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Processo nº 90/2021 Data: 03.11.2021
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Acção especial de despejo.
Contrato de arrendamento.
Legitimidade.
Nulidade do contrato.
Abuso de direito.



SUMÁRIO

1. O contrato de “locação” é aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, dizendo-se “arrendamento” a locação quando verse sobre coisa imóvel.

2. O contrato de arrendamento tem efeitos “meramente obrigacionais”, e não reais, caracterizando-se pela obrigação do senhorio de proporcionar o “gozo” sobre o prédio arrendado ao arrendatário para o fim a que se destina e pelo prazo entre ambos convencionado, mediante a obrigação deste de lhe pagar uma contrapartida económica, (a que se chama “renda”).

A concessão do (mero) gozo, significa, (importa ter presente), que “nada se transmite”, “nada se transfere”, e “nada se aliena”.

3. Nesta conformidade, e na medida em que sendo o contrato de arrendamento um contrato meramente obrigacional, a legitimidade para a celebração desse tipo contratual não está dependente da qualidade de “proprietário” do senhorio em relação ao imóvel arrendado, (o mesmo sucedendo com a “legitimidade/activa” para instaurar uma “acção de despejo”, que não está dependente da qualidade de “proprietário” do seu autor, mas sim da sua qualidade de “senhorio” do imóvel objecto do contrato de arrendamento, pois que o que em causa está é a “relação obrigacional e contratual «senhorio versus inquilino»”).

4. Tendo o período de execução contratual decorrido sem sobressaltos, e estando agora em causa o cumprimento de obrigações por parte do arrendatário, mais concretamente, a de restituição do imóvel livre de pessoas e bens ao senhorio, manifesto se apresenta que a invocação da nulidade do contrato de arrendamento por ilegitimidade do senhorio constitui um claro e flagrante “abuso de direito”, (o qual, como sabido é, é de conhecimento oficioso).

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 90/2021
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), B (乙) e C (丙), AA., propuseram, no Tribunal Judicial de Base, acção especial de despejo contra D (丁) e E (戊), RR., pedindo, em síntese, que fosse declarado resolvido o “contrato de arrendamento” (com estes celebrado) sobre o imóvel sito em Macau, na [Rua(1)], s/n, com o consequente despejo e condenação das RR. no pagamento de uma indemnização pelo atraso na entrega e sua deterioração no valor total de MOP$3.032.000,00; (cfr., fls. 2 a 10 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Regularmente citados, os RR. contestaram.

Alegaram, essencialmente, que tanto os AA. como as RR., eram partes “ilegítimas”, impugnando os factos pelos AA. alegados na sua petição e deduzindo pedido reconvencional no sentido da condenação destes no pagamento a seu favor de MOP$4.797.793,20 a título de repetição do indevido e indemnização; (cfr., fls. 151 a 177).

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Replicaram os AA. pugnando pela improcedência dos pedidos pelas RR. deduzidos e pela procedência dos que deduziram; (cfr., fls. 275 a 280).

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Oportunamente, proferiu-se despacho saneador, onde, julgando-se as partes “legítimas” (para efeitos “processuais”, e, considerando nada obstar), seleccionou-se a matéria de facto assente e a que devia integrar a base instrutória; (cfr., fls. 377 a 398).

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Seguidamente, e por despacho do Mmo Juiz titular do processo foi deferida a intervenção principal de F (己), (cônjuge da 1ª A.); (cfr., fls. 481 a 481-v).

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Realizado o julgamento, proferiu a Exma. Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base sentença onde declarou nulo o alegado contrato de arrendamento, condenando os RR. a restituir o prédio aos AA. assim como no pagamento de uma indemnização pelo atraso na sua entrega; (cfr., fls. 565 a 575).

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Do assim decidido recorreram os AA., o Interveniente, e as RR.; (cfr., fls. 586 a 599 e 604 a 631).

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Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 25.02.2021, (Proc. n.° 1006/2019), julgou-se parcialmente procedente o recurso das RR., e revogando-se a decisão recorrida, foram todos os (outros) pedidos pelos sujeitos processuais deduzidos nos autos rejeitados; (cfr., fls. 679 a 694-v).

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Inconformados com o decidido, vem agora os AA. e o Interveniente recorrer, pedindo a “revogação” do decidido com o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância com a consequente devolução dos autos para apreciação das restantes questões suscitadas e não apreciadas; (cfr., fls. 706 a 719).

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Após resposta das RR. no sentido da improcedência do recurso, (cfr., fls. 730 a 734), adequadamente processados os autos e merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Colectivo do Tribunal Judicial de Base forma considerados assentes os factos seguintes:

“- As Rés, em 3 de Fevereiro de 2005, pagaram aos Autores a quantia de MOP$120.000,00 a título de rendas pelo imóvel id. em B). (alínea A) dos factos assentes)
- As Rés ocuparam o imóvel onde se encontra o templo denominado por “[Templo(1)]”, sito em Macau, s/n da [Rua(1)] (alínea B) dos factos assentes)
- O “[Templo(1)]” situa-se no primeiro andar do prédio edificado numa parcela de terreno de 25 m2 junto à [Rua(1)], e que se encontra identificada na Planta Cadastral, conforme certidão negativa que se juntou como documento nº1 com a contestação e que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais. (alínea C) dos factos assentes)
- O imóvel em causa nos presentes autos encontra-se omisso na matriz. (alínea D) dos factos assentes)
- E também não se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau. (alínea E) dos factos assentes)
- A Associação de [Associação(1)] é uma associação sem lucrativos que se dedica a: “Cláusula 3.ª – Objectivo: Esta associação é uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é dedicado a I Leng, Deus da Medicina e também outras divindades tais como o Buda Adormecido, o Buda Vivo Chai Kong, Cheong Tin Si, Kwan Kong, Man Cheong, Dez Imperadores Im Lo e Sessenta Tai Soi, a fim de promover a cultura tradicional dos templos chineses e reforçar a solidadriedade de todas as etnias, bem como participar activamente nos assuntos sociais e servir a comunidade. Os Deuses são proeminentes, o brilho dos Deuses não é fácil de expressar e a diligência da adoração é especialmente adequada para compartilhar. Os membros desta Associação são como irmãos e irmãs e não vão ficar apenas num canto. Por causa de recebimento de profundas bênçãos por longo tempo, todos concordaram em construir um templo para retribuir a graça dos Deuses.” (alínea F) dos factos assentes)

