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Processo nº 45/2019 Data: 19.11.2021
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Depósito de fichas de jogo.
Regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino.
(“Lei do jogo”; Lei n.° 16/2001).
Actividade de promoção de jogos.
(Regulamento Administrativo n.° 6/2002).
Responsabilidade da concessionária de licença para a exploração de jogo.



SUMÁRIO

  O art. 23° da Lei n.° 16/2001, (“Lei do jogo”), e o art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002, sobre a “actividade de promoção de jogos”, tem sentido e alcance distintos: enquanto no dito art. 23° (da “Lei do jogo”) se prevê uma responsabilidade da concessionária de jogo para com a “entidade concedente”, o art. 29° do referido Regulamento Administrativo impõe àquela uma responsabilidade (solidária) “perante terceiros”.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 45/2019
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), A., propôs no Tribunal Judicial de Base, acção ordinária contra, “DORE ENTRETENIMENTO SOCIEDADE UNIPESSOAL LIMITADA”, (“多金娛樂一人有限公司”), e “WYNN RESORTS (MACAU) S.A.”, (“永利渡假村(澳門)股份有限公司”), pedindo a condenação solidária das referidas (1ª e 2ª) RR. na restituição a seu favor de fichas de jogo no valor de HKD$6.000.000,00 ou no pagamento da quantia equivalente com os respectivos juros legais à taxa de 9,75% a partir de 21.09.2015 até integral pagamento; (cfr., fls. 2 a 6 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, por sentença da Mma Juiz Presidente do Colectivo de 21.12.2017, (CV3-15-0103-CAO), julgou-se a acção parcialmente procedente, condenando-se (tão só) a (1ª) R. “DORE” no pedido deduzido; (cfr., fls. 200 a 210).

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Em sede dos recursos que do assim decidido interpuseram o A. (A) e a (1ª) R. “DORE”, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 11.10.2018, (Proc. n.° 475/2018), onde se decidiu:

“- negar provimento ao recurso interposto pela 1ª Ré Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada, confirmando a sentença recorrida na parte que lhe condenou; e
- conceder provimento ao recurso interposto pelo Autor, e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte que absolveu a 2ª Ré Wynn Resorts (Macau) S.A., passando a condenar a mesma a pagar ao Autor, solidariamente com a 1ª Ré, a quantia de HKD$6.000.000,00 (seis milhões Hong Kong dólares), acrescido dos juros de mora à taxa legal contados a partir do dia 30/09/2015, até ao integral e efectivo pagamento.
(…)”; (cfr., fls. 286 a 309-v).

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Inconformada com o decidido, vem a (2ª) R. “WYNN” recorrer para esta Instância.

Nas suas alegações, produz as conclusões seguintes:

“(i) O Tribunal Judicial de Base condenou a Dore no pedido em sede de responsabilidade meramente contratual;
(ii) O Acórdão recorrido confirmou essa decisão sem reservas;
(iii) O Acórdão recorrido condenou a Recorrente com base no artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 por entender que (a) este enuncia um princípio de responsabilidade das concessionárias de jogo perante terceiros por actos dos promotores de jogo; (b) o depósito de fichas realizado pelo Recorrido junto da Dore tinha conexão directa com o jogo; e (c) esse depósito se subsumia no segmento da previsão normativa do artigo 29.º que se refere à actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, não tendo o Acórdão considerado preenchido qualquer outro segmento da previsão normativa;
(iv) O Regulamento Administrativo n.º 6/2002 é um regulamento complementar;
(v) O seu artigo 29.º regulamenta o n.º 3 do artigo 23.º da Lei n.º 16/2001 e consequentemente só trata da responsabilidade das concessionárias perante o Governo, por actos praticados por promotores de jogo com os quais tem relação;
(vi) A interpretação do referido artigo 29.º professada no Acórdão recorrido importa que as concessionárias respondam objectivamente perante terceiros por obrigações contratuais dos promotores de jogo, por estes contraídas no exercício da própria empresa, como se aquelas fossem suas fiadoras ope legis;
(vii) Isso representaria um risco extremo e injustificado, não explicado por qualquer circunstância especial da relação que se estabelece entre concessionárias e promotores;
(viii) Os promotores de jogo são entidades autónomas, actuam em concorrência virtual com as concessionárias e estão sujeitos a licenciamento, exames à escrita e auditorias do regulador, corporizado na Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos;
(ix) Por conseguinte, o artigo 29.° não responsabiliza as concessionárias perante terceiros por obrigações contratuais dos promotores, contraídas no exercício da própria empresa;
(x) Se o legislador tivesse querido instilar-lhe esse sentido, tê-lo-ia expressado em termos inequívocos;
(xi) O Acórdão recorrido violou e fez errada aplicação de lei substantiva ao interpretar o referido artigo 29.° e aplicá-lo na condenação da Recorrente, nos moldes supra descritos;
(xii) O Acórdão recorrido não fundamenta a condenação da Recorrente na norma contida na alínea 5) do artigo 30.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, o que se afigura correcto porque a mesma só poderia ser aplicada com apoio em matéria de facto que não se provou;
(xiii) Aliás, a especificação dum regime de solidariedade na condenação da Recorrente sempre afastaria necessariamente a possibilidade de esta se alicerçar na aludida alínea 5) do artigo 30.°;
(xiv) Por cautela de patrocínio, na hipótese de se entender que o Acórdão recorrido se teria escorado também nessa disposição legal, sempre se dirá que o Tribunal a quo teria então (a) violado lei substantiva por considerar que a quebra do dever imposto pela norma gera responsabilidade perante o público, e não apenas perante o regulador, e, (b) à luz do artigo 575.° do Código de Processo Civil, ofendido a força do caso julgado formal do acórdão do tribunal colectivo que em primeira instância, julgando a matéria de facto, respondeu ao quesito n.º 6 da Base Instrutória, e (c) nos termos do artigo 562.°, n.os 2 e 3, do CPC, desprezado a função dos factos provados como premissa da decisão, incorrendo assim, em ambos os casos, em violação da lei de processo”; (cfr., fls. 321 a 343).

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Respondendo, diz o A. o que segue:

