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Processo n.º 89/2021
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança
Data da conferência: 23 de Julho de 2021
Juízes: Song Man Lei (Relatora), José Maria Dias Azedo e Sam Hou Fai

Assuntos: - Processo disciplinar
- art.º 263.º n.º 2 do EMFSM
- Pena de demissão
- Princípio da proporcionalidade

SUMÁRIO
1. Ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 263.º do EMFSM, “a condenação definitiva proferida em acção penal constitui caso julgado em processo disciplinar quanto à existência material e autoria dos factos imputados ao militarizado”.
2. Sendo o crime de burla pelo qual foi condenado o recorrente o crime doloso, a sua condenação pressupõe não só o apuramento dos factos objectivos constitutivos do crime mas também a verificação do elemento subjectivo – dolo.
3. Não se pode voltar a discutir-se no processo disciplinar os factos imputados ao recorrente e a respectiva autoria, já provados no processo crime.
4. A prática do crime por um membro das forças de segurança prejudica seriamente a imagem, a reputação, o prestígio e a dignidade das forças de segurança da RAEM.
5. A pena de demissão (bem como a aposentação compulsiva) pode ser aplicada às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional, sendo este o pressuposto geral de aplicação da pena disciplinar em causa.
6. A inviabilização da manutenção da relação funcional, como um conceito indeterminado, é uma conclusão a extrair dos factos imputados ao arguido e que conduz à aplicação de uma pena expulsiva, sendo uma cláusula geral e não um facto que tenha de ser objecto de prova.
7. O preenchimento dessa cláusula constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose assentes na factualidade apurada, a que há que reconhecer uma ampla margem de decisão.
8. Quanto às penas disciplinares, a sua aplicação, graduação e escolha da medida concreta cabem na discricionariedade da Administração.
9. Só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável – art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC.
10. O Tribunal de Última Instância tem entendido que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso do despacho punitivo proferido pelo Senhor Secretário para a Segurança em 15 de Maio de 2020, que lhe aplicou a pena de demissão.
Por acórdão proferido em 11 de Março de 2021, o Tribunal de Segunda Instância julgou improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Inconformado com a decisão, vem A recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A responsabilidade disciplinar e a responsabilidade penal são independentes entre si, tal qual resulta expressamente do art. 198.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança - E.M.F.S.
2. O regime do n.º 2 do art. 263.º do E.M.F.S. não implica que ao recorrente disciplinar deva ser sempre e necessariamente aberto um processo disciplinar ou que, caso seja aberto, lhe deva sempre ser aplicada uma sanção disciplinar sendo que, diferentemente, o que resulta do n.º 2 do art. 263.º é apenas que devem ser considerados estabilizados os elementos de facto da eventual infracção disciplinar: a existência material e a autoria dos factos imputados ao recorrente.
3. Mas sendo embora necessário, tal não é, porém, suficiente para a imputação a quem quer que seja um qualquer acto delitual – seja criminal ou mesmo disciplinar – pois que sempre se exige que a um hipotético elemento subjectivo “dolo” acresça ainda o elemento “culpa” – e os seus sub-elementos “censurabilidade” e “exigibilidade” – e, bem ainda, o elemento “punibilidade”.
4. Não é, pois, salvo o elevado respeito devido face a entendimento diverso, juridicamente correcto afirmar-se e sustentar-se uma interpretação e aplicação da lei sancionatória – seja criminal, infraccional ou disciplinar – em que se atenda tão somente à tipicidade e ilicitude e se desconsidere de todo a aferição pela Administração dos elementos “culpa”, incluindo a “censurabilidade” e a “exigibilidade”, e a “punibilidade”.
5. Em sede de processo disciplinar, mesmo quando exista uma sentença penal condenatória anterior, é sempre necessário determinar cumulativamente todos os demais circunstancialismos e elementos de contexto – por exemplo, causas de exclusão da responsabilidade ou causas de inexigibilidade – que existam em cada caso e que possam afastar a responsabilidade disciplinar.
6. Contrariamente ao expendido nas doutas considerações do Exm.º representante do M.P., por sua vez acolhidas na decisão a quo, não basta estarem estabilizados os elementos de facto provenientes de uma sentença penal para que possa estar imediatamente caracterizada ipso facto e ipso jure uma infracção disciplinar e é precisamente por isto que se dispõe que a responsabilidade disciplinar e a responsabilidade penal são independentes e não se devem confundir ou sobrepor e, por conseguinte, a verificação da segunda não pode como que atalhar a metódica e indispensável aferição concreta ou a demonstração exaustiva da primeira pela Administração, mormente quanto aos elementos “culpa”, incluindo a “censurabilidade” e a “exigibilidade”, e “punibilidade”, o que não sucedeu in casu e, porém, foi mantido e coonestado em sede da decisão aqui recorrida.
