Processo nº 88/2021 Data: 19.11.2021
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Princípio da aquisição processual; (art. 436° do C.P.C.M.).
“Ónus do recorrente que impugna a decisão de facto”; (art. 599° do C.P.C.M.).
SUMÁRIO
1. Os materiais trazidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo, pelo que o tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com a prova.
2. Porém, a – mera – invocação do dito “princípio” em sede de um recurso em que se impugna a matéria de facto, nada altera no que diz respeito ao “ónus” que sobre o recorrente impende nos termos do art. 599° do C.P.C.M..
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 88/2021
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲) e B (乙), propuseram acção ordinária contra os herdeiros incertos de C, pedindo, em síntese, a sua declaração de proprietários do imóvel situado na [Rua(1)] n.° 29, em Macau, inscrito na matriz predial sob o n.° XXXXXX, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.° XXXX a fls. 218-v do Livro BXX; (cfr., fls. 2 a 8 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, por sentença da Mma Juiz Presidente do Tribunal Judicial de Base de 04.05.2020, foi a acção julgada improcedente; (cfr., fls. 103 a 105-v).
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Em sede do recurso do assim decidido, proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 25.03.2021, (Proc. n.° 902/2020), onde, confirmando a decisão recorrida, negou provimento ao recurso; (cfr., fls. 148 a 150-v).
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Ainda inconformado, vem o A. (A) recorrer para este Tribunal de Última Instância; (cfr., fls. 159 a 168).
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Adequadamente processados os autos, e nada obstando, cumpre conhecer.
A tanto se passa.
Fundamentação
2. Antes de se entrar na apreciação do recurso pelo A. trazido a esta Instância, útil se apresenta consignar o que segue.
No seu anterior recurso apresentado perante o Tribunal de Segunda Instância, impugnava (apenas) o ora também recorrente, a “decisão da matéria de facto” do Tribunal Judicial de Base.
E, na sua apreciação – e na parte que agora interessa – assim se ponderou no Acórdão recorrido:
“(…)
O recorrente invoca que o Tribunal a quo apreciou erradamente os factos 9.º, 15.º e 24.º da petição inicial, entendendo que os documentos e os depoimentos das testemunhas contantes dos autos bastam para demonstrar que os referidos factos devem ser dados como provados.
Os factos que não foram dados como provados pelo Tribunal a quo são os seguintes.
“Desde 2 de Março de 1994 até à venda do “referido imóvel” em 27 de Junho de 2011, D nunca pagou qualquer foro a qualquer pessoa nem houve ninguém que cobrasse o foro.” – 9.º;
“Desde 27 de Junho de 2011 até à dedução da acção, os Autores nunca pagaram qualquer foro a qualquer pessoa nem houve ninguém que cobrasse o foro.” – 15.º;
“Desde a constituição do domínio directo do referido imóvel, já se procedeu ao registo predial, os Réus e qualquer pessoa podem saber a localização do imóvel e a situação da posse.” – 24.º.
O recorrente mais invoca que a comprovação dos aludidos factos levará a que os factos 7.º a 11.º, 13.º a 17.º e 24.º da petição inicial sejam provados.
O artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil que é subsidariamente aplicável à modificabilidade da decisão de facto prevê os seguintes:
“A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 599.º, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.”
Conforme a aludida disposição legal, o Tribunal de Segunda Instância pode alterar a decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto:
- Se do processo constarem todos os elementos de prova ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, a decisão com base neles proferida;
- Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem inevitavelmente decisão diversa;
- Se o documento novo superveniente seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
No caso em apreço, apesar de ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento, o recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto nos termos das disposições legais na lei processual.
Ao abrigo do artigo 599.º do Código de Processo Civil:
“Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.”
Além disso, nos termos do n.º 2, o recorrente também deve especificar as passagens da gravação em que se funda, sob pena de rejeição do recurso.
De facto, na apreciação da matéria de facto, o Tribunal a quo admitiu vários meios probatórios, ou dizendo simplesmente, as provas documentais não são o único meio probatório do presente processo.
Já que na audiência de julgamento foi ocorrida a gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas, caso pretenda impugnar a matéria de facto, o recorrente deve especificar as passagens da gravação em que funda a sua impugnação, porém, o recorrente não a impugnou nos termos das disposições legais na lei processual, ou seja, não especificou as passagens da gravação em que funda a impugnação da matéria de facto. Assim sendo, nos termos do artigo 599.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 do Código de Processo Civil, deve o recurso ser rejeitado.
