Processo nº 119/2021 Data: 27.10.2021
(Autos de recurso jurisdicional)
Assuntos : “Procedimento disciplinar”.
Nulidade.
Excesso e omissão de pronúncia.
Produção de prova em recurso.
Apreciação da prova.
SUMÁRIO
1. Os vícios de “excesso” e de “omissão de pronúncia” apenas ocorrem quando o Tribunal “conhece de questão de que não podia conhecer”, (indo para além do seu “poder de cognição”), ou, por sua vez, quando “omite pronúncia sobre questão que lhe cabia conhecer”.
2. Os art°s 42°, n.° 1, al. g) e h) e 64° do C.P.A.C. devem ser interpretados restritivamente, no sentido de que não é possível fazer prova no recurso contencioso tendente a infirmar a prova produzida no processo disciplinar.
3. O Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional, não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova; mas pode reconhecer e declarar que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos e não respeita directamente à existência ou inexistência destes.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 119/2021
(Autos de recurso jurisdicional)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), com os restantes sinais dos autos, recorreu contenciosamente para o Tribunal de Segunda Instância do despacho do SECRETÁRIO PARA A SEGURANÇA que lhe aplicou a pena disciplinar de suspensão de funções pelo período de 30 dias; (cfr., fls. 2 a 15 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, e adequadamente processados os autos, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 22.04.2021, (Proc. n.° 706/2020), julgando-se improcedente o recurso; (cfr., fls. 55 a 63-v).
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Ainda inconformado, do assim decido vem agora recorrer para esta Instância, alegando para, a final, concluir afirmando que o Acórdão recorrido padece de “nulidade” por “excesso” e “omissão de pronúncia”; (cfr., fls. 73 a 89).
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Sem resposta, e admitido que foi o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, vieram os autos a este Tribunal de Última Instância.
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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 100 a 102).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. O Acórdão ora recorrido indica e elenca como “provada” a factualidade seguinte:
“1. Em 5 de Dezembro de 2016, o adjunto dos SA da RAEM instaurou contra o recorrente o processo de inquérito disciplinar n.º 20/2016-1.1-DIS.
2. Em 20 de Março de 2020, o instrutor do supra mencionado processo de inquérito disciplinar emitiu contra o recorrente a acusação em que este foi acusado dos seguintes factos: nos dias 10 e 14 de Março de 2016, nas lojas de vestuário exploradas pela sua irmã mais velha B, utilizou cartão de crédito para efectuar duas transacções, respectivamente no valor de 1 pataca e 650 patacas; não demonstrou vigilância em relação ao uso de cartões de crédito falsos por C e D no mesmo espaço físico e temporal, e não tomou medidas devidas para contrariar tais actos ilícitos.
3. Segundo a acusação, o recorrente violou os deveres consagrados no artigo 5.º (Deveres gerais), n.º 3, alínea a) do EMFSM – “Pelo cumprimento dos deveres que a lei impõe e prevenir e opor-se rigorosamente a qualquer violação da mesma, empregando toda a sua capacidade;” e no artigo 12.º (Dever de aprumo), n.º 2, alínea f) do mesmo Estatuto – “Não praticar acções contrárias à ética, à deontologia funcional, ao brio ou ao decoro das FSM.”
4. Tendo em conta o seu desempenho funcional, e ponderadas as circunstâncias atenuantes previstas no artigo 200.º, n.º 2, alíneas b) e h) do EMFSM, deve o recorrente ser punido com pena de suspensão por um período de 26 a 120 dias nos termos do disposto no artigo 219.º, alínea d) e artigo 236.º do EMFSM.
5. O recorrente apresentou contestação no processo disciplinar em causa, onde reiterou não saber no momento dos factos que os falados indivíduos estavam a utilizar cartões de crédito falsos para obterem numerário, e explicou a razão porque ele se encontrava nas lojas da sua irmã e porque efectuou as duas transacções com cartão de crédito, relatando também o modo como o fez.