7. Os elementos que constam dos autos disciplinares apontam que o que esteve na base dos factos em questão foi, verdadeiramente, uma conduta pessoal exclusiva da esposa do aqui recorrente, a Sr.ª B, que, porém, sem culpa ou exigibilidade de conduta diversa deste, se projectou na esfera do aqui recorrente.
8. Foi a esposa do recorrente quem teria encontrado o relógio Rolex. Foi a esposa do recorrente quem lhe pediu para ir à casa de penhor a fim de trocar o relógio pelo seu valor pecuniário. Foi a esposa do recorrente quem, após este ter trocado o relógio pelo seu valor pecuniário, recebeu na sua própria e exclusiva conta bancária pessoal esse valor, transferido pelo recorrente.
9. O recorrente é casado com a Sr.ª B no regime da separação de bens, nenhum bem existindo, por conseguinte, que lhes pertença a ambos conjuntamente, mais se sabendo que a esposa do recorrente apenas lhe referiu que tinha encontrado o relógio, nada mais o informando além disso.
10. O recorrente confia e sempre confiou na palavra da sua esposa, nenhum motivo existindo para que devesse desconfiar ou duvidar do que ela lhe diz, sendo que, aliás, esta já antes lhe tinha pedido que ele fosse a uma outra casa de penhor para aí trocar pelo seu valor pecuniário outros objectos que o anterior namorado dela lhe tinha dado e que ela não queria guardar.
11. Deveria ter sido acolhido na decisão ora impugnada, que manteve a decisão do Exm.º Secretário, que estão em causa estritamente actos pessoais respeitantes à esposa do recorrente, ainda que projectados para a esfera do recorrente, mas sem culpa ou censurabilidade deste.
12. Deveria ter sido acolhido na decisão ora impugnada, que manteve a decisão do Exm.º Secretário, por conseguinte que o recorrente se limitou – de boa-fé e no seu dia de folga – a executar um pedido ou favor exactamente semelhante a outros anteriores que a sua esposa já lhe tinha feito.
13. A boa fé e a recta consciência do recorrente quanto ao sucedido se prova pelo facto de que a Polícia apenas foi capaz de o contactar porque o recorrente tinha deixado todos os seus dados de identificação e contacto na loja de penhor, ciente de que nada tinha a temer, esconder ou evitar.
14. Ninguém deve, directa ou indirectamente, imediata ou reflexamente, responder ou ser responsabilizado sancionatoriamente por um acto pessoal da autoria e responsabilidade de um terceiro, mesmo que se trate de um acto pessoal praticado pelo respectivo cônjuge.
15. Caso esteja em causa uma actuação exterior e externa à pessoa do recorrente, não pode nem deve este ser penalizado nem castigado disciplinarmente pela mesma sendo que, no caso em apreço, não poderia o recorrente ter sido sancionado em processo disciplinar, nem ter sido mantida tal decisão pelo T.S.I., por ter confiado no que a esposa lhe começou por dizer pois que se a sua esposa lhe mentiu – ou se não lhe disse a totalidade da verdade – essa situação só poderia responsabilizar o recorrente se este soubesse dessa mentira, dessa meia-verdade ou, ainda, se mesmo não sabendo, tivesse algum motivo ou fundamento legítimo para suspeitar ou duvidar da palavra da sua esposa, o que nunca ocorreu in casu.
16. O recorrente foi in casu um mero executante material de boa-fé de um pedido de favor que lhe foi feito pela sua esposa, de nada se devendo daí ter extraído em sede da decisão a quo, na medida em que esta manteve a decisão administrativa, para efeitos da sua responsabilização disciplinar sendo que precisamente por estar casado com a sua esposa é que o recorrente sempre acreditou na sua esposa, não lhe competindo inquiri-la minuciosamente sempre que esta lhe peça um favor que, pelas suas circunstâncias objectivas, nada justifique plausivelmente qualquer motivo para dúvida ou suspeita.
17. Se o recorrente foi porventura como que vítima de ter confiado e acreditado na sua esposa, tal não pode razoavelmente poder conduzir à aplicação de uma pena disciplinar, sobretudo à mais grave e severa de tais penas!
18. Está caracterizado, na situação vertente, um quadro de inexigibilidade: não é legítimo nem razoável que o recorrente deixasse de confiar na palavra da sua esposa de que ela tinha encontrado um relógio e que, por não o querer guardar, o pretendia trocar pelo seu valor pecuniário, nada se afigurando – nem nada foi aventado em sede penal ou, sobretudo, atenta a sua autonomia, em sede disciplinar – que devesse suscitar ao recorrente qualquer juízo de reserva ou de dúvida quanto a tal pedido feito pela sua esposa.
19. Com efeito, como se disse, tal situação – troca de objectos que se não pretende guardar pelo seu valor pecuniário em casa de penhor – já tinha ocorrido anteriormente em relação a objectos oferecidos por um anterior namorado da esposa do recorrente pelo que, além da confiança natural que lhe merecia a palavra da sua esposa, acresce in casu que também a circunstância de ela já lhe ter feito antes outros pedidos similares levou a que não se possa qualificar como exigível ou expectável por parte do recorrente não confiar ou duvidar dos fundamentos e da licitude do pedido feito pela esposa.
