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Processo n.º 773/2021 Data do acórdão: 2021-10-28
Assuntos:
– recurso extraordinário de revisão de sentença
– art.° 431.°, n.° 1, alínea d), do Código de Processo Penal
– superveniência probatória
– superveniência objectiva
– superveniência subjectiva
– elementos de prova novos hoc sensu
S U M Á R I O
1. O art.° 431.°, n.° 1, alínea d), do Código de Processo Penal exige uma superveniência probatória susceptível de abalar seriamente a prova em que se fundou a sentença cuja revisão se requer, superveniência esta que se pode traduzir em duas modalidades: superveniência objectiva, e superveniência subjectiva.
2. Verifica-se superveniência objectiva quando os elementos de prova são novos hoc sensu, no sentido de que não existiam no momento da prolação da sentença cuja revisão se requer. Ou seja, quando esses (novos) elementos de prova só se formaram posteriormente àquele momento.
3. Enquanto a superveniência subjectiva quer referir-se à situação em que a parte requerente da revisão, ao tempo em que esteve em curso o processo anterior, ou não tinha conhecimento dos elementos de prova em causa, que já existiam, ou então sabia da existência deles, mas não teve possibilidade de os obter. Quer dizer, para haver superveniência subjectiva, é necessário que à parte vencida tivesse sido impossível socorrer a esses elementos de prova no processo em que decaíu. Se a parte tinha conhecimento da existência desses elementos de prova, e podia servir-se dele, não tem direito à revisão; se os não apresentou foi porque não quis; sofre, portanto, a consequência da sua determinação ou da sua negligência. Desde que pudesse utilizar esses elementos, deveria utilizá-los, para não sujeitar o tribunal a emitir uma decisão sobre dados incompletos; porque assim não procedeu, perdeu o direito a aproveitar-se dos elementos de prova em causa.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 773/2021
(Autos de recurso extraordinário de revisão da sentença)
Requerentes (condenados): A
B






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum Colectivo n.o CR2-20-0349-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o 1.o arguido A e a 2.a arguida B, aí já melhor identificados, foram finalmente condenados, por decisão já transitada em julgado em 25 de Junho de 2021, como co-autores materiais de um crime de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.os 199.o, n.o 4, alínea b), e 196.o, alínea b), do Código Penal de Macau (CP), em cinco anos e quatro anos de prisão, respectivamente, para além de terem que pagar solidariamente a quantia indemnizatória total (com juros legais) arbitrada oficiosamente a favor das duas pessoas ofendidas (cfr. o teor da certidão junta a fls. 14 e 44v do presente processado de recurso extraordinário de revisão de sentença).
Vieram esses dois arguidos condenados pedir a revisão da decisão condenatória acima referida, nos citados termos do art.o 431.o, n.o 1, alínea d), do Código de Processo Penal de Macau (CPP), alegando, para o efeito, e na sua essência, que (cfr. o teor do requerimento uno de revisão a fls. 2 a 13 do presente processado):
– o cartão SIM do telemóvel n.o 66XXXX27 do ora requerente A foi apreendido em 6 de Outubro de 2020 no subjacente processo penal;
– na audiência de julgamento de 3 de Fevereiro de 2021 desse subjacente processo em primeira instância, o ora requerente, a pedido do Tribunal, apresentou ao Tribunal o código “passcode” desse telemóvel, para efeitos de examinar as comunicações tidas entre ele e o ofendido C em XX;
– na audiência de julgamento de 18 de Fevereiro de 2021, o Tribunal referiu ao ora requerente que naquele telemóvel apreendido já não havia o registo das comunicações tidas entre ele e o ofendido C;
– em 24 de Fevereiro de 2021, o Tribunal Judicial de Base já procedeu à leitura do acórdão condenatório;
– ao saber que no telemóvel apreendido já não havia o registo das comunicações de XX em causa, o ora requerente já pediu aos seus familiares para tratar da emissão, em segunda via, do cartão SIM do número telefónico móvel 66XXXX27, para o fim de procurar no telemóvel antigo do próprio ora requerente se havia registo daquelas comunicações de XX (visto que sem o cartão SIM do número telefónico 66XXXX27, não se poderia receber o código de verificação mandado por XX para efeitos de aceder à aplicação XX instalada no telemóvel antigo);
– assim, em 26 de Fevereiro de 2021, através dos familiares e da ajuda do Advogado, foram tratadas as formalidades de pedido de emissão, em segunda via, do cartão SIM em causa, e em 4 de Março de 2021 acabou por ser emitido, com sucesso, o novo cartão SIM do número telefónico 66XXXX27;
– através desse novo cartão SIM, o ora requerente obteve o registo das comunicações então tidas entre ele e o ofendido C em XX, cujo teor dá para sustentar a absolvição dos dois ora requerentes no crime por que vinham condenados no subjacente processo de condenação;
– de salientar que o ora requerente, antes de o Tribunal Judicial de Base abrir o telemóvel apreendido em questão para examinar o conteúdo registado em XX, não pôde fazer tratar do pedido de emissão, em segunda via, do dito cartão SIM, pois se assim fazendo, teria sido impossível ao Tribunal Judicial de Base abrir a aplicação XX do telemóvel apreendido;
– portanto, o conteúdo das comunicações então tidas entre o ora requerente e aquele ofendido por via de XX e como tal registadas no telemóvel antigo do ora requerente, obtido através do cartão SIM emitido em segunda via, constitui elemento probatório novo que não chegou a ser examinado pelo Tribunal Judicial de Base aquando do julgamento dos factos no subjacente processo de condenação;
– e esse elemento probatório novo, a relevar nos termos do art.o 431.o, n.o 1, alínea d), do CPP, dá para sustentar a decisão absolutória do crime por que vinham condenados os dois ora requerentes no mesmo processo de condenação.
