Processo nº 431/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 4 de Novembro de 2021
ASSUNTO:
- Causa de Pedir
- Caso julgado
- Responsabilidade solidária da concessionária
- Prescrição
- Prova
SUMÁRIO:
- A causa de pedir haverá de ser construída com os “factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definiBs do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil”;
- Se ao alegar a causa de pedir se invocou não os factos essenciais que definem o conceito jurídico, mas o conceito jurídico e se apesar de ser esse o objecto do processo foi isso (o conceito jurídico) que se levou à base instrutória e sobre esse que se decidiu a resposta dada àquela, a excepção do caso julgado terá de ser apreciada em função dos conceitos jurídicos com base nos quais se construiu a causa de pedir;
- Sendo a responsabilidade solidária das concessionárias consagrada no artº 29º do Regulamento Administrativo nº 6/2020 uma forma de responsabilidade objectiva o prazo de prescrição da mesma decorre do artº 491º “ex vi” artº 492º ambos do C.Civ.;
- Para que a decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
_______________
Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 431/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 4 de Novembro de 2021
Recorrentes: A e B Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada (Recurso Interlocutório)
C Resorts (Macau) S.A. (Recurso Subordinado)
A (Recurso Final)
Recorridos: Os mesmos
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
B Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada e
C Resorts (Macau) S.A.
também com os demais sinais dos autos,
Pedindo a condenação destas a restituírem-lhe solidariamente HKD20.000.000,00 em fichas numerárias de jogo em casino ou o valor correspondente em numerário, acrescido de juros de mora, calculados à taxa anual de 11,75%, a partir de 09.09.2015 até integral pagamento.
Citadas as Rés, na sua contestação vieram estas invocar a excepção do caso julgado, e a 2ª Ré C Resorts (Macau) S.A. invocar a prescrição do direito do Autor por terem já decorrido três anos desde que teve conhecimento do direito que lhe assistia e da pessoa do responsável.
O Autor respondeu pugnando pela improcedência das excepções do caso julgado e da prescrição invocadas.
Proferido despacho saneador veio a excepção do caso julgado a ser julgada improcedente e procedente a excepção da prescrição na sequência do que foi a 2ª Ré C Resorts (Macau) S.A. absolvida do pedido.
Não se conformando com a decisão proferida quanto à excepção do caso julgado vêm as Rés interpor recurso do mesmo, sendo que:
- Pela 1ª Ré B Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada foram apresentadas as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto o despacho saneador de 30 de Setembro de 2019 que julgou improcedente a excepção de caso julgado invocada pela Recorrida, sendo que, a presente acção foi intentada pelo Autor, ora Recorrido, contra a ora Recorrente e contra a 2.ª Ré, C Resorts (Macau) S.A.
2. À data de apresentação da contestação, a ora Recorrente lançou mão da excepção do caso julgado pois, já havia transitado em julgado a sentença proferida. pelo Tribunal Judicial de Base relativa ao processo com o n.º CV3-16-0038-CAO, acção intentada pelo Autor, ora Recorrido, contra as rés do presente pleito e com base nos mesmos fundamentos.
3. Para que melhor se afira o que está em crise nos presentes autos, cumpre contrapor a situação dos autos com a dos autos com o n.º CV3-16-0038-CAO.
4. Assim, nos presentes autos a causa de pedir fundou-se em três depósitos, titulados pelos talões de depósito, alegadamente emitidos pela Recorrente, sendo eles: (i) ..., de 3 de Junho de 2015, no montante de HKD$3,000,000.00 (três milhões de dólares de Hong Kong) (doc. 6 da p.i.); (ii) ..., de 19 de Junho de 2015, no montante HKD$2,000,000.00 (dois milhões de dólares de Hong Kong) (doc. 7 da p.i.); e (iii) ... de 1 de Setembro de 2015, no montante de HKD$15,000,000.00 (quinze milhões de dólares de Hong Kong) (doc. 8 da p.i.).
5. O sujeito activo é A e os sujeitos passivos, a ora Recorrente (B) e a a 2.ª Ré (C Resorts (Macau) S.A.), já a causa de pedir são três depósitos alegadamente não devolvidos ao Autor, ora Recorrido, pela ora Recorrente, realizados nas datas de 3 de Junho de 2015, 19 de Junho de 2015, e 1 de Setembro de 2015, correspondentes às datas de emissão dos talões de depósito, tendo sido peticionada a devolução em singelo, de um montante total de HKD$20,000,000.00 (vinte milhões de dólares de Hong Kong), acrescido de juros de mora, alegadamente depositado junto da 1.ª Ré, ora Recorrente.
6. Sucede que, a 13 de Maio de 2016, processo com o n.º CV3-16-0038-CAO, o ora Recorrido, demandou, na mesma qualidade, a ora Ré (B) e a 2.ª Ré (C Resorts (Macau) S.A), tendo por fundamento a não devolução de três depósitos pela ora Recorrente, realizados também nas datas 3 de Junho de 2015, 19 de Junho de 2015 e 1 de Setembro de 2015, titulados pelos mesmos talões de depósito, referidos no ponto 5 destas conclusões, sendo o montante peticionado também de HKD$20,000,000.00.
7. Pese embora o Recorrido tenha configurado os depósitos como empréstimos, naquela primeira acção, processo n.º CV3-16-0038-CAO, os referidos empréstimos foram também, alegadamente, realizados através de três depósitos na sua conta aberta junto da 1.ª Ré, ora Recorrente, salientadose, que, naquela acção o Recorrido refere-se a actos de depósito a artigo 13.º da p.i. e, nunca pediu qualquer montante a título de juros (2% ao mês), que alegadamente eram devidos pela Recorrente. Logo, o peticionado em ambas as acções é exacta e materialmente igual!
8. Apesar do tribunal a quo ter reconhecido a identidade subjectiva e do pedido, não reconheceu a identidade de causa de pedir, não se conformando a ora Recorrente com tal decisão.
9. A figura do caso julgado, vertida no artigo 416.º do Código de Processo Civil existe para evitar que o tribunal seja “colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior”.