20. Trata-se de um quadro de não exigibilidade de conduta diversa que deveria ter levado, prima facie, à não dedução de uma acusação disciplinar e que, seja como for, sempre deveria ter levado à absolvição do recorrente em sede da decisão adoptada pela Administração e da decisão aqui impugnada, que a manteve.
21. Sem prejuízo do acima invocado quanto à não exigibilidade de conduta diversa, é manifesto que em sede da pena aplicada, e da decisão a quo que a manteve, não foram consideradas nem valoradas duas circunstâncias atenuantes: que, apesar de o recorrente ter actuado materialmente sem qualquer dolo, logo que tomou conhecimento do contexto dos eventos, tomou todas as diligências possíveis para reverter o ocorrido e, assim, resgatou o relógio na casa de penhor e entregou-o nos autos criminais a título de restituição.
22. Por outro lado, seja como for, não se mostra sustentado referir ou invocar, como se fez em sede da decisão administrativa, e do acórdão recorrido que a manteve, que a actuação do recorrente teria prejudicado seriamente a reputação e a dignidade das forças de segurança da RA.E.M. pois que o recorrente praticou os actos meramente materiais que lhe foram imputados no seu dia de folga, isto é, não estava de serviço, trajando meramente à civil, sem utilizar a respectiva farda corporativa e, assim, face a um primeiro efeito externo de comprometimento da imagem exterior visível das forças de segurança, tal argumento de prejuízo à reputação e à dignidade das forças de segurança não poderia ter procedido e servido de fundamento para a pena de demissão.
23. Em segundo lugar, o recorrente não deu qualquer publicidade exterior a quaisquer dos actos que lhe estão imputados, limitando-se a responder sempre por escrito nos termos dos respectivos procedimentos instaurados, a que acresce que nenhum dano adveio quer ao Serviço (o Corpo de Bombeiros) quer ao público (o conjunto de beneficiários da actuação funcional dos serviços prestados pelo Corpo de Bombeiros) e, bem ainda, estão em causa actos sem qualquer mínima conexão com o Serviço de Bombeiros.
24. Não se mostraria atendível à Administração ter adoptado como fundamento da decisão o pretenso prejuízo invocado quer à reputação quer à dignidade das forças de segurança do Território, nem que tal entendimento tivesse sido mantido ex vi da decisão a quo.
25. Ao abrigo do art. 648.º do C.P.C., aplicável por força do art. 149.º, n.º 1, do C.P.A.C., juntam-se 4 declarações de 14 ABR 2021 elaboradas por anteriores chefias do aqui recorrente, que atestam a sua honestidade e probidade e, bem assim, o seu compromisso com o interesse público.
26. Sem prejuízo do acima invocado quanto à não exigibilidade de conduta diversa, em sede da pena aplicada pela Administração não se fundamentou por que concreto motivo a conduta imputada teria de inviabilizar a manutenção da relação jurídico-funcional, omissão esta que não foi censurada pela decisão a quo.
27. Por em nada ser indiferente ou irrelevante aplicar-se uma pena em detrimento da outra, menos gravosa, se imporia à Administração ter fundamentado – rectius, explicitado ponto por ponto – por que razão uma outra pena, não inviabilizadora da relação jurídico-funcional, não teria sido suficiente ou bastantemente idónea para sancionar o aqui recorrente até porque a pena de suspensão de 121 a 240 dias prevista no art. 237.º do EMFSM é precisamente de aplicar em «(…) procedimento que afecte gravemente a dignidade e o prestígio pessoal ou da função (…)».
28. Sempre sem conceder, se acaso a Administração quisesse visar o valor jurídico da dignidade e prestígio da função, sempre deveria ter lançado mão de uma medida sancionatória não determinativa da ruptura da relação laboral.
29. O dever de fundamentação expressa dos actos administrativos tem uma tripla justificação racional: i) habilitar o interessado a optar conscientemente entre conformar-se com o acto ou impugná-lo; ii) assegurar a devida ponderação das decisões administrativas iii) e permitir um eficaz controlo da actividade administrativa pelos tribunais ou mesmo pela própria Administração.
30. Tal justificação, em todas as três vertentes assinaladas, assume particular relevo nos actos ablativos e punitivos em que a margem de livre apreciação e escolha pela Administração é mais alargada, como é o caso do direito disciplinar público, o que foi omitido no presente caso seja pela Administração seja pela decisão a quo que coonestou tal decisão.
31. Tal como foi expendido pelo T.S.I. no acórdão de 30 MAI 2019 no processo n.º 994/2018, em que foi relator o Exm.º Dr. FONG MAN CHONG:
«(...) O princípio da proporcionalidade está consagrado no artigo 5º do CPA, ao estabelecer que as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionados aos objectivos a realizar”.
