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Processo nº 71/2021 Data: 23.07.2021
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : “Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas”.
Recurso contencioso.
Violação de lei.
Erro nos pressupostos.
Força maior.
Boa fé.
Erro de direito.
Duplicação de multas.



SUMÁRIO

1. O “recurso contencioso” é o meio (processual) próprio para obter o reconhecimento judicial da existência de (todos os) vícios que possam inquinar um acto administrativo lesivo, e, assim, obter a sua anulação contenciosa.

2. No âmbito da temática dos “vícios do acto administrativo”, tem-se entendido, que estes se identificam com os (tradicionais vícios) de “usurpação de poder”, “incompetência”, “vício de forma”, “desvio de poder” e “violação de lei”.

3. Constituindo o “erro nos (seus) pressupostos” um dos vícios de violação de lei que conduzem à anulação do acto administrativo, e competindo ao recorrente alegar e provar no recurso os factos integrativos do erro, cabe ao Tribunal, face a todos elementos legalmente admissíveis de que dispõe, formular um juízo sobre a conformidade com a “realidade” (dos pressupostos de facto) que a Administração teve em conta aquando da prolação do acto impugnado.

O “erro nos pressupostos de facto” constitui assim uma das causas de invalidade do acto administrativo, consubstanciando um vício de violação de lei que configura uma ilegalidade de natureza material, pois é a própria substância do acto administrativo que contraria a lei.

Tal vício consiste na divergência entre os pressupostos de que o autor do acto partiu para prolatar a decisão administrativa final e a sua efectiva verificação na situação em concreto, resultando do facto de se terem considerado na decisão administrativa factos não provados ou desconformes com a realidade.

4. Adequado é desta forma dizer-se que:
- o «erro sobre os pressupostos de facto», traduz-se na divergência entre os factos que a entidade administrativa teve em conta para decidir como decidiu, e a sua real ocorrência; e que,
- o «erro nos pressupostos de direito», traduz-se na inadequação do regime jurídico e normas jurídicas aplicadas pela entidade administrativa à base factual convocada.

5. Se a matéria de facto dada como provada não permite concluir que o “evento” pelo recorrente invocado constitua uma situação de “força maior” que o mesmo “não pudesse evitar”, sendo mesmo de se ter como – uma “greve” que ocorreu como – “efeito da sua conduta”, inviável é considerar como verificada uma “causa de força maior excludente da sua responsabilidade”.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 71/2021
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), com sinais nos autos, notificado do despacho da SECRETÁRIA PARA OS ASSUNTOS SOCIAIS E CULTURA de 14.12.2018 que lhe aplicou uma multa no valor global de MOP$7.613.500,00 por incumprimento do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto, do mesmo, interpôs recurso para o Tribunal de Segunda Instância; (cfr., fls. 2 a 17 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 28.01.2021, (Proc. n.° 208/2019), julgou-se procedente o dito recurso contencioso, anulando-se o acto administrativo recorrido; (cfr., fls. 480 a 507).

*

Do decidido recorreram o referido A, assim como a entidade administrativa recorrida.

No seu recurso, bate-se o aludido recorrente A pela procedência das questões que em sede do seu anterior recurso contencioso foram julgadas improcedentes; (cfr., fls. 517 a 530).

Por sua vez, em sede do seu recurso, pugna a entidade administrativa pela revogação do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, afirmando – em síntese – não existir o aí considerado “erro nos pressupostos de facto”; (cfr., fls. 542 a 550).

*

Em doutro Parecer que juntou aos autos, e em síntese, considera o Exmo. Magistrado do Ministério Público que:

“a) deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Entidade Recorrida;
b) deve ser concedido parcial provimento ao recurso interposto pelo Recorrente contencioso, anulando-se, em consequência, o acto administrativo recorrido não só com o fundamento que já consta da decisão recorrida, mas também com o fundamento referido supra no ponto 2.2.3”; (cfr., fls. 566 a 570).

*

Adequadamente processados os autos, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal de Segunda Instância considerou como “provada” a seguinte matéria de facto:

