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Processos n.º 176/2021 e 176/2021/A
(Autos de recurso cível)

Data: 15/Outubro/2021

Recorrente:
- Comissão Administrativa dos Edifícios A, B e C (ré)

Recorridos:
- D e E (autores)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
D e E, melhor identificados nos autos (doravante designados por “autores” ou “recorridos”), intentaram contra a Comissão Administrativa dos Edifícios A, B e C (doravante designada por “ré” ou “recorrente”) acção declarativa sob a forma ordinária junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM, pedindo que sejam reconhecidos como legítimos e únicos detentores do direito de uso exclusivo dos lugares de estacionamento mencionados nos autos e seja a ré condenada a pagar aos autores quantia pecuniária, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Citada a ré, não ofereceu contestação.
Em consequência, foram considerados confessados os factos articulados pelos autores e, conclusos os autos ao Juiz Presidente de Tribunal Colectivo para prolação da sentença, foi a acção julgada procedente.
Inconformada, recorreu a ré jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
     “1. Da ilegitimidade substantiva da Ré – Na presente acção de reivindicação (vide o alegado nos artigos 32º a 36º e 39º a 40º da petição inicial) discute-se:
     (i) a titularidade do direito real de uso exclusivo sobre os lugares de estacionamento n.ºs 1 a 31 sitos no 1º andar do prédio em causa,
     (ii) a sua restituição à posse dos AA. livres e devolutos de pessoas e bens, e
     (iii) a indemnização pelo dano da privação do uso dos lugares de estacionamento calculado em função do seu valor locativo de mercado ou por enriquecimento sem causa.
     2. Devia, portanto a acção ter sido proposta contra o possuidor ou detentor actual da coisa (Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 114, nota 3), ou seja, devia ter sido proposta contra as pessoas indicadas nos artigos 12º, 20º, 28º e 35º da petição inicial e no ponto 5 do petitório, cujos veículos alegadamente ocupam os lugares de estacionamento reivindicados pelos AA.
     3. Sucede que a acção não foi proposta contra os possuidores ou detentores actuais dos lugares de estacionamento n.ºs 1 a 31 sitos no 1º andar do prédio em causa (facilmente identificáveis pelas matrículas dos veículos lá estacionados), nem contra os condóminos do prédio em causa, mas apenas e contra o órgão de administração do condomínio!
     4. Deve assim ser revogada a sentença recorrida, com absolvição da Ré da instância, face ao disposto no art. 413º, alínea e) e 230º, n.º 1, alínea d), ambos do CPC ou por preterição de litisconsórcio necessário (art.º 61º, n.º 2 do CPC).
     5. Da falta de capacidade judiciária – Para que a administração do condomínio tivesse, face às disposições conjugadas dos artigos 43º, n.º 1 do CPC, ex vi do artigo 1359º, n.º 3 do Código Civil, capacidade judiciária para ser demandada na presente acção de reivindicação onde se discutem questões de propriedade ou posse dos bens comuns, precisava de estar mandatada para o efeito pela assembleia de condóminos, na medida em que essa capacidade decorre do regime da propriedade horizontal para determinadas acções definido nos artigos 1357º, n.º 1 e, 1359º do CC.
     6. Sucede que dos autos não consta qualquer deliberação da assembleia geral de condóminos nesse sentido, pelo que a sentença recorrida ao considerar. «Nada relativo ao tribunal, ao processo e às partes obsta ao conhecimento do mérito da causa» incorreu em erro de julgamento por violação do disposto no art.º 1359º, n.º 3 do Código Civil.
     7. Deve assim ser revogada a sentença recorrida, com absolvição da Ré da instância, face ao disposto no art. 413º, alínea c) e 230º, n.º 1, alínea c), ambos do CPC, com as legais consequências.
     8. Subsidiariamente, não poderia o tribunal a quo ter condenado a Ré na desocupação e restituição imedita dos lugares de estacionamento n.ºs 1 a 31 sitos no 1º andar do prédio em causa livres e devolutos de pessoas e bens, nem em indemnização pela privação do uso, nem tãopouco condenado em quantia certa, nos termos em que o fez.
     9. Primeiro, porque tanto a condenação na desocupação e restituição imediata dos lugares de estacionamento n.ºs 1 a 31 sitos no 1º andar do prédio em causa, livres e devolutos de pessoas e bens como a condenação em indemnização pela privação do uso, pressupõem a procedência do pedido formulado no ponto 2 do petitório da petição inicial.
     10. Tal pedido não foi julgado procedente, pelo que deverá a sentença recorrida ser revogada, nessa parte, com as legais consequências.
     11. Segundo, porque também era necessário que se tivessem verificado todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, ou seja, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, o que não sucedeu, nem resulta dos factos provados.
     12. Terceiro, porque também era necessário que os AA. não tivessem reconhecido expressamente no 2º parágrafo do ponto 4 das suas alegações de fls. 109 a 115 que os lugares de estacionamento ora em causa eram partes comuns do prédio.
     13. Por outro lado, era necessário que os AA. tivessem ilidido essa presunção legal de comunhão dos 62 lugares de estacionamento mediante a alegação e prova da afectação material e objectiva ab initio desses lugares à fracção “Z1” e de que tais lugares se encontravam delimitados nos termos estabelecidos n.º 3 do artigo 1315º do Código Civil aplicável por força do art.º 1324º, n.º 2, al. b) do mesmo diploma.