Por outro lado, nos termos do artigo 629.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil, também pode solicitar ao Tribunal de Segunda Instância que altere a matéria de facto se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas. Tendo em conta que os elementos fornecidos pelo processo não impõem necessariamente decisão diversa, isto não corresponde ao estipulado no aludido disposto legal.
Por fim, o recorrente também não apresentou documento que, por si só, é suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou (artigo 629.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil).
Nestes termos, dado que não corresponde ao estipulado nas referidas disposições legais, este Tribunal não autoriza a alteração da decisão sobre a matéria de facto, julgando improcedentes os fundamentos do presente recurso nos termos da lei.
(…)”; (cfr., fls. 149 a 150 e 32 a 35 do Apenso).
Reagindo ao assim decidido, no presente recurso, e nas conclusões que a final das suas alegações produz, diz agora o recorrente o que segue:
“1. Na interpretação ou aplicação da lei, as “passagens concretas” exigidas no artigo 599.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 do Código de Processo Civil devem ser compreendidas “por necessidade de conhecimento do recurso, indica, entre os depoimentos prestados, quais os depoimentos prestados por testemunhas ou as provas documentais, de forma que o tribunal de recurso possa saber quais as provas em que se funde a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e a rejeição do recurso só é uma decisão adequada quando a falta de indicação das passagens concretas leve à impossibilidade ou dificuldade de conhecer do recurso”.
2. No presente processo há apenas 5 testemunhas, sendo relativamente curtos os depoimentos por si prestados, pelo que, materialmente, o tribunal pode conhecer dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento (através da gravação ou da transcrição literal da gravação), não existindo qualquer dificuldade insuperável no conhecimento da impugnação da matéria de facto invocada pelo recorrente.
3. O n.º 1 alínea b) e o n.º 2 do artigo 599.º do Código de Processo Civil têm por objectivo legislativo permitir ao tribunal a ter condições para conhecer dos fundamentos invocados, em vez de serem disposições processuais com simples sentido. O acórdão recorrido interpretou tais disposições legais de modo demasiado formal, pelo que, apesar de ter condições para conhecer da impugnação da matéria de facto, o acórdão recorrido ainda rejeitou o recurso só com fundamento em que as formalidades formais não correspondem às referidas disposições legais, o que, evidentemente, violou o pensamento legislativo e a prossecução da justiça material.
4. Pelos acima expostos, o recorrente entende que o recurso por si interposto corresponde ao estipulado no artigo 599.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 do Código de Processo Civil, enfermando o acórdão recorrido do vício de erro na interpretação e aplicação da lei.
5. Quanto aos fundamentos invocados pelo recorrente, “a sentença recorrida violou o artigo 436.º do Código de Processo Civil “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, (…)” e o artigo 556.º n.º 2 “a decisão proferida declara quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”, o Tribunal de Segunda Instância não se pronunciou, nada referiu nem fez conclusão ou decisão.
6. E, os fundamentos da violação dos artigos 436.º e 556.º n.º 2 do Código de Processo Civil invocados no recurso são independentes da impugnação da matéria de facto, tendo efeito independente, pelo que, a apreciação e a decisão devem ser feitas independentemente, porém, o acórdão recorrido não se pronunciou sobre isso.
7. Nestes termos, ao abrigo do artigo 571.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil, o juiz deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, pelo que, deve o acórdão recorrido ser declarado nulo.
8. Solicita a revogação do acórdão recorrido, com reenvio do processo para o Tribunal de Segunda Instância para novo julgamento”; (cfr., fls. 167 a 168 e 53 a 55 do Apenso).
Cabendo-nos emitir pronúncia sobre o pelo Tribunal de Segunda Instância “decidido” e agora, pelo ora recorrente “alegado”, (e ponderando-se, especialmente, no que até aqui se deixou consignado), evidente se nos apresenta que ao dito recorrente não assiste qualquer razão, pois que nenhuma censura merece a solução pelo Tribunal a quo encontrada, muito não se mostrando necessário aqui expor para se demonstrar este nosso ponto de vista.
Vejamos.
–– Em síntese (que se nos apresenta adequada), duas são as “questões” pelo recorrente colocadas: entende pois que errada foi a “aplicação pelo Tribunal de Segunda Instância do art. 599° do C.P.C.M.”, assacando-lhe também uma “nulidade por omissão de pronúncia”.
Porém, apenas uma muito pouco cuidada análise dos autos ou um manifesto equívoco pode justificar tal entendimento.