«Em 29/03/2018, o Fundo do Desporto da RAEM e o recorrente assinaram o Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto (doravante designado simplesmente por "contrato"), para a prestação de serviços de gestão à Piscina Estoril e à Piscina Dr. Sun Iat Sen afectas ao Instituto do Desporto, o período de serviço vai de 01/01/2018 a 28/08/2019 (vd. a fls. 31 a 60 dos autos).
Aliás, o recorrente foi o adjudicatário dos serviços de gestão ou de salvamento de todas as piscinas e instalações aquáticas de Macau afectas ao Instituto do Desporto. Assinaram-se o Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas em Macau afectas ao Instituto do Desporto (vd. a fls. 275 a 302 dos autos), o Contrato de Prestação de Serviços de Salvamento das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto (vd. a fls. 304 a 315 dos autos), o Contrato de Prestação de Serviços de Salvamento das Piscinas situadas em Macau afectas ao Instituto do Desporto (vd. a fls. 317 a 328 dos autos) e o Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Gaivotas a pedais de Anim'Arte NAM VAN (vd. a fls. 330 a 347 dos autos).
Segundo os termos do contrato acima referido, durante a temporada de natação o recorrente devia disponibilizar pelo menos 57 nadadores-salvadores para atender à necessidade de abrir todas as piscinas e instalações afectadas ao Instituto do Desporto.
Em 17/08/2018, de repente o recorrente foi informado por seus funcionários de que 22 nadadores-salvadores não residentes, um nadador-salvador residente e um administrador não residente tinham entrado em greve em conjunto. Os nadadores-salvadores grevistas representavam um terço do número mínimo necessário de nadadores-salvadores para manter-se abertas todas as piscinas e instalações afectadas ao Instituto do Desporto.
De imediato o recorrente informou o ID da greve imprevista acima referida. E na mesma tarde apresentou-se no ID para uma reunião e deixou claro ao ID que podia dispor alguns nadadores-salvadores que fornecessem serviço de salvamento na piscina de Cheoc Van. O ID porém objectou e não permitiu abrir a piscina antes de dispor do pessoal completo de nadadores-salvadores como previsto pelo contrato. Por fim o ID decidiu suspender a abertura da piscina de Cheoc Van em 18/08/2018.
Desde 17/08/2018 quando os nadadores-salvadores organizaram a greve, o recorrente pôs-se a procurar soluções e afadiga-se a coordenar andando entre o ID e a DSAL.
Em 23/08/2018 teve lugar a reunião em que participaram representantes das quatro partes: do ID, da DSAL, dos nadadores-salvadores e o recorrente. No encontro o recorrente anuiu à maior parte das exigências dos nadadores-salvadores e prometeu não voltar a pedir contas pela falta dada por aqueles 23 nadadores-salvadores durante 7 dias a fio, com a única condição de aqueles 23 nadadores-salvadores retomarem o trabalho. E assim fez com que a maioria daqueles 23 nadadores-salvadores retomou o trabalho com limitações a partir do dia seguinte.
No entanto, como o litígio laboral ainda não estava resolvido, aqueles nadadores-salvadores, sem bem que tivessem retomado o trabalho, não trabalhavam seguindo por inteiro as instruções dadas pelo recorrente. Acontecia que chegavam atrasados ou faltavam ao trabalho sem avisar o recorrente com antecedência. Portanto, mesmo que aqueles nadadores-salvadores tivessem "retomado o trabalho", podia-se considerá-los somente como suplentes. Assim sendo, os nadadores-salvadores continuavam a ser insuficientes.
Em 21/08/2018 o ID emitiu a primeira advertência ao recorrente, na qual indicou que caso não conseguisse prestar serviço nos termos previstos pelo contrato fornecendo um número suficiente de nadadores-salvadores, seria punido (vd. os autos a fls. 103 a 105).
Em 31/08/2018 o recorrente respondeu ao ID (vd. os autos a fls. 110 a 113).
Em 12/09/2018, de repente, 7 daqueles 24 nadadores-salvadores voltaram a faltar ao trabalho sem pré-aviso.
O ID, por seu turno, emitiu a segunda advertência em 12/09/2018, de referência n.º 1523/DGED-Of/2018 sobre Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto, afirmando que segundo o mesmo Instituto, as justificações dadas pelo recorrente não eram válidas e que não as aceitou como motivo do incumprimento das responsabilidades contratuais. (vd. os autos a fls. 125 a 126)
Em 21/09/2018 o ID e o recorrente reuniram-se no ID.
Em 24/09/2018 o recorrente respondeu ao ID, reiterando que era força maior que tinha causado a insuficiência do número de nadadores-salvadores em serviço desde 18/08/2018; que na altura em Macau não havia nadadores-salvadores qualificados; que visto que muito provavelmente a DSAL não lhe permitiria contratar TNR adicionais, e seja como for a concessão de permissão levaria tempo que podia variar de duas semanas a vários meses, o ID no entanto até àquele momento não tinha dado instrução alguma; tendo em conta toda a série das circunstâncias acima referidas, o recorrente aderiu à proposta apresentada pelo ID na reunião realizada em 21/09/2018 de extinguir os 3 contratos por acordo bilateral (vd. os autos a fls. 167 a 170).
Em 30/09/2018 mais uma vez 21 nadadores-salvadores daqueles 23 grevistas faltaram ao serviço sem ter avisado a empresa com antecedência. Já no próprio dia o recorrente comunicou o ID do acontecido (vd. os autos a fls. 236).
Em 09/10/2018 o recorrente mandou mais uma comunicação ao ID, indicando que o recorrente ainda não tinha entrado em contacto com 18 dos nadadores-salvadores faltosos. Como aqueles 18 nadadores-salvadores eram todos TNR, mesmo se o recorrente os despedisse todos e depois contratasse novos nadadores-salvadores, levaria 2 ou 3 semanas. Na altura a época balnear já teria acabado e não se precisava de nadadores-salvadores. Portanto, o recorrente avançou duas propostas de abertura das piscinas à escolha do ID (vd. os autos a fls. 237 a 238).
Com o ofício n.º 1680/DGED-Of/2018 datado de 12/10/2018, o ID respondeu que escolhia a proposta n.º 1; mais afirmava que tinha tomado conhecimento que a partir de 01/11/2018 o recorrente podia prestar todos os serviços observando completamente o contrato (vd. os autos a fls. 239).
Em 05/11/2018 o Fundo do Desporto emitiu auto de multa ao recorrente (vd. os autos a fls. 186 a 200).
Foi elaborado pelo Departamento de Administração de Instalações Desportivas o seguinte parecer:
"Assunto: Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto - aplicação de multa
Proposta n.º 0204/DGED-P/2018
Data: 5/12/2018
Exmo. Sr. vice-presidente,