“1. Inconformada com o douto acórdão do Tribunal de Segunda Instância, a recorrente interpõe recurso para o Tribunal de Última Instância, alegando que não deve assumir responsabilidade solidária pela respectiva actividade da Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. e apresentando os fundamentos seguintes como motivação de recurso: (1) A dívida que deve assumir a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. só tem natureza contratual; (2) A responsabilidade solidária prevista no art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º6/2002 há apenas perante o governo mas não perante terceiros; (3) A relação entre a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. e a recorrente não pertence à relação de comissão prevista no art.º 493.º do Código Civil; (4) O acórdão recorrido erradamente interpretou e aplicou o art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º6/2002; (5) Violando os art.ºs 575.º e 562.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil;
2. Considera o recorrido que não procedem as motivações da recorrente, devendo ser rejeitado o recurso.
3. Embora a responsabilidade solidária da recorrente tivesse origem no acto de depósito de fichas (relação contratual de depósito irregular) realizado entre o recorrido e a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada,
4. A prestação do serviço de depósito de fichas aos membros pela Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. foi consentida e autorizada pela recorrente, bem como no casino Wynn da recorrente, a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. exercia a actividade de promotora de jogo.
5. De acordo com os factos assentes, a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda., como promotora de jogo que cooperava com a recorrente, criou no Casino Wynn operado pela recorrente, a supracitada “Sala VIP Dore” com uma tesouraria independente.
6. A recorrente permitiu à Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda., prestar serviços de depósito e troca de fichas aos membros na Sala VIP Dore instalada no casino Wynn.
7. Como promotora de jogo, a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. prestava o supracitado serviço aos membros só para atrair e adquirir clientes para a concessionária (casino) a fim de aumentar os proveitos.
8. Além disso, indica a recorrente na motivação de recurso que o Regulamento Administrativo n.º6/2002 é um regulamento complementar da Lei n.º16/2001, em particular, o art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º6/2002 é correspondente ao art.º 23.º, n.º3 da Lei n.º16/2001.
9. E pelo que, não se deve adoptar a interpretação feita pelo douto acórdão recorrido sobre o art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º6/2002 e o âmbito da responsabilidade solidária apenas “perante o governo”.
10. Mas independentemente do Regulamento Administrativo n.º6/2002 se pertence a um regulamento administrativo independente ou regulamento administrativo complementar indicado pela Lei n.º13/2009, de facto, o Regulamento Administrativo n.º6/2002 entrou em vigor mais cedo de que a Lei n.º13/2009, ao primeiro não são aplicáveis as limitações do regulamento administrativo previstas no último.
11. Mesmo que uma das funções do Regulamento Administrativo n.º6/2002 possua natureza como um regulamento administrativo complementar que estabelece medidas concretas para a execução da lei (Lei n.º16/2001),
12. A disposição legal a que corresponde o art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º6/2002 também não se limita ao art.º 23.º, n.º3 da Lei n.º16/2001, mas sim ao contrário, deve corresponder a todo o regime jurídico da Lei n.º16/2001.
13. Na realidade, uma das finalidades do Regulamento Administrativo n.º6/2002 é concretizar a Lei n.º16/2001 que define o regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino em Macau.
14. Dada a relação especial existente entre os promotores de jogo e as concessionárias, a Lei n.º16/2001 impende sobre as concessionárias o dever de fiscalização para que as mesmas, por um lado, possam escolher livremente partes para cooperação e, por outro lado proceder a fiscalização e exame adequada sobre os promotores de jogos e cooperadores.
15. Justamente por causa da relação de cooperação tida entre os promotores de jogo e as concessionárias, da conexão de interesses e da responsabilidade de fiscalização, dispõe o art.º29.º do Regulamento Administrativo n.º6/2002 que devem as concessionárias responsabilizar-se solidariamente pelas actividades desenvolvidas pelos promotores de jogo e cooperadores, sendo isso uma disposição sancionatória que o legislador impõe às concessionárias por não terem cumprido rigorosamente o dever de fiscalização.
16. Quanto ao espírito legislativo previsto no art.º29.º do Regulamento Administrativo n.º6/2002, como no douto acórdão recorrido já foi feita uma explicação muito minuciosa, aqui não se repete.
17. Além do mais, segundo o sentido literal do art.º29.º do Regulamento Administrativo n.º6/2002, o legislador quem elabora o regulamento administrativo não restringe expressamente, com o mínimo sentido literal, o âmbito da responsabilidade solidária das concessionárias, nem dispõe expressamente a responsabilidade solidária apenas “perante o governo” ou “perante terceiros específicos ou não específicos”.
18. Pelo que, independentemente do espírito legislativo ou do sentido literal a que corresponde a disposição legal, o art.º29.º do Regulamento Administrativo n.º6/2002 não restringe que a respectiva responsabilidade solidária só corresponda ao art.º23.º, n.º3 da Lei n.º16/2001, que há apenas perante o governo.
19. Por outro lado, entre a recorrente e a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda., embora não exista a relação contratual de “comitente e comissário”, também é diferente da responsabilidade por risco prevista no art.º493.º do Código Civil que deve o comitente responder pelo acto do comissário.
20. A recorrente considera que são idênticos o pensamento legislativo por detrás da responsabilidade solidária prevista no art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º6/2002 e o da responsabilidade do comitente prevista no art.º 493.º do Código Civil.
21. Juridicamente cabe a recorrente o dever de fiscalização. Nos termos do art.º30.º, als. 3) e 5) do Regulamento Administrativo n.º6/2002, constituem em obrigações da recorrente comunicar à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos qualquer facto que possa afectar a solvabilidade dos promotores de jogo e fiscalizar a actividade desenvolvida pelo promotor de jogo, nomeadamente quanto ao cumprimento das suas obrigações legais, regulamentares e contratuais.
22. Contudo, a recorrente nos autos, por um lado, partilhava com a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda os proveitos provenientes dos clientes da Sala VIP Dore, mas por outro lado, não procedeu a qualquer supervisão do funcionamento da tesouraria da Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda., nomeadamente o registo ou fiscalização das fichas depositadas pelos clientes.
23. A recorrente permitiu à Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. explorar a respectiva actividade no seu Casino Wynn sem realizar qualquer fiscalização adequada, nomeadamente aceitar o depósito de fichas feito pelos clientes, o que levou a que o recorrido tenha confiado erradamente na recorrente para depositar as respectivas fichas na Sala VIP Dore instalada no Casino Wynn e finalmente a recorrente se tenha recusado a restituir as fichas vivas no valor de HK$6.000.000,00.
24. Sendo como uma das seis empresas concessionárias para a exploração de jogos de fortuna ou azar, a recorrente é responsável pela fiscalização do promotor de jogo e cooperador que cooperavam com ela, pois não pode o governo intervir directamente na operação das concessionárias ou controlá-la, assim, na lógica jurídica, cabe a recorrente os prejuízos do recorrido por não ter cumprido o dever de fiscalização.
25. Em segundo lugar, o promotor de jogo foi escolhido livremente pela recorrente como concessionária, e entre os dois, existe uma relação de cooperação estreita e de auxílio mútuo, sendo uma comunidade em termos de interesses.
26. É do conhecimento comum, a relação entre a recorrente e a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. não é uma relação de cooperação simples e superficial entre a concessionária e a promotora de jogo, mas sim uma relação estreita da exploração conjunta de jogos de fortuna ou azar, tendo ambas partilhado os proveitos de jogos de fortuna ou azar provenientes da sala VIP Dore, conforme uma proporção específica.
27. Nos termos dos art.ºs 7.º, 8.º e 17.º, n.º9 da Lei n.º16/2001 (Regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino), a exploração de jogos de fortuna ou azar é concedida previamente pelo governo da RAEM e sem prévia autorização do governo, a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, bem como outras actividades que constituam obrigações legais ou contratuais da concessionária, não podem ser transferidas ou cessadas para terceiro a qualquer título pelas concessionárias, sob pena de serem consideradas nulas.
28. Por outro lado, a recorrente, sem observação da Lei n.º16/2001 (Regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino) explorando o jogo de fortuna ou azara com a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda., já cometeu o “crime de ilícitos de jogo em local autorizado” previsto no art.º7.º da Lei n.º8/96/M, sendo uma exploração ilícita.
29. Pelo que, a exploração da Sala VIP Dore no Casino Wynn pela Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. não é uma simples promoção de jogo de fortuna ou azar, mas sim a partilha dos proveitos de mesas de jogo no casino com a concessionária, que tem a mesma qualidade como concessionária.
30. Bem como, segundo o acordo celebrado entre a recorrente e a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda, a remuneração da Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda., como promotora de jogo, já ultrapassa e viola o limite máximo de 1.25% do valor total de aposta (net rolling) fixado pelo Secretário para a Economia e Finanças, ultrapassando o direito exclusivo de exploração que apenas possui a concessionária ou subconcessionária.
31. Devido ao supracitado acordo conjunto celebrado entre a recorrente e a Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. e à sua exploração ilícita da actividade de jogo de fortuna ou azar com carácter de exploração exclusiva, daí resultou que o recorrido, como terceiro de boa fé, erradamente confiou na Sala VIP Dore instalada na Casino Wynn que explorasse de forma legal a promoção de jogo, e depositou na Sala VIP Dore as fichas, fazendo com que finalmente se tornasse impossível a retomada das fichas depositadas.
32. Pelo que, de qualquer maneira, nos termos da Lei n.º16/2001, do Regulamento Administrativo n.º6/2002 e do art.º7.º da Lei n.º8/96/M, como a recorrente permitiu à Dore Entretenimento Sociedade Unipessoal Lda. aceitar o depósito de fichas feito pelo recorrido no seu casino, deve a recorrente responsabilizar-se conjunta e solidariamente pelo respectivo acto.
33. Além disso, as fichas em causa depositadas pelo recorrido eram fichas emitidas pelo casino Wynn, e é do conhecimento comum, as fichas só destinam-se exclusivamente a apostar nos jogos consoante a natureza e finalidade fixada na lei, as quais não são moedas numerárias em circulação mas sim evidentemente têm natureza de jogo.
34. E tal como anteriormente foi indicado, o serviço de depósito de fichas é uma das facilidades típica e vulgar em Macau fornecidas pelos promotores de jogo aos seus clientes, sendo isso também uma das maneiras de exploração em comum para adquirir clientes em benefício dos promotores de jogo e das concessionárias para o aumento do volume do negócio de jogo.
35. Todas as actividades dos promotores de jogo que as concessionárias autorizam para serem realizadas nos seus casinos são em benefício das concessionárias e têm a ver com os jogos, com a finalidade de atrair clientes para jogar e razão pela qual as concessionárias autorizam e permitem aos promotores de jogo criar tesouraria e aceitar o depósito de fichas feito pelos clientes.
36. Além do mais, segundo o facto instrumental resultante dos depoimentos prestados pela testemunha da recorrente no decurso de audiência, o recorrido frequentava a sala VIP Dore no casino Wynn para jogar e sempre aproveitava os pontos de consumo obtidos no jogo por ter feito “troca de ficha” na sala VIP, para reservar o quarto do hotel Wynn.
37. Pelo que, evidentemente as fichas depositadas na respectiva sala VIP têm conexão com o jogo e o douto acórdão não viola o disposto nos art.ºs 575.º e 562.º do Código de Processo Civil.
38. Pelo acima exposto, o recorrido considera que não procedem todas as motivações da recorrente, devendo ser rejeitado o recurso”; (cfr., fls. 549 a 556 e 759 a 793).