Entendido, em sentido amplo, como proibição do excesso, o princípio da proporcionalidade postula que a Administração prossiga o interesse público pelo meio que represente um menor sacrifício para as posições dos particulares. Incorpora, como subprincípio constitutivo, o princípio da exigibilidade, também conhecido como princípio da necessidade ou da menor ingerência possível, que destaca, a ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível.
Para maior operacionalidade deste princípio, a doutrina acrescenta, entre outros elementos, o da exigibilidade espacial, que aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção na esfera jurídica das pessoas cujos interesses devam ser sacrificados (vd. J. J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, 266, ss.).
Nesta óptica, a questão essencial reside em saber qual medida punitiva – aposentação compulsiva ou outra medida menos grovosa – que é mais proporcional à sanção motivada pelos factos praticados pela Recorrente.
No fundo, importa saber se o tipo de penas foi bem escolhido ou não. (…)
A aplicação de uma medida expulsiva – quer se trate de demissão quer de aposentação compulsiva – só pode ter lugar quando a conduta do infractor atinge de tal forma o prestígio e a credibilidade da instituição de que faz parte que a sua não aplicação não só iria contribuir para degradar a imagem de seriedade e de isenção dessa instituição como também poderia ser considerada pela opinião pública como chocante ou escandalosa.
Por ser assim é que a aplicação daquelas penas aos agentes ou funcionários das FSM depende da prática de “infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional” (art.º 238º/1 e 2-l) do EMFSM), isto é, de comportamentos capazes de minar de forma inapagável não só a imagem de prestígio e de credibilidade daquela Corporação como também a confiança que nelas depositam os cidadãos e que, por isso, impossibilitem a relação de confiança indispensável à manutenção do vínculo funcional.
Nestes termos, a posição da Entidade Recorrida merece algum reparo, pois, importa sublinhar as particularidades inerentes aos factos cometidos pela Recorrente:
- São factos praticados sem conexão com o serviço;
- Era primária;
- Obteve louvores e elogios nos serviços (fls. 42 a 45 do PA);
- Tem mais de 25 anos de serviços;
- Os produtos, cuja etiquete foi modificada, não se destinavam a consumo, mas sim, são pomadas!
- Os factos cometidos não causam danos nem aos serviços nem ao público. (…)»
32. Por outro lado, foi também já decidido pelo T.S.I. no acórdão proferido no processo n.º 11/2019 de 4 ABR 2019:
«(…) O princípio da proporcionalidade postula a proibição do excesso.
Sopesando as vantagens e os inconvenientes da aplicação de uma pena expulsiva, afigura-se-nos que esta aplicação não é necessária para atingir os fins de reposição do prestígio das Forças de Segurança abalado com a conduta do recorrente, tendo em conta que a experiência de um bombeiro com largos anos de serviço é certamente um bem inestimável para a população, sendo que há outras penas que podem contribuir para aquele desiderato. (…)»
33. A pena de suspensão é de aplicar em caso de afectação grave da dignidade e do prestígio pessoal ou da função e, por assim ser, acaso a Administração entendesse a salvaguarda de tais bens jurídicos, o princípio da proporcionalidade impor-lhe-ia ter lançado mão da pena de suspensão prevista no art. 237.º do E.M.F.S.
34. Estando em causa factos de 2017 a que se veio agora aplicar pena de demissão, não se descortina por que motivo tal pena máxima entretanto aplicada jamais justificou sequer por parte da Administração a suspensão preventiva do recorrente pois que acaso fossem efectivamente tão gravosas ao nível máximo as condutas do recorrente, tal teria sido certamente determinado ex officio pela Administração.
35. O recorrente é funcionário público e sempre foi um trabalhador competente, diligente, cumpridor dos objectivos e das ordens dos seus superiores hierárquicos, assíduo e pontual, pautando sempre o seu comportamento por um rigor estrito em função do interesse público, tendo prestado desde 2008 funções na Direcção dos Serviços Correccionais e no Corpo de Bombeiros.
36. A que acresce que com o intuito de se valorizar permanentemente e, desse modo, estar mais apto a prestar as suas funções profissionais, o recorrente disponibilizou-se para obter diversas formações, valências e competências, designadamente a licença de primeiros socorros, a carta de condução de ambulância e a formação como instrutor de saúde e fitness – cfr. DOCs. 1 a 8 juntos com as alegações de recurso para o T.S.I.
37. O recorrente não tem quaisquer antecedentes disciplinares ao longo da sua carreira de funcionário público iniciada há 12 anos, tendo tido sempre bom no comportamento e avaliações anuais – de que são ainda reflexo os ora juntos documentos 1 a 4.
38. Ao ter decidido como decidiu no douto acórdão a quo, o T.S.I. incorreu num erro de interpretação e aplicação das normas constantes do art. 198.º, do n.º 2 do art. 263.º, no art. 195.º, no n.º 1 do art. 196.º, no art. 202.º, no art. 200.º, n.º 2, alíneas e) e f), e no art. 237.º, todos do E.M.F.S., e do art. 5.º do C.P.A.