Sobre o pedido de revisão em causa, o Digno Procurador-Adjunto junto do Tribunal Judicial de Base opinou pela negação da pretensão dos dois condenados (cfr. a exposição de fls. 66 a 72 do presente processado).
Subsequentemente, foi emitida (propriamente a fl. 98v do processado) informação judicial à luz do art.o 436.o do CPP, no sentido de não provimento do pedido de revisão.
Subido o processado para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), o Digno Procurador-Adjunto junto desta Instância emitiu parecer (a fls. 109 a 107v), também no sentido de indeferimento do pedido de revisão.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame do presente processado e do subjacente processo de condenação, fluem os seguintes elementos pertinentes à decisão:
Da acta da audiência de julgamento de 3 de Fevereiro de 2021, lavrada a fls. 541 a 543 do processo de condenação, consta que, a pedido do Tribunal Judicial de Base, o 1.o arguido (ora requerente de revisão) concordou em fornecer e forneceu logo o código “passcode” (9XXX13) para esse Tribunal poder aceder ao contéudo das comunicações do seu telemóvel apreendido nos autos.
Da acta da audiência de julgamento de 18 de Fevereiro de 2021 (com a presença da própria pessoa dos dois arguidos ora requerentes de revisão e do respectivo Ex.mo Defensor Advogado), lavrada a fls. 549 a 550 do processo de condenação, não consta nada relativamente a eventual pedido da Defesa de concessão de prazo para ir tratar do pedido de emissão em segunda via do cartão SIM do número telefónico móvel 66XXXX27 do 1.o arguido para o fim de aceder ao conteúdo das comunicações então tidas em XX entre esse arguido e o ofendido C e como tal registadas no telemóvel antigo do 1.o arguido, mas sim consta, a final, que foi designada a data de 24 de Fevereiro de 2021 para efeitos de leitura do acórdão.
É com o conteúdo dessas comunicações em XX que os dois arguidos condenados pretendem fundar o recurso extraordinário deles de revisão da decisão condenatória tomada no subjacente processo de condenação n.o CR2-20-0349-PCC do Tribunal Judicial de Base.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Os dois ora requerentes querem fundar o pedido de revisão na norma da alínea d) do n.º 1 do art.º 431.º do CPP.
E como esta norma processual penal é substancialmente homóloga à do art.° 673.°, n.° 4.°, do Código de Processo Penal de 1929 (CPP de 1929), outrora vigente em Macau, que rezava que uma sentença com trânsito em julgado só poderá ser revista se, no caso de condenação, se descobrirem novos factos ou elementos de prova que, de per si ou combinados com os factos ou provas apreciados no processo, constituam graves presunções da inocência do acusado, afigura-se útil adaptar aqui, e nos termos mutatis mutandis a expor infra, a análise em geral da problemática em causa já feita no aresto deste TSI, de 12 de Outubro de 2000, no processo n.° 94/2000, onde foi decidido um recurso de revisão interposto sob a égide daquele preceito do Código de Processo Penal de 1929:
Como se sabe, o preceito do art.° 431.°, n.° 1, alínea d), do CPP exige uma superveniência probatória susceptível de abalar seriamente a prova em que se fundou a sentença cuja revisão se requer, superveniência esta que se pode traduzir em duas modalidades:
– superveniência objectiva;
– e superveniência subjectiva.