6. No dia 11 de Maio de 2020, o recorrente foi notificado pela Divisão de Disciplina e Apoio Jurídico dos SA de que em relação ao supra aludido processo de inquérito disciplinar foi proferido despacho punitivo a 4 de Maio de 2020 pelo Director-geral dos SA, que decidiu aplicar-lhe a pena de suspensão pelo período de 30 dias.
7. Inconformado com a referida decisão, o recorrente interpôs em 18 de Maio de 2020 recurso hierárquico junto da entidade recorrida.
8. Com referência ao dito recurso hierárquico foi proferido pelo Secretário para a Segurança de Macau o despacho n.º 58/SS/2020 datado de 11 de Junho de 2020, em que mandou alterar os fundamentos fácticos descritos no despacho objecto do recurso hierárquico, mantendo a pena de 30 dias de suspensão aplicada ao recorrente. O teor do despacho do Sr. Secretário transcreve-se a seguir:
“…
Compulsados e analisados os autos disciplinares acima referenciados, ficou suficientemente provado que:
(1) Na noite do dia 10 de Março de 2016, dois homens (C e D) deslocaram-se à “[Loja(1)] ([店舖(1)])” propriedade da irmã mais velha e da tia do arguido, sita na [Rua(1)], onde pretendiam utilizar cartões de crédito para obterem numerário. Pelas 22h59 e 23h07, eles tentaram efectuar pagamentos com dois diferentes cartões de crédito, mas ambas tentativas sem êxito. Pelas 23h12, o arguido efectuou um pagamento de 1 pataca com o seu próprio cartão de crédito. Pelas 23h15, os referidos dois homens tentaram pagar com outro cartão de crédito, ainda sem êxito. Posteriormente, utilizaram com sucesso outro cartão de crédito para dois pagamentos, respectivamente efectuados às 23h16 e 23h20, no valor de 8000 patacas e 4000 patacas.
(2) O arguido afirmou que o supra referido pagamento de 1 pataca foi efectuado para testar se o terminal de pagamento automático estava a funcionar normalmente.
(3) No dia 11 de Março de 2016, a irmã mais velha do arguido foi notificada pelo Banco da China da existência de anomalia com as supra referidas duas transacções, e de que os montantes envolvidos seriam congelados e o terminal de pagamento automático da loja já tinha sido inactivado.
(4) Na noite do dia 14 de Março de 2016, os mesmos dois homens deslocaram-se à outra “[Loja(1)] ([店舖(1)])” propriedade da irmã mais velha do arguido, sita na [Rua(2)], onde pretendiam utilizar cartões de crédito para obterem numerário. Pelas 23h53 e 23h57, eles tentaram efectuar pagamentos com dois diferentes cartões de crédito, mas ambas tentativas sem êxito. Pelas 00h11 do dia 15 de Março, o arguido efectuou um pagamento de 650 patacas com o seu cartão de crédito.
(5) A supra aludida transacção de 650 patacas pelas 00h11 do dia 15 de Março de 2016 não foi registada no sistema informático da respectiva loja.
(6) Segundo o arguido, C e D eram amigos do seu cunhado, já os tinha visto uma ou duas vezes, mas não os conhecia bem.
(7) Posteriormente, ficou provado que todos os cartões de crédito utilizados pelos referidos dois homens eram falsificados.
Concluindo, ambas as transacções, respectivamente datadas de 10 e 14 de Março de 2016, que o arguido efectuou com o seu cartão de crédito nas faladas lojas de vestuário tiveram lugar pouco tempo depois das tentativas falhadas dos dois homens em utilizarem cartões de crédito para efectuar pagamentos. O arguido admitiu ter realizado a transacção de 1 pataca na noite do dia 10 de Março para testar se o terminal de pagamento automático estava a funcionar normalmente. Quanto à outra transacção de 650 patacas feita na noite do dia 14 de Março, não foi encontrado nenhum registo no sistema informático da respectiva loja. Daí que se possa inferir razoavelmente que o arguido na realidade não fez qualquer compra na noite do dia 14 de Março, tendo antes utilizado o seu cartão de crédito para testar o terminal de pagamento da loja depois de ter tomado conhecimento dos pagamentos falhados dos dois homens.