     14. Tal também não sucedeu, pelo que, desde a data da constituição do condomínio em diante, os 31 lugares de estacionamento ora reivindicados pelos AA. sempre foram e continuam a ser uma parte comum do prédio sujeita à administração do órgão de administração do condomínio, primeiro, nos termos do art.º 1436º, g) do Código Civil de 1967, depois, nos termos do artigo 34º, g) da Lei n.º 25/96/M e, actualmente, nos termos do art.º 43º, n.º 1, parágrafo 10) da Lei n.º 14/2017.
     15. A ora Recorrente sempre teve e continua a ter, pois, o poder de regular e fiscalizar o uso das coisas comuns e a prestação dos serviços de interesse comum, incluindo o poder de disponibilização das áreas de estacionamento ao abrigo do disposto do art.º 2º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 72/90/M, de 3 de Dezembro, pelo que a sua actuação não foi, não é, nem nunca poderia ser, ilícita.
     16. Quarto, porque a decisão recorrida ao usar o valor locativo de mercado dos lugares de estacionamento como critério do cômputo da indemnização pelo dano da privação do uso no pressuposto errado que os AA., enquanto meros usuários desses lugares, os podiam arrendar ao público, violou o disposto nos artigos 1411º, n.º 1, 1413º, n.º 1 e 1414º, todos do Código civil e no disposto do art.º 2º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 72/90/M, de 3 de Dezembro, devendo, por isso ser revogada, com as legais consequências.
     17. Quinto, porque dada a manifesta impossibilidade de se puder averiguar o valor exacto dos danos invocados pelos AA. tanto no passado, como no presente e no futuro, devia o tribunal a quo ter julgado equitativamente dentro dos limites que tivesse por provados (art.º 560º, n.º 6 do CCivil) e remetido a fixação da indemnização correspondente aos danos futuros para decisão ulterior (art.º 558º, n.º 2 do CCivil) ou simplesmente condenado no que se viesse a liquidar em execução de sentença (art.º 564º, n.º 2 do CPC).
     18. Em suma, a decisão recorrida, ao condenar a Ré a pagar aos AA. uma indemnização total de MOP$335.265,00 depois alterada para MOP$67.053,00 mensais, violou o disposto no artigos 477º, n.º 1, 1411º, n.º 1, 1413º, n.º 1 e 1414º, todos do CCivil e no disposto do art.º 2º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 72/90/M, de 3 de Dezembro e, por conseguinte, o disposto nos artigos 560º, n.º 6 e 558º, n.º 2, ambos do CCivil ou no art.º 564º, n.º 2 do CPC, devendo, por isso ser revogada, com as legais consequências.
     19. Da rectificação – Sobre o requerimento de rectificação de erros materiais de fls. 124 a 126 recaiu o despacho de fls. 128 que deferiu o requerido pelos AA.
     20. Salvo melhor opinião, não o podia ter feito.
     21. É que o Tribunal em vez de condenar a Ré em MOP$67.053,00 mensais desde Março de 2019 até à efectiva entrega da fracção conforme tinham peticionado os AA., condenou-a apenas em MOP$335.265,00, acrescido de juros vencidos e vincendos, calculados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
     22. Não se verifica, pois, nenhum dos erros materiais mencionados no n.º 1 do artigo 570º do CPC.
     23. Isto porque o Juiz quis dizer o que disse e disse-o claramente. Se posteriormente ao revisitar a sentença achou que, afinal, podia (ou devia) ter dado mais do que deu, já não poderá alterar o julgado, dado ser para isso que servem os recursos.
     24. Importa, pois, dizer, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 570º, n.º 2, última parte, e 592º, n.º 2, ambos do CPC, que o instituto da rectificação de erros materiais a que se refere o art.º 570º do CPC não é o meio processual adequado para as partes obterem uma modificação do julgado, nem para o tribunal corrigir eventuais erros de julgamento que porventura julgue ter cometido.
     25. Deve, pois, ser revogado o despacho de fls. 128 por violação do art.º 569º, n.º 1 e n.º 2, a contrario, do CPC, com as legais consequências.
     Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, com as legais consequências.”
*
Ao recurso responderam os autores ora recorridos, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
     “I. Não obstante ter sido regularmente citada a Ré não apresentou contestação pelo que toda a factualidade alegada pela Autora e aqui Recorrida considera-se reconhecida nos termos do preceituado no n.º 1 do artigo 405º do CPC.
     II. A Recorrente é parte legítima na acção porquanto é quem ocupa os lugares de estacionamento objecto da presente acção.
     III. Conforme resultou provado nos presentes autos, por via do efeito cominatório, a Recorrente colocou uma cancela no acesso aos lugares de estacionamento e tem vindo a ceder o uso dos sobreditos lugares de estacionamento, dando-os de arrendamento e recebendo rendas, sem qualquer autorização para o efeito.
     IV. É pois, a Recorrente que vem ocupando ilegitimamente os lugares de estacionamento, independentemente de quem, a cada dia, estaciona lá o seu veículo.
     V. Mesmo que se entendesse que a Recorrente não tinha legitimidade para ser demandada pela questão relativa à posse dos referidos lugares de estacionamento, sempre se teria de aceitar que, pelo menos, seria parte legítima quanto ao pedido de indemnização ou de pagamento de quantias a título de enriquecimento sem causa, uma vez resultou provado que foi a Recorrente que efectivamente recebeu essas quantias.