1. Em virtude do despacho proferido pelo Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura em 19/12/2017 na proposta do Fundo do Desporto n.º 0209/DGED-P/2017 de 13/12/2017, deferiu-se adjudicar os "Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto" à "B"; em 29/03/2018 o Fundo do Desporto assinou Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto (vd. o anexo 1) com a "B", com o período de serviço de 01/01/2018 a 28/02/2019 e dizia respeito à Piscina do Parque Central da Taipa, à Piscina de Cheoc Van e à Piscina do Parque de Hác-Sá.
2. Desde 18/08/2018 a "B" não era capaz de fornecer suficientes nadadores-salvadores; por conseguinte, suspendeu-se a abertura da Piscina de Cheoc Van afectada ao ID. Além disso, desde 22/08/2018, sempre por causa do número insuficiente dos nadadores-salvadores que a "B" tinha à disposição, a Piscina do Parque Central da Taipa e a Piscina do Parque de Hác-Sá ficaram a ter um horário de abertura reduzido. Em 30/09/2018 a Piscina do Parque de Hác-Sá deixou de estar aberta em horário reduzido e suspendeu-se-lhe a abertura.
3. Com referência à aplicação de multa pelos "Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto", o ID já comunicou a situação ao Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura com a proposta n.º 0181/DGED-P/2018 (anexo 2) apresentada em 26/10/2018; ao mesmo tempo, segundo o contrato, aplicou-se multa à "B", o que foi deferido pelo Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura em 29/10/2018.
4. Para o efeito, em 05/11/2018 o ID assinou, juntamente com a "B", o auto de multa referente aos "Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto" (anexo 3).
5. Mais tarde, em 15/11/2018 o ID recebeu a carta de contestação escrita (anexo 4) mandada pela "B", no qual se deu a resposta acerca do auto de multa referente aos "Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto".
6. Foram principalmente 4 os motivos de contestação expostos pela "B" na carta acima referida, que eram os seguintes:
6.1 Em 21/09/2018 o ID propôs extinguir o contrato através de acordo, ou seja, através de um acordo bilateral sobre a extinção do contrato.
6.2 Segundo a "B", foi caso de força maior o seu incumprimento do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto por não ter à disposição suficientes nadadores-salvadores;
6.3 Segundo a "B", repetiu-se a multa porque o ID tinha aplicado multa nos termos da cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 1), subalíneas (1.1), (1.2), e depois nos termos da cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 5) do Contrato;
6.4 A "B" contestou que mesmo se se aplicasse multa, se devia calcular o período de sanção apenas a partir do termo do prazo concedido no auto de serviço deficiente do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto assinado em 21/09/2018 e durante o período no qual não voltou a conseguir cumprir o contrato. Considerava, portanto, o cálculo do prazo de sanção efectuado pelo ID como errado.
7. Eis o parecer do ID depois de analisar a carta de contestação escrita mandada pela "B".
7.1 Extinção de contrato por acordo (acordo bilateral sobre a extinção do contrato)
Nos termos do Decreto-Lei n.º 63/85/M, de 6 de Julho, no caso de violação de contrato, quanto à sanção, existem duas opções à escolha da entidade adjudicadora: esta pode rescindir unilateralmente o contrato (art.º 54.º, art.os 57.º a 59.º) ou aplicar multas por violação dos prazos contratuais (art.º 56.º).
Além disso, pode-se ainda resolver o contrato convencionalmente (art.º 60.º) ou fazer cessar o contrato por caducidade do mesmo (art.º 61.º). No entanto, no aspecto jurídico, nenhuma de entre aquelas é maneira de sanção por violação de contrato.
Para observar os princípios da boa fé (art.º 8.º do CPA) e da colaboração entre a Administração e os particulares (art.º 9.º do CPA), o ID já fez tudo ao seu alcance para encontrar uma solução para o litígio. No entanto, acabou por não obter o que desejava, e ao mesmo tempo fez dos residentes da RAEM que usavam as piscinas em discussão co-vítimas.
Nos termos da cláusula 20.ª do contrato de serviços referenciados no título, o ID mandou as advertências com antecedência e preparou-se para trabalhos devidos a eventuais multas. Comparando o regime legal respeitante aos contratos e o contido no Decreto-Lei n.º 63/85/M, o primeiro resulta mais favorável ao adjudicatário, pois que segundo aquele, antes de iniciar o procedimento legal da aplicação de multa por violação de contrato, deve-se emitir duas advertências. As primeiras advertências relativas às Piscinas de Cheoc Van, do Parque de Hác-Sá e do Parque Central da Taipa foram emitidas respectivamente a 21/08/2018 e a 22/08/2018, enquanto a segunda advertência foi mandada a 12/09/2018.
Ao tomar conhecimento de que a "B" já não era capaz de cumprir normalmente quanto previsto pelo contrato referido no título, o ID já encontrou para ela a maneira mais rápida e económica para resolver o problema: extinguir o contrato através de acordo ou seja, extinguir o contrato através de acordo bilateral.
Portanto, em 21/09/2018 o ID propôs esta possibilidade à "B"; só que naquele mesmo dia não recebeu uma resposta inequívoca de aceitação por parte da "B". Como o procedimento obrigatório para aplicação de multa por contrato estava em curso, excepto cumprir os passos restantes do procedimento de sanção nos termos legais e segundo quanto previsto pelo contrato, o ID não tinha outra escolha senão dar o primeiro passo no sentido de uma eventual rescisão unilateral do contrato. Tal circunstância resulta suficiente para explicar porque o ID emitiu à "B" o auto de serviço deficiente referido no título nos termos do art.º 54.º do Decreto-Lei n.º 63/85/M.
Aliás, deve-se ainda realçar que depois da assinatura do auto acima referido, o acto de violação de contrato não cessou. Como dito atrás, o auto assinou-se em 21/09/2018. Uns dias depois, ou seja, desde 30/09/2018, devido às rescrições causadas pela insuficiência de nadadores-salvadores, fechou-se a Piscina do Parque de Hác-Sá, do qual já tinha modificado o horário de funcionamento, o que agravou a violação de contrato.
7.2 Circunstância de força maior
Dado que o Decreto-Lei n.º 63/85/M não estabeleceu uma definição legal para o caso de força maior, deve-se procurar uma definição em outros documentos jurídicos, como por exemplo no art.º 169.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 74/99/M, de 8 de Novembro ou ainda na doutrina do direito civil como a definição dada pelo art.º 313.º do CC do caso de força maior.