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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como provados os factos seguintes (que não foram objecto de alteração pelo Tribunal de Segunda Instância):

“- No dia 24 de Junho de 2006, 2ª ré Wynn Resorts (Macau) S.A. na qualidade de concessionária, celebrou com a RAEM, o contrato de concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino (vd. Boletim Oficial da RAEM n.º27, de 2002), como sociedade concessionária para a exploração de jogos de fortuna de azar (adiante designada por “concessionária”). (al. A) dos factos assentes)
- Depois, com a autorização e consentimento da 2ª ré, a 1ª ré passou a ser promotora de jogo do casino Wynn, pertencente à 2ª ré (adiante designada por “promotora de jogo”). (al. B) dos factos assentes)
- A 1ª ré, a fim de explorar a actividade de promotora de jogo, após obtido autorização e consentimento da 2ª ré, criou a “Sala VIP Dore” (al. C) dos factos assentes)
- A 1ª ré, após obtido a autorização e consentimento da 2ª ré, criou uma tesouraria independente na “Sala VIP Dore”, para a prestação de serviços de forma gratuita, de troca, depósito e levantamento de fichas, bem como de várias facilidades aos seus membros (al. D) dos factos assentes)
- No período entre Setembro de 2014 e Março de 2015, a 1ª ré só tinha um único sócio e administrador senhor B. (al. E) dos factos assentes)
- Em Junho de 2015, o Autor entregou a Sra. C, uma quantia de HK$6.000.000,00 em fichas vivas para depositar na “sala VIP Dore” operada pela 1ª Ré, no casino Wynn. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- A Sra. C assinou como sendo a 1ª Ré em nome da “sala VIP Dore” e emitiu a favor do Autor um talão de depósito de fichas, dele constando o carimbo usado pela 1ª Ré para confirmação. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- Em Setembro de 2015, o Autor e seu amigo dirigiram-se à “sala VIP Dore” para pedir o levantamento das fichas vivas ali depositadas, mas o seu pagamento foi recusado pela 1ª Ré. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- O autor e seu comissário/procurador também por muitas vezes dirigiram-se à “Sala VIP Dore” para pedir o levantamento das fichas ali depositadas, tendo igualmente sido recusado pelo respectivo funcionário. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- A 2ª Ré, sendo Sociedade Concessionária, permite a aceitação do depósito de fichas de jogos no casino Wynn (“sala VIP Dore”) por parte dos membros desta. (resposta ao quesito 6 da base instrutória)
- C desempenhava o cargo de supervisora geral da “sala VIP Dore” da 1ª Ré, sendo responsável pelo trabalho de estabelecer contactos, atender clientes e efectuar o supervisionamento sobre o funcionamento da tesouraria, conferir e verificar os livros da contabilidade, bem como exercer a coordenação e executar tarefas relacionadas com o funcionamento diário da “sala VIP Dore”. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)”; (cfr., fls. 201 a 201-v).

Do direito

3. Insurge-se a 2ª R., “WYNN”, contra o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, concedendo provimento ao recurso pelo A. (A) aí interposto, revogou o segmento decisório absolutório da (anterior) sentença da Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base, condenando-a na restituição “solidária” ao A. de fichas de jogo no valor de HKD$6.000.000,00 ou no pagamento desta mesma quantia e seus juros.

Nada parecendo obstar, e merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

A “questão” a decidir consiste em saber se a ora recorrente, (“WYNN”) – na qualidade de “concessionária de uma licença para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino na R.A.E.M.”, e, assim, como a legítima titular do direito de exploração do Casino onde a (1ª) R. “DORE” desenvolvia a “actividade de promotor de jogo” com base num “contrato (de cooperação)” entre ambas firmado e no âmbito de cuja “actividade” ocorreu o “facto jurídico” que deu origem ao “prejuízo” reclamado nos autos – deve “responder solidariamente” com esta (1ª R.) para com o A., (A), ora recorrido.

E, como se viu, a esta mesma questão, considerou o Tribunal Judicial de Base que a resposta deveria ser de sentido negativo, inverso tendo sido o entendimento do Tribunal de Segunda Instância.

Assim, sendo o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância o “objecto” do presente recurso, e para melhor (cabal) compreensão dos contornos da questão a tratar, vale a pena atentar na argumentação invocada para se chegar à “solução recorrida”.

Pois bem, no seu Acórdão – e na parte que agora interessa – assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“(…)
No caso sub justice, o Autor entregou as fichas vivas à empregada da Sala de VIP da 1ª Ré no valor de HKD$6.000.000,00 e esta emitiu-lhe um talão de depósito de fichas em nome da Sala VIP Dore (factos provados dos quesitos 2º e 3º da base instrutória).
A 2ª Ré, sendo Sociedade Concessionária, permite a aceitação do depósito de fichas de jogos na Sala de VIP da 1ª Ré por parte dos membros desta (alínea D) dos factos assentes).
Não ficou provado que o valor entregue pelo Autor destina-se ao investimento na Sala de VIP da 1ª Ré (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
É do conhecimento público de que a existência das fichas, quer vivas, quer mortas, visa essencialmente para o jogo de fortuna e azar, sendo que cada concessionária tem as suas fichas próprias que não se misturam uma com outra.
Perante este quadro fáctico e não tendo provado algum facto em sentido diverso, o Tribunal pode tirar a conclusão de que o depósito de fichas em causa tem conexão directa com o jogo.
Repare-se, a 2ª Ré beneficia sempre com o depósito realizado nas salas de VIP de jogo do seu casino, tanto em fichas, como em numerário.
Em primeiro lugar, havendo o depósito, significa que o depositante tem de voltar ao seu casino, quer para jogar novamente, quer para levantá-lo.
Verifica-se assim uma possibilidade de manter ligação com o cliente.
Em segundo lugar, a respectiva sala de VIP de jogo pode aproveitar o depósito no próprio funcionamento, uma vez que com o depósito aumentou o seu fluxo de dinheiro ou de fichas, o que também reflecte na actividade de jogo explorada pela concessionária.
Dispõe o artº 29º do Regulamento Administrativo nº 6/2002 que “As concessionárias são responsáveis solidariamente com os promotores de jogo pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administradores e colaboradores destes, bem como pelo cumprimento, por parte dos mesmos, das normas legais e regulamentares aplicáveis”.
Por seu turno, a al. 5) do artº 30º do mesmo Regulamento Administrativo prevê que a concessionária tem obrigação de “fiscalizar a actividade dos promotores de jogo, nomeadamente quanto ao cumprimento das suas obrigações legais, regulamentares e contratuais”.
Conjugando estes dois preceitos, achamos que o espírito normativo é no sentido de atribuir maior responsabilidade às concessionárias no controlo das actividades desenvolvidas nos seus casinos pelos promotores de jogo e administradores e colaboradores destes, pois sendo beneficiárias das actividades dos promotores de jogo e administradores e colaboradores destes, é razoável e lógica exigir-lhes o dever de fiscalização dessas actividades, bem como assumir, em solidariedade com os promotores de jogo e administradores e colaboradores destes, as responsabilidades decorrentes das mesmas.
Nesta conformidade, ainda que um promotor de jogo obtenha de forma ilegal financiamento para manter o funcionamento da sala de VIP de jogo, esta actividade tem reflexo directo na actividade da exploração de jogo da concessionária.
Se a concessionária não cumprir o seu dever de fiscalização, permitindo ou tolerando o promotor de jogo desenvolver este tipo actividade no seu casino, não deixará de ser considerada como responsável solidária pelos prejuízos decorrentes daquela actividade, nos termos do artº 29º do citado Regulamento Administrativo.
Assim, o recurso do Autor não deixará de se julgar provido.
(…)”; (cfr., fls. 303-v a 309).

Aqui chegados, vejamos de que lado está a razão.

Parafraseando I. Galvão Telles, “A responsabilidade civil consiste na obrigação de reparar os danos sofridos por alguém.
Trata-se de indemnizar os prejuízos de que esse alguém foi vítima”; (in “Direito das Obrigações”, Coimbra Editora, pág. 194).

E como nota Manuel Trigo, “em sentido amplo, a responsabilidade civil é a responsabilidade pela obrigação de reparar os danos causados, quer tenha por fonte o contrato quer tenha por fonte a lei”; (in “Lições de Direito das Obrigações”, pág. 238).

In casu, e tanto quanto resulta do que se deixou relatado, evidente se apresenta que a ora recorrente, enquanto “concessionária do direito de exploração de jogos de fortuna ou azar”, não celebrou com o A., ora recorrido, nenhum “contrato” (ou acordo) que, como se viu, tenha sido invocado ou servido de “fonte” (ou “fundamento”) da “decisão condenatória” pelo Tribunal de Segunda Instância proferida e ora recorrida.

E como cremos que (sem esforço) igualmente se colhe do que atrás se deixou transcrito, a dita “decisão de condenação” da ora recorrente (no pagamento solidário ao dito A.), é, antes, o resultado da interpretação pelo referido Tribunal de Segunda Instância efectuada a determinado(s) comando(s) jurídico(s) entendido(s) como para a “situação” relevante(s), justo(s) e, para tal efeito, bastante(s).

Na verdade, e em abreviada síntese que se nos mostra adequada, foi opinião do Colectivo do Tribunal de Segunda Instância que, atenta a “factualidade provada”, e em conformidade com o preceituado no(s) art°(s) 29° (e 30°) do Regulamento Administrativo n.° 6/2002, as “concessionárias de jogo” – como é o caso da ora recorrente – “são solidariamente responsáveis para com terceiros pelos actos dos (seus) promotores de jogo”, (no caso, a 1ª R., “DORE”).

E, na sequência do assim consignado, apresenta-se-nos desde já adequada a nota seguinte.

Nos termos do art. 505°, n.° 1 do C.C.M.:

“A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles”.

Por sua vez, prescreve também o art. 506° do mesmo código que:

“A solidariedade de devedores ou credores” – diríamos nós, “não se presume”, e – “só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes”.

Ora, em conformidade com o assim estatuído, podia-se, (eventualmente), começar por se questionar (e contestar) a decisão recorrida na medida em que a mesma confirmou a condenação da 1ª R., (“DORE”), tendo como fundamento o “contrato de depósito de fichas” com o A. celebrado, revogando o segmento absolutório da sentença do Tribunal Judicial de Base na parte agora em causa e condenando, solidariamente, a ora recorrente (“WYNN”), fundamentando tal decisão não já no dito “contrato de depósito”, (do qual esta não foi parte), mas sim, e como se viu, por efeito da “aplicação à situação do(s) art°(s) 29° (e 30°) do Regulamento Administrativo n.° 6/2002”.