Num período de vários dias, os dois homens em causa fizeram diversas tentativas fracassadas de pagamento com cartões de crédito em duas lojas de vestuários. Dado que eles não eram totalmente estranhos ao arguido, de acordo com as regras da experiência social comum, este deveria os ter reconhecido e ter suspeitado do que se passava. Apesar de o âmbito das suas funções não cobrir a área do crime eventual e possível, tendo em conta que desempenhava na altura o cargo de chefe do Departamento da Propriedade Intelectual dos Serviços de Alfândega, ou seja, funcionário alfandegário de categoria superior com qualidade de autoridade de polícia criminal, devia ter tomado medidas adequadas para impedir o eventual delito.
Não tendo empreendido qualquer acção contra o possível crime, a sua conduta violou os deveres gerais previstos no artigo 5.º, n.º 3, alínea a) do EMFSM e o dever de aprumo consagrado no artigo 12.º, n.º 2, alínea f) do mesmo Estatuto.
Compulsados e analisados os autos acima referenciados, constata-se que o processo de instrução correu os seus termos de acordo com a lei. Nos termos do artigo 232.º do EMFSM, atendei aos critérios gerais enunciados no EMFSM, à natureza e gravidade da infracção, à categoria ou posto do infractor, ao grau de culpa, à sua personalidade, ao seu nível cultural e a todas as circunstâncias que militem contra ou a favor do arguido, tendo também em consideração o disposto no artigo 236.º do mesmo Estatuto, e afigura-se-me que a pena aplicada ao recorrente é adequada e proporcional.
No entanto, entendo que os fundamentos fácticos invocados no despacho hierarquicamente recorrido não são precisos. Portanto, decido, no exercício das competências que me são conferidas pela Ordem Executiva n.º 182/2019, e ao abrigo do disposto no artigo 292.º, n.º 3 do EMFSM e no artigo 161.º do CPA, alterar estes fundamentos de facto, substituindo-os pelos que antecedem no presente despacho, mantendo todavia a pena aplicada ao arguido pelo despacho hierarquicamente recorrido…”
9. Em 15 de Junho de 2020, a Divisão de Disciplina e Apoio Jurídico dos SA notificou o recorrente do supra mencionado despacho proferido pela entidade recorrida”; (cfr., fls. 59 a 60-v e 20 a 25 do Apenso).
Do direito
3. Como se colhe do que até aqui se deixou relatado, vem A recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 22.04.2021 que negando provimento ao seu (anterior) recurso contencioso, confirmou a decisão com a qual lhe foi aplicada a pena disciplinar de suspensão de funções pelo período de 30 dias, assacando à mesma o vício de “nulidade” por “excesso” e “omissão de pronúncia”.
Apresenta-se-nos porém evidente que nenhuma razão tem o ora recorrente, (afigurando-se-nos, aliás, que labora em manifesto equívoco).
Vejamos.
Apreciando o recurso que lhe foi apresentado, e ponderando na “factualidade” que considerou provada (e que se deixou transcrita), assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância no aludido Acórdão agora recorrido (na parte que agora releva):
“O recorrente assaca ao acto recorrido os seguintes vícios:
- Incumprimento do dever de fundamentação (insuficiência de fundamentação);
- Erro nos pressupostos de facto e violação da presunção de inocência;
- Errada aplicação da lei; e,
- Pena excessiva, violação do princípio da proporcionalidade.
Cumpre conhecer das questões.
1. Do incumprimento do dever de fundamentação:
O recorrente entende que o acto recorrido padece do vício de forma de falta de fundamentação.