     VI. De igual forma, a Recorrente tinha capacidade judiciária para ser demandada em juízo, nos termos do artigo 43º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, uma vez que o n.º 3 do artigo 45º da Lei 14/2017 não pode ser aplicável aos casos em que seja a própria administração a cometer a violação do direito em causa.
     VII. Entender-se de forma contrária seria abrir a possibilidade de responsabilizar todos os condóminos pela violação de direito feita pela Recorrente.
     VIII. É a Recorrente que vem detendo os parques de estacionamento concedendo o seu gozo a terceiros, que controla as entradas e saídas, que recebe pagamentos para facultar o acesso à coisa, sendo por isso quem tem de ser demandada.
     IX. Da conjugação dos Artigos 45º, n.º 2 e 3 da Lei 14/2017 com o artigo 1235º, n.º 1 do CC, resulta claro que a administração de condomínio poderá ser demandada em acções relativas às partes comuns quando a violação do direito em causa tiver sido por si cometida.
     X. Ao contrário do que pretende a Recorrente, o Tribunal a quo poderia ter actuado como fez, condenando-a na “[…] desocupação e restituição imediata dos lugares de estacionamento […]”, não se vislumbrando com base em que é que a Recorrente afirma que não foi julgado procedente o pedido n.º 2 do petitório da Petição Inicial e que a condenação na desocupação estava na dependência da condenação no pedido nesse ponto 2.
     XI. O Tribunal a quo verificou a existência de um direito, verificou a existência de uma violação desse direito e condenou a Recorrente a cessar essa violação, não se vislumbrando os motivos que possam levar a Recorrente a afirmar que não o podia fazer.
     XII. Também com a argumentação de que “[…] era necessário que o pedido formulado no ponto 2 do petitório da petição inicial tivesse sido procedente”, a Recorrente alega que não pode ser condenada no pagamento da indemnização.
     XIII. Os argumentos acima aduzidos serão também aplicáveis neste ponto.
     XIV. Mas a Recorrente invoca também neste ponto que não foram alegados nem demonstrados todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, nomeadamente a ilicitude e a culpa.
     XV. No artigo 16º da Petição Inicial, os Recorridos afirmam expressamente que a colocação da cancela no acesso aos estacionamentos, por parte da Recorrente, bem como o facto de os dar de arrendamento, recebendo rendas, não tiveram “[…] qualquer autorização para o efeito”; no artigo 18º é sublinhado que “Os Autores nunca deram autorização à Ré para fazer uso dos lugares de estacionamento” e no artigo 20º os Recorridos alegam ainda que “Por via da actuação ilícita da Ré, os lugares de estacionamento que deveriam apenas estar afectos à fracção “Z1” estão a ser utilizados por outros condóminos ou terceiros.”
     XVI. Não pode pretender a Recorrente que não é alegada nem provada a culpa quando se afirma que há uma ocupação indevida de dezenas de lugares de estacionamento e quando se prova que essa ocupação é feita sem qualquer autorização para o efeito.
     XVII. Apreciando a culpa de acordo com o tal critério da diligência de um bom pai de família, quem coloca uma cancela no acesso a lugares de estacionamento que sabe (ou mesmo que não saiba, devia saber, uma vez que é um facto registado) estarem afectos ao uso exclusivo de uma fracção autónoma, e quem cobra dinheiro para conceder o acesso a esses mesmos lugares, age com culpa.
     XVIII. Por outro lado, a Recorrente pretende que existia uma presunção de que os referidos lugares de estacionamento eram partes comuns e que essa presunção não foi ilidida, alegação que também não será de acolher.
     XIX. Desde logo porque consta da memória descritiva a menção expressa de que “[…] os lugares de estacionamento numerados de 1 a 62 são afectos ao uso exclusivo da fracção autónoma com designação Z1 […]”, conforme foi aliás alegado pelos Recorridos no artigo 8º da PI.
     XX. O referido direito de uso exclusivo consta igualmente do registo, conforme Ap. 90 de 25/06/1992, inscrição n.º XX do Livro XX, o que foi também alegado pelos ora Recorridos, no artigo 7º da P.I., tendo os mesmos ainda juntado aos autos o Documento n.º 1, para provar o que aí alegavam.
     XXI. De acordo o artigo 7º do Código do Registo Predial, presume-se que são os Recorridos a ter o direito de uso exclusivo dos lugares de estacionamento 1 a 62 do prédio, sendo que foi a Recorrente quem nunca ilidiu tal presunção.
     XXII. Não se bastando com uma tentativa de ignorar esta presunção derivada do registo, a Recorrente vai mais longe e chama mesmo à colacção o artigo 1315º, n.º 3 do Código Civil, por via do artigo 1324º, n.º 2, al. b) do mesmo diploma.
     XXIII. Os lugares de estacionamento estão devidamente delimitados e numerados com os n.ºs 1 a 62, estando verificados os requisitos para que o título constitutivo possa afectar os referidos lugares ao uso exclusivo de um condómino.
     XXIV. Mesmo que assim não fosse, a delimitação e numeração a que alude o artigo 1315º, n.º 3 do CC, e para o qual remete o artigo 1324º, n.º 2 do CC, não é constitutiva do direito.