10. À presente acção foi dada uma nova roupagem (empréstimos titulados por depósitos), mas mal sucedida, a nosso ver, isto porque, a presente acção e a acção com o n.º CV3-15-0100-CAO vão sempre desaguar no mesmo facto, os depósitos, ou seja, em ambas as acções a pretensão do Autor deriva do mesmo facto jurídico.
11. Neste sentido, jurisprudência do Tribunal de Última Instância, Processo n.º 44/2006, de 17 de Dezembro de 2017, que se refere à litispendência mas aplica-se ao caso em apreço, porque tanto a litispendência como caso julgado partem do mesmo pressuposto, diferindo apenas se duas acções estão em curso ou uma já transitou em julgado, que se menciona que estamos perante litispendência quando a pretensão deriva do mesmo facto jurídico em acções.
12. Ora a genése das presentes alegações de recurso prende-se com o facto de estarmos perante depósitos em ambas as acções, este é o facto genético jurídico do qual ambas as acções comungam, neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Setembro de 2011, processo n.º 816/09.2TBAGD.C1. (disponível para consulta em www.dgsi.pt). ou; jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 20 de Janeiro de 1994, citada pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, no processo n.º66/2008, de 19 de Maio de 2011, que entende que o enquadramento jurídico da situação não é o elemento causa de pedir, mas antes, “o facto ou conjunto de factos concretos articulados pelo autor e dos quais dimanarão os efeitos jurídicos que, através do pedido formulado, pretende ver juridicamente reconhecidos”
13. O entendimento perfilhado pelo tribunal a quo no despacho do qual se recorre, vai contra o entendimento propugnado pela jurisprudência, assim, como a doutrina, mencionada no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Setembro de 2011, quando cita o Professor Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. III, págs. 121 a 124) que infirma a ideia de que a causa petitendi seja a norma de lei invocada pela parte, dizendo também que “a simples alteração do. ponto de vista jurídico não implica a alteração da causa de pedir".
14. Como explicado neste acórdão, que encara a causa de pedir como o próprio facto jurídico genético do direito (teoria da substanciação), tem como resultado: “... se integram no conceito de caso julgado os factos invocados que foram injuntivos da decisão”, neste sentido vide também Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Maio de 2005, processo n.º 3904/04, (disponível para consulta em www.dgsi.pt).
15. Ora, o que se retira do supra referido é que, no caso em apreço, foram sempre discutidos depósitos, apenas tendo sido dada pelo Recorrido nos presentes autos uma designação diferente da dada anteriormente, no processo com o n.º CV3-16-0038-CAO.
16. E que tais depósitos, constituem o facto jurídico genético, presente em ambas as acções, ou seja, a causa de pedir deriva da mesma relação material, o que, flagrante e indubitavelmente, constitui a excepção do caso julgado.
17. Com o devido respeito, o tribunal a quo colocou-se numa posição em que se encontrará “na alternativa de contradizer ou de reproduzir” a decisão proferida no processo n.º CV3-16-0038-CAO, tudo nos termos do n.º 2 do artigo 416.º do Código de Processo Civil.
18. E, por não se saber o desfecho dos presentes autos, nada obsta a que, caso a pretensão do Recorrido não seja também agora acolhida, que os tribunais não sejam colocados novamente nesta situação, da próxima vez, quiçá recorrendo ao instituto do comodato!
- Pela 2ª Ré C Resorts (Macau) S.A. foram apresentadas as seguintes conclusões:
a. O Recorrido, nos presentes autos, alegou ter feito três depósitos (num total de HK$20,000,000.00) na tesouraria da B sita no casino da Recorrente.
b. Por cada um desses depósitos a B terá entregue um talão comprovativo devidamente numerado, datado e com a discriminação do correspondente valor.
c. Em 13 de Maio de 2016 o Recorrido intentou uma primeira acção (Processo n.º CV3-16-0038-CAO) onde demandou também a B e a Recorrente e peticionou o mesmo montante global de HK$20,000,000.00.
d. Em 2016, todavia, os três depósitos do Recorrido foram, por si, classificados de (três) empréstimos.
e. A verdade é que a pretensão deduzida nas duas acções (a presente e a de 2016) decorre do mesmo facto jurídico - os três momentos em que o Recorrido se dirigiu à tesouraria da B para concretizar depósitos.
f. A primeira instância entende que não se verifica a identidade da causa de pedir nos autos dos dois processos, porquanto as declarações negociais, e as obrigações que daí emergem, são distintas se estivermos perante contratos de depósito ou perante contratos de mútuo.
g. Não obstante ser verdade que depósito e mútuo são realidades jurídicas diferentes, a sua confundibilidade, no caso concreto destes autos, resulta dos factos essenciais invocados pelo próprio Recorrido.
h. Havendo identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, deverá ser reconhecida a excepção de caso julgado e absolvida a Recorrente da instância (artigos 412.º, n.º 2 e 413.º, alínea j), ambos do CPC).
Contra-alegando quanto à decisão sobre a excepção do caso julgado, veio o Recorrido (Autor) pugnar para que fosse negado provimento ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
i. Inconformadas com o veredicto do tribunal a quo, que tinha rejeitado a excepção de caso julgado levantada por elas ao contestar, as duas rés interpuseram o presente recurso, invocando que antes do presente processo intentado pelo autor contra ambas as rés, o autor já tinha deduzido os mesmos pedidos processuais com o mesmo "talão de depósito de dinheiro" contra as rés numa outra acção (autos n.º CV3-16-0038-CAO). A decisão daquela acção já transitou em julgado. Assim, o presente processo é completamente idêntico a um outro em termos de sujeito, de causa de pedir e de pedidos.
ii. Pelo que segundo as duas rés, o presente processo é tal e qual como o invocado por elas, de excepção de caso julgado. Além disso, entendem que o tribunal a quo aplicou erradamente o previsto pelo art.º 416.º do CPC e julgou erroneamente por não confirmar a mesma causa de pedir comum aos dois processos. Por isso, deve-se rejeitar a demanda intentada pelo autor contra elas nos termos do art.º 413.º, alínea j) do CPC.