Base instrutória:
- O templo denominado por “[Templo(1)]” (adiante designado abreviadamente por “prédio”), sito em Macau, S/N da [Rua(1)], foi fundado no 21º ano (isto é, no ano de 1895) do reinado de “Kuong Soi (光緒)”, por, entre outros, G (庚) aliás G1 (庚一), trisavô do 2º Autor e 3º Autor. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- O prédio tem sido arrendado, pelo menos, desde anos 50, para as diferentes pessoas que tratam dos assuntos do templo. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- Em 1973, o F, cônjuge da 1ª Autora, foi encarregado para tratar dos assuntos do templo. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- F, no ano de 1973 declarou arrendar a H, pai das Rés, e este aceitou, o referido imóvel. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Foi concedido à 1ª Autora, A poderes para tratar dos assuntos relativos ao arrendamento do templo pelos I e F, em 1993. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- Na sequência do referido em 5º, a 1ª Autora, em 26 de Dezembro de 1999, declarou arrendar o supra referido imóvel a H, pai das Rés, e este aceitou-o, tudo conforme doc. 5 junto com a p.i. cujo teor aqui se dá por reproduzido para os legais e devidos efeitos. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- … acordando-se o prazo de gozo desde 6 de Dezembro de 2000 (9 de Setembro de calendário lunar chinês) até 12 de Outubro de 2005 (10 de Setembro de calendário lunar chinês). (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Na sequência do falecimento do pai das RR., em 3 de Fevereiro de 2005, os Autores e as Rés, acordaram a celebração de novo acordo tendo por objecto o referido prédio, estipulando um prazo de dez ano, desde 11 de Outubro de 2005 (9 de Setembro de calendário lunar chinês do ano de “Kei Iao (己酉)” até à expiração em 21 de Outubro de 2015 (9 de Setembro de calendário lunar chinês do ano de “Ut Mei (乙未)”. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- … fixando-se a renda anual de MOP$12.000,00. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
- Em 13 de Agosto de 2014, isto é, 380 dias antes da expiração do prazo, os Autores comunicaram com as Rés por via da carta registada com aviso de recepção, que ia cessar o arrendamento no tempo da expiração do prazo (em 21 de Outubro de 2015). (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- Em 23 de Abril de 2015, informou-se, através da carta enviada pela advogada, às Rés que o contrato ia cessar aquando da expiração do prazo. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- Simultaneamente, em 24 de Abril de 2015, F comunicou novamente com as Rés mediante a publicação dos jornais que o contrato cessaria aquando da expiração do contrato. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- A 1ª Autora, seguidamente, dirigiu-se pessoalmente às Rés para discutir a desocupação, e expressou às Rés que o arrendamento do contrato já cessou, deviam realizar a desocupação imediatamente. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- Na sequência do referido em 11º as Rés não deram nenhuma resposta. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- O senhor G (aliás “G1”), trisavô do 2º Autor e 3º Autor, contribuiu para a construção “[Templo(1)]”. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- O Sr. G (aliás “G1”) e outros acumularam dinheiro para construir o [Templo(1)], para que todos os residentes pudessem rogar e adorar a I Leng Tai Tai (Deus da medicina) para pedir boa saúde de todos. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- Visto que a construção do “[Templo(1)]” foi contribuído principalmente pelo Sr. G (aliás “G1”), o “Ieong Sin Tent (養善亭)” sito no 3º andar do templo servia para colocar as placas dos ancestrais (“San Wai (神位)” no sentido de adorar os antepassados com o apelido Tou. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- Colocou-se uma tábua escrita de “Soi Fat Tong (睡佛堂)” no 2° andar do templo. (resposta ao quesito 21º da base instrutória)
- Os diferentes Budas e Deuses têm diferentes significados e assuntos que rogam, por exemplo, rogam a Man Cheong Tai Kuan (文昌帝君) para estudar bem e fazer exames com sucesso; rogam a Song Chi Kun Iam (送子觀音) para ter descendentes do sexo masculino. (resposta ao quesito 24º da base instrutória)
- No 3° andar do templo são colocadas figuras de Deuses e Budas e uma secretária para ler a sina escrita num pauzinho e com intuito lucrativo. (respostas aos quesitos 33º e 34º da base instrutória)
- E as placas dos pais das Rés. (resposta ao quesito 35º da base instrutória)
- Desde o ano referido em 1º têm sido os AA. e antecessores quem gere o grupo dos Templos “[Templo(2)]” ([廟宇(2)]), incluindo o templo referido em B) e 1º, pagando o foro respectivo. (resposta ao quesito 37º da base instrutória)
- Em 1952, aos K, L, M e H1 também conhecido como H, foi transferido o direito de concessão de exploração, pelo J, que por sua vez obteve o direito de N, então representante da “Associação de [Associação(1)]”, do [Templo(1)] com todo o seu recheio, tudo conforme 8 junto com a contestação cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (resposta ao quesito 38º da base instrutória)
- O preço da referida transmissão foi de HK$3.000,00. (resposta ao quesito 39º da base instrutória)
- À data referida no artº 39º, a actual Associação de [Associação(1)] ainda se não encontrava constituída. (resposta ao quesito 41º da base instrutória)
- Pelas Rés foram instalados sistemas de ar condicionado. (resposta ao quesito 54º da base instrutória)
- Foram removidas as chaminés existentes e instaladas novas para os queimadores de incenso. (resposta ao quesito 56º da base instrutória)
- Instalados novos portões. (resposta ao quesito 58º da base instrutória)
- Instalados altares. (resposta ao quesito 59º da base instrutória)
- Rebocadas e revestidas as paredes existentes. (resposta ao quesito 62º da base instrutória)
- Construídas as lages de suportes nas paredes e condutas de drenagem. (resposta ao quesito 63º da base instrutória)
- Instaladas novas estátuas, estruturas de madeira decorativas. (resposta ao quesito 64º da base instrutória)
- O valor pago pelas RR. com o referido em 54°, 56°, 58°, 59°, 62° a 64° ascendeu a MOP$1.237.800. (resposta ao quesito 65º da base instrutória)”; (cfr., fls. 566 a 569, 680 a 682 e 10 a 18 do Apenso).