Contra-alegou a entidade recorrida, pugnando pelo não provimento do recurso jurisdicional.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, reiterando a sua anterior posição assumida no recurso contencioso bem como os argumentos em que a mesma se apoiou, que foram integralmente acolhidos pelo Tribunal a quo, e pugnando pela improcedência do recurso jurisdicional.

2. Factos
Nos autos foram dados como assentes os seguintes factos pertinentes com interesse para a decisão da causa:
- O arguido, Bombeiro n.º XXXXXX, A, foi condenado por Acórdão, proferido no Processo Comum Colectivo n.º CR3-18-0194-PCC, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, transitado em julgado na sequência de improcedência de recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância – Processo n.º 762/2019.
- Foi-lhe aplicada a pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática de um crime de Burla – 211.º n.º 3 do Código Penal –, integrado pela venda, no dia 6 de Maio de 2017, numa casa de penhores, de um relógio de que a sua esposa se terá apropriado ilegitimamente, nas demais circunstâncias de tempo, modo e lugar que constam do Acórdão condenatório a que se alude acima.
- Foi instaurado o processo disciplinar contra o Recorrente, tendo sido proferia pela Entidade Recorrida a seguinte decisão que foi notificada ao Recorrente oportunamente:
DESPACHO n.º XXX/SS/2020
Processo Disciplinar n.º DXX/XX/NOV
Arguido: Bombeiro n.º XXXXXX, A
Resulta dos presentes autos de processo disciplinar que o arguido, Bombeiro n.º XXXXXX, A, foi condenado por Acórdão, proferido no Processo Comum Colectivo n.º CR3-18-0194-PCC, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, transitado em julgado na sequência de improcedência de recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância – Processo n.º 762/2019.
A condenação definitiva em acção penal constitui caso julgado em matéria disciplinar quanto à existência material e autoria dos factos, nos termos do disposto no artigo 263.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro sendo nos factos que fundamentaram a condenação do arguido e que aqui, por brevidade, se dão como inteiramente reproduzidos, que se fundamentou a acusação deduzida nos presentes autos.
O arguido foi, pois, condenado na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática de um crime de Burla – 211.º n.º 3 do Código Penal –, integrado pela venda, no dia 6 de Maio de 2017, numa casa de penhores, de um relógio de que a sua esposa se terá apropriado ilegitimamente, nas demais circunstâncias de tempo, modo e lugar que constam do Acórdão condenatório a que se alude acima.
Esta conduta criminosa, pese embora as circunstâncias que a atenuam, designadamente as previstas nas alíneas b), e) e h) do n.º 2 do artigo 200.º viola o dever de aprumo na dupla formulação das suas alíneas f) - não praticar acções contrárias à ética, à deontologia funcional ou ao decoro das forças de segurança e o) - não praticar qualquer acção ou omissão que possa constituir ilícito criminal ou contravencional – do respectivo n.º 2, infracção agravada pela circunstância do prejuízo para o interesse geral e de terceiros prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 201.º, bem como, ao não informar os seus superiores da pendência de um processo crime em que figurava como arguido, violou o dever de zelo, a que está sujeito nos – termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 8.º – todos os artigos citados do EMFSM supra referido.
A conduta criminal de um agente de uma corporação das forças de segurança, em quem a população projecta um sentimento de confiança e segurança, é sempre prejudicial à respectiva imagem, prestígio e decoro, não sendo desejável manter nas fileiras quem nega esse inalienável valor bem como a sua própria integridade, sendo esse o sentido do disposto na alínea f) do n.º 2 do artigo 238.º e alínea c) do artigo 240.º, também do EMFSM, ao cominar com pena de demissão as infracções disciplinares decorrentes da prática de determinados crimes, designadamente, o crime de Burla.
O Secretário para a Segurança, no uso dos poderes executivos que lhe advêm do n.º 1 da Ordem Executiva n.º 182/2019, com referência à competência disciplinar atribuída pelo Anexo G ao artigo 211.º daquele diploma estatutário;
Ouvido o Conselho de Justiça e Disciplina;
Ponderada a responsabilidade do arguido e o desvalor da conduta, bem como o demais circunstancialismo de facto, tal como as invocadas atenuantes e a agravante supra caracterizadas, PUNE o Bombeiro n.º XXXXXX, A, com a pena disciplinar de DEMISSÃO, a que se refere o artigo 224.º do EMFSM.
Notifique o arguido do presente despacho e de que do mesmo pode recorrer contenciosamente para o Tribunal de Segunda Instância, no prazo de 30 dias após a respectiva notificação.