iii. No entanto, a ver do autor, o tribunal a quo é completamente correto em identificar causas de pedir diferentes nos dois processos, no seu parecer sobre a questão de caso julgado e na sua decisão de improcedência da excepção deduzida pelas duas rés, não havendo nada de inapropriado ou erro algum na aplicação da lei.
iv. O autor tem que reiterar que são absolutamente diferentes a causa de pedir do presente processo e a dos autos n.º CV3-16-0038-CAO (sobretudo depois de comparar as causas de pedir pretendidas nas duas acções – o contrato de mútuo e o contrato de depósito, que o presente processo não vai contra o previsto pelo art.º 416.º, n.º 1 do CPC sobre caso julgado.
v. No processo precedente (autos n.º CV3-15-0100-CAO) (sic –N. da T.) o facto jurídico em que se baseava o pedido do autor eram os 3 contratos de mútuo celebrados entre o autor e a 1.ª ré, enquanto no presente processo, o facto jurídico em que se baseia o pedido do autor são os 3 contratos de depósito celebrados entre o autor e a 1.ª ré.
vi. Os contratos de mútuo e os contratos de depósito ora em causa são factos jurídicos subjacentes tanto necessários como importantes para decidir-se sobre a procedência do respectivo pedido processual, são também as "causas de pedir" dos processos. Evidentemente são distintamente diferentes as causas de pedir ou os factos jurídicos subjacentes nas duas acções, motivo pelo qual não existe de modo algum a identidade de causa de pedir.
vii. Apesar do facto de em ambos os processos se ter mencionado que a 1.ª ré emitiu ao autor os mesmos 3 talões de depósito de ficha, os factos na parte dos talões de depósito de ficha não são factos jurídicos subjacentes tanto necessários como importantes para decidir-se sobre a procedência do respectivo pedido processual. A emissão dos 3 talões de depósito de ficha só por si não constitui qualquer relação jurídica, nem produz nenhum efeito jurídico. Não são senão factos objectivos, no máximo factos instrumentais, sem constituir "causa de pedir" no direito processual ou factos jurídicos.
viii. Aliás, de facto, são cabalmente diferentes os factos jurídicos subjacentes e as relações jurídico-contratuais descritas nas petições iniciais dos dois casos. A relação jurídica subjacente descrita pelo autor na petição inicial da presente acção é o "contrato de depósito irregular" previsto pelo art.º 1111.º e seguintes do CC. Na petição inicial, o autor até enfatiza repetidamente que o motivo pelo qual tinha depositado as fichas de numerário na caixa da 1.ª ré era para facilitar-se o jogo e que não se tratava de depósito de juro elevado, entre outros factos.
ix. Por isso, a relação jurídica invocada pelo autor na acção anterior era a de "mútuo", enquanto no presente caso a relação jurídica invocada pelo autor é a de "contrato de depósito irregular". São diferentes os factos jurídicos nos quais se baseariam os pedidos nos dois processos.
x. Por outras palavras, apesar de o autor continuar a exigir à 1.ª e à 2.ª ré devolver-lhe as fichas de numerário no presente processo recorrendo aos mesmos talões de depósito de fichas que já utilizou na acção anterior, os factos jurídicos descritos pelo autor na petição inicial não são os em que se basearia a constituição da relação de “mútuo”, mas sim os em que se basearia a constituição da relação de “contrato de depósito”.
xi. Portanto, seja como for, não se pode considerar que exista entre duas acções a identidade de causa de pedir somente porque nas petições iniciais dos dois processos é mencionado o mesmo facto sobre os talões de depósito de fichas.
xii. Tal como afirma a doutrina do Dr. Alberto dos Reis citada pelo tribunal a quo nos autos a fls. 299 e o verso, "se eu peço o pagamento de 5 contos, com base num determinado contrato de empréstimo e mais tarde peço ao mesmo réu o pagamento de 5 contos, alegando que me são devidos como preços de certa venda, não há, entre duas acções, identidade de causa de pedir.
xiii. Na realidade, num caso análogo, o TSI proferiu acórdão a 16/01/2016 nos autos n.º 883/2010 e nessa sede pronunciou-se assim quanto à excepção de caso julgado e de identidade de causa de pedir deduzida pelo réu, "sendo diferentes as causas de pedir, não há nenhuma violação de caso julgado."
xiv. Além disso, no que se refere à jurisprudência de Portugal ("a simples alteração do ponto de vista jurídico não implica a alteração da causa de pedir") citada pela 1.ª ré no recurso no ponto de vista de direito comparado, segundo o autor, a 1.ª ré interpretou-a mal e entendeu erradamente o intento original da lei.
xv. Nos termos do art.º 416.º, n.º 2 do CPC, tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. A disposição legal não tem por fim obstar ao titular realizar o seu interesse legítimo através de factos jurídicos correctos e de pedidos processuais.
xvi. A existência de uma acção precedente intentada pelo autor contra as rés explica-se pelo mal-entendido do então mandatário do autor que entendeu mal a relação jurídica e os factos invocados pelo autor no que respeitavam aos “talões de depósito de ficha”.
xvii. Sendo a língua materna do antigo advogado representante do autor o português, enquanto a do autor o chinês, os dois comunicavam-se por meio de tradução. São precisamente os erros comunicativos que fizeram com que na acção anterior, o então mandatário do autor entendeu e descreveu a relação jurídica de “contrato de depósito” subjacente aos “talões de depósito de ficha” como uma relação jurídica de “mútuo” e a teve por causa de pedir.
xviii. Mas na realidade, como o autor não sabia português, desde o princípio não compreendia nada do conteúdo da petição inicial acima referida redigida pelo então mandatário em português.
xix. Era assim até o momento imediatamente anterior à audiência de julgamento, quando o autor se apercebeu do erro acima referido. Embora o autor tenha pedido alterar os factos e a causa de pedir na petição inicial durante a audiência de julgamento naquele processo, não foi autorizado pelo juízo encarregado daquele processo.
xx. Portanto o presente não é caso de evitação intencional jurídica mencionado pelo art.º 416.º, n.º 2 do CPC.
xxi. Resumindo o atrás alegado, visto que são diferentes os factos constitutivos da causa de pedir descritos pelo autor na petição inicial, não se dá azo à repetição de causa intentada.
xxii. Ou seja, se no presente processo não está preenchido o pressuposto de repetição de causa intentada, é ociosa a consideração de se no caso está em causa a excepção de caso julgado, e naturalmente nada impede ao autor voltar a intentar acção contra a 1.ª e a 2.ª ré.
xxiii. Nestes termos, ora pedia-se ao Mm.º Juiz julgar improcedente a motivação de recurso das 2 rés.