Do direito

3. Feito que está o – breve – relatório que antecede, e transcrita que igualmente ficou a “matéria de facto” pelo Tribunal Judicial de Base dada como provada, é momento de se apreciar o recurso pelos AA. e Interveniente trazido a esta Instância e que tem como objecto o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância.

Para uma boa compreensão do que em causa está na presente lide recursósia, vale a pena atentar nas razões que levaram o Tribunal de Segunda Instância a adoptar a referida decisão de revogação da antes tomada pelo Tribunal Judicial de Base.

Vejamos.

Em sede de fundamentação, (e na parte que agora interessa), assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“(…)
Nos termos do art.º 929.º do CPC:
A acção de despejo destina-se a:
a) Fazer cessar o arrendamento, quando a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação;
b) Efectivar a cessação do arrendamento, quando o arrendatário não aceite ou não execute o despedimento dela resultante e o senhorio não disponha de título executivo que lhe permita promover execução para entrega de coisa certa.
Um dos factos fundamentais integrantes da causa de pedir da acção de despejo é a existência efectiva de um contrato de arrendamento.
Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar a outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição – cf. o art.º 969.º do CC.
Apesar do facto de que no CC se considera o arrendamento um contrato especial, regulamentado de forma particular e detalhada no seu art.º 969.º e os seguintes, o contrato de arrendamento, enquanto negócio jurídico, tem que preencher os requisitos gerais previstos pela lei. Só assim é que se pode considerar válido e capaz de produzir efeito previsto pela lei.
Um dos requisitos de validade do negócio jurídico é que os seus sujeitos têm que apresentar a qualificação obrigatória em função dos direitos a gozar e dos deveres a assumir dentro da relação jurídica produzida pelo negócio jurídico que se pretende praticar.
A relação jurídica de arrendamento tem como objecto o gozo temporário de uma coisa proporcionado por uma das partes à outra mediante retribuição.
Naturalmente só quando o locador dispõe do direito de gozo da coisa locada é que está qualificado para proporcionar o direito de gozo da coisa locada temporariamente ao arrendatário através de contrato, para que o arrendatário possa gozar da coisa dentro do prazo e nas condições prevista pelo contrato.
Quem quer que esteja qualificado para proporcionar o direito de gozo de uma coisa temporariamente a outrem dispõe de legitimidade para praticar negocia jurídico que forma com eficácia a relação jurídica de arrendamento mediante contrato.
Então concretamente quem dispõe de legitimidade para praticar o negócio jurídico de forma a tornar-se locador enquanto um dos sujeitos numa relação jurídica de arrendamento?
Naturalmente é o sujeito titular da propriedade da coisa é que dispõe de tal legitimidade.
Quanto ao teor da propriedade, nos termos do art.º 1229.º do CC, "O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas."
Sem dúvida o proprietário dispõe de legitimidade para tornar-se locador no contrato de arrendamento.
Além disso, o usufrutuário e o fideicomissário dispõem ambos de legitimidade para tornarem-se locadores da coisa em relação à qual exercem o direito de usufruto e o direito de gozo.
Para além do proprietário, do usufrutuário e do fideicomissário da coisa, o outro sujeito na relação jurídica de arrendamento – o arrendatário, desde que o contrato de arrendamento não lho impeça, também dispõe de legitimidade para arrendar a coisa locada inteira ou parcialmente a terceiro.
Em certas circunstâncias, indivíduos sem direito real sobre a coisa dispõem apesar disso de legitimidade para arrendar a coisa.
Nos termos do art.º 971.º do CC, "A locação constitui, para o locador, um acto de administração ordinária, excepto quando for celebrada por prazo superior a 6 anos."
Segundo a disposição, quem quer que disponha legalmente somente de direito de administração da coisa tem legitimidade para praticar o negócio jurídico de arrendamento cujo prazo não seja superior a 6 anos, a título exemplificativo, as seguintes situações previstas pelo CC ou pelo CPC:
1. O cabeça-de-casal nos termos do art.º 1917.º e do art.º 1925.º do CC;
2. O direito dos pais de administrar os bens dos filhos nos termos do art.º 1733.º, do art.º 1744.º, n.º 1, alínea m) sensu contrario e do art.º 1752.º do CC;
3. O direito do encarregado de administrar a coisa pertencente ao constituinte, nos termos do art.º 1085.º do CC;
4. O direito do administrador da falência de administrar a massa falida, nos termos do art.º 1123.º, n.º 1 do CPC;
5. O direito do depositário judicial de administrar os bens depositados, nos termos do art.º 729.º, n.º 1, do art.º 365.º, n.º 6, do art.º 351.º, n.º 2 e do art.º 920.º, n.º 2 do CPC;
6. O curador tem direito de locar a coisa através do exercício do direito de administração em relação à coisa alheia, nos termos do art.º 94.º, n.º 1 do CC que remete para o seu art.º 1085.º.
Voltando aos factos concretos no presente processo. Não verificamos que os factos provados demonstrem que os autores sejam proprietários do bem imóvel em causa ou indivíduos acima mencionados que também dispõem do direito de administração do bem imóvel em questão e de legitimidade para arrendá-lo a outrem.
Portanto, como os autores não invocaram nem provaram que fossem legítimos para arrendar o bem imóvel ora em discussão a outrem, verdadeiramente este tribunal de recurso não deve apreciar as outras questões levantadas pelos autores e pelas rés nos recursos interpostos. Além disso, como os autores não tinham legitimidade para celebrar o contrato de arrendamento com as rés, deve-se declarar nulo o contrato de arredamento; em seguida, deve-se revogar a decisão de primeira instância e substituir o julgamento do tribunal a quo, rejeitando os pedidos apresentados pelos autores e os pedidos reconvencionais apresentados pelas rés.
(…)”; (cfr., fls. 692-v a 694 e 73 a 78 do Apenso).