Dispõe o artigo 114.º, n.º 1, alínea c) do CPA que, “devem ser fundamentados os actos administrativos que, total ou parcialmente, decidam em contrário de pretensão ou oposição formulada por interessado.”
Estatui o artigo 115.º, n.º 1 do mesmo livro de leis que “A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas que constituem neste caso parte integrante do respectivo acto.”
No caso sub examine, a entidade recorrida proferiu o despacho n.º 58/SS/2020 em que alterou os fundamentos fácticos descritos no despacho objecto do recurso hierárquico, mantendo a pena aplicada ao recorrente.
Basta, a qualquer homem comum, uma leitura do teor do supra mencionado despacho para compreender perfeitamente as razões pelas quais o recorrente foi punido - o recorrente, enquanto funcionário alfandegário de carreira superior (chefe de departamento, com qualidade de autoridade de polícia criminal), não tomou qualquer medida para impedir os eventuais crimes, violando assim os deveres gerais e o dever de aprumo, respectivamente consagrados no artigo 5.º, n.º 3, alínea a) e artigo 12.º, n.º 2, alínea d) do EMFSM.
Tal como se refere no parecer do Digno Procurador-Adjunto junto deste Tribunal, “A fundamentação tem limites razoáveis e não precisa de ser exaustiva… O acto administrativo não enferma do vício de falta ou de insuficiente fundamentação quando, embora esta não seja abundante, permite que o destinatário conheça as razões do indeferimento da sua pretensão.”
Razão pela qual, o recurso improcede nesta parte.
*
2. Erro nos pressupostos de factos e violação da presunção de inocência:
Segundo o recorrente, apesar de ser funcionário dos Serviços de Alfândega, o âmbito das suas funções não compreende a realização da investigação criminal, pelo que não dispunha do conhecimento e informação sobre a actividade ilícita em causa (utilização de cartões de crédito falsos para obter numerário). Argumenta, portanto, ser razoável não se ter apercebido dos factos delituosos.
Por conseguinte, invoca que o acto recorrido enferma de erro nos pressupostos de facto quando diz que ele devia ter dado conta do crime mas não tomou qualquer medida contrária.
Não acompanhamos a posição do recorrente.
Antes de mais nada, a utilização de cartões de crédito falsificados é um fenómeno vulgar e frequente que se vê de vez em quando em notícias televisivas e jornais impressos. As instituições emissoras dos cartões de crédito também recordam aos titulares a importância de salvaguardar as suas informações pessoais relativas aos cartões. Por conseguinte, era impossível que o recorrente, titular de cartões de crédito e funcionário superior dos SA, não soubesse dessas informações.
Aliás, seria igualmente uma violação das regras das instituições emissoras a utilização de cartões de crédito, embora verdadeiros, para se obter numerário, ou, tal como descreveu a irmã mais velha do recorrente, comprar-se uma coisa e logo se vender de volta ao comerciante em troca de numerário, recebendo o comerciante uma comissão disso. Dito de uma forma simples, trata-se de transacções simuladas de mercadorias com o fim de se obter numerário, evitando-se as comissões e juros resultantes do simples levantamento de dinheiro com os cartões de crédito.
Compulsado o teor da petição inicial do recorrente, constata-se que ele não era estranho a esse fenómeno (vide artigo 40.º da conclusão da petição inicial).
O recorrente, enquanto funcionário de categoria superior dos SA, não devia ter tomado parte na actividade comercial da irmã. Se fosse verdade que ele só lá foi buscar a mãe ao trabalho, porque usou o seu cartão de crédito para testar o funcionamento do terminal POS?