Nos termos do art.º 169.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 74/99/M, "Considera-se caso de força maior unicamente o facto natural ou situação, imprevisível e irresistível, cujos efeitos se produzam independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais do empreiteiro, tais como actos de guerra ou subversão, epidemias, tufões, tremores de terra, raio, inundações, greves gerais ou sectoriais e quaisquer outros eventos que afectem os trabalhos da empreitada." Na doutrina civil, por força maior entende-se acontecimento por inteiro imprevisível e insuperável, cujo efeito provocado não depende de vontade pessoal
Contudo, o particular não pode esquivar-se da violação de contrato causada pela culpa, negligência ou falta de clarividência atribuíveis a si próprio, com pretexto de caso de força maior.
Na RAEM nunca tinha acontecido qualquer caso de greve seja geral seja do ramo. Aconteceu foi que os 23 funcionários contratados pela "B" no intuito de cumprir o contrato referido no título se recusaram a trabalhar, afirmando que a "B" violava a Lei das relações de trabalho. A B devia ter elaborado planos de emergência para lidar com acontecimentos imprevisíveis, por exemplo a falta dos seus trabalhadores. No caso em apreço, porém, não se elaborou plano de emergência algum.
Verdade seja dita, durante a execução do contrato referido no título, deparou-se sim com um caso de força maior, para ser exacto, em 16/09/2018, quando se fecharam necessariamente as seguintes piscinas danificadas durante a passagem do Tufão devastador Mangkhut:
Piscina do Parque Central da Taipa: de 16 a 28/09/2018;
Piscina de Cheoc Van: de 16/09 a 13/10/2018;
Piscina do Parque de Hác-Sá: de 16 a 28/09/2018.
Naturalmente nos termos do art.º 55.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 63/85/M, ao calcular a multa, aqueles períodos não foram incluídos na multa que se pretendia aplicar.
7.3 Sanção repetida
A "B" assinou o contrato de prestação de serviços acima referido, e não levantou qualquer embargo relativo à expressão da sua cláusula 20.ª.
De facto, a fórmula de cálculo da multa a aplicar por violação do contrato referido encontra-se na cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 1), subalíneas (1.1) e (1.2) e na cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 5) do contrato. Mas infelizmente, para o ID e para os residentes da RAEM, foram mais do que um os actos de violação de contrato, todos conformes ao indicado em ambas as alíneas. Não apenas houve atrasos notáveis na hora de abertura das piscinas, como também muitas vezes estas estavam fechadas ao público por horas prolongadas. De tempos em tempos várias piscinas funcionavam em horário reduzido por falta de nadadores-salvadores.
7.4 Cálculo errado do prazo de sanção
Nos termos da cláusula 20.ª, n.º 2 do contrato acima referido, tendo o primeiro outorgante emitido duas (2) advertências, caso o segundo outorgante continue a não cumprir ou não cumprir perfeitamente qualquer obrigação prevista pelo contrato, deve-se aplicar multa a este segundo.
A cláusula quer dizer que durante o procedimento legal obrigatório antes da aplicação de qualquer multa por contrato (e.g. a elaboração do auto de multa e a concessão do prazo para defesa), de resto este acto acontece apenas se depois da emissão da segunda advertência esta não surte o efeito pretendido. Ou seja, se se continua a não respeitar o previsto no contrato ou se não se cumpre quanto previsto pelo contrato de forma perfeita. A cláusula, todavia, não fixa qualquer impedimento temporal para o momento de início da aplicação de multa. Porém, nos termos da própria cláusula 20.ª, conta-se como o primeiro dia para a aplicação de multa o dia quando se começa a não cumprir obrigações no respectivo contrato.
Por outro lado, tal como dito atrás, o auto de serviços deficientes contém os procedimento preliminares para a entidade adjudicadora rescindir unilateralmente o contrato (os artigos 54.º, 57.º a 59.º). Portanto, não se pode considerar o prazo final concedido à "B" para este cumprir cada contrato como o momento a partir do qual se começa a calcular a multa. Tal como dito atrás, a multa é um outro tipo de punição por incumprimento de contrato; enquanto a punção em causa diz respeito a um outro género de procedimento.
8. Há ainda dois aspectos na carta de contestação escrita da "B" que o ID deve esclarecer:
8.1 Na sua carta de contestação escrita pontos 11 e 15, a "B" refere que o ID aceitava abrir as piscinas apenas quando o número dos nadadores-salvadores prontos a prestar serviço correspondia ao previsto pelo contrato; mencionou ainda que a empresa tinha proposto ao ID reduzir o número de nadador-salvador de cada pista das piscinas.
O ID tem sempre insistido na segurança dos utentes das instalações desportivas. A disposição de nadadores-salvadores nas piscinas afectadas foi determinada tendo em conta o número, a responsabilidade, a colocação dos nadadores-salvadores no local bem como outros factos assim como se faz nas instalações análogas do Interior da China. Tanto nos documentos de concurso como no contrato, está especificado o número dos nadadores-salvadores necessários em cada piscina. Portanto, o adjudicatário devia forçosamente respeitar o previsto pelo contrato, fornecendo suficientes nadadores-salvadores, para assegurar a segurança de todos os utentes das piscinas.
8.2 Na carta de contestação escrita ponto 9 da "B", esta refere que o ID requer que o adjudicatário siga rigorosamente a regra de não fazer trabalhar os nadadores-salvadores em serviço por mais de 8 horas diárias e de dar-lhes descanso semanal.
Aqui se deve apontar que o ID não faz outro senão exigir ao adjudicatário respeitar quanto previsto pela Lei das Relações de Trabalho.
9. Segundo o contrato, durante a época balnear, ou seja, quando as Piscinas do Parque Central da Taipa, de Cheoc Van e do Parque de Hác-Sá estavam abertas ao público (de 01/05 a 31/10/2018), devia-se destacar o número correspondente de nadadores-salvadores para ficar no local. A "B", no entanto, antes do fim da época balnear (ou seja, até 31/10) ainda não tinha conseguido dispor suficientes nadadores-salvadores conforme quanto previsto pelo contrato, para retomar a abertura normal das piscinas afectadas. Portanto, calcula-se a multa correspondente às 3 piscina acima mencionadas até 31/10/2018.
10. Por isso, nos termos do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto, o período de multa da piscina de Cheoc Van vai de 18/08/2018 a 31/10/2018, enquanto o período de multa das piscinas do Parque Central da Taipa e do Parque de Hác-Sá vai de 22/08/2018 a 31/10/2018. As multas pelas 3 piscinas acima mencionadas totalizam MOP 7.613.500,00 (anexo 5).
Fundamento de direito
Nome de piscina
Fundamento de direito
Nome de piscina
Montante de multa aplicada