Por sua vez veio o Autor interpor Recurso do despacho que julgou procedente a excepção da prescrição quanto à 2ª Ré apresentando as seguintes conclusões:
1. O recorrente não se conformou com o despacho saneador que absolveu a instância do autor contra a 2ª ré por prescrição, dado que se aplica à responsabilidade legal e solidária da 2ª ré o prazo da prescrição de 3 anos por força dos art.ºs 491.º e 492.º do Código Civil.
2. Salvo o respeito pleno à respectiva decisão do Tribunal a quo, o recorrente entende que o prazo da prescrição ainda não ficou terminado e a responsabilidade solidária assumida pela 2ª ré é diferente da responsabilidade civil por factos ilícitos ou pelo risco, ao contrário, deve-se seguir as regras da obrigação principal ou considera-se como obrigação civil em geral e consequentemente, aplica-se as regras gerais da prescrição, portanto, não se aplica o regime da prescrição regulado pelos art.ºs 491.º e 492.º do Código Civil.
3. Entretanto, entende o recorrente que o Tribunal a quo, ao calcular o prazo da prescrição, omitiu de pronunciar-se sobre a situação da suspensão e interrupção da prescrição, pelo que o despacho recorrido enfermou dos vícios da aplicação errada da lei e da omissão de pronúncia.
4. Ao abrigo do art.º 506.º do Código Civil, a solidariedade de deveBs ou creBs só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.
5. E ao abrigo do art.º 29.º, 1ª parte, do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, as concessionárias são responsáveis solidariamente com os promotores de jogo pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administraBs e colaboraBs destes.
6. Por outras palavras, a respectiva obrigação solidária da 2ª ré tem por base a obrigação de base da 1ª ré, o conteúdo da prestação da obrigação da 2ª ré coincide totalmente com o da 1ª ré. Portanto, sem dúvida, a responsabilidade solidária da 2ª ré, como concessionária, perante as actividades desenvolvidas pela 1ª ré, como promotor de jogo, é uma obrigação solidária.
7. Segundo o regime de “obrigações solidárias” previsto no art.º 505.º e ss do Código Civil, a lei não prevê regime especial da prescrição da obrigação solidária, mas podemos procurar a resposta no respectivo mecanismo de defesa.
8. Ao abrigo do art.º 507.º n.º 1 do Código Civil, o devedor solidário demandado pode defender-se por todos os meios que pessoalmente lhe competem ou que são comuns a todos os condeveBs.
9. Daí podemos ver que relativamente ao regime de “meios de defesa” do devedor solidário, a lei apenas distingue os meios de defesa que pessoalmente lhe competem ou que são comuns a todos os condeveBs. Todavia, a lei não distinguiu nem regulou que existe provavelmente diferentes fontes da obrigação ou conteúdos da prestação entre a própria obrigação solidária e a eventual obrigação de base.
10. Por outras palavras, em relação aos meios de defesa dos deveBs solidários, o respectivo regime da obrigação solidária não separou ou distinguiu a obrigação solidária da obrigação de base, nem constituiu mecanismo especial de defesa para a própria obrigação solidária. Portanto, a única explicação é que o legislador considerou que os meios de defesa da obrigação solidária coincidem com os meios de defesa da obrigação de base, designadamente, a obrigação assumida pela 1ª ré e o conteúdo da prestação coincidem com a assumida pela 2ª ré e o seu conteúdo da prestação.
11. Nestes termos, entende o recorrente que a obrigação solidária da 2ª ré tem por base a relação de “contrato de depósito irregular” celebrado entre a 1ª ré e o recorrente, e a natureza e o conteúdo das obrigações das 1ª e 2ª rés são coincidentes, as regras da prescrição aplicáveis à obrigação solidária da 2ª ré devem seguir as regras da prescrição do “contrato de depósito irregular”.
12. Como o Código Civil não prevê o regime especial da prescrição do “contrato de depósito irregular”, devem aplicar o regime geral da prescrição por força do art.º 302.º do Código Civil, pelo que, à responsabilidade solidária da 2ª ré também se aplica o regime geral da prescrição (15 anos).
13. Mesmo que os Exm.ºs Juízes assim não entendam, tendo analisado a fonte da obrigação e o regime da responsabilidade civil, podemos concluir que a prescrição prevista no art.º 491.º do Código Civil não se aplica à responsabilidade solidária da 2ª ré.
14. O Dr. Antunes Varela indicou, na 1ª subsecção “relatório” da 5ª secção “responsabilidade civil” no livro “Das Obrigações em Geral”, que “na rubrica da responsabilidade civil cabe tanto a responsabilidade proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei (responsabilidade contratual), como a resultante da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem (responsabilidade extracontratual).”
15. Por outras palavras, em sentido lato, a “responsabilidade civil” engloba não só a responsabilidade contratual, mas também varias modalidades da responsabilidade extracontratual, e a responsabilidade civil por factos ilícitos e a responsabilidade pelo risco previstas nos art.ºs 477.º e 503.º do Código Civil de Macau são apenas as duas modalidades da responsabilidade civil (extracontratual), não se esgotam todas as modalidades da responsabilidade extracontratual.
16. Portanto, o regime da prescrição da responsabilidade civil por factos ilícitos e da responsabilidade pelo risco previstas nos art.ºs 492.º e 493.º do Código Civil não se aplica directamente a outra modalidade da responsabilidade civil extracontratual (por exemplo, a responsabilidade legal e solidária da concessionária).