Verifica-se superveniência objectiva quando os elementos de prova são novos hoc sensu, no sentido de que não existiam no momento da prolação da sentença cuja revisão se requer. Ou seja, quando esses (novos) elementos de prova só se formaram posteriormente àquele momento.
Enquanto a superveniência subjectiva quer referir-se à situação em que a parte requerente da revisão, ao tempo em que esteve em curso o processo anterior, ou não tinha conhecimento dos elementos de prova em causa, que já existiam, ou então sabia da existência deles, mas não teve possibilidade de os obter.
Quer dizer, para haver superveniência subjectiva, é necessário que à parte vencida tivesse sido impossível socorrer a esses elementos de prova no processo em que decaíu.
Se a parte tinha conhecimento da existência desses elementos de prova, e podia servir-se dele, não tem direito à revisão; se os não apresentou foi porque não quis; sofre, portanto, a consequência da sua determinação ou da sua negligência. Desde que pudesse utilizar esses elementos, deveria utilizá-los, para não sujeitar o tribunal a emitir uma decisão sobre dados incompletos; porque assim não procedeu, perdeu o direito a aproveitar-se dos elementos de prova em causa.
(E tudo isto são ideias aliás retiradas mutatis mutandis da doutrina do PROFESSOR ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil anotado, Volume VI (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, pág. 353 e segs., que se mantêm ainda actuais e como tal também aplicáveis na interpretação do alcance da norma do art.º 431.º, n.º 1, alínea d), do actual CPP).
E só após verificado o requisito de “novidade” – na vertente objectiva ou na subjectiva – dos elementos de prova qualificados como sendo novos pelo requerente da revisão, é que se pode passar a ajuizar se os mesmos, de per si ou combinados com os já apreciados no processo anterior, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
Isto é: passa-se a indagar qual teria sido o resultado da decisão proferida no processo anterior, se os novos elementos de prova estivessem no processo.
Assim, se se convence de que se esses elementos novos estivessem no processo, a sentença teria sido diversa, então deve admitir-se a revisão da sentença. E para isto, os novos elementos probatórios hão-de ser tal que criem um estado de facto diverso daquele sobre que assentou a sentença cuja revisão se requer.
Entretanto, há que distinguir também duas fases da revisão, a saber: o judicium rescindens e o judicium rescissorium.
Na primeira fase, a de judicium rescindens (juízo rescindente), só cabe julgar se procede o fundamento da revisão da sentença (cfr. maxime o art.º 437.º, n.° 3, do CPPM). E se sim, entrar-se-á na fase subsequente, a de judicium rescissorium (juízo rescissório), em que haverá que proferir nova sentença, depois de se efectuarem as diligências absolutamente indispensáveis e efectuado novo julgamento (cfr. os art.°s 439.°, 441.° e 442.° do CPPM). Daí se retira que apesar da admissão da revisão, o recurso pode deixar de obter o provimento a final (cfr. os art.ºs 443.° e 445.° do mesmo CPPM, confrontadamente) (apud também mutatis mutandis, o PROFESSOR ALBERTO DOS REIS, ibidem).
Aplicando-se agora a tese em geral acima reputada como correcta ao presente caso concreto, é de verificar que os elementos de prova ora referidos pelos dois ora requerentes no requerimento uno deles de revisão não podem ser considerados novos, em qualquer das duas vertentes supra definidas. De facto, todo o conteúdo das comunicações em XX registadas no telemóvel antigo do 1.o arguido condenado ora requerente ora referido como obtido após a emissão em segunda via do cartão SIM do número telefónico móvel 66XXXX27 já existia neste Mundo mesmo antes da realização da audiência de julgamento então feito pelo Tribunal Judicial de Base sentenciador, e a própria Defesa, representada por um mesmo Ex.mo Advogado na última sessão da audiência de julgamento anterior à leitura do acórdão em primeira instância, sendo-lhe ainda possível fazê-lo na altura, não chegou a pedir a esse Tribunal concessão de prazo para apresentar o conteúdo dessas comunicações registadas na conta da aplicação XX instalada no telemóvel antigo do próprio 1.o arguido.
Desta feita, é de concluir que não se pode emitir um juízo rescindente ao caso sub judice, não sendo já mister conhecer de todo o remanescente alegado pelos dois arguidos condenados ora requerentes no pedido de revisão.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em denegar a revisão pretendida pelos arguidos condenados A e B.