     XXV. É diferente dizer-se, como diz a lei, que “devem os mesmos ficar delimitados” ou dizer-se que “o direito de uso exclusivo só produz efeitos após a delimitação”, ou ainda que se “presumem afectos ao uso comum os lugares de estacionamento não delimitados.”
     XXVI. Pode ser feita uma condenação tendo como critério para o dano pela privação do uso o valor locativo de mercado dos lugares de estacionamento, não obstante a regra da intransmissibilidade do direito de uso prevista no art. 1414º do CC.
     XXVII. Isto porque uma coisa são lucros derivados de uma transmissão do direito de uso, outra são os frutos a que se refere o artigo 1411º, n.º 1 do CC.
     XXVIII. Não se discute nos presentes autos a possibilidade, ou não, de se arrendar os referidos lugares de estacionamento. Aquilo que se discute é que os Recorridos têm um direito de uso exclusivo daquele parqueamento, que a Recorrente violou esse direito e que tem feito seus os frutos da coisa, obtidos através da violação desse direito.
     XXIX. E mesmo que assim não fosse, o efeito prático seria o mesmo, uma vez que, pelo menos, sempre seria a Recorrida condenada a título de enriquecimento sem causa.
     XXX. Por último, e ao contrário do que pretende a Recorrente, o despacho de fls. 128, que defere o requerimento dos ora Recorridos de fls. 124 a 126, apenas procedeu à correcção de erros materiais, nos termos do artigo 570º do CPC, não tendo procedido a qualquer alteração do julgado.
     XXXI. Para distinguir aquilo que é uma modificação do julgado da rectificação de erros materiais, termos de procurar saber se aquilo que se pretende corrigir está, ou não, em desconformidade com a substância da decisão, e não olhar para o mero erro nos pormenores descritivos.
     XXXII. A substância da decisão recorrida é perfeitamente reveladora que a quantia aposta na condenação inicial se trata de um manifesto erro material, uma vez que o erro se verificou logo na transcrição do pedido para o relatório da decisão, onde o Tribunal a quo ainda não estava a decidir coisa alguma.
     XXXIII. Ao transcrever o pedido o Tribunal a quo não estava ainda a fazer qualquer valoração de mérito sobre o mesmo, pelo que isso evidencia que foi um erro, não uma vontade inicial de condenar em quantia diferente da pedida.
     XXXIV. O Tribunal a quo quis condenar no pedido feito, não no pedido que transcreveu de forma errada para o relatório.
     XXXV. A transcrição incompleta, e a respectiva condenação em conformidade com a transcrição, são meros lapsos, passíveis de ser corrigidos, nos termos do artigo 570º do CPC.
     Nestes termos, e nos mais em Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá o recurso interposto pela Recorrente ser julgado improcedente, confirmando-se integralmente a sentença recorrida, fazendo V. Exas. dessa forma inteira e sã JUSTIÇA!”
*
Após a prolação da sentença, foi pedida pelos autores a sua rectificação, alegando ter verificado lapso manifesto.
Notificada do requerimento, a ré nada se pronunciou.
Oportunamente, foi deferida pelo tribunal a quo a rectificação do apontado lapso.
Inconformada, novamente recorreu a ré para este TSI, tendo alegado que o recurso interposto se considera complemento e parte integrante da sentença recorrida, e que já alegou perante o que entenda de seu direito no tocante à rectificação.
*
Uma vez interposto o recurso da decisão final pela ré, os autores pediram ao tribunal que ordenasse à mesma para prestar caução.
Por decisão do tribunal, foi julgado procedente o incidente, tendo ordenado que a ré preste a caução por meio de depósito, na quantia de MOP1.274.007,00.
Inconformada, recorreu a ré mais uma vez para este TSI, tendo formulado as seguintes conclusões alegatórias:
     “1. Sobre o requerimento de fls. 3 a 4 e a oposição de fls. 5 e ss. do presente apenso recaiu o despacho de fls. 44 a 45v que ordenou à Ré que prestasse caução no valor de MOP$938.742,00.
     2. Mas, salvo o devido respeito, sem razão.
     3. Primeiro, por não ser exacto que: «que todos os motivos invocados que dizem respeito ao mérito da decisão recorrida não podem ser admitidos como fundamento justificativo da recusa de garantia à parte vencedora, nos termos do art.º 609º, n.º 1 do CPC».
     4. Isto porque as questões da “legitimidade substantiva” e da “capacidade judiciária” da administração do condomínio suscitadas na oposição de fls. 5 e ss. do presente Apenso tinham necessariamente de ter sido conhecidas na decisão recorrida por configurarem “pressupostos processuais” da tutela jurisdicional pretendida pelos ora Recorridos.
     5. É que não tendo a ora Recorrente “legitimidade substantiva” nem “capacidade judiciária” para ser demandada na acção de que o presente incidente depende (cfr. pontos 1 a 4 e 5 a 7 das conclusões das alegações de recurso – fls. 12 a 21, cujo teor se dá por integralmente reproduzido), então, por identidade de razão, também a não tem para o presente incidente.
     6. Com efeito, a acção de reivindicação de que depende o presente incidente devia ter sido proposta contra o possuidor ou detentor actual da coisa (Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, pág. 114, nota 3), ou seja, devia ter sido proposta contra as pessoas indicadas nos artigos 12º, 20º, 28º e 35º da petição inicial de fls. 22 a 27 e no ponto 5 do petitório (fls. 27), cujos veículos alegadamente ocupam os lugares de estacionamento reivindicados pelos AA.