Ponderando nas razões pelo Tribunal de Segunda Instância expostas no seu aresto, e sem prejuízo do muito respeito por diversa opinião, cremos que a solução a que se chegou na decisão ora recorrida não se apresenta como a melhor.

Como se viu, entendeu, essencialmente, o Tribunal de Segunda Instância, que aos AA. não assistia a “qualidade (legal) necessária” – por falta de “legitimidade” – para celebrar o “contrato de arrendamento” matéria dos autos, (e, assim, “dar de arrendamento” o imóvel em questão), acabando, (em resultado de tal consideração), por declarar o dito contrato “nulo”, com a consequente rejeição de todos os (outros) pedidos deduzidos pelas partes em confronto no processo.

Porém, cremos que mais adequado (e equilibrado) se nos mostra ser outro entendimento, (sobre a “questão da legitimidade dos referidos AA.”, ora recorrentes).

Vejamos.

Pois bem, antes de mais, e ainda que tão só em termos gerais, temos para nós que inadequado não será considerar que há (essencialmente) duas (grandes) correntes doutrinárias sobre as consequências da “falta de legitimidade na celebração de negócios jurídicos”: uma, que considera que a “legitimidade” é um “pressuposto que afecta a validade dos negócios jurídicos”, e, a outra, que entende que, (em princípio), a “falta de legitimidade tem apenas reflexos e efeitos na sua eficácia”, (isto, com ressalva das situações legal e expressamente previstas como causa de invalidade).

Com efeito, (nos idos anos de 1947), Inocêncio Galvão Telles começou por incluir a “legitimidade” entre os requisitos da “validade do negócio”, (a par da “capacidade” e da “possibilidade do seu objecto”).

Partindo das noções de direito processual para o negócio jurídico, Galvão Telles concluía que, “em princípio, a consequência da ilegitimidade é a nulidade do negócio, pois não existe um prazo para a arguir”; (cfr., Leitão Pais de Vasconcelos in, “A Autorização”, pág. 47 e Inocêncio Gaivão Telles in, “Dos Contratos em Geral”, 2002, pág. 400, nota 369).

Entretanto, Isabel Magalhães Colaço – aprofundando o estudo sobre o conceito de legitimidade, e – recorrendo ao alcance do conceito de “autonomia privada”, sugere a atribuição de um mais acentuado e especial relevo ao “princípio da liberdade contratual” – cfr., art. 399° do C.C.M. – na apreciação da questão da “legalidade” e “validade” contratual.

Pronunciando-se sobre o tema, Pessoa Jorge “associa expressamente legitimidade, autonomia privada e titularidade”, considerando que “do princípio da autonomia privada resulta que só é possível realizar actos jurídicos sobre determinada esfera com a colaboração da vontade do respectivo titular. Integra, como tal, na própria autonomia privada uma ligação estrutural à titularidade. Embora faça referência à autonomia privada, associa a legitimidade à titularidade. A ilegitimidade exprimiria apenas o facto de o agente não ser titular da esfera sobre a qual se devem (ou deveriam) projectar os efeitos do acto. E, embora por vezes o próprio titular não possa praticar determinados actos, sendo estes ineficazes se o fizer, esta ineficácia não resulta de ilegitimidade do titular, mas da violação de um obstáculo à actuação jurídica eficaz.
Distingue, no entanto, a legitimidade da capacidade de exercício. Considera que a capacidade de exercício respeita ao acto, enquanto a legitimidade respeita aos efeitos. Como tal a capacidade de exercício deve existir no momento do acto, enquanto a legitimidade pode ser posterior.
Defende ainda uma capacidade de actuação jurídica, que afirma tratar-se da capacidade de exercício mas numa perspectiva de causa de efeitos jurídicos. Considera que esta capacidade de actuação no mundo do direito, funda-se na vontade do agente, e imprime energia para produzir efeitos jurídicos, excepto se houver circunstâncias. que impeçam tal eficácia. Defende, como tal, a existência de algo inerente à pessoa – a vontade – que é suficiente para a eficácia jurídica, excepto se se verificarem factos que o impeçam. Entre estas circunstâncias, que podem ser várias, encontra-se a ilegitimidade que resulta da actuação ser dirigida a uma esfera jurídica que não a do agente. Como tal, a eficácia jurídica estaria dependente da cumulação entre a titularidade (legitimidade) e energia (vontade) do agente”; (cfr., Pedro Leitão Pais de Vasconcelos in, ob. cit., pág. 51 e 52).