Quanto a esta questão, o Digno Procurador-Adjunto junto deste Tribunal fez a seguinte análise e raciocínio perspicaz:
“…
O recorrente A passou o cartão de crédito em duas ocasiões, respectivamente no dia 10 de Março de 2016, pelas 23h12, e no dia 15 de Março de 2016, pelas 00h11 da madrugada. Salvo o devido respeito por diversa opinião, considerando as regras da lógica, razão e experiência comum, não podemos deixar de entender que: os referidos actos de utilização de cartões de crédito tiveram lugar nas lojas da irmã mais velha do recorrente, e a versão de que o recorrente lá estava principalmente para buscar a mãe ao trabalho (artigo 65.º da petição inicial) é implausível e pouco convincente. Convém notar que a sua mãe nasceu em 4 de Março de 1946 (fls. 1626 e 1634 do Ficheiro n.º 20/2016-1.1-DIS), pelo que era muito improvável que tivesse saído do trabalho às 23h00 da noite ou mesmo à meia-noite.
No dia 10 de Março de 2016, pelas 23h12, o recorrente efectuou a primeira transacção com o seu cartão de crédito, no valor de apenas 1 pataca. O facto ocorreu no seguinte contexto: no dia 10 de Março de 2016, respectivamente pelas 22h59 e 23h07, dois homens (C e D) tentaram efectuar pagamentos com dois diferentes cartões de crédito na “[Loja(1)] ([店舖(1)])”, mas ambas tentativas sem êxito. Houve apenas um intervalo de 5 minutos entre 23h07 e 23h12. Além disso, ele admitiu ter utilizado o cartão para testar se o terminal de pagamento automático estava a funcionar normalmente.
Quanto à transacção efectuada no dia 15 de Março de 2016, às 00h11 da madrugada, o facto ocorreu no seguinte contexto: na noite do dia 14 de Março de 2016, os supra referidos dois homens deslocaram-se à outra “[Loja(1)] ([店舖(1)])” da irmã mais velha do recorrente, onde tentaram utilizar, respectivamente às 23h53 e 23h57, dois diferentes cartões de crédito, mas ambas tentativas sem êxito. Houve um intervalo de menos de 15 minutos entre as 23h57 do dia 14 de Março e as 00h11 da madrugada do dia 15.
Além disso, vale a pena destacar que: primeiro, ambas as transacções em causa ocorreram pouco tempo depois (com intervalos de 5 minutos e 14 minutos, respectivamente) das tentativas, sem sucesso, de utilização de cartões de crédito por C e D, e em ambas ocasiões os factos tiveram lugar depois das 23h00; segundo, ele pessoalmente testemunhou pelos menos uma tentativa falhada de C e D em utilizarem cartões de crédito; terceiro, o pagamento efectuado com o seu cartão de crédito em 10 de Março de 2016, às 23h12, foi no valor de apenas 1 pataca; quarto, o pagamento efectuado com o seu cartão de crédito em 15 de Março de 2016, às 00h11, foi no valor de 650 patacas, mas a respectiva transacção não se encontrava registada no sistema informática da loja; quinto, ele admitiu conhecer C e D, sabendo que eram amigos do seu cunhado (marido da irmã mais velha); sexto, quando efectuou as faladas duas transacções com o seu cartão de crédito era o chefe do Departamento da Propriedade Intelectual dos Serviços de Alfândega, na categoria de intendente alfandegário.
Tendo analisado criticamente os supra mencionados factos com base nas regras da experiência, entendemos que: não foi mera coincidência o facto de o recorrente ter utilizado o seu cartão de crédito - pagando respectivamente 1 pataca e 650 patacas - em duas ocasiões nas duas diferentes “[Loja(1)] ([店舖(1)])”; tratou-se, antes, de actos conscientes e deliberadas que praticou depois de ter tomado conhecimento dos insucessos de C e D em utilizar os seus cartões de crédito. Do ponto de vista objectivo, ele podia e devia ter percebido que os falados indivíduos estavam a tentar utilizar os cartões de crédito para obter numerário. Por conseguinte, acompanhamos a posição da Administração. Ou seja, a nosso ver: inexiste o erro manifesto invocado pelo recorrente porque a Administração respeitou e não violou as regras de lógica e de experiência nos 4 aspectos, isto é, “apreciação da prova, convicção dos factos, reconhecimento da capacidade cognoscitiva do recorrente e apuramento do seu grau de culpa”.
