamante a taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 29 de Setembro de 2021
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
Proc. 108/2021-I Pág. 10
Proc. 108/2021-I Pág. 11