Por sua vez, Carlos Alberto da Mota Pinto sustenta que a distinção entre “capacidade” e a “legitimidade” tem origem no direito processual, mas que também se manifesta no direito material: enquanto a “capacidade é um modo de ser ou qualidade do sujeito em si, a legitimidade supõe uma relação entre o sujeito e o conteúdo do acto e, por isso, é antes uma posição, um modo de ser para com os outros”.

Dest’arte, considera que “Em princípio, têm legitimidade para um certo negócio os sujeitos dos interesses cuja modelação é visada pelo negócio e haverá carência de legitimidade, sempre que se pretenda fazer derivar dum negócio efeitos (alienação ou aquisição de direitos, assunção de obrigações, etc.), que vinculem outras pessoas, que não os intervenientes no negócio (p. ex., venda de coisa alheia, contrato a cargo de outrem, etc.)”, e acabando por concluir que a ilegitimidade não é sempre sancionada com o mesmo desvalor, (antes dependendo do caso concreto), é de opinião que “na extensão do conceito de ilegitimidade estão abrangidas manifestações jurídicas cujo tratamento é diverso. Assim, por exemplo, enquanto as incapacidades de exercício geram anulabilidades, as ilegitimidades, originam, no sistema do novo Código Civil, sanções diversas: à venda de coisa alheia corresponde a nulidade (art. 892.°); ao negócio consigo mesmo, a anulabilidade (art. 261.°); à representação sem poderes e ao abuso de representação, a ineficácia em relação ao representado; (…)”; (cfr., Mota Pinto in, “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 260 e 261).

Na lição do Prof. Castro Mendes, a “legitimidade” é definida como uma “relação entre a pessoa e o direito ou vinculação que está em jogo no negócio jurídico, relação essa que justifica (legitima) que a pessoa possa por sua vontade interferir com esse direito ou vinculação”, vindo, mais tarde, a definir a mesma como “a susceptibilidade de certa pessoa exercer um direito ou cumprir uma obrigação, resultante, não das qualidades ou situação jurídica pessoa, mas das relações entre ela e o direito ou obrigação em causa”.

E para Miguel Teixeira de Sousa, (in “A Legitimidade Singular em Processo Declarativo”, B.M.J. n.° 292), a legitimidade “se refere à acção destinada a alterar uma certa situação jurídica, só indirectamente dizendo respeito ao sujeito ou ao acto jurídico. Liga a legitimidade à eficácia do acto, mas não como algo inerente, interno, ao acto. Afirma que se trata de um elemento exterior ao acto, que condiciona a sua potencial eficácia”; (cfr., Pedro Leitão Pais de Vasconcelos in, ob. cit., pág. 54 e 55).

Porém, cabe ainda notar que um grande desenvolvimento no que concerne ao conceito em questão, (“legitimidade”), vem a ser impulsionado pelo Prof. José de Oliveira Ascensão.

Com efeito, reconhecendo que “A legitimidade é uma categoria que continua a oferecer as maiores dificuldades”, nota, (em sintonia com Isabel Magalhães Colaço), que “A generalização do recurso à categoria não implica porém que haja uma orientação comum quanto ao seu entendimento”.

Observa, nomeadamente, que: “Se houvesse perfeita coincidência entre legitimidade e titularidade, tudo seria muito simples. A dificuldade provém justamente de surgirem desvios a esta coincidência normal.
Estes desvios podem esquematicamente ser reduzidos a duas categorias:
- pode-se ser titular de uma situação jurídica e não se ter legitimidade para a actuar;
- pode-se ter legitimidade e não ser titular da situação jurídica.
Advertimos já que quando referimos esta última figura não temos em vista a representação. Nesta, não há uma excepção à legitimidade, porque juridicamente o autor do acto é o representado e não o representante. Se o representado é o titular, tudo se passa dentro dos cânones comuns da legitimidade. (…)”, concluindo, assim, que a legitimidade “exprime um poder de agir, resultando genericamente da titularidade de uma situação genérica ou da própria esfera jurídica (não havendo regra proibitiva), ou ainda de uma concreta autorização legal, nos casos em que aquela titularidade falha”.

Ao debruçar-se sobre as “consequências da falta de legitimidade”, salienta que é importante “distinguir o ponto de vista do autor do acto e o do dono do negócio.
Pelo ponto de vista do dono do negócio, o princípio geral é o de que a sua esfera jurídica não pode ser atingida por actos de terceiro em que não consentiu.
É ele quem tem legitimidade para actuar. Os actos de terceiro são irrelevantes, genericamente. Não se podem repercutir sobre ele.
Porém, o princípio não implica uma opção sobre o regime daqueles actos. Qual o regime a que ficam submetidos, é outra questão. Interessa apenas que o dono do negócio não tenha que os sofrer”.

E, pronunciando-se, mais concretamente, sobre a “validade do acto celebrado por parte ilegítima”, (e tomando em consideração o princípio do aproveitamento dos actos jurídicos), é de opinião que:

“A salvaguarda do dono do negócio pode ser assegurada de muitas maneiras.
Pode ser assegurada pela nulidade. Mas também o pode ser pela ineficácia, ou por um regime doutra ordem.
Assim, o art. 268/1 estatui a ineficácia para o caso de representação sem poderes, o que é uma modalidade de falta de legitimidade. Também fala em ineficácia o art. 226/2, para o caso da perda do poder de disposição antes da perfeição da declaração negocial.
É a valoração de cada situação típica que determina a consequência a adoptar.
Assim, nos termos do art. 892, «é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar». Por outro lado, o art. 893 ressalva a venda de bens alheios, como tais – o que parece paradoxal mas é correcto, pois nesse caso a esfera jurídica do titular não é atingida, e portanto não há excepção à legitimidade.
Pomos mesmo em dúvida que a consequência da nulidade seja verdadeiramente a estabelecida por lei. A ineficácia é consequência suficiente. Permite que o acto se mantenha suspenso até que o dono do negócio ratifique o acto ou de qualquer outro modo o tome como seu. O princípio do aproveitamento dos negócios jurídicos não é conforme com uma nulidade que seria de conhecimento oficioso pelo juiz”, (cfr., v.g., José de Oliveira Ascensão in, “Direito Civil Teoria Geral”, Vol. II – Acções e Factos Jurídicos, pág. 89 e segs.), podendo-se, também ver, na mesma linha de pensamento, António Menezes Cordeiro, que define a legitimidade como “a qualidade de um sujeito que o habilita a agir no âmbito de uma situação jurídica considerada”; (in “Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral – Exercício Jurídico”, 3ª ed., pág. 27, e in “Da legitimidade e da legitimação no Direito Civil”, Revista de Direito Civil, Ano I, 2016, n.° 3, pág. 539 a 576).

Feitas estas considerações, (e voltando à “situação” dos presentes autos), cabe notar que também em relação à “validade do contrato de arrendamento celebrado por quem não seja o (comprovado) proprietário do imóvel” existem opiniões distintas.

No sentido da sua “nulidade”, opina F. M. Pereira Coelho, considerando que “é nulo por falta de legitimidade do locador, embora este seja obrigado a sanar a nulidade do contrato, que se torna válido logo que o locador adquira direito (propriedade, usufruto, etc.) que lhe dê legitimidade para arrendar – art.°s 895.° e 897.° do C. Civil, aplicável por analogia”; (in “Direito Civil, Arrendamento”, 1980, pág. 97 e segs.).

Porém, nota António Menezes Cordeiro que “O Código Civil não contém uma regra geral sobre a legitimidade para dar bens em locação. Subjacente, estará o artigo 1597.° do revogado Código de Seabra, segundo o qual podem locar todos que possam dispor do uso e da fruição da coisa a locar.
Tecnicamente o locador é legítimo se tiver, ele próprio, o tipo de uso e fruição que vai proporcionar ao locatário e se puder, legalmente, dispor dele. (…)”; (in “Tratado de Direito Civil”, Vol. XI, pág. 690).

Em grande proximidade com o assim entendido considera também Januário Gomes que “assumindo o contrato de arrendamento uma natureza de contrato consensual, para cuja formação se não torna necessária a entrega do prédio, e assumindo também a natureza de um contrato obrigacional, parece-nos que a disposição de coisa alheia através da locação não é nula, nem sequer anulável: é antes plenamente válida”; (in “Constituição da Relação de Arrendamento Urbano”, pág. 287).

De igual modo, sustenta Henrique Mesquita que “No caso da compra e venda, o contrato tem por escopo a produção de um efeito real (transmissão da propriedade de uma coisa ou de outro direito: cfr. o art. 874.°, que não pode verificar-se se a coisa for alheia. No caso da locação, diversamente, o contrato gera apenas um efeito obrigacional ou, por outras palavras, uma vinculação pessoal (…), nada impedindo que esta vinculação seja assumida em relação a coisa não pertencente ao locador. Pela mesma razão se deve entender, e tem entendido, que é válido o contrato-promessa de alienação ou oneração de bens alheios, ou parcialmente alheios (…), sendo-lhe inaplicável, por conseguinte, o regime do art. 892.°”; (in “Obrigações e Ónus Reais”, pág. 165 e segs., podendo-se, sobre o tema e do mesmo autor, ver R.L.J., Ano 125, pág. 100; e também, Maria Olinda Garcia in, “Arrendamentos para Comércio e Fins Equiparados” e J. A. Aragão Seia in, “Arrendamento Urbano”).

Na verdade, o contrato de “locação” é aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, dizendo-se “arrendamento” a locação quando verse sobre coisa imóvel; (cfr., art°s 969° e 970° do C.C.M.).

Logo, (e como salienta J. A. Aragão Seia in, “Arrendamento Urbano”, pág. 69), o contrato de arrendamento tem efeitos “meramente obrigacionais”, e não reais, caracterizando-se pela obrigação do senhorio de proporcionar o “gozo” sobre o prédio arrendado ao arrendatário para o fim a que se destina e pelo prazo entre ambos convencionado, mediante a obrigação deste de lhe pagar uma contrapartida económica, a que se chama “renda”, intercedendo entre ambas estas “obrigações” um nexo de reciprocidade, de modo que esse contrato “é, pelo menos, no que toca às obrigações de cedência do prédio e pagamento da renda, um contrato de natureza bilateral ou sinalagmático, na medida em que existe um vínculo de reciprocidade ou interdependência entre as obrigações do locador e as do locatário”.

Nesta conformidade, e na medida em que sendo o contrato de arrendamento um contrato meramente obrigacional, a legitimidade para a celebração desse tipo contratual não está dependente da qualidade de “proprietário” do senhorio em relação ao imóvel arrendado, (o mesmo sucedendo com a “legitimidade/activa” para instaurar uma “acção de despejo”, que não está dependente da qualidade de “proprietário” do seu autor, mas sim da sua qualidade de “senhorio” do imóvel objecto do contrato de arrendamento, pois que o que em causa está é a “relação obrigacional e contratual «senhorio versus inquilino»”, cfr., v.g., J. A. Aragão Seia in, ob. cit., pág. 105).