Como “intendente alfandegário” e chefe do Departamento da Propriedade Intelectual dos Serviços de Alfândega, o recorrente detinha qualidade de autoridade de polícia criminal (artigo 1.º, alínea 5) da Lei n.º 1/2002) quando efectuou as faladas duas transacções com cartão de crédito. Não há dúvida que estava vinculado aos deveres previstos nos artigos 5.º a 17.º do EMFSM, pelo que devia ter impedido ou dissuadido C e D de prosseguir as condutas delituosas. No entanto, ao invés de tomar medidas de impedimento e dissuasão, ele ajudou-os a testar o funcionamento do terminal de pagamento automático. Inequivocamente provados, tais factos são evidentemente suficientes para suportar a decisão sancionatória. Razão pela qual, a qualificação de infracção disciplinar não se encontra viciada de qualquer erro na aplicação da lei.
De acordo com o princípio da presunção de inocência, é à Administração que cabe o ónus da prova dos elementos constitutivos da responsabilidade disciplinar. E o princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos ou provas razoavelmente incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet. Daí que a aplicação deste princípio tenha como pressuposto a existência de tais dúvidas (vide jurisprudência manifestada no Acórdão n.º 991/2010 do TSI, onde se acentua incisivamente que: 3. Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”. Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no do recorrente - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.
No seguimento deste raciocínio, tendo em conta que a Administração cumpriu de forma impecável o ónus da prova, recolhendo provas concretas, conclusivas e suficientes, é de concluir que o despacho recorrido não viola os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
…”.
Concordamos completamente com as análises e argumentações acima expostas, que constituem aqui parte integrante da nossa fundamentação. Portanto, consideramos que o acto recorrido não padece dos vícios invocados pelo recorrente.
*
3. Errada aplicação da lei:
Dispõe o artigo 5.º, n.º 3, alínea a) do EMFSM que,
Artigo 5.º
(Deveres gerais)
…
3. O militarizado deve constituir exemplo de respeito pela legalidade instituída e actuar no sentido de reforçar na comunidade a confiança na acção desenvolvida pela instituição que serve, em especial no que concerne à sua imparcialidade, devendo conduzir-se permanentemente:
a. Pelo cumprimento dos deveres que a lei impõe e prevenir e opor-se rigorosamente a qualquer violação da mesma, empregando toda a sua capacidade;
…
Estipula o artigo 12.º, n.º 2, alínea f) do mesmo Estatuto que,
Artigo 12.º
(Dever de aprumo)
…
2. No cumprimento do dever de aprumo, o militarizado deve, designadamente:
…
f) Não praticar acções contrárias à ética, à deontologia funcional, ao brio ou ao decoro das FSM;
…
De acordo com os factos provados, o recorrente era funcionário superior dos SA (chefe de departamento, com qualidade de autoridade de polícia criminal), mas ajudou outrem a utilizar cartões de crédito (independentemente de serem verdadeiros ou falsos) para obter numerário, actos esses que violaram os deveres referidos no acto recorrido.
Por conseguinte, o recurso é improcedente também neste segmento.
*
4. Violação do princípio da proporcionalidade:
Estatui o artigo 5.º, n.º 2 do CPA que, “As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar.”
O surgimento do acima referido princípio prende-se com a necessidade de se evitar o abuso de poder no exercício de poderes discricionários pela Administração.