     7. Sucede que a acção não foi proposta contra os possuidores ou detentores actuais dos lugares de estacionamento n.ºs 1 a 31 sitos no 1º andar do prédio em causa (facilmente identificáveis pelas matrículas dos veículos lá estacionados), nem contra os condóminos do prédio em causa, mas apenas e contra o órgão de administração do condomínio!
     8. Devia assim ter o presente incidente terminado com a absolvição da Ré da instância, face ao disposto no art.º 413º, alínea e) e 230º, n.º 1, alínea d), ambos do CPC ou por preterição de litisconsórcio necessário (art.º 61º, n.º 2 do CPC).
     9. Por outro lado, para que a administração do condomínio tivesse, face às disposições conjugadas dos artigos 43º, n.º 1 do CPC, ex vi do artigo 1359º, n.º 3 do Código Civil, capacidade judiciária para ser demandada na presente acção de reivindicação onde se discutem questões de propriedade ou posse dos bens comuns, precisava de estar mandatada para o efeito pela assembleia de condóminos, na medida em que essa capacidade decorre do regime da propriedade horizontal para determinadas acções definido nos artigos 1357º, n.º 1, a contrario, e 1359º, n.º 1 e 3, ambos do Cód. Civil.
     10. Sucede que dos autos (e do Apenso) não consta qualquer deliberação da assembleia geral a mandatar o órgão de administração do condomínio ou a atribuir-lhe poderes especiais de representação dos condóminos para quaisquer acções relativas a questões de propriedade ou posse dos bens comuns.
     11. Devia assim ter o presente incidente terminado com a absolvição da Ré da instância, face ao disposto no art.º 413º, alínea c) e d) e 230º, n.º 1, alínea c), ambos do CPC, com as legais consequências.
     12. Tais questões configuram, portanto, excepções dilatórias de conhecimento oficioso (art.º 414º do CPC), cuja procedência determina, não a «recusa de garantia à parte vencedora, nos termos do art.º 609º, n.º 1 do CPC» mas tão-só a absolvição da requerida da instância, por força do disposto nas alíneas c), d) e e) do art.º 413º e na alínea c), n.º 1, do art.º 230º, ambos do CPC.
     13. Errou, pois, o Tribunal a quo, ao não conhecer as questões de conhecimento oficioso da “legitimidade substantiva” e da “capacidade judiciária” da administração do condomínio suscitadas na oposição de fls. 5 e ss. por entender erradamente que elas não eram admissíveis como fundamento justificativo da recusa de garantia à parte vencedora, nos termos do art.º 609º, n.º 1 do CPC.
     14. Segundo, porque o pedido subsidiário de prestação de caução formulado nos artigos 5 a 6 do requerimento de fls. 3 a 4 do presente Apenso configura uma situação de abuso de direito, de conhecimento oficioso, por evidenciar clamorosa injustiça e violação do honeste agere exigível em sociedade.
     15. Desde logo, porque, desde a data (25/06/1992) da apresentação a registo da constituição do condomínio (fls. 18 da certidão predial de fls. 13 e ss. do processo principal) em diante, os 31 lugares de estacionamento ora reivindicados pelos AA. na acção de que o presente incidente depende sempre foram e continuam a ser uma parte comum do prédio sujeita à administração do órgão de administração do condomínio, primeiro, nos termos do art.º 1436º, g) do Código Civil de 1967, depois, nos termos do artigo 34º, g) da Lei n.º 25/96/M e, actualmente, nos termos do art.º 43º, n.º 1, parágrafo 10) da Lei n.º 14/2017.
     16. Depois, por os Recorridos saberem que o valor locativo de mercado dos lugares de estacionamento que usaram como critério do cômputo da indemnização de MOP$938.742,00 pelo dano da privação do uso pressupor uma impossibilidade jurídica, ou seja, pressupor a possibilidade (inexistente) de que podiam arrendar ao público esses lugares, apesar deles serem meros usuários.
     17. Ora, é consabido que a lei não consente aos usuários tal possibilidade, conforme resulta do disposto nos artigos 1411º, n.º 1, 1413º, n.º 1 e 1414º, todos do Código Civil e no disposto do art.º 2º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 72/90/M, de 3 de Dezembro.
     18. Por último, também é consabido que a mera privação (de uso) dos lugares de estacionamento reivindicados na acção de que o presente incidente, só constituiria dano indemnizável se tivesse sido alegada e provada pelos Recorridos a frustração de um propósito, real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante, o que não sucedeu no caso “sub judice”.
     19. A decisão recorrida premiou assim erradamente o exercício abusivo do direito processual de os Recorridos requererem a prestação de caução previsto no artigo 609º, n.º 1 do CPC, pelo que, face ao disposto no art.º 326º do Cód. Civil, deverá tal decisão ser revogada, com as legais consequências.
     20. Terceiro, porque a decisão recorrida pressupôs a verificação das quatro situações relativamente às quais a Recorrente requereu, na oposição de fls. 5 e ss. do presente Apenso, a produção de prova por inspecção nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 513º e ss. do CPC.
     21. Sucede que a caução ordenada na decisão recorrida só se justificaria, em teoria, se tais pressupostos realmente se verificarem (e não verificam), com os Recorridos, de resto, sabem.
     22. Mas, sem ter como saber se tais pressupostos se verificavam ou não, o tribunal a quo optou por indeferir a prova por inspecção oportunamente requerida nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 513º e ss. do CPC, por erradamente julga-la desnecessária.