Na verdade, não obstante o senhorio se obrigue, pelo contrato de arrendamento, a proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa, com a consequente obrigação de lhe “entregar a coisa arrendada” e de assegurar-lhe o fim a que se destina, o direito do arrendatário é um direito de raíz estruturalmente “obrigacional”, assente no dever que recai sobre o locador de proporcionar ao arrendatário o “gozo” (temporário) da coisa para o fim a que ela se destina.

A concessão do (mero) gozo, significa, (importa ter presente), que “nada se transmite”, “nada se transfere”, e “nada se aliena”.

O que sucede é que o locador se vincula – tão só e apenas – à prestação de proporcionar aquele gozo ao arrendatário, adquirindo este em contrapartida, o direito à mesma prestação – de natureza obrigacional – e não qualquer “direito sobre a coisa”.

Assim, e logicamente, porque a “coisa” não é elemento (integrante) do contrato, este não tem “carácter real”.

Como (com muito mérito) nota H. Mesquita (in R.L.J. Ano 125, pág. 100), “(…) se o contrato de locação de coisa alheia pode originar a sujeição do locador aos efeitos do não cumprimento, isso significa inquestionavelmente que se considera válido o contrato. O locador não pode eximir-se ao cumprimento da obrigação de entrega da coisa locada com fundamento em que esta lhe não pertence e responderá pelos danos que causar ao locatário se culposamente não cumprir”.

Aliás, não se deve olvidar que, o próprio arrendatário pode, (desde que autorizado pelo – mero – senhorio), “subarrendar”, total ou parcialmente, o prédio que lhe foi dado de arrendamento; (cfr., art°s 1007° e segs. do C.C.M.; tratando-se, como nota Menezes Leitão in, “Arrendamento Urbano”, pág. 120, e Maria O. Garcia, ob. cit., pág. 162, não de uma cedência – total ou parcial – do “direito ao arrendamento”, mas sim, de uma “cedência do gozo do imóvel”).

Mostrando-se-nos de adoptar esta posição – chamemos, mais “razoável” para os interessados de idêntica relação contratual, e “prática”, em termos de “efeitos e resultados socio-económicos” – ponderemos na situação fáctica dos presentes autos.

Ora, da “matéria de facto” pelo Tribunal Judicial de Base dada como “provada”, (e que o Tribunal de Segunda Instância não alterou), resulta claro:
- que a fundação do Templo remonta ao 21° ano, (isto é, o ano de 1895) do reinado de “KUONG SOI”, tendo sido fundado, entre outros, por G aliás G1, trisavô dos 2° e 3° AA., (cfr., resposta ao quesito 1° da base instrutória);
- que F, cônjuge da 1ª A., foi encarregado para tratar dos assuntos do templo, (cfr., resposta ao quesito 3° da base instrutória);
- que por isso, em 1973, o arrendou a H, pai das RR., (cfr., resposta ao quesito 4° da base instrutória);
- que, posteriormente, em 1993 por I e F foi concedido à 1ª A. o poder para tratar dos assuntos relativos ao arrendamento do templo, (cfr., resposta ao quesito 5° da base instrutória);
- que na sequência disso, em 26.12.1999, a 1ª A. declarou arrendar o referido imóvel a H, pai das RR., e este aceitou-o, (cfr., resposta ao quesito 6° da base instrutória);
- que se acordou o prazo de gozo desde 06.12.2000, (9 de Setembro de calendário lunar chinês), até 12.10.2005, (10 de Setembro de calendário lunar chinês), (cfr., resposta ao quesito 7° da base instrutória);
- que na sequência do falecimento do pai das RR., em 03.02.2005, os ora AA. e RR. acordaram a celebração de novo acordo, tendo por objecto o referido prédio, estipulando um prazo de 10 anos, desde 11.10.2005, (9 de Setembro de calendário lunar chinês do ano de “Kei Iao (己酉)”, até 21.10.2015, (9 de Setembro de calendário lunar chinês do ano de “Ut Mei (乙未)”, fixando-se a renda anual de MOP$12.000,00, (cfr., resposta aos quesitos 8° e 9° da base instrutória); e,
- que em 03.02.2005, as RR. pagaram aos AA. a quantia de MOP$120.000,00 a título de rendas pelo imóvel; (cfr., alínea A dos factos provados).

Por sua vez, resulta, também, claro que, desde 1895, têm sido os antecessores dos AA. que gerem o grupo dos Templos “[Templo(2)]”, incluindo o “[Templo(1)]”, pagando o foro respectivo; (resposta aos quesitos 1° e 37° da base instrutória).

E, em face desta “factualidade”, evidente se nos apresenta que a mesma, (por si só, e com a necessária segurança), demonstra, (cabalmente), a “legitimidade” dos ora recorrentes quanto ao seu “direito de disposição sobre o imóvel”, e, como tal, para, (pelo menos, de “boa fé”), celebrarem “contratos de arrendamento” sobre o mesmo, (como efectivamente sucedeu com o contrato que celebraram com as RR., e que, note-se, até foi objecto de “renovação”).

Na verdade, e como se viu, importa ter em conta que no caso de celebrado já estar o “contrato de arrendamento”, e, assim, tendo-se o senhorio comprometido a ceder o gozo do imóvel ao arrendatário, (e caso o não venha a fazer), não pode escudar-se numa suposta ineficácia do contrato por alegada “ilegitimidade”, o que, para além do demais, seria um claro e manifesto “abuso de direito”; (cfr., art. 326° do C.C.M., o mesmo valendo, adianta-se desde já, mutatis mutandis, para o caso do “arrendatário”, que como sucede, venha a invocar a ilegitimidade daquele, recusando a entrega do imóvel no términus do prazo do contrato e perante um pedido de despejo).