Piscina de Cheoc Van
Piscina do Parque de Hác-Sá

Piscina do Parque Central da Taipa

cláusula 2.ª, n.º 11, alínea 2); cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 1), subalínea (1.1), do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto
30.000,00
30.000,00
(sic –N. da T.)
cláusula 2.ª, n.º 11, alínea 1); cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 1), subalínea (1.1), do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto
30.000,00
90.000,00
cláusula 2.ª, n.º 11, alínea 2); cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 1), subalínea (1.2), do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto
60.000,00
60.000,00 (sic –N. da T.)
cláusula 2.ª, n.º 11, alínea 1); cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 1), subalínea (1.2), do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto
60.000,00
180.000,00
cláusula 2.ª, n.º 11, alínea 2); cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 5) do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto
3.024.000,00
2.664.000,00
cláusula 2.ª, n.º 11, alínea 1); cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 5) do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto
1.655.500,00
7.343.500,00
Montante global pelas três piscina acima referidas

7.613.500,00.
Conclusões:
Em resumo, pedia-se a V. Ex. propor, concordando, o seguinte ao superior:
1) O IDM considera inaceitáveis os motivos formulados pela "B" na sua carta de contestação escrita datada de 15/11/2018.
2) Relativamente ao "contrato de prestação de serviços de gestão das piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto", defere-se que a sanção referente à Piscina de Cheoc Van se calcule no período que vai de 18/08/2018 a 31/10/2018, enquanto a sanção referente às piscinas do Parque Central da Taipa e do Parque de Hác-Sá se calcule no período que vai de 22/08/2018 a 31/10/2018.
3) Defere-se, à luz da cláusula 2.ª, n.º 11, alíneas 1) e 2), da cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 1), subalíneas (1.1), (1.2) e alínea 5) do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas situadas nas Ilhas afectas ao Instituto do Desporto celebrados entre o IDM e a "B" em 29/03/2018, a aplicação da multa à "B" no montante global de MOP$7.613.500,00.
À consideração superior."
Por despacho do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, de 14.12.2018, foi proferido o seguinte despacho:
"Deferido."»; (cfr., fls. 496-v a 501-v).