     23. Tal decisão violou por isso o disposto no artigo 894º, n.º 1 e 246º, n.º 5 do CPC, e em consequência, o “direito à prova” que assistia ao ora Recorrente.
     Deve, pois, ser revogada a decisão tomada no despacho de fls. 44 a 45v, com as legais consequências.
     Mais se requer seja extraída certidão do documento de fls. 13 a 22 do processo principal nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 65º, n.º 1 do CPC.
     Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, com as legais consequências.”
*
Ao recurso responderam os autores ora recorridos, concluindo as alegações nos seguintes termos:
     “I. Vem o recurso a que ora se responde interposto do despacho de fls. 44 a 45v que julgou procedente o requerimento de prestação de caução deduzido pelos Autores e, em consequência, ordenou a prestação de caução pela Ré, por meio de depósito, e no prazo de 10 dias, na quantia de MOP$1.274.007,00.
     II. Resulta do despacho de fls. 52 que ao recurso a que ora se responde foi atribuído efeito suspensivo.
     III. Salvo devido respeito, está a Recorrida em crer que lhe havia de ter sido atribuído efeito devolutivo, pois só assim se conseguirá ir ao encontro da função da caução qual seja acautelar e garantir o cumprimento da obrigação por parte do devedor caso venha a decisão condenatória a ser confirmada em sede de recurso, o que desde já se requer.
     Sem conceder,
     IV. Tendo a Ré recorrido da sentença condenatória, ao qual foi atribuído o efeito suspensivo, o que impede a execução provisória da sentença, os Autores tinham o direito de pedir, sem mais, ao abrigo do preceituado no artigo 609º do CPC que a Recorrente prestasse caução.
     V. A procedência do requerimento de prestação de caução, basta-se com a referência à sentença, à declaração de que se não pode ou não quer obter execução provisória da decisão e à indicação do valor a caucionar.
     VI. Tem, assim, razão o Mm Juiz a quo ao entender que “todos os motivos invocados que dizem respeito ao mérito da decisão não podem ser admitidos como fundamento justificativo da recusa de garantia à parte vencedora, nos termos do artigo 609º, n.º 1 do CPC”.
     VII. A fixação da caução tem, apenas e tão só, por objectivo assegurar e garantir o cumprimento da obrigação por parte do devedor caso venha a decisão condenatória a ser confirmada em sede de recurso, remetendo-se a discussão de todas as questões de fundo para o recurso que se encontra pendente e que justifica a caução.
     VIII. Diga-se que, se a Recorrida tivesse conhecimento de bens titularidade do Recorrente capazes de serem hipotecados, munida da sentença proferida nos presentes autos, ainda que não transitada em julgado, teria procedido ao registo dessa hipoteca sem que o Recorrente a isso se pudesse opor.
     IX. Por maioria de razão poderá requerer a prestação de caução, sem que para tanto se veja obrigada a discutir questões de fundo da causa, as quais estão já a ser discutidas em sede própria.
     X. Será, então, em sede de recurso da decisão condenatória que todas as questões de legitimidade, capacidade judiciária, existência ou inexistência de pressupostos, serão apreciadas.
     Nestes termos, e nos mais em Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá o recurso interposto pela Recorrente ser julgado improcedente, confirmando-se integralmente a sentença recorrida, fazendo V. Exas. dessa forma inteira e sã JUSTIÇA!”

Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença deu por assente a seguinte factualidade face à confissão da ré:
Os autores são donos e legítimos proprietários do direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, da fracção autónoma Z1, do 1º andar “Z”, para comércio, do prédio situado em Macau, na Avenida de XX, n.ºs XX e Istmo de XX, n.ºs XX.
Construído sobre um terreno concedido, por arrendamento, à Sociedade de Investimento F Lda, para construção, ao abrigo dos Contratos de Desenvolvimento para Habitação, de um edifício misto de habitação e comércio compreendendo um podium de 2 pisos e 3 torres de 22 pisos.
Descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 2XXX4, a fls. XX do Livro XX, da freguesia de Na Senhora de Fátima, constituído em regime da propriedade horizontal pela inscrição n.º XX do Livro XX.
E inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Na Senhora de Fátima sob o artigo n.º 07XXX5.
Com regime de propriedade horizontal inscrito sob o n.º XX, a fls. XX do Livro XX.
Os autores adquiriram o direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção relativo à sobredita fracção “Z1” por escritura pública de compra e venda outorgada em 21 de Fevereiro de 2019, exarada a fls. XX do Livro XX da Notária Privada G.
À referida fracção corresponde o direito de uso exclusivo dos lugares de estacionamento 1 a 62 do prédio, conforme Ap. 90 de 25/06/1992, inscrição n.º XX do Livro XX.
Da memória descritiva do sobredito prédio resulta que são:
“4. Partes comuns do prédio:
[…]
I) as zonas destinadas a parqueamento (…) sobre o terraço do jardim e (…) no logradouro comum, este constituído pela parte do terreno não ocupada pela implantação do edifício; os lugares de estacionamento numerados de 1 a 62 são afectos ao uso exclusivo da fracção autónoma com designação Z1 (…)”.
É direito especial da fracção comercial Z1 o uso exclusivo dos parques de estacionamento numerados de 1 a 62.