De facto, tanto o TUI como este Tribunal salientaram (cfr. Acórdão do TUI, de 4 de Novembro de 2015, Processo n.º 71/2015, e Acórdão do TSI, de 2 de Abril de 2020, Processo n.º 630/2018) que a Administração goza do poder discricionário na determinação da medida concreta das penas disciplinares dentro das espécies e molduras legais. E o exercício desse poder só se torna sindicável judicialmente em situações de desvio de poder, erro manifesto ou total desrazoabilidade (Acórdãos do TUI, de 31 de Julho de 2012, proferido no Processo n.º 38/2012; de 9 de Maio de 2012, Processo n.º 13/2012; de 27 de Abril de 2000, Processo n.º 6/2000; e de 3 de Maio de 2000, Processo n.º 9/2000; e Acórdãos do TSI, de 5 de Julho de 2012, Processo n.º 654/2011; de 7 de Dezembro de 2011, Processo n.º 346/2010; e de 23 de Junho de 2011, Processo n.º 594/2009).
No caso sub judice, o recorrente era funcionário superior dos SA, exercendo na altura dos factos o cargo de chefe do Departamento da Propriedade Intelectual dos SA, detendo qualidade de autoridade de polícia criminal. No entanto, quando se encontrava perante actos ilícitos, não só não agiu de forma adequada para os impedir, como ainda prestou auxílio. Razão pela qual, a pena de suspensão pelo período de 30 dias que lhe foi aplicada não viola manifestamente o princípio da proporcionalidade.
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V. Decisão
Face ao expendido, acorda-se em negar provimento ao presente recurso, mantendo o acto recorrido.
(…)”; (cfr., fls. 60-v a 63-v e 25 a 35 do Apenso).
Aqui chegados, e em face do que já se deixou consignado, muito mais não se mostra de dizer.
Com efeito, dúvidas não havendo que os vícios de “excesso” e de “omissão de pronúncia” apenas ocorrem quando o Tribunal “conhece de questão de que não podia conhecer”, (indo para além do seu “poder de cognição”), ou, por sua vez, quando “omite pronúncia sobre questão que lhe cabia conhecer”, (cfr., v.g., sobre a questão, os Acs. deste T.U.I. de 08.11.2019, Proc. n.° 83/2019, de 11.11.2020, Proc. n.° 166/2020 e de 26.05.2021, Proc. n.° 5/2021), e atento o teor da “fundamentação” pelo Tribunal de Segunda Instância explanada no seu Acórdão objecto do presente recurso, cabe perguntar: “onde”, “como” e “em que termos” se incorreu nos ditos “vícios”?
E em nossa opinião – necessariamente – negativa é a resposta.
Com efeito, (e como de uma mera leitura ao exposto no dito Acórdão do Tribunal de Segunda Instância se mostra de concluir), evidente se nos apresenta que o veredicto em causa “identificou” clara e adequadamente as “questões” pelo recorrente então suscitadas (no seu anterior recurso contencioso), e, sobre as mesmas, emitiu expressa, discriminada, cabal e correcta pronúncia, nenhuma censura merecendo.
Como – bem – se nota no atrás aludido Parecer do Ministério Público:
“Na verdade, a decisão recorrida não conheceu de qualquer questão de que não pudesse tomar conhecimento. O que acontece é que, a propósito do vício invocado na petição inicial do recurso contencioso atinente ao erro nos pressupostos de facto e à violação da presunção de inocência, o Tribunal recorrido procedeu a uma extensa fundamentação que lhe permitiu concluir, no essencial, que a alegação do Recorrente no sentido de que se não teria apercebido de qualquer actividade ilícita por parte dos utilizadores dos cartões de crédito e de que, portanto, era inviável a sua responsabilização disciplinar, não podia proceder”; (cfr., fls. 100-v).
Por sua vez, cabe também notar que a pretexto da assacada “omissão de pronúncia”, o que realmente pretende o recorrente é questionar o “julgamento da matéria de facto” efectuado pelo Tribunal de Segunda Instância, o que, como igualmente se mostra evidente, não pode proceder.