Porém, cabe referir (e esclarecer) que – não obstante o estatuído no transcrito art. 506° do C.C.M. – (temos também para nós como claro que) necessária não é uma “identidade ou coincidência de causas” para que se possa estar perante uma “obrigação solidária”; (neste sentido, cfr., v.g., Antunes Varela in, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 759 e segs., e Inês Fernandes Godinho in, “A Responsabilidade Solidária das Pessoas Colectivas em Direito Penal Económico”, pág. 56).

Assim, e nada impedindo que a declarada “solidariedade” da (1ª) R. “DORE”, e da ora recorrente, (“WYNN”), tenha “fontes” distintas – no caso, o referido “contrato”, e as invocadas “disposições legais” – continuemos, passando-se a ver se a referida condenação da dita recorrente merece a censura que com o presente recurso lhe é dirigida.

Tendo-se, (especialmente), em consideração a “relevância do sector do jogo” para o “turismo”, “economia” e “finanças da R.A.E.M.”, (e sem se esquecer o menos bom “momento” que atravessam), e ponderando, também, no número de processos pendentes análogos aos presentes autos, não se deixa de consignar que não se ignora o (possível) “impacto” que – seja qual for – a “solução” que se vier a adoptar pode vir a causar.

Isto dito, (e sem perder de vista o teor das doutas considerações tecidas nos Pareceres pela recorrente juntos aos autos, e que muito respeito nos merecem), cabe (começar por) dizer (e sublinhar) que, não obstante em causa estar uma “pretensão” (civil), deduzida numa “acção ordinária” em sede de um processo em que os seus “sujeitos” intervém, como quaisquer outros, no âmbito de um “processo de natureza civil”, (e como tal, tramitado nos termos do C.P.C.M.), necessário (e mesmo, imprescindível), é ter igualmente presente que, o que em bom rigor agora em causa está, não consiste em apurar tão só e apenas dos “efeitos patrimoniais” de uma (mera) “relação jurídica do foro – puramente – pessoal”, mas sim, de ponderar e decidir da existência, (ou não), da atrás já referida “responsabilidade solidária”, tendo-se presente que a mesma diz respeito a “factos” ocorridos no âmbito do (normal) exercício de uma “actividade” que, (como se viu, para além de essencial ao turismo, economia e finanças da R.A.E.M.), tem “características” (especiais e muito) “próprias”: precisamente, a actividade de “promoção de jogo”, necessariamente – licenciada e – exercida no âmbito e em “conexão” com uma “concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino”.

Nesta conformidade, oportuno e pertinente se afigura desde já de convocar – e salientar – o estatuído no art. 7°, n.° 1 da (atrás referida) Lei n.° 16/2001, onde se prescreve que “A exploração de jogos de fortuna ou azar é reservada à Região Administrativa Especial de Macau e só pode ser exercida por sociedades anónimas constituídas na Região, às quais haja sido atribuída uma concessão mediante contrato administrativo, nos termos da presente lei”, sendo de se ter igualmente presente que – como já afirmava Marcello Caetano – uma “concessão” traduz-se na “transferência de poderes próprios de uma pessoa administrativa para um particular”, (…), que por isso, pela sua própria natureza, não pode deixar de ser “temporária” e “parcial”, conservando, necessariamente, o órgão administrativo concedente “poderes de vigilância e de defesa do interesse público”; (cfr., Marcello Caetano in, “Estudos de Direito Administrativo, Subsídios para o estudo da teoria da concessão de serviços públicos”, pág. 92 e segs.).

A propósito do tema, e em nossa opinião, com plena aplicabilidade ao regime localmente estabelecido, escrevem também Freitas do Amaral e Lino Torgal que:

“(…)
No ordenamento jurídico-positivo português, a concessão de exploração de jogos de fortuna ou azar perfila-se, inequivocamente, como um contrato administrativo, isto é, como um acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa.
É-o, em primeiro lugar, por determinação de lei (…)
E é-o, depois, por natureza: tem por objecto a transferência (temporária e parcial) para um particular do exercício de um direito legalmente reservado à Administração, que o concessionário desempenhará por sua conta e risco, mas no interesse geral. Trata-se, pois, de uma concessão em sentido técnico: por seu intermédio, fica um sujeito privado habilitado a exercer temporariamente uma actividade de interesse público por lei integrada na esfera de atribuições do concedente. (…)”; (in “Estudos sobre Concessões e outros actos da administração, Concessão de Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar: da Prorrogação do Prazo e outras alterações do contrato”, pág. 533 e 534).

Transpondo tais considerações para a realidade local, isto não pode deixar de significar, implicando, (adequada e necessariamente), que a matéria dos “direitos”, “deveres” e outras “obrigações” emergentes dos “contratos de concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar” celebrados, assim como os pelas concessionárias celebrados com os (seus) promotores de jogo se hão de reger pelo disposto nas suas respectivas “cláusulas” e por toda a “legislação administrativa” aos mesmos aplicável, sendo, nesta parte, especialmente relevante, o disposto na já referida Lei n.° 16/2001, o Regulamento Administrativo n.° 26/2001, (que “regulamenta o concurso público para a atribuição de concessões para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, o contrato de concessão e os requisitos de idoneidade e capacidade financeira das concorrentes e concessionárias”), e o Regulamento Administrativo n.° 6/2002, (que nos termos do art. 1°, e quanto ao seu “Âmbito” preceitua que “O presente regulamento administrativo regula a actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino, nomeadamente os processos de verificação da idoneidade e de licenciamento dos promotores de jogo de fortuna ou azar em casino, adiante designados por promotores de jogo, o registo destes junto de concessionárias para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, adiante designadas por concessionárias, bem como o pagamento das comissões ou outra remunerações que sejam pagas aos promotores de jogo”).

Em face do consignado, evidente (e inquestionável) se nos apresenta a acentuada relevância (e directa influência) que o “direito público”, em especial, o “administrativo”, tem sobre a “matéria” (e “questão”) a tratar na presente lide recursória, (não se mostrando assim de todo adequada uma sua abordagem como se de uma pura (e mera) “relação de direito-privado” se tratasse), pois que não se pode olvidar que em causa não deixa de estar o “interesse público” (e de toda uma colectividade), e que, nos termos do art. 2°, n.° 1, alínea 6), da dita Lei n.° 16/2001, os “promotores de jogo”, (no caso, a 1ª R.), são definidos como “«agentes» de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino, (…)”, (no mesmo sentido, vd., art. 2° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002), e que, preceitua o art. 6°, n.° 1 deste (mesmo Regulamento Administrativo n.° 6/2002) que: “O acesso à actividade de promoção de jogos depende da atribuição pelo Governo, através da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, de uma licença de promotor de jogo”, prescrevendo também o seu art. 24°, n.° 1 que: “Os promotores de jogo exercem a sua actividade nos termos do contrato celebrado entre si e uma concessionária”.

Dest’arte, e dada a “natureza da matéria” e às “razões de interesse público” que estão na base da “reserva legal” em relação à “exploração de jogos de fortuna ou azar”, cabe referir que se tem, aliás, como natural, que a actividade – conexa – relativa à “promoção dos jogos de fortuna ou azar”, seja, também, (e bem), uma “actividade regulamentada” (e relativamente proibida) por lei, (e que apenas pode ser levada a cabo por quem seja considerado “idóneo” e “licenciado” para o seu exercício; cfr., o n.° 2 do dito art. 6°, e os art°s seguintes, do Regulamento Administrativo n.° 6/2002).

Efectuadas as considerações que se deixaram consignadas, (e que se nos apresentam de grande relevância para a solução da “questão” que nos é trazida para decisão), continuemos.

Atentas as “posições em confronto”, (em especial, na da ora recorrente, que contesta o Acórdão recorrido), dúvidas não há que o “pomo da discórdia” reside na “interpretação do art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 e da sua relação para com o art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001”.

Cumpre, então, reproduzir as normas jurídicas em questão para depois se proceder à sua análise.

Pois bem, com a epígrafe “Promotores de jogo” prescreve o dito n.° 3 do referido art. 23° que:

“Perante o Governo, é sempre uma concessionária a responsável pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, seus administradores e colaboradores e pelo cumprimento por parte deles das normas legais e regulamentares, devendo para o efeito proceder à supervisão da sua actividade”.

Por sua vez, dispõe o art. 29° do mencionado Regulamento Administrativo, (que tem como epígrafe “Responsabilidade das concessionárias”) que:

“As concessionárias são responsáveis solidariamente com os promotores de jogo pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administradores e colaboradores destes, bem como pelo cumprimento, por parte dos mesmos, das normas legais e regulamentares aplicáveis”.

Segundo a “Nota Justificativa” que acompanhou a “proposta de Lei” que após aprovada obteve o n.° 16/2001, no referido art. 23°, (então, art. 21°), encontra-se “uma das maiores inovações da presente proposta de lei. Pela primeira vez no ordenamento jurídico local são editadas normas para regulamentar o exercício da actividade dos promotores junkets.
Estas normas acolheram soluções já consagradas para a actividade dos corretores de apostas nas corridas de cavalos (cfr. Despacho do Chefe do Executivo n.° 245/2000, datado de 28 de Dezembro e publicado no Boletim Oficial de 8 de Janeiro de 2001)”.