Ora, os lugares de estacionamento com os n.ºs 1 a 31 estão localizados ao nível do 1º andar, sendo que os restantes estão localizados no rés-do-chão.
Sucede que, em data que não pode precisar, mas que ronda o ano de 2010, por ordem da ré, foi colocada uma cancela no acesso aos lugares de estacionamento com os n.ºs 1 a 31, no 1º andar.
Estando os referidos lugares de estacionamento a ser utilizados por terceiros.
Com efeito, é do conhecimento dos autores que a ré tem vindo a ceder o uso dos sobreditos 31 lugares de estacionamento.
Dando-os de arrendamento.
Recebendo rendas.
O que faz sem ter qualquer autorização para o efeito.
Os autores não têm, por isso, acesso aos referidos lugares de estacionamento e estão impedidos de fazer gozo do direito de uso que lhes assiste.
Os autores nunca deram autorização à ré para fazer uso dos lugares de estacionamento.
Os quais continuam afectos ao uso exclusivo da fracção da qual os autores são proprietários.
Por via da actuação ilícita da ré, os lugares de estacionamento que deveriam apenas estar afectos à fracção “Z1” estão a ser utilizados por outros condóminos ou terceiros.
Ficando os autores privados do seu uso.
Nomeadamente de retirarem rentabilidade dos mesmos.
O valor de mercado das rendas de cada um dos aludidos lugares é de HKD2.100,00.
Desde a data em que ré ocupa os 31 lugares de estacionamento localizados no 1º andar do sobredito edifício, afectos ao uso exclusivo da fracção propriedade dos autores, estes poderiam ter auferido, a título de rendas, até final de Junho de 2019, o montante HKD325.500,00 equivalente a MOP$335.265,00 (trezentos e trinta e cinco mil duzentas e sessenta e cinco patacas) calculado nos termos seguintes:
Março de 2019 – JKD2.100,00 x 31 = HKD65.100,00
Abril de 2019 – HKD2.100,00 x 31 = HKD65.100,00
Maio de 2019 – HKD2.100,00 x 31 = HKD65.100,00
Junho de 2019 – HKD2.100,00 x 31 = HKD65.100,00
Julho de 2019 – HKD2.100,00 x 31 = HKD65.100,00
TOTAL - HKD325.500,00
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Da suposta ilegitimidade substantiva da ré
Entende a ré que, tratando-se de uma acção de reivindicação, devia a mesma ter sido proposta contra o possuidor ou detentor actual da coisa, ou seja, contra os condóminos e/ou terceiros que ocupam ou usam os parques de estacionamento n.ºs 1 a 31 sitos no 1.º andar do respectivo prédio, sob pena de verificada a ilegitimidade substantiva da ré.
Afigura-se, a nosso ver, que a recorrente tenha misturado a legitimidade substantiva com a legitimidade processual.
A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído.
Por outras palavaras, a legitimidade substantiva é um requisito de procedência do pedido, uma vez que tem a ver com a efectividade da tal relação material, interessando ao mérito da causa.
Difere-se da legitimidade processual prevista no artigo 58.° do CPC, que é um pressuposto processual de que depende o conhecimento do mérito da causa, e é atribuída aos sujeitos da relação material controvertida, tal como é desenhada pelo autor na petição inicial, o que significa que o apuramento da legitimidade processual interessa apenas a alegação da titularidade da relação controvertida pelo autor, não se exigindo a verificação da sua efetiva titularidade.
Sendo assim, a legitimidade das partes como pressuposto processual distingue-se da legitimidade substantiva, i.e., uma coisa é saber se as partes são os sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista; outra é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito que condicionam a existência do direito invocado.
Isto posto, atenta a relação material controvertida apresentada pelos autores, a ré é parte legítima, mas para saber se ela é devedora para com os autores, é uma questão de mérito, por estar relacionada com a efectiva titularidade das relações jurídicas controvertidas, cujos requisitos de facto e de direito que condicionam a existência do direito invocado serão oportunamente apreciados.
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Da alegada falta de capacidade judiciária
Entende ainda a recorrente que, não tendo a assembleia geral de condóminos deliberado atribuir poderes especiais à administração, esta não possui capacidade judiciária para ser demandada na presente acção, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 1359.º do CC.
Em boa verdade, o disposto no n.º 3 do artigo 1359.º do CC foi revogado pelo n.º 3 do artigo 45.º da Lei n.º 14/2017, que veio estabelecer o regime jurídico da administração das partes comuns do condomínio.
Prevê o artigo 45.º o seguinte:
“1. A administração tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções previstas no artigo 43.º ou quando autorizada pela assembleia geral do condomínio.
2. A administração pode também ser demandada nas acções relativas a partes comuns do condomínio.
3. Exceptuam-se as acções relativas a questões de propriedade ou posse de bens comuns, salvo se a assembleia geral do condomínio atribuir para o efeito poderes especiais à administração.”
O artigo reporta-se à capacidade judiciária do condomínio, isto é, à susceptibilidade de este estar em juízo, mas assegurado pelo administrador, em representação daquele.
Efectivamente, o administrador pode agir em juízo quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia geral de condóminos, podendo também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do condomínio.
Os n.ºs 1 e 2 do citado artigo reportam-se a casos em que a administração actua como representante do condomínio, durante a execução das funções que lhe pertencem, enquanto o n.º 3 estatui que a capacidade judiciária do administrador não abrange as acções relativas a questões de propriedade ou posse das partes comuns do imóvel, salvo se a assembleia lhe atribuir para o efeito poderes especiais.