17. No entanto, no despacho recorrido, o Tribunal a quo indicou simplesmente que como não existe relação contratual entre o autor e a 2ª ré, a fonte da obrigação solidária da 2ª ré, como concessionária, pela actividade desenvolvida pela 1ª ré, como promotor de jogos, é “responsabilidade civil”, mas não indicou a modalidade da responsabilidade civil da responsabilidade solidária da 2ª ré.
18. O Tribunal a quo indicou que aplicou o regime da prescrição no art.º 491.º por força do art.º 492.º do mesmo Código.
19. Nos termos do art.º 492.º do Código Civil, são extensivas aos casos de responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos. Parece que o Tribunal a quo qualificou a responsabilidade solidária da concessionária por força do art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 como a “responsabilidade pelo risco” (embora o Tribunal a quo não indicasse isso expressamente).
20. Como se sabe, a responsabilidade pelo risco é diferente da responsabilidade civil por factos ilícitos, uma vez que a primeira não exige a “culpa” do responsável, pelo que em relação a outra responsabilidade civil, a responsabilidade pelo risco é excepcional e cujas modalidades resultam da lei.
21. Tal como o Dr. Antunes Varela indicou, na 3ª subsecção “responsabilidade pelo risco” da 5ª secção “responsabilidade civil” do livro “Das Obrigações em Geral”, que “assim o entendeu o novo Código Civil, proclamando a responsabilidade baseada na culpa como regime geral e limitando a responsabilidade objectiva (fundada no risco) aos casos de danos causados pelo comissário, pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, por animais, por veículos e por instalações de energia eléctrica o de gás.”
22. Todavia, a responsabilidade solidária invocada pelo autor não corresponde à responsabilidade pelo risco prescrita nos art.ºs 492.º e ss do Código Civil. O mais importante é que a responsabilidade solidária da concessionária regulada pelo art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 não resulta do “risco”, não tem natureza da responsabilidade pelo risco.
23. Portanto, a responsabilidade solidária regulada pelo art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 não satisfaz o regime de responsabilidade civil por factos ilícitos prevista no art.º 477.º do Código Civil.
24. Assim, à responsabilidade solidária da 2ª ré como concessionária não se aplica o regime da prescrição previsto no art.º 491.º do Código Civil, por remissão do art.º 492.º do CC.
25. É de indicar que ao tomar a referida decisão, parece que o Tribunal a quo não considerou a situação da interrupção ou suspensão da prescrição indicada pelo autor e pelas rés nas alegações dos articulados apresentados.
26. De facto, tendo em conta o caso da suspensão e interrupção da prescrição, o prazo da prescrição da responsabilidade solidária do autor contra a 2ª ré, até à data da intenção da respectiva acção, ainda não foi terminado e o respectivo direito da acção ainda não ficou caducado.
27. Ao abrigo do art.º 315.º n.º 1 do Código Civil, 1. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.
28. Entretanto, ao abrigo do art.º 319.º n.º 1 do Código Civil, se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não transitar em julgado a decisão que puser termo ao processo.
29. In casu, quer o autor quer as rés indicaram que o autor tinha intentado a acção contra a 2ª ré para o TJB de Macau em 3 de Maio de 2016, com os mesmos “títulos de depósito” e os mesmos pedidos, pedindo a indemnização pelos danos, no Processo n.º CV3-16-0038-CAO.
30. Não obstante na altura o advogado do autor deduziu a causa de pedir errada, o que conduziu à improcedência do pedido do autor, a respectiva sentença transitou-se em julgada em 27 de Maio de 2019. É indubitável que a acção intentada pelo autor contra a 2ª ré visa exercer o seu direito e exigir à 2ª ré o cumprimento da sua responsabilidade solidária.
31. Assim, nos termos dos art.ºs 315.º e 319.º do Código Civil, o prazo da prescrição inicia-se a partir do recebimento da citação (ou a partir do 5º dia após a intenção da acção) do Processo n.º CV3-16-0038-CAO pela 2ª ré e ficou interrompido, até à data do trânsito em julgado da sentença do TJB no Processo n.º CV3-16-0038-CAO (depois de 27 de Maio de 2019) o respectivo prazo da prescrição voltou de correr de novo.
32. Como se sabe, o regime da prescrição reside em proteger a estabilidade da lei à custa dos interesses do titular de direito preguiçoso. Todavia, o autor nunca ignorou o direito ou não exerceu o direito dolosamente devido à inércia. O autor constituiu advogado para intentar acção contra as 1ª e 2ª rés uns meses após a ocorrência do caso, pedindo a restituição e a indemnização do dinheiro constante dos respectivos títulos de depósito, a fim de defender os seus interesses de fichas depositadas. Só que o advogado do autor alegou a causa de pedir errada na petição inicial, o que causou o decaimento da acção e assim, precisa de intentar novamente a acção.
33. Assim, o direito do autor deve igualmente ser tutelado pela suspensão e interrupção da prescrição no Código Civil, designadamente nos termos dos art.ºs 315.º e 319.º do Código Civil.
34. Ao abrigo do art.º 571.º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil, é nula a sentença, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
35. Face ao exposto, mesmo que seja aplicado o prazo da prescrição de 3 anos à responsabilidade solidária da 2ª ré nos termos do art.º 491.º do Código Civil, como o prazo da prescrição da respectiva obrigação voltou a correr de novo a partir de 27 de Maio de 2019 devido à interrupção e suspensão, até à data da intenção da presente acção ainda não foi decorrido o prazo de 3 anos, o direito da acção do autor não ficou caducado.
36. Todavia, o Tribunal a quo não selecionou nem instruiu os factos juridicamente relevantes para a interrupção e suspensão do prazo da prescrição (designadamente, a existência da acção anteriormente intentada), ignorando totalmente a interrupção e suspensão do prazo da prescrição e rejeitando a acção intentada contra a 2ª ré por ser decorrido o prazo da prescrição.
37. Face ao exposto, por um lado, o Tribunal a quo aplicou erradamente a regra da prescrição de 3 anos por força dos art.ºs 492.º e 491.º do Código Civil, por outro lado, não se pronunciou sobre os factos da eventual existência da suspensão e interrupção da prescrição, enfermando dos vícios da aplicação errada da lei e da omissão do conhecimento, assim, a decisão do Tribunal a quo deve ser revogada.