Custas do presente processado conjuntamente pelos requerentes, com quatro UC de taxa de justiça individual.
Macau, 28 de Outubro de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Fong Man Chong
(Segundo Juiz-Adjunto)
(Vencido nos termos da declaração de voto vencido em anexo.)

Proce. nº 773/2021 (recurso extraordinário de revisão de sentença penal)

Declaração de voto vencido
Salvo o merecido respeito, não acompanho a decisão que fez vencimento pelas razões a seguir apontadas.
A realidade jurídica não é uma realidade imutável, mas sim evolutiva em função das vicissitudes da realidade sociológica e jurídica.
Tendo em conta a semelhança dos sistemas de recurso extraordinário de revisão de sentença em matéria de direito penal, vigentes na RAEM e em Portugal, a evolução da jurisprudência nesta matéria verificada naquele país pode servir de inspirações para reflexões mais maduras sobre o modo de funcionamento do nosso sistema, com o qual lidamos diariamente.
A propósito do fundamento previsto na alínea d) do artigo 431º/1-d) do CPP (correspondente ao artigo 499º/1-d) do CPP de Portugal), em vários arestos o STJ tem defendido o seguinte:
“I - Sobre o conceito de novidade, a jurisprudência do STJ durante muito tempo entendeu que para efeitos da al. d) do n.º 1 do art.º 449.º, do CPP, os factos ou os meios de prova eram novos desde que não apreciados no processo, ainda que não fossem ignorados pelo recorrente à data do julgamento, sendo que essa jurisprudência foi, entretanto, abandonada, podendo hoje considerar-se consolidada uma interpretação mais restritiva e mais exigente do preceito, de acordo com a qual, novos, são apenas os factos ou os meios de prova que eram ignorados pelo recorrente à data do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser atendidos pelo tribunal.
II - Mais recentemente, o STJ tem vindo a admitir a revisão quando, sendo embora o facto ou o meio de prova conhecido do recorrente no momento do julgamento, ele justifique suficientemente a sua não apresentação, explicando porque não pôde ou entendeu não dever apresentá-los na altura.
(…).” (v. g., Acs. STJ de 17.10.2012, Proc. 2132/10.8TAMAI-C.S1 – 3.ª e de 20.11.2014, Proc. 113/06.3GCMMN-A.S1 – 5.ª).

Aquele preceito exige ainda que os novos factos ou os novos meios de prova, de per si ou combinados com os que forem apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
No caso, importa atender aos seguintes aspectos relevantes para ponderação do pedido formulado:
1) – A audiência de julgamento teve lugar em 3/2/2021 (fls. 541 dos autos do processo principal), altura em que a Exma. Senhora Presidente do Colectivo inquiriu, por iniciativa própria, o arguido se este consentiu, em nome da descoberta da verdade material, fornecer o código para que o Tribunal tivesse acesso às mensagens da XX do telemóvel (apreendido à ordem do processo) que o arguido utilizava, tendo este consentido e fornecido o respectivo código.
2) – A audiência ficou suspensa e reiniciou em 18/02/2021, a Exm. Senhora Presidente do Colectivo perguntou o representante do MP e o mandatário do arguido se pretendiam consultar ou ler o conteúdo das mensagens do telemóvel, tendo todos declarado prescindido desta diligência. Aliás, as mensagens já foram apagas e como tal no telemóvel apreendido já não se encontram dados úteis para esta finalidade.
3) – Finda esta diligência, ficou marcada a leitura do acórdão para 24/2/2021.
4) – Tal como o acórdão mencionou e o que ficou provado que tais mensagens não estavam disponíveis imediatamente no momento da audiência (no telemóvel que o arguido utilizava), muito menos sabia na altura que tais mensagens tivessem algum valor para a defesa dos arguidos ou para a descoberta da verdade material.
5) – Realizado um conjunto de diligências (nomeadamente através da emissão, em segunda vida, do cartão SIM do número telefónico indicado nos autos) numa data posteior é que o ilustre mandatário veio a ter acesso a tais mensagens, nesta óptica, entendo que tais mensagens, enquadradas no conceito de provas novas, quer no aspecto substancial, quer no adjectivo, e como tal é de entender que preenche o requisito do artigo 431º/1-d) do CPP, assim deve ser concedida a requerida revisão.
Segundo Juiz-Adjunto
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Fong Man Chong
28 de Outubro de 2021
Processo n.° 773/2021 Pág. 13/15