Do direito

3. Como se deixou relatado, dois são os recursos trazidos a esta Instância.

Um, pelo recorrente do anterior recurso contencioso, e, o outro, pela entidade administrativa então recorrida.

Ponderando na natureza das “questões” pelos recorrentes colocadas, e para boa – melhor – compreensão do sentido da decisão recorrida e do que em causa agora está, útil se apresenta aqui transcrever o teor da dita decisão recorrida (na parte que para a decisão a proferir interessa):

“(…)
Da alegada inobservância de procedimento legal e violação de disposição contratual
Diz o recorrente que nunca recebeu cartas de advertência emitidas pelo Fundo do Desporto, pedindo a anulação do despacho recorrido por inobservância de procedimento legal.
Sem necessidade de delongas considerações, somos a entender que não assiste razão ao recorrente, por se verificar que, ao contrário do que ele alega, foram-lhe emitidas duas advertências, uma em 21.8.2018 e outra 12.9.2018, pelo que outra solução não resta senão julgar improcedente o recurso quanto a esta parte.
*
Alega o recorrente que no despacho recorrido não foram indicadas as condições de reembolso previstas no n.º 3 da cláusula 20.ª do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas, pelo que entende dever ser anulado o despacho com fundamento na violação do procedimento legal.
Ora bem, é verdade que é exigida no n.º 3 da cláusula 20.ª do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas a indicação na decisão punitiva das condições de reembolso (presumindo-se ser reembolso da caução prestada pelo recorrente), mas no caso dos autos, como a entidade recorrida apenas limitou-se a aplicar a multa, não tendo apreciado outras questões, pelo que, não se vislumbra que haja necessidade de indicar no mesmo acto recorrido as supostas condições de reembolso, improcedendo, assim, o recurso nesta parte.
*
Da alegada causa de força maior
Vem o recorrente invocar a existência de força maior, em virtude do encerramento ao público da Piscina do Parque Central da Taipa, Piscina de Cheoc Van e Piscina do Parque de Hác-Sá ser devido à participação em “greve” de 24 trabalhadores, sendo 23 nadadores-salvadores, ficando o recorrente impedido de disponibilizar número suficiente de nadadores-salvadores para assegurar o funcionamento daquelas piscinas.
Vejamos.
Para Gil de Oliveira e Cândido de Pinho1, citando a doutrina de Menezes Cordeiro, “A força maior é todo o evento imprevisível e insuperável, cujos efeitos se produzem independentemente da vontade do individuo. Está, de resto, inserido na noção de força maior o vocábulo “impedimento”, o mesmo é dizer, a impossibilidade de o titular poder fazer valer os seus direitos, nela se incluindo a impossibilidade efectiva, temporária e absoluta.”
No caso dos autos, não obstante não haver muitos nadadores-salvadores que reúnam condições para assegurar o funcionamento das piscinas públicas de Macau, mas tal já não era novidade, devendo o recorrente bem saber dessa situação aquando da abertura do respectivo concurso público para prestação de serviço de gestão e de salvamento nas piscinas afectas ao Instituto do Desporto.
Isto significa que o recorrente devia ter previsto e assumido o risco de enfrentar com problema de falta de nadadores-salvadores, pelo que não podemos afirmar que o encerramento ao público das piscinas constitui algo imprevisível para o recorrente, antes pelo contrário, foi resultado de má gestão por parte do mesmo.
Ademais, não se diga que o abandono pelos 23 trabalhadores do seu posto de trabalho constituiria uma situação insuperável.
Em boa verdade, para que se verifique um caso de força maior, compete ao interessado alegar e provar que está perante um caso imprevisível e insuperável. No caso dos autos, ainda que os trabalhadores, sendo na sua maioria nadadores-salvadores, tivessem efectivamente abandonado o seu posto de trabalho, não se mostrava comprovada a inexistência de outros meios ou medidas que permitissem superar aquela situação.
Isto quer dizer que o recorrente não logrou demonstrar que estava impossibilitado de recorrer a outras soluções ou alternativas com vista a resolver a questão de falta de pessoal, por forma a evitar o encerramento ao público das piscinas, como por exemplo, oferecendo um salário mais alto a outros nadadores-salvadores cuja qualificação profissional está reconhecida, ou pedindo a outros seus trabalhadores que prestassem trabalho extraordinário (dentro dos limites legalmente previstos) para poder assegurar o funcionamento normal de todas as piscinas afectas ao Instituto do Desporto de Macau, mediante pagamento de compensações adicionais, etc.
Uma vez que não logrou a prova dessa impossibilidade, não podemos concluir pela verificação do caso de força maior.
*
Da alegada violação dos princípios de boa-fé, da colaboração entre a Administração e os particulares, e da desburocratização
O recorrente entende que o Instituto do Desporto, ao exigir-lhe que concedesse aos nadadores-salvadores 30 minutos de descanso depois de cada 90 minutos de trabalho, assim como que aqueles nadadores-salvadores não pudessem prestar mais de 8 horas de serviço por dia, estava a exigir mais do que a lei laboral exige.
Mais alega que, ao manifestar a discordância com a proposta formulada pelo recorrente quanto ao despedimento em massa dos 22 salvadores-nadadores em greve, com o objectivo de permitir o recrutamento de novos nadadores-salvadores na China, a Administração está a violar os princípios de boa-fé, da colaboração entre a Administração e os particulares, e da desburocratização.
Ademais, alega ainda que, ao ter informado que apenas pretendia revogar o contrato e não aplicar qualquer sanção, mas a final veio a aplicar a multa ao recorrente, está em causa um venire contra factum proprium por parte da Administração.
Vejamos por partes.
Em primeiro lugar, sem necessidade de delongas considerações, dúvidas não restam de que a exigência de observância da Lei das Relações de Trabalho nunca pode traduzir-se em violação dos princípios de boa-fé, da colaboração entre a Administração e os particulares, e da desburocratização.
E quanto ao facto alegado pelo recorrente de que a Administração manifestou a sua discordância com a proposta formulada pelo recorrente relativamente ao despedimento em massa dos 22 salvadores-nadadores em greve, tal proposta consistia em mera opinião da Administração e não vinculava o recorrente. Sendo assim, cabe ao recorrente decidir qual seria a melhor solução para resolver o problema de insuficiência de nadadores-salvadores com vista a assegurar o funcionamento das piscinas, não se vislumbrando, em consequência, a pretensa violação dos princípios de boa-fé, da colaboração entre a Administração e os particulares, e da desburocratização.
E no tocante à alegada violação de boa-fé, na vertente de venire contra factum proprium por parte da Administração, apenas ficou demonstrado que durante a reunião realizada nas instalações do Instituto de Desporto, foi informado ao recorrente de que havia soluções para resolver a situação que enfrentava naquela altura, a saber, aplicação de multa, resolução do contrato e pedido de indemnização, mas não há prova de que a Administração prometeu não aplicar a multa mas que posteriormente deu o dito por não dito.
Daí que, ao ter decidido, a final, aplicar a multa ao recorrente, não se verifica que a Administração tenha cometido qualquer violação de confiança criada por sua conduta, improcedendo, assim, as razões aduzidas pelo recorrente.
*
Da alegada repetição de punição
Entende o recorrente que a Administração não podia aplicar simultaneamente as multas previstas na cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 1), subalíneas 1.1) e 1.2) e na cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 5) do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas.
Prevê a cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 1), subalíneas 1.1) e 1.2) o seguinte:
“1) Caso de verifique atraso na abertura ao público das piscinas situadas nas Ilhas (Piscina do Parque Central da Taipa, Piscina de Cheoc Van e Piscina do Parque de Hác-Sá) e por motivos comprovados não imputáveis ao primeiro outorgante:
1.1) Por cada atraso de um (1) a três (3) dias, o primeiro outorgante reserva-se o direito de aplicar ao segundo outorgante uma multa diária de dez mil patacas (MOP10.000,00);
1.2) Ultrapassando o prazo referido na subalínea 1.1) da presente cláusula, a partir do quarto ao sétimo dia, o primeiro outorgante reserva-se o direito de aplicar ao segundo outorgante uma multa diária de quinze mil patacas (MOP15.000,00)”.
Por sua vez, dispõe a cláusula 20.ª, n.º 2, alínea 5) o seguinte:
“Caso o número de trabalhadores e o número de horas de serviços prestados pelo segundo outorgante não correspondam ao determinado no presente contrato e a situação acumule por três (3) vezes, o primeiro outorgante reserva-se o direito de lhe aplicar uma multa horária de mil patacas (MOP1.000,00) por cada falta de trabalhadores nas situações que se seguem.”
Salvo o devido respeito por opinião contrária, somos a entender que se tratam de situações diferentes, mais precisamente, uma coisa é as piscinas não poder abrir ao público por motivos não imputáveis à entidade administrativa, antes foi devido a razões imputáveis ao recorrente, outra é o recorrente não dispor de trabalhadores suficientes ou não prestar o número de horas de serviços contratualmente acordado.
Caso assim não entendesse, o recorrente poderia fugir à aplicação da multa relativamente à insuficiência do número de trabalhadores ou do número de horas de serviços, bastando para tal proceder o encerramento das piscinas.
Nestes termos, sem necessidade de delongas considerações, somos a entender que não existe a alegada repetição de punição, improcedem, assim, as razões invocadas pelo recorrente.
*
Do alegado erro nos pressupostos de facto no tocante à determinação do período sujeito a punição
Segundo entende o recorrente, só depois de emitida a segunda advertência ao recorrente, e se este continuava a não cumprir as obrigações contratuais, é que a Administração podia aplicar-lhe a respectiva multa.
A nosso ver, afigura-se ter razão o recorrente.
Prevê a cláusula 20.ª, n.º 2 do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas o seguinte:
“2. Se, mesmo com duas (2) advertências emitidas pelo primeiro outorgante, o segundo outorgante ainda não cumpriu ou não cumpriu perfeitamente qualquer obrigação prevista pelo presente contrato, deve este segundo pagar multa em observância aos termos seguintes.”
E dispõe a cláusula 20.ª, n.º 5 do mesmo Contrato o seguinte:
“5) Caso o número de trabalhadores e o número de horas de serviços prestados pelo segundo outorgante não correspondam ao determinado no presente contrato e a situação acumule por três (3) vezes, o primeiro outorgante reserva-se o direito de lhe aplicar uma multa horária de mil patacas (MOP1.000,00) por cada falta de trabalhadores nas situações que se seguem.”
Ora bem, é bom de ver que, tal como sustenta o Digno Magistrado do Ministério Público, só depois de emissão da segunda advertência escrita (ou seja, decorrido o prazo de tolerância), se o recorrente continua a não cumprir as obrigações contratuais por ele assumidas, é que pode a Administração aplicar a multa prevista na cláusula 20.ª, n.º 2 do Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas.
O mesmo acontece com a multa prevista na cláusula 20.ª, n.º 5 do mesmo Contrato, segundo a qual só depois de emitida a segunda advertência escrita, mas o recorrente continua a não cumprir as obrigações contratuais assumidas, mais precisamente, se vier a verificar-se a falta de pessoal, por três vezes, após a emissão da segunda advertência escrita, é que pode a Administração aplicar a multa prevista nessa cláusula contratual.
No vertente caso, está provado que a segunda advertência escrita foi emitida em 12.9.2018, sendo assim, ao efectuar o cálculo das multas a partir de 18.8.2018 e 22.8.2018, respectivamente, há erro nos pressupostos de facto, uma vez que ainda não foi emitida a segunda advertência escrita ao recorrente, devendo, em consequência, ser anulado o acto administrativo impugnado por estar inquinado do vício de violação de lei.
*
Da alegada desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, violação do princípio da proporcionalidade e existência do abuso de direito
Entende o recorrente que ao ser-lhe aplicada uma multa tão elevada, a Administração está a abusar do seu poder sancionatório e viola o princípio da proporcionalidade.
Em boa verdade, perante o incumprimento das obrigações contratuais, a Administração pode escolher a solução que melhor entender, a saber, aplicação de multa, resolução do contrato ou/e pedido de indemnização. Nesta circunstância, a Administração está a exercer os seus poderes discricionários.
Entretanto, uma vez escolhida a aplicação da multa, a Administração está vinculada às regras e fórmulas previstas no Contrato de Prestação de Serviços para cálculo do montante da multa.
Isto significa que, no cálculo do valor da multa, não há lugar a discricionariedade, antes está em causa o exercício de poderes vinculados da Administração, improcedendo, assim, as razões invocadas pelo recorrente nesta parte.
Em suma, por o acto administrativo estar inquinado do vício de violação de lei no que respeita à fixação da data a partir da qual se deve proceder ao cálculo da multa, há-de julgar procedente o recurso contencioso.
(…)”; (cfr., fls. 501-v a 507).