Assim, e salvo melhor opinião, na busca do (melhor) sentido e alcance do art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001, não se pode olvidar que a sua “intenção legislativa” foi a de aí se adoptar (a mesma) solução (antes) já (assumida e) prevista para os “corretores de apostas nas corridas de cavalos”, nos termos do prescrito no referido Despacho do Chefe do Executivo n.° 245/2000, onde no seu n.° 5 se estatuía que: “Perante a entidade concedente, é sempre a concessionária a responsável pela actividade desenvolvida pelos corretores de apostas”; (disposição legal que, como se referiu, e em nossa opinião, está na base do n.° 3 do art. 23° da Lei n.° 16/2001).

Ora, ponderando-se no assim preceituado, longe da verdade cremos que não estaremos se, em face de tal estatuição, considerarmos que a intenção pelo legislador assumida foi clara: a de evitar que a concessionária se pudesse eximir de qualquer responsabilidade perante a entidade concedente quando em causa estivessem actos praticados pelos corretores de apostas; (especialmente, sabendo-se que a actividade destes últimos beneficiava a concessionária, e que, os seus “contornos” não estavam, no momento, legalmente bem definidos).

Porém, imprescindível é desde já aqui clarificar (também) que o assim estatuído não significa nem implica uma “afirmação”, (ainda que implícita), no sentido de que “tão só a concessionária é responsável” – sendo a “única” e “exclusiva” responsável – por toda a actividade desenvolvida pelos corretores de apostas, (não havendo pois qualquer “irresponsabilização” destes), muito menos se podendo dali retirar que a concessionária “apenas é responsável perante o Governo” pela actividade desenvolvida pelos corretores de apostas, valendo a pena e havendo pois aqui que atentar que no (mesmo) Despacho (n.° 245/2000) se prescreve (expressamente) no seu art. 18° que “É da responsabilidade da concessionária toda a actividade dos corretores de apostas, por forma a ser registado imediatamente no sistema informático central do hipódromo e mostrado simultaneamente no Totalizador o produto integral das apostas”.

Nesta conformidade, e considerando que no aludido Despacho já se previa que “perante a entidade concedente, a concessionária seria sempre responsável pela actividade desenvolvida pelos corretores de apostas”, (cfr., n.° 5), (totalmente) razoável e adequado se mostra (igualmente) de concluir que a norma do dito “n.° 18” se refere à sua “responsabilidade pela actividade dos corretores de apostas em relação a «terceiros», (designadamente), perante os «apostadores»”.

Outro (eventual) entendimento, (com o devido respeito), implicaria a consideração de que o legislador não soube exprimir o seu pensamento em termos correctos e adequados, indo ao ponto de, “repetir” (por duas vezes), reproduzindo a “mesma norma”, com a utilização e introdução de expressões e elementos gramaticais com significados completamente distintos, o que, como sem esforço se mostra de constatar, colide, frontalmente, com as regras de hermenêutica jurídica, em especial, com o disposto no art. 8°, n.° 3, in fine, do C.C.M..

Por sua vez, e em consonância com o que se acaba de referir, importa ainda mencionar que as citadas normas regulamentares referentes à actividade dos “corretores de apostas”, (cfr., n.° 5 e n.° 18), têm na sua base o acordado no (próprio) “contrato de concessão da exploração das corridas de cavalos”, (celebrado em 04.08.1995), onde, na cláusula sexta, (com a epígrafe “Vendas fora do recinto”), se estatuía (nomeadamente) que:

“Um. (…)
Dois. Será da responsabilidade da concessionária toda a actividade dos estabelecimentos e agentes de venda de bilhetes de apostas mútuas, por forma a ser registado no totalizador o produto integral das vendas efectuadas.
Três. Perante a entidade concedente será sempre a concessionária a responsável pela actividade dos estabelecimentos e agentes de venda de bilhetes de lotaria e apostas mútuas.
Quatro. (…)”.

Como é bom de ver, também o “âmbito de aplicação” do clausulado no “n.° 2” é (totalmente) distinto do “n.° 3”, neste tendo-se em vista a “responsabilidade da concessionária junto da entidade concedente” pela actividade dos estabelecimentos e agentes de venda de bilhetes de lotaria e apostas mútuas, pretendendo-se, com o n.° 2, responsabilizar a concessionária pela actividade dos estabelecimentos e dos agentes de venda de bilhetes de apostas mútuas “perante terceiros”, (nomeadamente, “os adquirentes de bilhetes de apostas mútuas”).

Feito este excurso pelo caminho trilhado pelo legislador na elaboração do art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001, em melhores condições estaremos para avançar na procura do (verdadeiro) sentido e alcance do art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002.

Ora, este comando legal – enquadra-se na Secção II sobre a “Actividade de promoção de jogos” do Capítulo III do dito Regulamento que tem como título “Exercício da actividade de promoção de jogos”, e – destina-se, como o indica a sua própria epígrafe, a regular a “Responsabilidade das concessionárias”, (pela “actividade de promoção de jogo”).

E, em face da reflexão que sobre a questão nos foi possível efectuar, adianta-se, desde já, que o referido art. 29° não deve ser entendido como uma (mera) “repetição”, “explicitação”, (ou mesmo, “desenvolvimento”), do atrás aludido art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001, pois que, em nossa modesta opinião, tratam-se de duas “normas diversas”, com motivos, objectivos e “âmbitos de aplicação distintos”, e, assim, (necessariamente), com “sentido e alcance (igualmente) distintos”.

Na verdade, e à imagem do que se deixou dito em relação ao art. 23° da Lei n.° 16/2001, cremos que o aludido art. 29° tem (igualmente) a sua fonte (de inspiração) no “n.° 18” do referido Despacho do Chefe do Executivo n.° 245/2000, (onde, como já se viu, prescreve que “É da responsabilidade da concessionária toda a actividade dos corretores de apostas, por forma a ser registado imediatamente no sistema informático central do hipódromo e mostrado simultaneamente no Totalizador o produto integral das apostas”).

Não se nega que – em relação ao assim previsto neste n.° 18 do Despacho n.° 245/2000 – tem o teor do art. 29° do dito Regulamento Administrativo uma redacção mais elaborada, (eventualmente, mais cuidada e rigorosa em termos jurídicos, embora, em nossa opinião, possa ainda ser objecto de melhor explicitação).

Todavia, no fundo, e se bem ajuizamos, cremos que a sua (verdadeira) razão de ser e objectivo não se afasta do que (também) se pretendeu acautelar com o aludido “n.° 18 do Despacho” em questão.

Daí, em face do que se deixou exposto, (e ponderando na “letra” do art. 29° do referido Regulamento Administrativo), adequado se nos apresenta de considerar que com o mesmo se pretendeu estatuir que as concessionárias são (também) “solidariamente responsáveis” com os (seus) promotores de jogo para com “terceiros” pela actividade por estes desenvolvida nos casinos.

Com efeito, e recordando Inês Fernandes Godinho, “A responsabilidade solidária consiste em uma modalidade de obrigação, específica quanto aos sujeitos. (…) Esta obrigação dos responsáveis é solidária quando ambos os sujeitos se encontram em situação – imposta – de deverem responder pela totalidade da dívida”; (in ob. cit., pág. 51 e 52).

Assentando em “motivos objectivos” e “razões de partilha dos benefícios e riscos”, tem – essencialmente – em vista, beneficiar o “ofendido”, permitindo-lhe a faculdade de eleger, de entre os “responsáveis”, aquele que se lhe apresente com maior resistência económica para suportar o encargo ressarcitório que reclama e pretende vir a obter, equiparando-se, por assim dizer, “quem fez” com “quem não fez e devia fazer”, “quem deixou de fazer e não se importou que se fizesse”, “quem financiou para que se fizesse”, ou ainda, “quem beneficia quando os outros fazem”…

Porém, como já se referiu, (e no que para aqui, agora, especialmente releva), impõe-se ter presente que necessária não é uma “identidade de causa” – “fonte” – para que se possa estar perante uma “obrigação solidária”.

Como a propósito nota A. Varela: “Por via de regra, as obrigações solidárias nascem do mesmo facto jurídico: do mesmo contrato ou negócio unilateral, do mesmo facto ilícito, etc. (…) De todo o modo, nada há na lei nem na lógica dos bons princípios que exclua a possibilidade de a solidariedade (perfeita) vigorar entre pessoas que se obriguem em momentos sucessivos, através de causas distintas. Não será isso frequente, mas nada há que exclua liminarmente a eventualidade da sua verificação.
Nos casos de responsabilidade por actos de terceiro (comitente em face do comissário, pessoas colectivas públicas em face dos seus agentes ou representantes, etc.), pode realmente suceder que a causa (fundamento) da obrigação seja diferente para cada um dos responsáveis solidários e que estas obrigações nasçam mesmo de factos distintos, não coincidentes no tempo.
Se houver culpa do comitente ou da pessoa colectiva pública, ao lado da culpa do comissário, a responsabilidade dos primeiros abrangerá logo a má escolha do comissário, as instruções deficientes que lhe foram dadas ou a insuficiente fiscalização da sua actividade, ao passo que a responsabilidade do segundo nascerá, em regra, só a partir do facto danoso”; (in ob. cit., pág. 759 a 762).