Pela 2ª Ré relativamente ao recurso interposto pelo Autor quanto à decisão sobre a excepção da prescrição foram apresentadas contra-alegações pugnando para que fosse negado provimento ao recurso.
Vindo a final a ser a acção julgada improcedente, veio o Autor interpor recurso da mesma apresentando as seguintes conclusões:
1. No caso vertente, o recorrente depositou, respectivamente em 3 de Junho, 19 de Junho e 1 de Setembro, todos de 2015, fichas de jogo no valor de HKD$3.000.000,00, HKD$2.000.000,00 e HKD$15.000.000,00, no “Sala VIP B (B貴賓會)”, entidade filial da 1ª ré (ora recorrida) B Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada (B娛樂一人有限公司). No entanto, em 9 de Setembro de 2015, foi-lhe recusado o pedido de levantar as faladas fichas. Portanto, instaurou, junto do TJB de Macau, processo comum ordinário de declaração, pedindo que a recorrida e a 2ª ré C Resorts (Macau), S.A lhe restituíssem, solidariamente, fichas no valor global de HKD$20.000.000,00 ou o equivalente em dinheiro, acrescido de juros de mora.
2. Realizado o julgamento, o Tribunal a quo considerou não provada a existência duma relação de depósito entre o recorrente e a recorrida, e não apurada a finalidade do depósito das fichas em causa, dando antes como provado, apenas, que o recorrente entregou à recorrida as referidas fichas. Razão pela qual, julgou a acção improcedente e absolveu a recorrida do pedido.
3. Salvo o devido respeito, o recorrente discorda da supramencionada decisão do Tribunal a quo, entendendo que a sua decisão da matéria de facto padece dos vícios de violação das regras da experiência comum, de contradição e insuficiência da fundamentação e de erro na apreciação da prova, os quais levam a uma errada convicção de facto, e defendendo ainda que a fundamentação da decisão incorre nos vícios de contradições manifestas, de violação da lei, de violação do princípio dispositivo e de excesso de pronúncia.
4. Para o cumprimento do disposto no artigo 599.º, n. 1, alínea a) do CPC, vem agora o recorrente impugnar a decisão de facto quanto aos quesitos 3.º, 4.º, 6.º e 8.º da base instrutória.
5. O Tribunal a quo, na fundamentação da decisão da matéria de facto, afirma não existir prova suficiente para afastar a dúvida deixada pela petição inicial do processo n.º CV3-16-0038-CAO anteriormente intentado pelo autor (fls. 147 a 163 dos autos) e pelo documento denominado “certidão do depósito por sócio” (fls. 414 a 416 dos autos), pelo que não colhe a versão do autor e das suas testemunhas de que o propósito da entrega das fichas foi a guarda das mesmas.
6. Salvo o devido respeito, entende o recorrente que a decisão do Tribunal a quo quanto aos falados quesitos 3.º, 4.º, 6.º e 8.º da base instrutória incorre nos vícios de violação das regras da experiência comum, de insuficiência e contradição da fundamentação e de erro na apreciação da prova. A seu ver, as provas produzidas nos autos, designadamente os talões de depósito de fichas, os depoimentos testemunhais e as provas documentais pertinentes, são suficientes para dar como provados os respectivos quesitos.
7. Na verdade, os talões de depósito de fichas juntos pelo recorrente à petição inicial podem comprovar que em 3 de Junho, 19 de Junho e 1 de Setembro, todos de 2015, na tesouraria da Sala VIP B, ele depositou na sua conta de membro fichas de jogo da C respectivamente no valor correspondente a três milhões, dois milhões e quinze milhões de dólares de Hong Kong.
8. Além disso, tal como referiram as testemunhas D e E na audiência, o recorrente efectuou, na companhia deles, depósito das respectivas fichas junto da Sala VIP B.
9. A esse respeito, a referida testemunha D depôs do seguinte modo:
Testemunha: Sim, entrei juntamente com ele. Entrámos e, lembro-me que fomos até ao fim, ao quarto do balcão para fazer o depósito, ele deu o número da sua conta e assim depositou os quinze milhões.
(vide gravação da audiência Recorded on 2020-10-12 at 10.20.21 25:57-28:14, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
10. E a testemunha E prestou o seguinte depoimento:
Testemunha: Porque trabalhei como gerente numa das salas VIP na C durante cinco anos. Tenho muitos amigos na C, voltava frequentemente para os visitar, também regressava quando os meus amigos jogavam na B. Naquele dia eu estava lá por acaso, e vi Hoi Ko (海哥) a ir para a tesouraria, feliz, com três peças de fichas na mão. Pelo que lhe perguntei “Hoi Ko, ganhou dinheiro?” Ele negou, dizendo ter retirado dinheiro de outra sala VIP para o depositar aqui, e que ia ter clientes mias tarde. E depois conversámos mais um pouco, não me lembro bem que foi antes ou depois de tomar café, e depois fomos comer juntos. Por isso me lembro.
…
Testemunha: Vi ele entrar na tesouraria com três peças, três peças de cor amarela. Aquando do processamento, virou a cabeça para conversar comigo. Vi-o assinar e receber o recibo. Na altura também estava presente o então gerente-geral F, que também assinou. Todos nos conhecíamos, assinaram, saudamo-nos e fomos embora.
(vide gravação da audiência Recorded on 2020-10-12 at 11.33.07 3:41-6:06, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
11. As respectivas testemunhas do autor também afirmaram que este último costumava e gostava de jogar com amigos. Daí que seja verdade que depositou as fichas para jogar. (A transcrição da gravação da audiência consta dos pontos 45 a 47 da conclusão)
12. No que toca à proveniência dos fundos, as testemunhas do autor afirmaram lapidarmente que ele explorava no interior da China actividades imobiliárias e comércio de vinhos, com património e rendimento elevados. O autor também apresentou os documentos bancários comprovativos de que onze milhões do referido montante foram empréstimos bancários pedidos por ele ao Banco Industrial e Comercial da China (ICBC).
13. Ademais, tal como referiu a testemunha G, após a Sala VIP B ter-lhe recusado a restituição das fichas em causa, tentou reclamar os prejuízos mediante advogado e também manifestou nas ruas.