No caso vertente, pretendem os autores fazer valer o seu direito de uso exclusivo dos lugares de estacionamento, que são partes comuns.
Como observam Pires de Lima e Antunes Varela1, “A capacidade judiciária passiva do administrador, relativamente às partes comuns do edifício, cessa no caso das acções que põem em causa, directa ou indirectamente, o direito dos condóminos a essas partes. A intervenção do administrador, como o próprio nome deste órgão dá desde logo a entender, só se justifica em relação aos actos de conservação e de fruição das coisas comuns, aos actos conservatórios dos respectivos direitos ou à prestação dos serviços comuns. Logo que se entra no domínio das questões de propriedade ou de posse dos bens comuns, está ultrapassado o círculo dentro do qual se contêm os actos do administrador. Ressalva-se, entretanto, a hipótese de a assembleia conferir poderes especiais ao administrador para representar os condóminos em juízo. E pode suceder que estes poderes especiais sejam genericamente atribuídos ao administrador no título constitutivo do condomínio.”
De facto, por estar em causa uma acção relativa a questões de propriedade ou posse dos bens comuns, e não a questões relacionadas com meros actos de conservação e fruição das coisas comuns, por força do estatuído no n.º 3 do artigo 45.º da Lei n.º 14/2017, não podem os autores intentar a respectiva acção contra a administração, uma vez que carece de poderes especiais conferidos pela assembleia de condóminos.
No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 16.12.1999, Proc. n.º 904/99, Boletim do Ministério da Justiça, 492, 406, citado a título de direito comparado:
“I – O condómino, na propriedade horizontal, não tem personalidade jurídica, mas é titular de personalidade judiciária, podendo por isso estar em juízo, no qual é, em princípio, representado pelo administrador.
     II – O administrador tem, face ao artigo n.º 1437.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia de condóminos, podendo também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício.
     III – Nas funções do administrador não cabe a defesa da propriedade ou posse dos bens comuns.
     IV – A capacidade judiciária do administrador não abrange, assim, face ao n.º 3 do artigo 1437.º do Código Civil, as acções relativas a questões de propriedade ou posse respeitantes às partes comuns do imóvel, salvo se a assembleia lhe atribuir para tanto poderes especiais.
     V – Não pode, pelo exposto, ser recebida acção em que dois condóminos pedem que a administração do prédio (e só ela) seja condenada a reconhecer que eles têm direito a utilizar determinados espaços de estacionamento existentes na subcave do imóvel e que consideram partes comuns – isto, apesar de o acesso a essas zonas lhes haver sido impedido por acto da administração.”
Isto posto, por a ré, ora recorrente, não possuir capacidade judiciária para intervir na presente acção, procedem as razões invocadas quanto a esta parte e, em consequência, absolvendo a ré da instância.
*
Uma vez julgada absolvida a ré da instância, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela recorrente.
*
Em relação ao segundo recurso interposto pela ré, esta pretende pôr em causa a decisão do tribunal a quo que deferiu o pedido de rectificação da sentença formulado pelos autores.
Conforme o exposto acima, como foi decidido absolver a ré da instância, o conhecimento deste recurso igualmente fica prejudicado.
*
Por fim, temos ainda o recurso interposto pela ré quanto à questão de prestação da caução.
Depois de ter interposto o recurso da decisão final pela ré, os autores pediram que a mesma prestasse caução, tendo o tribunal a quo julgado procedente o incidente, e ordenado à ré para prestar a caução por meio de depósito, na quantia de MOP1.274.007,00.
Dispõe o n.º 1 do artigo 609.º do CPC: “Não querendo ou não podendo obter a execução provisória da decisão sobre o mérito da causa, pode a parte vencedora requerer que o recorrente preste caução, se não estiver já garantida com hipoteca judicial.”
No caso em apreço, é verdade que, por decisão do tribunal a quo, foi julgada procedente a acção, tendo os autores sido reconhecidos como titulares do direito de usar em exclusivo os lugares de estacionamento identificados nos autos, e que a ré foi condenada a desocupar e restituir de imediato os mesmos lugares de estacionamento aos autores, livres e devolutos de pessoas e bens, bem como pagar aos autores a quantia de MOP67.053,00 por mês, mas conforme o acima exposto, na medida em que foi decidido nesta instância revogar a sentença recorrida, com a consequente absolvição da ré da instância, os pressupostos de que depende a prestação da caução pela parte recorrente já deixaram de se verificar.
Procedem, pois, as razões aduzidas pela ré, ora recorrente, quanto a esta parte.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso da decisão final interposto pela ré Comissão Administrativa dos Edifícios A, B e C (ré), revogando a sentença recorrida e, em consequência, absolvendo a ré da instância.
Em relação ao recurso interposto pela ré quanto ao despacho que deferiu a rectificação da sentença, julga-se o mesmo prejudicado pela decisão dada por este TSI.
Ademais, julga-se procedente o recurso da decisão que ordenou a prestação da caução, revogando a decisão recorrida.
Custas pelos autores, em ambas as instâncias.
Registe e notifique.
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Macau, 15 de Outubro de 2021



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Tong Hio Fong
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Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
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Lai Kin Hong

1 Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição revista e actualizada, página 456
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Recurso cível 176/2021 Página 11