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 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
Inconformado com o douto acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância que julgou improcedente o recurso por si interposto, recorreu A para o Tribunal de Última Instância, pedindo a revogação da decisão recorrida.
Por acórdão proferido em 23 de Julho de 2021, o Tribunal de Última Instância decidiu negar provimento ao recurso.
Notificado, vem agora A requerer a aclaração do acórdão (fls. 201 a 203 dos autos), invocando a “absoluta e intransponível obscuridade” do mesmo na parte constante de fls. 18 e 19 do acórdão.
Não respondeu a entidade recorrida.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, no sentido de indeferir o pedido de aclaração.

2. Fundamentos
Na tese do recorrente, quanto aos segmentos do acórdão aclarando, suscita-se carecido de aclaração:
«- com base em que fundamentos de direito se afirma e sustenta que as responsabilidades penal e disciplinar são independentes mas se subsume qualquer questão que mereça apreciação em sede disciplinar – mormente do dolo, segundo os critérios e valores próprios da Administração – àquilo que já antes teria resultado do processo penal, assim se dispensando, na realidade e na prática, tal apreciação no foro disciplinar, negando-se-lhe por esta via a sua independência;
- com base em que fundamentos de direito se coonesta que a Administração afaste a aferição e apreciação em sede administrativa-disciplinar não apenas do dolo mas também ainda do elemento “culpa” – e os seus sub-elementos “censurabilidade” e “exigibilidade” – e, bem ainda, do elemento “punibilidade”, como se ambos os elementos subjectivos aliás sequer se confundissem ou sobrepusessem.»
Ora, lido o acórdão ora aclarando, nomeadamente a parte posta em causa pelo recorrente, afigura-se-nos evidente a sem razão do recorrente.
Constata-se no acórdão aclarando, a fls. 18 e 19, o seguinte:
«Na óptica da recorrente, sendo independentes entre si a responsabilidade disciplinar e a responsabilidade penal, o regime do n.º 2 do art.º 263.º do EMFSM não implica que ao recorrente disciplinar deva ser sempre e necessariamente aberto um processo disciplinar ou que, caso seja aberto, lhe deva sempre ser aplicada uma sanção disciplinar.
Ora, nos termos do art.º 198.º do EMFSM, a responsabilidade disciplinar é independente da responsabilidade criminal.
E ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 263.º do EMFSM, que tem como epígrafo “Acção disciplinar e acção criminal”, “a condenação definitiva proferida em acção penal constitui caso julgado em processo disciplinar quanto à existência material e autoria dos factos imputados ao militarizado”.
Quanto ao alcance do caso julgado, dispõe o n.º 1 do art.º 576.º do Código de Processo Civil que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.
Daí que, evidentemente, não se permite voltar a discutir-se no processo disciplinar os factos imputados ao militarizado e a respectiva autoria, já provados no processo criminal.
No caso vertente e conforme a factualidade apurada nos autos, ao recorrente foi aplicada a pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática de um crime de burla p.p. pelo n.º 3 do art.º 211.º do Código Penal, integrado pela venda numa casa de penhores de um relógio de que a sua esposa se terá apropriado ilegitimamente, nas demais circunstâncias de tempo, modo e lugar que constam do acórdão condenatório proferido nos Proc.s n.º CR3-18-0194-PCC do TJB e n.º 762/2019 do TSI.
Como se sabe, sendo o crime de burla pelo qual foi condenado o recorrente o crime doloso, a sua condenação pressupõe não só o apuramento dos factos objectivos constitutivos do crime mas também a verificação do elemento subjectivo – dolo.
Em consequência, “os factos imputados ao militarizado” (e provados no processo crime) abrangem tanto os factos objectivos como o dolo do recorrente.
No presente recurso, volta o recorrente a discutir a questão de culpa com que ele agiu, alegando que estão em causa estritamente actos pessoais respeitantes à sua esposa, ainda que projectados para a esfera do recorrente, mas sem culpa ou censurabilidade deste, sendo ele apenas um mero executante material de boa-fé de um pedido de favor que lhe foi feito pela esposa.
Mas não tem razão, como é óbvio, pois o que ficou provado não foi o alegado pelo recorrente, daí que a não verificação da circunstância atenuante invocada pelo recorrente, a prevista na al. f) do n.º 2 do art.º 200.º do EMFSM, referente à “falta de intenção dolosa”.
O recorrente invoca ainda o disposto na al. e) do art.º 202.º do EMFSM, que prevê como circunstância dirimente “a não exigibilidade de conduta diversa”, mas também sem nenhuma razão.
Ora, tal como decorre dos factos provados no processo crime, o recorrente teve conhecimento que o relógio em causa não pertencia à sua esposa, pois se tratava da coisa alheia encontrada por ela (cfr. fls. 38 do processo instrutor apensado aos presentes autos), pelo que, sendo irrelevante a alegação do recorrente relativa à sua confiança nas palavras da esposa, não se afigura aceitável a invocação de tal confiança para justificar que ao recorrente não seria exigível uma conduta diversa.