14. O advogado constituído pela recorrida até propôs, por sua iniciativa, uma concordata de “desconto de 60 por cento” ao autor, na qual propôs pagar-lhe 8 milhões de dólares de Hong Kong para compensar os 20 milhões de fichas depositadas.
Advogado: Emitiu-se a carta, e depois a parte contrária propôs a concordata através de advogado.
Testemunha: Sim sim sim, B, sim, ofereceu-nos desconto de 60 por cento para os 20 milhões, ora aceitámos isto ora não recebemos nada, foi assim. Dissemos que não íamos aceitar isto, e eles disseram-nos para intentar acção judicial, 3,5 ou 7 anos, disseram isso.
Advogado: Aceitaram ou não?
Testemunha: Não, 60 por cento de desconto para 20 milhões, só 8 milhões para nós, disseram-nos para receber, mesmo que honrassem o seu compromisso, uma simples frase custar-nos-ia 12 milhões.
(vide gravação da audiência Recorded on 2020-10-12 at 11.33.07 31:37-32:46, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
15. Daí resulta que no início a recorrida também admitiu, indirectamente, o facto de o recorrente ter depositado fichas nela, e pretendeu alcançar, através do advogado, um acordo conciliatório a um preço relativamente baixo, para que o recorrente não reclamasse todo o montante depositado no futuro.
16. Nestes termos, o recorrente entende que os elementos constantes dos autos, depoimentos testemunhais e talões de depósito de fichas são suficientes para o Tribunal a quo dar como provado que ele depositou, para fins de jogo, na tesouraria da Sala VIP B fichas de casino no valor correspondente a 20 milhões dólares de Hong Kong. Logo, a decisão recorrida manifestamente incorre, na parte relativa à matéria de facto, nos vícios de violação das regras da experiência comum e de erro na apreciação da prova, os quais resultam num errado juízo quanto aos quesitos 3.º, 4.º, 6.º e 8.º da base instrutória.
17. Na fundamentação da sua convicção sobre os supra aludidos quesitos (3.º, 4.º, 6.º e 8.º), o Tribunal a quo defende que a existência dos documentos de fls. 414 a 416 e fls. 147 a 163 dos autos torna impossível a remoção da dúvida sobre a versão alegada pelo recorrente de que os depósitos em causa foram destinados aos jogos.
18. A ver do recorrente, a respeito dos falados documentos, o Tribunal recorrido incorre em errada compreensão e violação das regras legais sobre o ónus da prova.
19. Tal como antes se referiu, há nos autos provas suficientes de o autor ter entregue as referidas fichas à tesouraria da Sala VIP da 1ª ré para fins de jogo. A ré nunca negou isso, tampouco invocou que o depósito das fichas destinasse-se a outros propósitos (investimento ou participação social).
20. Embora a recorrida tenha apresentado os documentos intitulados «certidão do depósito por sócio» (fls. 414 a 416 dos autos), dos quais constam termos como “sócio”, “capital” e “dividendos”, etc.
21. A mesma nunca afirmou que as fichas depositadas pelo recorrente destinavam-se à participação social ou investimento.
22. De acordo com a certidão do registo comercial da recorrida, junta pelo autor à petição inicial, a recorrida é uma sociedade unipessoal limitada unica e sucessivamente detida por H, I, J e K. Até à entrada da presente acção, o sócio único K ainda detinha integralmente as quotas da recorrida.
23. No entanto, o nome do recorrente, ou seja, “A”, nunca apareceu no registo comercial da recorrida.
24. Tal como se refere no auto de inquirição do recorrente redigido na PJ, submetido pela recorrida aos autos, os depósitos das fichas não se destinaram à participal social na Sala VIP B.
25. Razão pela qual, o mero facto de se utilizar nos respectivos documentos termos como sócios, dividendos e capitais não basta para provar que o recorrente era sócio da mesma.
26. Na verdade, tendo sido emitida a muitos membros da Sala VIP B que nela tenham guardado fichas de jogo, a “certidão do depósito por sócio” não torna todos os destinatários sócios da mesma. Tal documento serviu de recibo, limitando-se a provar o valor das fichas depositadas pelo membro destinatário e que este tinha direito a bónus/comissões mais elevados do que os clientes normais.
27. A esse respeito, a testemunha D depôs do modo seguinte:
Advogado defensor: Quer dizer membro, quer dizer que se tornou cliente após a abertura de conta, certo? Mas não era sócio da B, certo? Não era sócio, certo?
Testemunha: Não era. Os membros tinham sua própria conta onde podiam depositar e levantar fichas, como as contas bancárias. Se não tivesse uma conta, as pessoas não sabiam onde iam depositar as suas fichas, nem a partir de qual conta iam levantar dinheiro. Pelo que era necessário abrir uma conta, confirmando o seu número de telefone, a sua assinatura, e algumas contas até tiveram senhas; só assim se podia levantar ou depositar dinheiro, mas ele não era sócio. (vide gravação da audiência Recorded on 2020-10-12 at 10.20.21 35:29-36:22, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
Advogado defensor: O senhor pode dizer-me as profissões dele fora do casino e dentro do casino?
Testemunha: Bem, fora(sic) do casino era colaborador do promotor. Abriu uma conta para que ele próprio pudesse jogar, e para angariar amigos para jogar para ganhar comissões e prémios. De acordo com o que sei, ele não ingressou em qualquer sala VIP enquanto sócio. Fora do casino, ele gostava muito de investir no sector imobiliário, e exercia com amigos do interior da China a actividade de produção de vinhos, e também gostava de fazer investimentos imobiliários no interior da China. Isso é o que eu sei. (vide gravação da audiência Recorded on 2020-10-12 at 10.20.21 41:45-42:26, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
28. Por conseguinte, a respectiva “certidão do depósito por sócio” não é, por si só, suficiente para que o Tribunal tenha concluído ou suspeitado que o recorrente era sócio da recorrida ou da sala VIP em causa. E a expressão “sócio” não devia ter comprometido a força probatória do respectivo talão de depósito nem levado à conclusão de que as fichas entregues pelo autor não se destinavam ao jogo.