Pode-se, assim, com razoável segurança concluir que a responsabilidade solidária “(…) encontra, como obrigação solidária que é, uma das suas justificações de existência em uma razão de garantia. Quando falamos aqui em garantia é por não querermos utilizar o termo eficácia. E sublinhamos, a traço forte, a ideia de garantia, por ser a ideia que preside à satisfação dos interesses das vítimas. (…)
A responsabilidade solidária ambiciona garantir que a vítima, independentemente do que suceda entre os responsáveis entre si, se vê ressarcida pelos prejuízos que sofreu e vê minoradas as consequências (o resultado) dos actos praticados pelos responsáveis. Esta é uma ideia que nos parece percorrer transversalmente a responsabilidade solidária”, sendo, ainda, certo, que “A responsabilidade solidária opera em termos paralelos ou análogos à responsabilidade do comitente. (…)”; (cfr., v.g., Inês Fernandes Godinho in, ob. cit., pág. 58 e 182, afigurando-se de notar aqui também que a referida natureza “solidária” da responsabilidade da concessionária pela actividade dos promotores de jogo ao abrigo do art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 é igualmente reconhecida por Luís Pessanha in, “O Jogo de Fortuna e Azar e a Promoção do Investimento em Macau”, Administração n.° 77, Vol. XX, 2007-3°, pág. 879, e Alexandre Libório Dias Pereira in, “Casino Law in Macau: From Competition to Consumer Protection?”, B.F.D.U.M., Ano XIX, n.° 36, 2015, pág. 56).

Insiste, porém, a ora recorrente, que a referida “responsabilidade solidária” prevista no art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 se refere (tão só) a uma responsabilidade que actua (apenas) “perante o Governo”, à imagem do art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 6/2001, em causa não estando uma responsabilização da concessionária perante “terceiros”, (designadamente, perante a “clientela” dos promotores de jogo).

Porém, e como já deixamos adiantado, não se mostra de acompanhar este ponto de vista, afigurando-se-nos de considerar que uma idêntica leitura e interpretação do dito art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 – como constituindo uma norma “complementar” do art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001, e como tal, que a responsabilidade aí prevista tenha o mesmo alcance e sentido, sendo uma responsabilidade apenas, e tão só, “perante o Governo” – consubstancia (também aqui) uma flagrante violação das regras interpretativas previstas no art. 8° do C.C.M., pois que se teria de assumir o pressuposto (incorrecto) de que o legislador não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, repetindo-se, e, simultaneamente, introduzindo e eliminando, indevida e injustificadamente, elementos gramaticais essenciais para o seu correcto entendimento e interpretação, (como v.g., e especialmente sucede com a expressão “perante o Governo”), sem que daí resulte qualquer utilidade e consequência, cabendo ainda notar que tal “construção jurídica” desconsidera também o (atrás) referido “elemento histórico” e o “contexto sistemático” do diploma e comando legal em questão, (atribuindo igualmente, menos adequado sentido à noção jurídica de “responsabilidade solidária”).

Com efeito, para se compreender o sentido e alcance do art. 23° da Lei n.° 16/2001 e art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002, imprescindível é ter em conta a sua “origem histórica” em face do atrás aludido Despacho do Chefe do Executivo n.° 245/2000, (que autorizou o exercício da actividade dos corretores de apostas nas corridas de cavalos por parte da “Companhia de Corridas de Cavalos de Macau, S.A.R.L.”).

E como atrás também já se fez referência, (em nossa opinião), resulta de forma clara desse Despacho que não se pode confundir o aí estatuído no “n.° 5”, segundo o qual, “perante a entidade concedente a concessionária seria sempre responsável pela actividade desenvolvida pelos corretores de apostas”, com a regra do “n.° 18”, através da qual se estabelece que é da responsabilidade da concessionária toda a actividade dos corretores de apostas, apresentando-nos assim evidente que esta última regra se refere à “responsabilidade da concessionária perante terceiros” pela actividade dos corretores de apostas, designadamente perante os “apostadores”, enquanto “clientela” dos corretores de apostas, (no mesmo sentido, cfr., também, n°s 2 e 3 da cláusula sexta do “contrato de concessão da exploração de corridas e cavalos”), mostrando-se desta forma de concluir que a regra contida no art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 não se confunde com a norma prevista no art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001, tendo, (como já se deixou consignado), um “âmbito de aplicação, sentido e alcance distintos”.

Por outro lado, cremos que uma consideração no sentido de se (dever) ter o art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 enquanto fundamento de uma “responsabilidade solidária perante o Governo”, (nos mesmos termos do art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001), desconsidera, também, o seu respectivo “contexto sistemático”.

Como se sabe, a “interpretação deve ter em conta a «unidade do sistema jurídico». (…) Por isso a interpretação duma fonte não se faz isoladamente, atendendo por exemplo a um texto como se fosse válido fora do tempo e do espaço. Resulta pelo contrário da inserção desse texto num conjunto jurídico todo. (…)
Por via de conexão, situa-se a fonte no sistema em que se integra.
Nenhum preceito pode ser interpretado isoladamente do contexto. É natural que cada trecho duma lei surja como um momento do desenrolar lógico de um plano; não se coloca casualmente dentro daquele conjunto. Cada um dos números dum artigo só é compreensível se o situarmos perante todo o texto do artigo, cada artigo perante os que o antecedem ou imediatamente o seguem. Atender ao contexto é situar uma disposição. (…)”; (cfr., v.g., Oliveira Ascensão in, “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, pág. 391 e 392).

E, atento o que se consignou, importa, desde logo, observar que o art. 31° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 contém também uma norma sobre “Responsabilidade dos promotores de jogo”, estatuindo-se aí que “Os promotores de jogo são responsáveis solidariamente com os seus empregados e com os seus colaboradores pela actividade desenvolvida nos casinos por estes, bem como pelo cumprimento, por parte dos mesmos, das normas legais e regulamentares aplicáveis”.

Nesta conformidade, razoável não seria de questionar que se o Regulamento Administrativo apenas tivesse em vista “complementar” – no sentido de se limitar a “desenvolver” – as regras previstas na Lei n.° 16/2001, seria também este comando do dito art. 31° uma “norma – meramente – complementar” do art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001?

Ora, cremos que a resposta só pode ser de sentido negativo, não havendo, em nossa opinião, qualquer argumento – com base no elemento literal, ou em suposta interpretação sistemática com suporte na Lei n.° 16/2001 – que o sustente.

Por sua vez, assumindo que uma responsabilidade (“solidária”) “perante o Governo”, traduzir-se-ia no resultado da prática de “infracções administrativas” e na consequente aplicação de “sanções” aos seus “responsáveis”, como explicar que os referidos art°s 29° e 31° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 não estejam inseridos no Capítulo IV, (especial e especificamente) destinado às “Infracções Administrativas”, e suas “sanções”, onde, em termos sistemáticos (e lógicos), faria todo o sentido a sua inclusão?

Também aqui, clara e evidente se apresenta a resposta, cabendo salientar que o dito “Capítulo IV”, referente às “Infracções Administrativas”, (e os seus art. 32°-A, com a epígrafe “Sanções principais”, o art. 32°-B, prevendo as “Sanções acessórias” e o art. 32°-C, quanto à “Competência sancionatória” que o integram), foi introduzido pelo Regulamento Administrativo n.° 27/2009, (respeitante ao “pagamento das comissões ou outras remunerações aos promotores de jogo”), não se nos apresentando assim razoável considerar que não se tenha também aproveitado esta oportunidade para aí se colocar a “matéria do art. 29°” (sobre a suposta “responsabilidade solidária da concessionária perante a concedente”) se este fosse o seu verdadeiro sentido e objectivo.

Aqui chegados, pertinente se nos apresenta ainda a seguinte consideração.

No que toca à vigência do “princípio da culpa” em sede das “infracções administrativas” – matéria que, no fundo, se identifica com a “natureza jurídica da infracção administrativa”, ou seja, se “objectiva”, (despiciendo sendo a verificação do elemento subjectivo), ou “subjectiva”, (estando então sujeita à constatação da culpabilidade do infractor), podendo até ser “híbrida” – admite-se desde já que a questão não é (totalmente) “pacífica”, pois que conhecida é a divergência a nível da doutrina, (muito explícitos não sendo também, infelizmente os preceitos legais que a regulam).

Na verdade, e como é sabido, entendimentos existem que pugnam pela sua “natureza subjectiva”, sendo assim a “infracção administrativa” dependente da verificação de uma “conduta culposa”, (ou mesmo dolosa), por parte do seu agente, opiniões havendo que consideram desnecessário demonstrar que o infractor teve, (ou não), “ânimo de agir” de modo contrário ao preceituado, sendo portanto “objectiva”, notando-se que se defende também a tese da sua natureza “híbrida”, ao infractor cabendo a “prova do contrário” com base na chamada “culpa presumida”; (cfr., v.g., Lorenzo M. R. Baquer in, “Multas Administrativas”, Revista de Administración Pública, pág. 9 a 65; A. Del Teso in, “El Principio de Culpabilidad en el Derecho Administrativo Sancionador”; Eduardo Fortunato Bim in, “A Inconstitucionalidade da Responsabilidade Objectiva no Direito Tributário Sancionador”, Revista dos Tribunais, São Paulo, Junho 2001, pág. 143 a 169; Edilson P. N. Júnior in, “Sanções Administrativas e Princípios de Direito Penal”, Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, 2001, pág. 103 a 128; podendo-se também sobre o tema ver Marcelo M. Prates in, “Sanção Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia”, Almedina, 2005, com abundante doutrina sobre a matéria).