Na verdade, em relação à “aplicação do art. 599° do C.P.C.M.”, cremos que o próprio recorrente reconhece que não observou o ónus que com o dito preceito lhe era imposto, pois que não deixa de afirmar (expressamente) que “No presente processo há apenas 5 testemunhas, sendo relativamente curtos os depoimentos por si prestados, pelo que, materialmente, o tribunal pode conhecer dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento (através da gravação ou da transcrição literal da gravação), não existindo qualquer dificuldade insuperável no conhecimento da impugnação da matéria de facto invocada pelo recorrente”; (cfr., concl. 2ª).
E, perante isto, (e independentemente do maior ou menor rigor que se possa ou deva ter; cfr., sobre a matéria, o nosso Acórdão nesta mesma data proferido no Proc. n.° 134/2021), sem esforço se mostra de concluir que o recorrente não indicou, como lhe competia, quais os “depoimentos testemunhais” – transcrevendo os seus respectivos teores ou excertos – que justificavam uma decisão da matéria de facto no sentido que com o seu recurso pugnava, mais não se mostrando de acrescentar sobre a questão por total desnecessidade.
Quanto à “omissão de pronúncia”, vejamos.
Como sabido é, tal vício – apenas – ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre “questão que lhe competia conhecer”; (cfr., v.g., entre outros, os recentes Acs. deste T.U.I. de 18.06.2021, Proc. n.° 200/2020-II, de 14.07.2021, Proc. n.° 139/2020, de 23.07.2021, Proc. n.° 61/2021 e de 10.11.2021, Proc. n.° 131/2021).
No caso, diz o ora recorrente que tal omissão ocorre dado que o Tribunal de Segunda Instância não se pronunciou sobre uma alegada “violação dos art°s 436° e 556°, n.° 2 do C.P.C.M.”, considerando, tal “violação”, um “fundamento independente” no âmbito da sua impugnação da matéria de facto efectuada em sede do seu anterior recurso; (cfr., concl. 5ª e 6ª).
Pois bem, respeita-se – obviamente – a maneira de o ora recorrente “encarar” a questão.
Porém, (e sem prejuízo do muito respeito por diverso entendimento), não se apresenta como a correcta e/ou adequada.
Eis, em nossa opinião, o porquê.
Consagrando o “princípio da aquisição processual”, prescreve o art. 436° do C.P.C.M. que:
“O tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com a prova, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado”.
Por sua vez, nos termos do art. 556°, n.° 2 do mesmo código:
“A matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, se o julgamento incumbir a juiz singular; a decisão proferida declara quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”.
E, em face do assim estatuído, cabe consignar que não se alcança – nem tão pouco se pode acolher – a “pretensão” do ora recorrente.
Em relação à “norma do art. 556°, n.° 2”, mostra-se de dizer apenas que o Tribunal Judicial de Base cumpriu escrupulosamente o que aí se determina, bastando para tal conferir a decisão de fls. 99 a 101 para se constatar do que se consignou, (sendo caso para se dizer que até se estranha a “insistência” do recorrente…).
Quanto ao invocado “princípio da aquisição processual”, muito não se mostra de aqui expender.
Como em relação ao dito princípio nota V. Lima: “os materiais trazidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo, pelo que o tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com a prova (artigo 436.°).
O princípio traduz-se na comunidade das provas, de que deriva que a parte não pode renunciar às provas depois de produzidas, embora possa desistir antes disso. Assim, pode-se prescindir de testemunha oferecida, mas só até ter início o depoimento, como se pode desistir de prova por inspecção judicial requerida até esta se realizar.
(…)”; (in “Manual de Direito Processual Civil, Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., 2018, C.F.J.J., pág. 33 e 34).
Nesta conformidade, perante o exposto, e claro se apresentando o alcance do aludido princípio (de processo civil), pena é que o mesmo não suceda com a “razão” da sua invocação por parte do ora recorrente, pois que, em nossa opinião, em nada altera o “estado de coisas”.
Isto é, a – mera – invocação do dito “princípio” em sede de um recurso em que se impugna a matéria de facto, nada altera no que diz respeito ao “ónus” que ao recorrente cabe nos termos do atrás referido art. 599° do C.P.C.M., pelo que, em face dos termos em que a questão foi então colocada no Tribunal de Segunda Instância, e tendo-se presente a pronúncia com o Acórdão recorrido efectuada, não se vislumbra nenhuma “omissão de pronúncia”, imperativa sendo, (por nenhuma outra questão haver a apreciar), a total improcedência do presente recurso.
Decisão
3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 19 de Novembro de 2021
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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