De outra banda, se o “proprietário” for surpreendido com a existência de um arrendamento de um imóvel seu feito por alguém que não estava para tal legitimado, (inteiramente) salvaguardada está a sua posição, podendo-se socorrer da “acção de reivindicação”, (cfr., art. 1235° do C.C.M.), reclamando a restituição do imóvel livre de pessoas e bens, (visto que o contrato lhe é inoponível por conta da ineficácia provocada pela dita ilegitimidade do “senhorio”).

Esta, se bem ajuizamos, a solução que se nos afigura mais “justa” e “equilibrada” em face dos “interesses em causa”, oferecendo respostas que se nos mostram igualmente adequadas e razoáveis a questões e problemas que se podem vir colocar e surgir no âmbito de uma relação contratual de arrendamento com uma idêntica situação de “(i)legitimidade”, assegurando-se, desta forma, total respeito e harmonia aos princípios fundamentais do direito privado como os da “autonomia privada” e o do “favor negotii”, (sem menosprezar o “direito de propriedade” em caso de se justificar a sua invocação e respeito).

Posto isto, cabe perguntar: qual o interesse merecedor de protecção legal do arrendatário – ou seja, das RR. ora recorridas – ao invocar a nulidade de um contrato de arrendamento por alegada ilegitimidade do senhorio, quando em causa está um pedido de despejo do imóvel objecto do mesmo contrato por caducidade do arrendamento pelo términus do seu prazo e em face da sua denúncia pelo senhorio?

Ora, como – com total acerto também – se salientou na decisão do Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base, tendo o período de execução contratual decorrido sem sobressaltos e estando agora em causa o cumprimento de obrigações por parte do arrendatário, mais concretamente, a de restituição do imóvel livre de pessoas e bens ao senhorio, manifesto se apresenta que a invocação da nulidade do contrato de arrendamento por ilegitimidade do senhorio constitui um claro e flagrante “abuso de direito”, o qual, como sabido é, é de conhecimento oficioso, (cfr., v.g., Ac. deste T.U.I. de 18.09.2019, Proc. n.° 84/2019, onde se notou que “O abuso de direito é uma questão de conhecimento oficioso, a conhecer, mesmo que suscitada, apenas, em recurso”).

Assim, e não podendo o arrendatário – as RR. – invocar a nulidade do contrato de arrendamento, (por manifesto “abuso de direito”), importa, por sua vez, atentar também que não menos certo é que esta mesma “nulidade do contrato de arrendamento por alegada ilegitimidade”, (à semelhança da nulidade da “venda de bem alheio”), não é de “conhecimento oficioso” pelo Tribunal, (pois que em causa não estão “situações limite”, com a “violação de normas de interesse e ordem pública”).

Nesta conformidade – independentemente do demais, e ainda que se adoptasse a perspectiva da “invalidade” do contrato de arrendamento por ilegitimidade do senhorio, (que, como se viu, não se mostra ser o caso), sempre se teria de concluir que o Tribunal de Segunda Instância não a deveria ter tomado em consideração por constituir um evidente “abuso de direito”, não se mostrando, também, por isso, de manter o decidido – vista se apresenta a solução para a questão.

*

Aqui chegados, outra questão importa resolver.

É a seguinte:

In casu, tanto os ora recorrentes como as recorridas apresentaram recursos para o Tribunal de Segunda Instância nos quais impugnavam a decisão que recaiu sobre “matéria de facto”.

Como exemplo do que se deixou consignado, basta ver que os AA. e Interveniente reclamavam que o texto da alínea c) dos factos assentes deveria ser corrigido, e, assim, que, a condenação das RR. na restituição deveria reflectir que o “[Templo(1)]” é composto pelo “rés-do-chão, 1° andar, 2° andar e 3° andar”, sito em Macau, na [Rua(1)], s/n,

Por sua vez, as RR. reclamavam a “ampliação oficiosa da matéria de facto” e a remessa ao tribunal a quo – Tribunal Judicial de Base – para novo julgamento dos factos com alteração das respostas dadas à matéria de facto ao abrigo do art. 629°, n.° 1, alíneas a) e b), e n.° 2 e 3 do C.P.C.M..

Quanto à matéria dos “pedidos reconvencionais”, sustentavam também as RR. que as provas constantes dos autos bastariam para impor decisão diversa da proferida pelo Tribunal e, como tal, deveriam ser julgados procedentes os motivos apresentados para o pedido de indemnização por benfeitorias.

Porém, e como se deixou consignado, o Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado considerou “nulo o contrato de arrendamento”, e, nesta conformidade, revogou, na íntegra, a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base, dando, assim, por improcedentes, tanto os pedidos dos AA. como os pedidos reconvencionais das RR., tudo sem qualquer pronúncia sobre a referida “impugnação da matéria de facto”.

Ora, como em relação a idêntica situação se decidiu no Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 17.06.2015, (Proc. n.° 33/2015), “Se o Tribunal de Segunda Instância não tiver conhecido de certas questões, por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, o Tribunal de Última Instância se entender que o recurso procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece oficiosamente no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários, nos termos do disposto no artigo 630.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do estatuído no artigo 652.º do mesmo diploma legal”.

Motivos não havendo para se alterar o decidido, e estando assim esta Instância impedida – pelos art°s 639° e 649° do C.P.C.M. – de apreciar a dita impugnação que recaiu sobre a “matéria de facto”, necessária é a remessa dos presentes autos ao Tribunal de Segunda Instância para, nada mais obstando, aí se conhecer das demais questões suscitadas nos recursos apresentados, (excluída a da “nulidade do contrato de arrendamento”).

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, devolvendo-se os autos ao Tribunal de Segunda Instância para os exactos termos consignados.

Custas pelas recorridas (RR.), com a taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 03 de Novembro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

Proc. 90/2021 Pág. 12

Proc. 90/2021 Pág. 13