Resumindo, é de dizer que o recorrente praticou, como dolo, o crime que lhe foi imputado, violando os deveres legais, o que constitui infracção disciplinar, pelo que deve o recorrente ser punido disciplinarmente, nos termos do art.º 195.º e no n.º 1 do art.º 196.º do EMFSM.
Assim sendo, e sem necessidade de mais delongas, improcede o recurso, nesta parte.»
Não se nos afigura existir a obscuridade alegada pelo recorrente, muito menos absoluta e intransponível, que mereça aclaração.
Na realidade, não obstante a independência da responsabilidade disciplinar em relação à responsabilidade criminal, decorrente do disposto no art.º 198.º do EMFSM, certo é que, uma vez instaurado o processo disciplinar, há lugar à aplicação da norma contida no n.º 2 do art.º 263.º do EMFSM, segundo o qual “a condenação definitiva proferida em acção penal constitui caso julgado em processo disciplinar quanto à existência material e autoria dos factos imputados ao militarizado”.
Atento o disposto no n.º 2 do art.º 263.º do EMFSM, no n.º 1 do art.º 576.º do CPC, que prevê o alcance do caso julgado da sentença, e as circunstâncias concretas do caso concreto, não se pode voltar a discutir-se no processo disciplinar os factos imputados ao recorrente, já provados no processo crime, e também constitutivos da infracção disciplinar, incluindo o elemento subjectivo com que agiu.
Daí que se afasta a possibilidade de voltar a discutir a questão suscitada da culpa do recorrente, pois ficou provado que o recorrente praticou, com dolo, o crime.
A prática do crime doloso implica também a violação culposa dos deveres funcionais, violação esta que constitui infracção disciplinar, daí a sua “censurabilidade” e “punibilidade”.
Nos termos do art.º 196.º, n.º 1 do EMFSM, “constitui infracção disciplinar o facto culposo praticado, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais a que está vinculado”.
E o acórdão aclarando não deixa de expor a sem razão do recorrente que invoca a circunstância dirimente relativa à “não exigibilidade de conduta diversa”.
Tal como refere o Digno Magistrado do Ministério Público, «Com todo o respeito, cremos que o Recorrente labora num manifesto equívoco.
Na verdade, a afirmação da independência da responsabilidade disciplinar relativamente à responsabilidade penal que se afirma no artigo 198.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM) significa, primacialmente, que o facto de o militarizado ter sido objecto de uma condenação num processo criminal não impede que o mesmo possa também ser objecto de uma punição em sede disciplinar, o que se compreende em função de serem distintos os valores que se tutelam em sede penal e em sede disciplinar. É esta a principal consequência do princípio da autonomia ou da independência das ditas responsabilidades: a de obviar à invocação da proibição do non bis in idem para afastar a responsabilização disciplinar após uma condenação penal (é de salientar, em todo o caso, que uma condenação penal não determina, necessariamente, uma punição disciplinar).
Questão diversa e situada noutro plano é a do reflexo, sobretudo no plano probatório, da sentença penal no processo disciplinar, mais concretamente, a da repercussão do caso julgado penal no âmbito do processo disciplinar. A afirmação da autonomia ou da independência da responsabilidade disciplinar relativamente à responsabilidade criminal não impede que o caso julgado penal se imponha no processo disciplinar, tal como, expressamente, se encontra consagrado na norma do n.º 2 do artigo 263.º do EMFSM, ….
Por isso, tendo no processo penal ficado provado que o Recorrente actuou com dolo, por faça do caso julgado que se formou sobre essa matéria não podia voltar a discutir-se no processo disciplinar se o mesmo agiu ou não com culpa ou, dizendo de outro modo, se o ilícito disciplinar lhe é ou não subjectivamente imputável, tal como se decidiu no douto acórdão aclarando. Por uma simples razão. É que o juízo de imputação subjectiva em que a culpa se traduz pode revestir as formas de dolo ou de negligência (já no mesmo sentido, embora apelando à distinção entre mera culpa e intenção, MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Volume II, Reimpressão, Coimbra, 1990, p. 809 e, mais recentemente, PAULO VEIGA E MOURA - CÁTIA ARRIMAR, Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 1.º volume, Coimbra, 2014, p. 546) e, portanto, a prova do elemento subjectivo doloso no processo penal implicava a necessária conclusão de que a violação do dever funcional em causa por parte do Recorrente foi culposa, integrando, assim, o conceito de infracção disciplinar (cfr. n.º 1 do artigo 196.º do EMFSM).»
Concluindo, entendemos que deve ser indeferido o pedido de aclaração.

3. Decisão
Face ao exposto, acordam em indeferir o pedido de aclaração.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 5 UC.

Macau, 27 de Outubro de 2021
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
                 



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Processo n.º 89/2021-I