Macau, aos 15 de Maio de 2020
O Secretário para a Segurança
Wong Sio Chak

3. Direito
Alega o recorrente que o Tribunal de Segunda Instância incorreu num erro de interpretação e aplicação das normas constantes do art.º 198.º, do n.º 2 do art.º 263.º, no art.º 195.º, no n.º 1 do art.º 196.º, no art.º 202.º, no art.º 200.º, n.º 2, al.s e) e f), e no art.º 237.º, todos do EMFSM, e do art.º 5.º do CPA.
Vejamos.

3.1. Na óptica da recorrente, sendo independentes entre si a responsabilidade disciplinar e a responsabilidade penal, o regime do n.º 2 do art.º 263.º do EMFSM não implica que ao recorrente disciplinar deva ser sempre e necessariamente aberto um processo disciplinar ou que, caso seja aberto, lhe deva sempre ser aplicada uma sanção disciplinar.
Ora, nos termos do art.º 198.º do EMFSM, a responsabilidade disciplinar é independente da responsabilidade criminal.
E ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 263.º do EMFSM, que tem como epígrafo “Acção disciplinar e acção criminal”, “a condenação definitiva proferida em acção penal constitui caso julgado em processo disciplinar quanto à existência material e autoria dos factos imputados ao militarizado”.
Quanto ao alcance do caso julgado, dispõe o n.º 1 do art.º 576.º do Código de Processo Civil que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.
Daí que, evidentemente, não se permite voltar a discutir-se no processo disciplinar os factos imputados ao militarizado e a respectiva autoria, já provados no processo criminal.
No caso vertente e conforme a factualidade apurada nos autos, ao recorrente foi aplicada a pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática de um crime de burla p.p. pelo n.º 3 do art.º 211.º do Código Penal, integrado pela venda numa casa de penhores de um relógio de que a sua esposa se terá apropriado ilegitimamente, nas demais circunstâncias de tempo, modo e lugar que constam do acórdão condenatório proferido nos Proc.s n.º CR3-18-0194-PCC do TJB e n.º 762/2019 do TSI.
Como se sabe, sendo o crime de burla pelo qual foi condenado o recorrente o crime doloso, a sua condenação pressupõe não só o apuramento dos factos objectivos constitutivos do crime mas também a verificação do elemento subjectivo – dolo.
Em consequência, “os factos imputados ao militarizado” (e provados no processo crime) abrangem tanto os factos objectivos como o dolo do recorrente.
No presente recurso, volta o recorrente a discutir a questão de culpa com que ele agiu, alegando que estão em causa estritamente actos pessoais respeitantes à sua esposa, ainda que projectados para a esfera do recorrente, mas sem culpa ou censurabilidade deste, sendo ele apenas um mero executante material de boa-fé de um pedido de favor que lhe foi feito pela esposa.
Mas não tem razão, como é óbvio, pois o que ficou provado não foi o alegado pelo recorrente, daí que a não verificação da circunstância atenuante invocada pelo recorrente, a prevista na al. f) do n.º 2 do art.º 200.º do EMFSM, referente à “falta de intenção dolosa”.
O recorrente invoca ainda o disposto na al. e) do art.º 202.º do EMFSM, que prevê como circunstância dirimente “a não exigibilidade de conduta diversa”, mas também sem nenhuma razão.
Ora, tal como decorre dos factos provados no processo crime, o recorrente teve conhecimento que o relógio em causa não pertencia à sua esposa, pois se tratava da coisa alheia encontrada por ela (cfr. fls. 38 do processo instrutor apensado aos presentes autos), pelo que, sendo irrelevante a alegação do recorrente relativa à sua confiança nas palavras da esposa, não se afigura aceitável a invocação de tal confiança para justificar que ao recorrente não seria exigível uma conduta diversa.
Resumindo, é de dizer que o recorrente praticou, como dolo, o crime que lhe foi imputado, violando os deveres legais, o que constitui infracção disciplinar, pelo que deve o recorrente ser punido disciplinarmente, nos termos do art.º 195.º e no n.º 1 do art.º 196.º do EMFSM.
Assim sendo, e sem necessidade de mais delongas, improcede o recurso, nesta parte.

3.2. Alga ainda o recorrente que a sua actuação não prejudicou seriamente a reputação e a dignidade das forças de segurança da RAEM.
No despacho punitivo impugnado, a entidade recorrida considera que “A conduta criminal de um agente de uma corporação das forças de segurança, em quem a população projecta um sentimento de confiança e segurança, é sempre prejudicial à respectiva imagem, prestígio e decoro”.
Afigura-se-nos não merecer censura tal afirmação.
Por uma lado, tal como salienta o Digno Magistrado do Ministério Público, “Não por acaso, o legislador tipificou, na norma da alínea o) do n.º 2 do artigo 11.º do EMFSM, como conduta susceptível de integrar uma infracção disciplinar por violação do dever de aprumo, o cometimento de actos susceptíveis de constituir crime ou contravenção. Subjacente a essa previsão está, com certeza, a presunção de que tal conduta se reflecte negativamente na imagem, na reputação, no prestígio das próprias Forças de Segurança”.