Dúvidas não existindo que a “culpa”, (ou melhor, o “tipo” e “grau de culpa”), do infractor é circunstância a ponderar que sede de “graduação da sanção” – de multa – em face da prática de uma infracção administrativa, (cfr., v.g., o art. 12°, n.° 2 do Regulamento Administrativo n.° 32/2000, art. 9°, n.° 2 do Regulamento Administrativo n.° 35/2000, e, mais recentemente, o art. 24°, n.° 1 do Regulamento Administrativo n.° 34/2009), cremos que em face do “Regime geral das infracções administrativas” aprovado pelo D.L. n.° 52/99/M, relevante se nos afigura ser tal “elemento subjectivo” em sede do seu regime material, (pois que nos termos do seu art. 3°, n.° 3, subsidiariamente aplicáveis são os “princípios gerais do direito e do processo penal”, preceituando, também, o art. 9° que “ao regime material das infracções administrativas” são aplicáveis várias disposições do Código Penal, nomeadamente, o estatuído no art. 123°, n.° 2, onde se estatui, expressamente, que “nas contravenções, a negligência é sempre punida”).

E, nesta conformidade, razoável não se nos mostra considerar que o aludido “art. 29°” constitua uma adequada justificação para a invocada “responsabilidade solidária da concessionária perante a concedente”, até mesmo por não se apresentar em harmonia com a regra da “pessoalização da infracção e da sua pena”, e que, naturalmente, implica, que a pena aplicada como efeito e consequência da prática de uma infracção seja – pelo menos por princípio – decretada, (imposta), à pessoa, física ou jurídica, que a cometeu, (isto, sem prejuízo de, em certos casos, nomeadamente, quando o “infractor for pessoa colectiva”, se poder prever, em caso da pena aplicada se tratar de uma “multa”, que o seu “pagamento pode ser feito solidariamente” – cfr., v.g., o art. 13° do Regulamento Administrativo n.° 24/2019, art. 17° do Regulamento Administrativo n.° 16/2021 e art. 11° do Regulamento Administrativo n.° 28/2021).

Com efeito – e a título de mero exemplo – atente-se no teor do art. 32°-A do dito Regulamento Administrativo n.° 6/2002, (adequadamente inserido no Capítulo IV, referente às “Infracções Administrativas”, e com a epígrafe “Sanções Principais”), onde se preceitua que:

“1. É punida com multa de 100 000 a 500 000 patacas a concessionária que pagar, por forma directa ou indirecta, a promotor de jogo comissões ou outras remunerações em valor superior ao limite máximo fixado pelo despacho referido no n.º 1 do artigo 27.º, ou que não cumprir as normas sobre formas de pagamento nele estabelecidas.
2. Com igual multa é punido o promotor de jogo que receber comissões ou outras remunerações em valor superior ao limite máximo mencionado no número anterior ou que aceitar pagamentos sob a forma não autorizada pelo despacho referido no número anterior.
3. É punida com multa de 50 000 a 250 000 patacas a concessionária que não entregar à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, dentro do respectivo prazo, a informação referida na alínea 1) do artigo 30.º
4. Sempre que a infracção resulte da omissão de um dever, a aplicação da sanção não dispensa o infractor do seu cumprimento, caso este ainda seja possível”.

E, em face do assim preceituado, claro nos parece que no n.° 1, em causa estão “actos” praticados e imputáveis à “concessionária” e que levam à sua condenação na multa aí prescrita, sendo, que no n.° 2 se impõe uma multa do mesmo valor ao “promotor de jogo”, por conta de “actos” por este praticados e ao próprio imputáveis, tratando-se, como se mostra de concluir, de “responsabilidades distintas”, imputáveis a “actos próprios de cada um dos intervenientes”, inexistindo qualquer “responsabilidade solidária”, (note-se mesmo que o n.° 4 não deixa de se referir, expressamente, ao “infractor”).

Aliás, pelas mesmas razões, ou seja pela própria “natureza das infracções”, tão pouco existe qualquer responsabilidade solidária nas situações previstas no (seguinte) art. 32°-B, pois que não se apresenta possível a “responsabilidade solidária” da concessionária em relação a infracções que dão lugar à “suspensão” ou “cancelamento” da licença do promotor, impondo-se, também, assim, a conclusão que uma idêntica construção jurídica levaria a que a norma do art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 fosse (totalmente) esvaziada de qualquer sentido e conteúdo útil, (cabendo ter presente que o art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001 não estabelece qualquer “solidariedade”, prevendo, antes, uma “responsabilidade «própria» das concessionárias perante o Governo” decorrente dos deveres de supervisão que lhes são impostos).

E, dest’arte, apresenta-se-nos de considerar pois que a melhor interpretação vai no sentido de que o art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 se destina a impor a “responsabilidade solidária da concessionária perante «terceiros» pela actividade pelos (seus) promotores de jogo desenvolvida”, cabendo porém assinalar (e realçar) que a mesma, independentemente da prática de qualquer “infracção administrativa”, detém, mesmo assim, uma “natureza jurídico-administrativa”, e com um âmbito de aplicação limitado à “actividade típica pelos promotores de jogo desenvolvida em benefício da concessionária”, (justificada se apresentando assim a sua solidariedade com os prejuízos que eventualmente possam ser causados a terceiros por essa mesma actividade).

Não se ignora, também, que se sustenta que o Regulamento Administrativo n.° 6/2002 é um (mero) “regulamento complementar”, e que, assim sendo, a interpretação da regra da responsabilidade prevista no art. 29° daquele diploma nos termos propostos configuraria uma “violação de lei”, (devendo por isso ser interpretado em conformidade com a Lei n.° 16/2001 que visa regulamentar).

Contudo, também aqui, outro se apresenta ser o nosso ponto de vista.

Desde logo, não nos parece que se possa (simplesmente) considerar o Regulamento Administrativo n.° 6/2002 como um (mero) “regulamento complementar” – no sentido que é dado pela (posterior) Lei n.° 13/2009 – apenas porque a Lei n.° 16/2001 estipula no seu art. 52°, (com a epígrafe “Regulamentação Complementar”) que “O Chefe do Executivo e o Governo aprovarão os diplomas complementares da presente lei”, (n.° 1), e que “Além de outras disposições necessárias à boa execução da presente lei, os diplomas complementares incluirão normas respeitantes à regulamentação do concurso público, ao contrato de concessão, à utilização e frequência das salas de jogo, ao funcionamento dos recintos afectos à exploração, à fiscalização das receitas brutas dos jogos, às pessoas afectas à exploração, à prática dos jogos em casino e às infracções administrativas”, (n.° 2), não nos parecendo, tão pouco, decisivo, o facto de aí se invocar, expressamente, o art. 52° da “Lei n.° 16/2001”.

Na verdade, importa ter presente que esta Lei n.° 16/2001 estabelece o “Regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino”, regime que não deixa de poder ser “complementado”, ou “completado”, “no sentido de integrar as lacunas de leis e normas ou adaptá-las no sentido de realizar as funções administrativas”.

Como sobre idêntica questão foi expressamente referido no Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 18.07.2007, Proc. n.° 28/2006, (valendo a pena aqui atentar na seguinte passagem desde aresto):