Aqui chegados, vejamos.

–– Em síntese que se nos mostra adequada, afigura-se-nos de consignar que a decisão do Tribunal de Segunda Instância – no sentido da procedência do (anterior) recurso contencioso – assenta no detectado “erro nos pressupostos de facto” do acto administrativo aí objecto de recurso.

Com efeito, considerou-se – essencialmente – que: “No vertente caso, está provado que a segunda advertência escrita foi emitida em 12.9.2018, sendo assim, ao efectuar o cálculo das multas a partir de 18.8.2018 e 22.8.2018, respectivamente, há erro nos pressupostos de facto, uma vez que ainda não foi emitida a segunda advertência escrita ao recorrente, devendo, em consequência, ser anulado o acto administrativo impugnado por estar inquinado do vício de violação de lei”; (cfr., fls. 506).

Que dizer?

Pois bem, o “recurso contencioso” é o meio (processual) próprio para obter o reconhecimento judicial da existência de (todos os) vícios que possam inquinar um acto administrativo lesivo, e, assim, obter a sua anulação contenciosa; (cfr., art. 21° do C.P.A.C.).

Por sua vez, no âmbito da temática dos “vícios do acto administrativo”, tem-se entendido, que estes se identificam com os (tradicionais vícios) de “usurpação de poder”, “incompetência”, “vício de forma”, “desvio de poder” e “violação de lei”.

O conceito de “violação de lei”, não abarca toda e qualquer violação da lei: com efeito, por definição, qualquer vício do acto administrativo implica uma “violação da lei” (no sentido amplo de “bloco de legalidade”).

O conteúdo essencial do vício de violação de lei respeita às ilegalidades objectivas materiais dos actos administrativos: o vício de violação de lei é, assim, aquele em que incorrem os actos administrativos que desrespeitem requisitos de legalidade relativos aos pressupostos de facto, ao objecto e ao conteúdo.

O vício de violação de lei é também doutrinalmente empregue para garantir o caracter fechado da teoria dos vícios do acto administrativo.

Nestes termos, padecem de “violação de lei” os actos administrativos (ilegais) cuja ilegalidade não se possa reconduzir a qualquer dos outros vícios, tendo, portanto, este vício, “carácter residual”.

Constituindo o “erro nos (seus) pressupostos” um dos vícios de violação de lei que conduzem à anulação do acto administrativo, e competindo ao recorrente alegar e provar no recurso os factos integrativos do erro, cabe ao Tribunal, face a todos elementos legalmente admissíveis de que dispõe, formular um juízo sobre a conformidade com a “realidade” (dos pressupostos de facto) que a Administração teve em conta aquando da prolação do acto impugnado.

O “erro nos pressupostos de facto” constitui assim uma das causas de invalidade do acto administrativo, consubstanciando um vício de violação de lei que configura uma ilegalidade de natureza material, pois é a própria substância do acto administrativo que contraria a lei.

Tal vício consiste na divergência entre os pressupostos de que o autor do acto partiu para prolatar a decisão administrativa final e a sua efectiva verificação na situação em concreto, resultando do facto de se terem considerado na decisão administrativa factos não provados ou desconformes com a realidade.

Assim, se o pressuposto (factual) de que o acto recorrido partiu, não se mostra verificado, o mesmo encontra-se inquinado com o vício de “violação de lei” por “erro nos pressupostos de facto”.

Adequado é desta forma dizer-se que:
- o «erro sobre os pressupostos de facto», traduz-se na divergência entre os factos que a entidade administrativa teve em conta para decidir como decidiu, e a sua real ocorrência; e que,
- o «erro nos pressupostos de direito», traduz-se na inadequação do regime jurídico e normas jurídicas aplicadas pela entidade administrativa à base factual convocada.

Ora, atento o que se deixou exposto, e ponderando na factualidade em causa relevante, nenhum motivo se vislumbra para, no ponto agora em questão, divergir do entendimento dos Exmos. Juízes do Tribunal recorrido quanto ao vício de “violação de lei”.

Na verdade, (e como resulta da dita factualidade), o montante da multa aplicada foi calculado com referência a 18.08.2018 e 22.08.2018, ou seja, a datas anteriores da “segunda advertência” que apenas ocorreu em 12.09.2018.

Resultando claramente da cláusula 20ª, n.° 2, do “Contrato de Prestação de Serviços de Gestão das Piscinas” que devem ser feitas “duas advertências” para efeitos de condenação em multa por não cumprimento – ou cumprimento defeituoso – do acordado, evidente se nos apresenta a solução a adoptar.

Com efeito, e como – com total acerto – observa o Ministério Público, “O que aqui está em causa é, justamente, a responsabilidade contratual administrativa e não a responsabilidade civil, pelo que resulta equivocado, com todo o respeito o dizemos, o entendimento da Entidade Recorrida no sentido de que aquilo que releva para aferir o momento a partir do qual a multa é devida, é a data do incumprimento da obrigação por ser a partir daí que ocorre a mora do contratante particular que deve marcar o termo inicial do cálculo da multa pelo atraso no cumprimento.
Não é assim, estamos em crer. As advertências previstas na cláusula 20.ª do contrato aqui em apreço funcionam, elas próprias, como medidas sancionatórias de baixa intensidade, num quadro tipológico que, além das mesmas, compreende, depois, numa gradação crescentemente mais gravosa, as multas e, como última ratio, a eventual resolução sancionatória do contrato.
Daí que, por ser assim, no concreto cômputo da multa contratual aplicada à luz da cláusula 20.ª do contrato, só podia considerar-se o período de tempo posterior à segunda advertência efectuada ao Recorrente contencioso, tal como bem se decidiu no douto acórdão recorrido”; (cfr., fls. 567).

Merecendo o assim considerado a nossa inteira concordância, (cfr., também, v.g., Pedro Costa Gonçalves in, “Direito dos Contratos Públicos”, 2015, pág. 286 e segs.), necessária é a improcedência do recurso da entidade administrativa.

*

–– Passemos agora para as questões colocadas no restante recurso, (pelo recorrente do anterior recurso contencioso apresentado).

Vejamos.

Nos termos do art. 151°, n.° 2 do C.P.A.C.:

“Em processo de recurso contencioso, tem ainda legitimidade para impugnar a decisão final de provimento o recorrente que tenha ficado vencido relativamente a fundamento cuja procedência pudesse assegurar tutela mais eficaz dos direitos ou interesses lesados pelo acto recorrido”.

Em conformidade com o assim estatuído, (e não obstante a solução encontrada para o recurso da entidade administrativa), passa-se a decidir do presente recurso.