Por outro lado, e na realidade, mesmo correspondendo à verdade a alegação do recorrente, no sentido de ele praticar os factos imputados no seu dia de folga, trajando meramente à civil, sem utilizar a respectiva farda corporativa e sem dar qualquer publicidade exterior a quaisquer dos actos que lhe estão imputados, certo é que, com a realização da audiência de julgamento aberta ao público a que pode assistir qualquer pessoa e a publicidade da leitura da sentença (art.º 77.º n.ºs 1 e 6 do Código de Processo Penal), a notícia da sua condenação há de tornar a ser do conhecimento do público, sendo que, para qualquer cidadão, a prática do crime por um membro das forças de segurança prejudica seriamente a imagem, a reputação, o prestígio e a dignidade das forças de segurança da RAEM.
Improcede o argumento do recorrente.

3.3. Finalmente, impugna o recorrente a sua punição por pena de demissão, pretende que a aplicação da pena de suspensão de 121 a 240 dias prevista no art.º 237.º do EMFSM.
Assaca também o vício de falta de fundamentação.
Desde logo, é de frisar que não se verifica o vício invocado.
Nos termos dos art.ºs 114.º e 115.º do CPA, a Administração tem o dever de fundamentar os actos administrativos por si praticados, através da sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, sendo que equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
A lei exige que a fundamentação seja congruente, clara e suficiente.
E para haver falta de fundamentação, não basta qualquer obscuridade, contradição ou insuficiência dos fundamentos invocados, sendo ainda necessário que eles não possibilitem um “esclarecimento concreto” das razões que levaram a autoridade administrativa a praticar o acto.1
A fundamentação do acto administrativo deve permitir a um destinatário normal reconstituir o iter cognoscitivo e valorativo do autor do mesmo acto.
No caso ora em apreciação, cremos que o acto impugnado está devidamente fundamentado, permitindo ao seu destinatário conhecer as razões fácticas e jurídicas da decisão e perceber a sua racionalidade.
Tal como se constata no despacho do Secretário para a Segurança, a punição do recorrente tem na sua base a condenação definitiva pela prática do crime de burla p.p. pelo n.º 3 do art.º 211.º do Código Penal, a violação dos deveres de aprumo e de zelo, a inviabilização da manutenção da relação funcional ao abrigo da al. f) do n.º 2 do art.º 238.º e da al. c) do art.º 240.º do EMFSM.
Daí que, evidentemente não se vê a verificação do vício de falta de fundamentação.

No que respeita à aplicação da pena de demissão, imputa o recorrente a violação do princípio da proporcionalidade.
A entidade recorrida decidiu aplicar a pena de demissão, ao abrigo da al. f) do n.º 2 do art.º 238.º e da al. c) do art.º 240.º do EMFSM.
Quanto à matéria ora em causa, dispõem os art.ºs 238.º e 240.º do EMFSM o seguinte:
Artigo 238.º
(Aposentação compulsiva e demissão)
1. As penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional.
2. As penas referidas no número anterior são aplicáveis ao militarizado que, nomeadamente:
a) Agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, em local de serviço ou em público;
b) Usar de poderes de autoridade não conferidos por lei ou abusar dos poderes inerentes às suas funções excedendo os limites do estritamente necessário, quando seja indispensável o uso dos meios de coerção ou de quaisquer outros susceptíveis de ofenderem os direitos do cidadão;
c) Encobrir criminosos ou prestar-lhes qualquer auxílio que possa contribuir para frustrar ou dificultar a acção da justiça;
d) Por virtude de falsas declarações causar prejuízo a terceiros ou favorecer o descaminho de armamento;
e) Praticar ou tentar praticar acto demonstrativo da perigosidade da sua permanência na instituição ou acto de desobediência grave ou de insubordinação, bem como de incitamento à desobediência ou insubordinação colectiva;
f) Praticar de forma frustrada, tentada ou consumada crime de furto, roubo, burla, abuso de confiança, peculato, concussão, extorsão, peita, suborno e corrupção, associação de malfeitores, consumo e tráfico de estupefacientes, falsificação de documentos e pertença a sociedade secreta;
g) Tomar parte ou interesse, directamente ou por interposta pessoa, em qualquer contrato celebrado ou a celebrar por qualquer serviço da Administração Pública;
h) Violar segredo profissional ou cometer inconfidência de que resulte prejuízo para o Território ou para terceiros;
i) Se constituir na situação de ausência ilegítima durante 5 dias seguidos ou 10 interpolados, dentro do mesmo ano civil;
j) Aceitar, directa ou indirectamente, dádiva, gratificação ou participação em lucros ou outras vantagens patrimoniais, em resultado do lugar que ocupa, ainda que sem o fim de acelerar ou retardar qualquer serviço ou expediente;
l) Abusar habitualmente de bebidas alcoólicas ou consumir ou traficar estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;
m) For cúmplice ou encobridor de qualquer crime previsto nas alíneas anteriores:
n) Praticar, ainda que fora do exercício das suas funções, acto revelador de ser o seu autor incapaz ou indigno de exercer o cargo ou que implique a perda da confiança geral necessária ao exercício da função.