“(…)
Os regulamentos administrativos aprovados pelo Conselho de Estado podem ser classificados, segundo as suas funções, em regulamento administrativo executivo e regulamento administrativo independente. Aquele é o resultado do exercício do poder normativo executivo, este do poder normativo constitutivo.
“A normação executiva é uma actividade normativa de sujeito administrativo desenvolvida com o objectivo de executar ou aplicar determinadas leis e normas ou disposições constantes de diplomas normativos de sujeito administrativo superior. A normação executiva pode ser realizada oficiosamente ou por delegação, mas sempre sem possibilidade de ampliar ou restringir o conteúdo das leis, normas ou diplomas normativos de hierarquia superior. Os regulamentos administrativos e portarias elaborados por meio de normação executiva são normalmente designados por ‘estatuto executivo’, ‘regulamento executivo’ ou ‘regra executiva’. Não podem subsistir autonomamente, da mesma maneira, no caso de serem revogados a lei, as normas ou diplomas normativos superiores, objecto de execução.
A normação constitutiva é uma actividade normativa de sujeito administrativo desenvolvida no sentido de integrar as lacunas de leis e normas ou adaptá-las no sentido de realizar as funções administrativas. A actividade normativa constitutiva de integração de lacunas de leis e normas consiste em o sujeito administrativo legislar na ausência de correlativas disposições de leis e normas, exercendo o poder normativo consagrado na Constituição e lei orgânica. É a chamada normação auto-determinada”1.
(…). Os regulamentos administrativos executivos não podem constituir novos direitos ou deveres, antes podem os regulamentos administrativos constitutivos.
(…)
Em Macau, a Assembleia Legislativa não tem meios técnicos comparáveis aos do Governo, que lhe permitam editar normas jurídicas com a qualidade necessária, em quantidade suficiente.
Importa, ainda, anotar que o legislador está distanciado dos casos concretos da vida quotidiana, verificando-se também a impossibilidade de previsão completa por parte do legislador, de modo a que tem de ser a Administração a intervir para preencher os espaços deixados em branco pela lei2.
O princípio da eficiência conduz também a ter de se reconhecer um poder regulamentar independente ao Governo. Como se expressa MANUEL AFONSO VAZ3, as teses da inadequação do órgão parlamentar, face às preocupações directivas e conformadoras do Estado dos nossos dias, têm total cabimento naqueles sistemas em que o Governo não tem competência legislativa.
Também IEONG WAN CHONG e outros4, referindo-se aos regulamentos administrativos, reforçam a mesma ideia: “A eficiência administrativa da Região Administrativa Especial de Macau depende em, larga medida da efectiva formulação e implementação destes regulamentos”.
(…)
Para terminar e o mais importante é que temos de considerar, na apreciação da presente causa, a regulação, doutrina e prática da relação entre o regulamento administrativo e a lei prevista na Constituição da China, pelas seguintes razões:
- Tanto a Constituição da China de 82, em vigor, como a Lei Básica da Região Especial de Macau são leis constitucionais aprovadas pela Assembleia Popular Nacional. Tem a primeira a posição jurídica suprema no sistema jurídico da China e a segunda elaborada nos termos do art. 31.° daquela. Ambas produzem efeitos em todo o território nacional;
- Muitos juristas que participaram na feitura da Constituição de 82 também participaram na elaboração da Lei Básica da Região Especial de Macau. As suas teorias de relação entre regulamento administrativo e lei têm com certeza bastante correlação;
- São basicamente idênticas as disposições da Constituição de 82 e da Lei Básica da Região Especial de Macau sobre os órgãos legislativos, as competências e o sujeito que aprova o regulamento administrativo:
(…)
- O regime normativo de regulamento administrativo da Lei Básica deriva da Constituição de 82, diferente de regulamento do antigo regime jurídico de Macau. Aquele tem o âmbito de regulação bastante mais amplo, este é semelhante aos regulamentos previstos no art. 90.° da Constituição de 82 elaborados pelos diversos ministérios e comissões do Conselho de Estado;
- O referido entendimento sobre a relação entre a lei e o regulamento administrativo é acolhido na Lei de Legislação aprovada pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional em 15 de Março de 2000;
(…)
A normação auto-determinada. É uma actividade de normação administrativa desenvolvida pelo órgão administrativo no exercício das competências conferidas por lei, fixando certas regras de conduta a administrado. É uma actividade independente e autónoma do órgão administrativo de normação relativa a matéria não regulada pela lei ou por outras normas, nos termos das respectivas disposições da Constituição e de leis orgânicas, dentro das suas competências. É por isso chamada normação auto-determinada ou independente. Grande parte de normação administrativa é de carácter auto-determinado. (…)
Também não resulta de nenhum preceito da Lei Básica que os regulamentos administrativos não possam estabelecer deveres ou restrições sobre os particulares. De acordo com o artigo 40.º, o que os regulamentos não podem é impor restrições aos direitos fundamentais, a que se refere o Capítulo III da Lei Básica e aos direitos previstos nos Pactos mencionados naquele artigo 40.º, matéria que deve constar de lei. Assim, desde que a matéria não esteja reservada à lei da Assembleia Legislativa, nada obsta a que regulamentos possam estabelecer deveres ou impor restrições sobre os particulares.
(…)”; (podendo-se, sobre o tema, ver também João Albuquerque in, “Lições de Ciência Política e Direito Constitucional”, F.D.U.M., 2002-2003, pág. 367 e segs., e António Katchi in, “As Fontes do Direito em Macau”, F.D.U.M., 2006, pág. 488 e segs.).

Nesta conformidade, e atento ao que se deixou transcrito, importa sublinhar que o referido Regulamento Administrativo n.° 6/2002 contém, (claramente), matéria de “normação primária”, não sendo, manifestamente, um (mero) “regulamento de execução” da Lei n.° 16/2001, pois que não só regula o “procedimento – administrativo – do licenciamento dos promotores de jogo”, preceituando, também, sobre toda a sua “actividade”, estabelecendo, nomeadamente, “direitos”, (v.g., a “não exclusividade da actividade de promoção de jogo”, no art. 18°), “deveres”, (v.g., o “dever de sigilo”, no art. 21°), “responsabilidades”, (com os seus empregados e colaboradores, no art. 31°), e “restrições”, (v.g., as limitações das “comissões” e “remunerações”, no art. 27°), constituindo, pois, (todas) estas, “matérias” que, em nossa opinião, vão muito para além de uma (mera) “normação executiva”.

*

Porém, e seja como for, uma última nota (adicional) se apresenta aqui útil e adequada.

É a seguinte.

Como se deixou consignado, uma “concessão” implica, pela sua própria natureza, um marcado “interesse público”, ficando, como se viu, por lei sujeita a um regime de “direito público”, de carácter “jurídico-administrativo”, como é o “contrato de concessão”; (no caso, e dada a “matéria” em causa, celebrado nos termos do preceituado no Regulamento Administrativo n.° 26/2001 que, no que toca às “Cláusulas contratuais”, prescreve no seu art. 90°, n.° 17, que “(…) o contrato de concessão deve conter, designadamente, cláusulas relativas: À obrigação, assumida pela concessionária, de explorar a concessão nos termos e condições constantes do contrato de concessão”).

Ora, no contrato de concessão entre a R.A.E.M. e a ora recorrente (“WYNN”) celebrado por escritura de 24.06.2002, consta a seguinte regra inserida na cláusula septuagésima terceira, (com a epígrafe “Exoneração da concedente na responsabilidade extracontratual da concessionária perante terceiros”):

“Um. A concedente não assume nem partilha qualquer responsabilidade que possa emergir para a concessionária de actos por esta ou por conta desta praticados que envolvam ou possam envolver responsabilidade civil ou outra.
Dois. A concessionária responderá, ainda, nos termos gerais da relação comitente-comissário, pelos prejuízos causados pelas entidades por si contratadas para o desenvolvimento das actividades que integram a concessão”; (notando-se que, em 08.09.2006, foi esta cláusula objecto de uma alteração contratual para excluir a sua responsabilidade pelos prejuízos causados pela “subconcessionária”, ali passando a constar que “(…) Dois. A concessionária responderá, ainda, nos termos gerais da relação comitente-comissário, pelos prejuízos causados pelas entidades por si contratadas, com excepção da subconcessão, para o desenvolvimento das actividades que integram a concessão”).

Considerando que o objecto do contrato de concessão, (e subconcessão), é a “exploração de jogos”, parece claro e evidente que se terão de incluir os “promotores de jogo” entre as “entidades contratadas para o desenvolvimento das actividades que integram a concessão” – referidas no n.° 2 – sem esforço se mostrando de concluir ser exactamente a necessidade de “defesa e salvaguarda do interesse público” subjacente à concessão (e subconcessão) que justifica, (e impõe), no âmbito dos respectivos contratos, a “responsabilização da concessionária” (e subconcessionária), nos termos gerais da relação “comitente-comissário”, (pelos prejuízos causados pelas ditas entidades por aquelas contratadas para o desenvolvimento das actividades que integram a concessão), sendo assim igualmente evidente que se está perante uma “vinculação jurídico-pública” que caracteriza a sujeição do concessionário a um regime de “direito público”, em função da específica “natureza administrativa” do contrato de concessão e dos fins de interesse geral que lhe estão subjacentes, (estando assim em causa uma disposição contratual com eficácia normativa).

Aliás, e em nossa modesta opinião, mal se compreenderia que o desenvolvimento das actividades que integram a “concessão” – como se viu, de índole marcadamente “pública”, e que envolvem, pela sua própria natureza, a realização de “fins de interesse geral” – pudesse ser efectuado em benefício da concessionária por outras entidades contratadas para o efeito, sem que daí resultasse qualquer responsabilização daquela pelos prejuízos pela actividade que estas mesmas entidades pudessem causar, apresentando-se-nos, desta forma, claro e razoável, que nos termos dos contratos de concessão, (e subconcessão), se tenha igualmente clausulado sobre a aqui contestada “responsabilidade (solidária) extracontratual – independentemente de culpa das concessionárias, (e subconcessionárias) – perante «terceiros»” pelos danos causados pelas entidades (pelas mesmas) contratadas para o desenvolvimento das actividades que integram a concessão, (tendo o seu fundamento no princípio jurídico “Ubi commoda, ibi incommoda” ou “Cuius commoda eius et incommoda”, princípio que também está subjacente à responsabilidade do comitente).

Finalmente, note-se, de resto, que tais “cláusulas contratuais” que se referem à responsabilidade extracontratual da concessionária (ou subconcessionária) perante terceiros, têm um âmbito de aplicação completamente distinto de uma outra inserida nas “disposições finais” dos respectivos contratos, tendo como epígrafe “Promotores de Jogo” e que correspondendo ao artigo 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001 dispõe que: “Perante o Governo, a [sub]concessionária é responsável pela actividade desenvolvida nos casinos e demais zonas de jogos pêlos promotores de jogo junto a si registados, bem como dos administradores e colaboradores destes, devendo para o efeito proceder à supervisão da sua actividade”, (cfr., a cláusula octogésima oitava do contrato de concessão com a “Wynn Resorts (Macau), S.A.”, claro se apresentando de concluir que a cláusula contratual em questão, tal como a norma do art. 23°, n.° 3 da Lei n.° 16/2001, não exclui a “responsabilidade solidária extracontratual perante terceiros da concessionária”).

Dest’arte, em face do que se deixou exposto, e improcedentes se nos apresentando (todas) as razões pela recorrente invocadas em defesa da sua absolvição, impõe-se decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expendidos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Pagará a recorrente as custas do presente recurso, com a taxa de justiça que se fixa em 20 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 19 de Novembro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Ma Huaide, 行政..., pág. 199.
2 Diogo Freitas do Amaral, Curso..., Vol. II, pág. 174
3 Manuel Afonso Vaz, Lei..., pág. 493.
4 Ieong Wan Chong e outros, One Country, Two Systems and The Macao SAR, Centre for Macau Studies University of Macau, 2004, pág. 312.
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