Colocadas estão as questões da:
- alegada “causa de força maior”;
- “violação dos princípios da boa fé e da proporcionalidade”; e da,
- ilegalidade do acto administrativo por “errada aplicação do direito”.

Ora, no que toca à primeira questão, (“força maior”), inteiramente aplicável à situação dos presentes autos é o entendimento que tivemos oportunidade de adoptar em sede do (recente) Acórdão de 24.02.2021, Proc. n.° 197/2020, onde, em relação a “idêntica – situação de facto e – questão”, (entre os agora também recorrentes suscitada), se considerou não constituir um caso de “força maior”; (cfr., o cit. aresto, para onde se remete).

É verdade que o art. 55° do D.L. n.° 63/85/M que regula o “contrato” em causa nos autos prevê a cessação da responsabilidade do contratante particular por falta ou atraso na execução do contrato “quando se verifique caso de força maior devidamente comprovado”.

Porém, tal diploma legal não contém qualquer densificação normativa do que seja “caso de força maior”.

Nos termos do art. 169°, n.° 3 do D.L. n.° 74/99/M (que contém o regime jurídico do contrato de empreitada de obras públicas):

“Considera-se caso de força maior unicamente o facto natural ou situação, imprevisível e irresistível, cujos efeitos se produzam independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais do empreiteiro, tais como actos de guerra ou subversão, epidemias, tufões, tremores de terra, raio, inundações, greves gerais ou sectoriais e quaisquer outros eventos que afectem os trabalhos da empreitada”.

E fazendo apelo ao assim estatuído, e ponderando na “situação” dos presentes autos, claro se nos apresenta que a mesma não se pode considerar um “evento” que o ora recorrente “não pudesse evitar”, sendo mesmo de se ter como – uma “greve” que ocorreu como – “efeito da sua conduta”, inviável sendo assim de se qualificar como “causa de força maior excludente da sua responsabilidade”.

Em relação à assacada “violação do princípio da boa fé”, temos também como justa e acertada a solução encontrada pelo Tribunal de Segunda Instância no sentido da sua “inexistência”, pois que não se vislumbra (qualquer) matéria de facto (provada) para se poder dar como ocorrido qualquer desrespeito ao dito princípio, mais não se mostrando de acrescentar ao que se consignou e decidiu na decisão recorrida.

No que diz respeito à também imputada “violação do princípio da proporcionalidade”, afigura-se-nos, (pelos motivos que adiante se deixarão expostos), que a sua decisão deve ter lugar após pronúncia sobre o também alegado vício da “errada aplicação do direito” que – pelo Tribunal de Segunda Instância foi tratado em sede da alegada “repetição de punição” e que – de seguida se passa a efectuar.

Pois bem, em causa está saber se à situação dos autos podia a Administração aplicar (simultaneamente) as “multas” previstas no “Contrato de Prestação de Serviços de Gestão de Piscinas” na cláusula 20ª, n.° 2, “alínea 1), subalíneas 1.1) e 1.2)”, e na “alínea 5)”.

Prevê esta cláusula 20ª, n.° 2, alínea 1), subalíneas 1.1) e 1.2), o seguinte:

“1) Caso de verifique atraso na abertura ao público das piscinas situadas nas Ilhas (Piscina do Parque Central da Taipa, Piscina de Cheoc Van e Piscina do Parque de Hác-Sá) e por motivos comprovados não imputáveis ao primeiro outorgante:
1.1) Por cada atraso de um (1) a três (3) dias, o primeiro outorgante reserva-se o direito de aplicar ao segundo outorgante uma multa diária de dez mil patacas (MOP10.000,00);
1.2) Ultrapassando o prazo referido na subalínea 1.1) da presente cláusula, a partir do quarto ao sétimo dia, o primeiro outorgante reserva-se o direito de aplicar ao segundo outorgante uma multa diária de quinze mil patacas (MOP15.000,00)”.

Por sua vez, dispõe a cláusula 20ª, n.° 2, alínea 5) que:

“Caso o número de trabalhadores e o número de horas de serviços prestados pelo segundo outorgante não correspondam ao determinado no presente contrato e a situação acumule por três (3) vezes, o primeiro outorgante reserva-se o direito de lhe aplicar uma multa horária de mil patacas (MOP1.000,00) por cada falta de trabalhadores nas situações que se seguem”.

E, como se viu, entendeu o Tribunal de Segunda Instância que a decisão (aí recorrida) de “aplicação simultânea” das multas em questão era justificada e acertada, dado que uma coisa era “não se abrir as piscinas ao público” – o que constitui o “atraso na abertura” previsto na “alínea 1)” – e, outra, (distinta), a “insuficiência de trabalhadores ou do número de horas de serviço prestado”, (o que integra a situação da “alínea 5)”).

Ora, correcto se nos apresenta o assim entendido.

Porém, na situação dos autos, o que sucedeu foi que, entre 18.08.2018 e 31.10.2018, as 3 piscinas em causa, (cuja gestão cabia ao ora recorrente), ou “não abriram” ou (apenas) “funcionaram com horário reduzido” (por falta de nadadores-salvadores).

E, nesta conformidade, em nossa opinião, correcta não é a aplicação (em simultâneo) de ambas as multas “da alínea 1) e 5)” na dita situação, pois que para a aplicação da multa (diária) pelo “atraso na – ou não – abertura” das piscinas – e que constitui (igualmente) “incumprimento do acordado” – relevante não é o seu (concreto) “motivo”, (v.g., se por avaria do equipamento necessário à manutenção das piscinas ou qualquer outra deficiência, ou por insuficiência de trabalhadores), não se justificando, assim, uma (especial e autónoma) “valoração” de tal “causa” para efeitos de “duplicação de multas”, como, in casu, sucedeu, (pois que não reflectida ou permitida pela adequada interpretação do texto das referidas cláusulas).

Assim, nesta parte, mostra-se de considerar que o recurso procede, o que, acarreta, necessariamente, idêntica procedência no que toca à imputada violação do “princípio da proporcionalidade”.

Tudo visto, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso da entidade administrativa, concedendo-se parcial provimento ao recurso do recorrente contencioso.

Pelo seu decaimento pagará o recorrente contencioso a taxa de justiça de 5 UCs, (não se tributando a entidade administrativa recorrente dada a sua isenção).

Registe e notifique.

Macau, aos 23 de Julho de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

1 Código Civil de Macau, Anotado e Comentado, Volume IV, pág. 575
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