Com efeito, e antes de mais, cabe salientar que – como é o caso dos autos – em sede de recurso (contencioso) que tenha por objecto decisão administrativa proferida em processo disciplinar não há lugar a “renovação da prova”; (cfr., v.g., e entre outros, o Ac. deste T.U.I. de 16.01.2019, Proc. n.° 104/2018, onde em sede de sumário se consignou nomeadamente que “Os artigos 42.º, n.º 1, alíneas g) e h) e 64.º do Código de Processo Administrativo Contencioso devem ser interpretados restritivamente, no sentido de que não é possível fazer prova no recurso contencioso tendente a infirmar a prova produzida no processo disciplinar”).
Por sua vez, importa ter presente o estatuído no art. 152° do C.P.A.C., onde se preceitua que:
“O recurso dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas pode ter por fundamento a violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada”.
Ora, em relação ao assim estatuído já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de considerar (nomeadamente) que:
“O Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional, não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova; mas pode reconhecer e declarar que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos e não respeita directamente à existência ou inexistência destes”;
“No contencioso administrativo, em recurso jurisdicional correspondente a segundo grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância (TUI) apenas conhece de matéria de direito, nos termos do art. 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso. Não obstante, o TUI pode apreciar se houve ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”; e que,
“O Tribunal de Última Instância (TUI) só conhece de matéria de direito, no recurso jurisdicional administrativo (artigo 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso), pelo que não lhe cabe apreciar matéria de facto, em que não está em causa nenhuma violação de norma legal ou princípio jurídico, mas a livre apreciação da prova por parte do acórdão recorrido, insindicável pelo TUI”; (cfr., v.g., os Acs. de 02.06.2004, Proc. n.° 17/2003, de 29.06.2005, Proc. n.° 15/2005, de 24.11.2010, Proc. n.° 62/2010, de 12.01.2011, Proc. n.° 53/2010, de 14.12.2012, Proc. n.° 61/2012 e, mais recentemente, de 16.05.2018, Proc. n.° 40/2018, de 04.12.2020, Proc. n.° 175/2020 e de 23.06.2021, Proc. n.° 55/2021).
E, como de uma mera análise aos autos se apresenta claro, não se vislumbra nenhuma inobservância ou desrespeito das “regras sobre a apreciação da prova” ou sobre o seu “valor probatório”, (que, note-se, nem o recorrente invoca ou indica).
Aliás, (se bem ajuizamos, e como já o notamos), labora o recorrente em equívoco, pois que considera que a decisão punitiva administrativa não contém “matéria de facto” quanto ao seu “dolo”.
Porém, não foi isto que sucedeu.
Antes de mais, não se pode olvidar que a prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado que a verdade a atingir não é uma verdade “ontológica”, mas antes, a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
Por sua vez, importa ter igualmente presente que o recorrente foi punido a título de “negligência”, pois que provado ficou que “Num período de vários dias, os dois homens em causa fizeram diversas tentativas fracassadas de pagamento com cartões de crédito em duas lojas de vestuário. Dado que eles não eram totalmente estranhos ao arguido, de acordo com as regras da experiência social comum, este deveria os ter reconhecido e ter suspeitado do que se passava”.
E, perante isto, outra solução não se mostra existir.
Com efeito, e como (igualmente) com total acerto se salientou no referido Parecer do Ministério Público, “Significa isto que a Administração considerou que o Recorrente podia e devia ter-se apercebido da ilicitude do comportamento dos utilizadores dos cartões de crédito e actuado em conformidade para a impedir, não o tendo feito, (…)”, apresentando-se, desta forma, violado o “dever de cuidado” a que, enquanto militarizado das Forças de Segurança de Macau – e, especialmente, desempenhando um cargo de Chefia de Departamento com qualidade de “autoridade de polícia criminal” – estava (obviamente) vinculado, havendo assim que se julgar improcedente o presente recurso.
Decisão
4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 8 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 27 de Outubro de 2021
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
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