Artigo 240.º
(Demissão)
A pena de demissão é aplicada ao militarizado que:
a) Tiver praticado qualquer crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, com flagrante e grave abuso da função que exerce e com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Tiver praticado, ainda que fora do exercício das funções, crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos que revele ser o seu autor incapaz ou indigno da confiança necessária ao exercício da função;
c) Praticar ou tentar praticar qualquer acto previsto nas alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do artigo 238.º

Decorre das disposições legais acima transcritas que a pena de demissão (bem como a aposentação compulsiva) pode ser aplicada às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional, sendo este o pressuposto de aplicação da pena disciplinar em causa.
Com a prática do crime de burla p.p. pelo art.º 211.º n.º 3 do Código Penal, a conduta do recorrente integra-se na previsão da al. f) do n.º 2 do art.º 238.º e também na al. c) do art.º 240.º, ambos do EMFSM.
Ora, tendo em consideração as disposições que prevêem respectivamente a “aposentação compulsiva e demissão” (art.º 238.º), a “aposentação compulsiva” (art.º 239.º) e a “demissão” (art.º 240.º), cuja regulamentação se diverge da consagrada no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau sobre a mesma matéria, que tem apenas uma única norma (art.º 315.º) a reger em conjunto o pressuposto e as situações de aplicação de “aposentação compulsiva ou demissão”, parece se poder tirar conclusão de que é intenção do legislador mandar aplicar a pena de demissão, e não aposentação compulsiva, aos casos referidos nas alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do art.º 238.ºdo EMFSM.
Até se pode pensar que no art.º 240.º do EMFSM são previstas situações às quais cabe necessariamente a pena de demissão, independentemente de discussão sobre se a conduta do militarizado integrar ou não a cláusula geral de inviabilidade de manutenção da relação funcional estabelecida no n.º 1 do art.º 238.º. 2
Mesmo assim não se entender, afigura-se-nos que se verifica no presente caso a inviabilização da manutenção da relação funcional.
Como é sabido, a inviabilização da manutenção da relação funcional, como um conceito indeterminado, é uma conclusão a extrair dos factos imputados ao arguido e que conduz à aplicação de uma pena expulsiva, sendo uma cláusula geral e não um facto que tenha de ser objecto de prova.
Tem-se entendido que o preenchimento dessa cláusula constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose assentes na factualidade apurada, a que há que reconhecer uma ampla margem de decisão.3
Por outro lado, e no que concerne à pena disciplinar, afirma-se que a sua aplicação, graduação e escolha da medida concreta cabem na discricionariedade da Administração.
E só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável – art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC.
Daí que a intervenção do juiz fica reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida pelo funcionário.
E este Tribunal de Última Instância tem entendido que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.4
Para Ana Fernanda Neves, “O poder de acertamento da sanção é um poder discricionário da Administração, cujo controlo judicial do seu exercício já não é questionável, nem reduzido ao (inoperativo) desvio de poder e ao erro manifesto de apreciação, entendido que está hoje, aos seus limites intrínsecos, os princípios gerais da actividade administrativa, como os princípios da igualdade, da justiça, da imparcialidade e da proporcionalidade”.5
No caso vertente, não se nos afigura existir erro manifesto ou grosseiro da Administração ao considerar inviabilizada a relação funcional com o recorrente para a aplicação da sanção disciplinar nem manifestamente desproporcional a pena de demissão concretamente aplicada, mesmo tomando em consideração a circunstância atenuante invocada pela recorrente prevista na al. e) do n.º 2 do art.º 200.º do EMFSM, que se refere à “confissão espontânea da infracção ou a reparação do dano”, e as outras já ponderadas pela entidade recorrida no seu despacho punitivo.
Não se vê violado o princípio da proporcionalidade.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 8 UC.

Macau, 23 de Julho de 2021
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

1 Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho, Código do Procedimento Administrativo de Macau, anotado e comentado, p. 639 e 640.
2 Cfr. Ac. do TUI, de 21 de Janeiro de 2015, Proc. n.º 26/2014.
3 Ac.s do Tribunal de Última Instância, de 15 de Outubro de 2003, Proc. n.º 26/2003 e de 29 de Junho de 2005, Proc. n.º 15/2005.
4 Ac. do Tribunal de Última Instância, de 15 de Outubro de 2003, Proc. n.º 26/2003.
5 Ana Fernanda Neves, O princípio da tipicidade no direito disciplinar da função pública, em Caderno de Justiça Administrativa, n.º 32, pág. 27, em anotação ao acórdão de 19 de Março de 1999 do Supremo Tribunal Administrativo.
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29
Processo n.º 89/2021