29. Obviamente, o recorrente nunca foi sócio da recorrida nem da Sala VIP B.
30. No que tange aos “dividendos”, trata-se dum plano de oferta criado pela Sala VIP B para atrair clientes. De acordo com o plano, aqueles que depositarem fichas na Sala VIP B receberão uma correspondente oferta.
31. Compulsadas as recapitulações mensais das comissões (anexo 5 à petição inicial) atribuídas pelo Grupo B, constata-se que o recorrente também recebeu bónus/comissões de fichas atribuídos pela Sala VIP B.
32. Convém esclarecer que o recorrente tinha-se tornado membro e cliente frequente da Sala VIP B (pertencente à recorrida) muito antes de ter feito os três depósitos de fichas em questão, e que ao longo dos anos tem frequentado, frequentemente, casinos e salas VIP, fazendo nas suas tesourarias muitas trocas, depósitos e levantamentos de fichas.
33. A verdadeira razão por que o recorrente trocou, depositou e levantou fichas na tesouraria da Sala VIP B era para facilitar o seu jogo.
34. Foi exactamente devido às ofertas de bónus possibilitadas pela Sala VIP B que o recorrente decidiu lá ir jogar mais frequentemente e efectuar os três depósitos de fichas em causa.
35. A existência ou não do falado prémio ou comissão, ou o seu tamanho, só podia influenciar a escolha do recorrente no sentido de ir jogar para qual sala VIP, sendo no entanto indiferente para a verdadeira razão por detrás dos depósitos de fichas, isto é, para facilitar o jogo no local de depósito.
36. Razão pela qual, o Tribunal a quo não devia ter inferido, só da referida certidão do depósito por sócio, que as fichas depositadas em causa não se destinavam ao jogo, por ser evidente que o falado documento não é suficiente para provar tal asserção.
37. Diversas testemunhas especificaram as finalidades a que se destinavam as fichas depositadas pelo recorrente, incluindo facilitar os jogos dele próprio e os dos seus amigos e clientes. Veja-se abaixo os respectivos depoimentos:
38. A testemunha D:
Testemunha: Se esses chamados colaboraBs de promotor tiverem abrir conta, trarão clientes e parceiros para jogar, para divertir-se, ele próprio também vai participar, vai jogar, e as comissões de casino dependem do número dos clientes que trouxeram, a frequência disto e as quantias apostadas, quanto mais frequentemente um colaborador trouxer clientes, mais elevadas serão as suas comissões. Todas as salas VIP atribuem bónus a essas contas, se for alcançado um acordo entre as partes, o colaborador receberá mais bónus se as fichas por ele movimentadas mensalmente exceder um determinado número. (vide gravação da audiência Recorded on 2020-10-12 at 10.20.21 40:24-41:23, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
Testemunha: Pode dizer-se que todas as concessionárias do jogo fazem isso, mesmo no mercado de massa, persuadem as pessoas que não entrem nas salas VIP a abrirem contas e solicitarem cartões, e os comissões e bónus pagos pelas concessionárias variam em função do tamanho das apostas dos clientes, (não sei) se isso também é considerado bate-fichas, já que ele próprio também jogava, não é que o seu sustento dependia da actividade de bate-fichas, né, por isso, não posso dizer por ele, ou não tenho como julgar se ele era um bate-fichas, né, o seu sustento não dependia das comissões de bate-fichas. (vide gravação da audiência Recorded on 2020-10-12 at 10.20.21 43:20-45:02, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
39. A testemunha E:
Testemunha: Naquela altura as pessoas que jogavam nas salas VIP nos casinos costumavam depositar algum dinheiro na sala VIP para facilitar os seus jogos, se depois não quisessem mais jogar deslocariam as fichas para outra sala VIP, era muito comum, foi por isso que não fiquei curiosa.
…
Testemunha: Eu sabia que Hoi Ko tinha negócios no interior da China, ele e os seus amigos costumavam fazer grandes apostas, porque ele tinha jogado na minha sala VIP, por isso não fiquei surpreendida de ver ele movimentar o dinheiro deste modo, não fiquei curiosa.
…
Testemunha: Ele acompanhava os amigos a jogar, tinha amigos de negócios que lhe pediam para jogar juntos quando viessem a Macau, era assim. (vide gravação da audiência Recorded on 2020-10-12 at 11.33.07 22:26-27:33, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
40. E o depoimento da testemunha G:
Advogado defensor: Bem, a senhora já mencionou a PJ, mas antes disso gostaria de lhe perguntar, sobre os depósitos, porque vocês depositaram tanto dinheiro, ou porque o seu marido depositou tanto dinheiro? O que aconteceu?
Testemunha: Nada de especial aconteceu, ele trabalhava em casinos há mais de 20 anos, depositava dinheiro neles, eu sabia que ele próprio jogava, mas não sabia do tamanho das apostas, não me importava. Era preciso usar dinheiro quando os amigos viessem, e ele disse que muitos amigos viriam em Outubro, normalmente muitas pessoas vinham em Outubro.
Advogado defensor: Sim ~ mas a senhora disse, a senhora acabou de dizer que ele também foi ao banco(sic), ele também foi jogar, apostar dinheiro, mas o que o seu marido realmente fazia em casino?
Testemunha: Ele próprio jogava, em casino, o senhor perguntou-me o que ele fazia, isso não sei. Ele próprio jogava, e jogava com os amigos quando eles vinham, é isto que se faz no casino. É isto o que o senhor está a perguntar? Ou está a perguntar-me o que ele fazia no casino?
Advogado defensor: Porque a senhora mesmo disse que ele próprio também jogava, isto quer dizer que ele também fazia outras coisas no casino, por ele já lá estar há 20 anos, por isso gastaria de saber, o que ele fazia no casino?
Testemunha: Eu já disse que ele jogava, ele e os seus amigos jogavam juntos, jogavam juntos. Não sei outras coisas no casino. (vide gravação da audiência Recorded on 2020-10-12 at 12.17.23 37:17-39:25, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
41. Como resulta do acima exposto, várias testemunhas confirmam que o recorrente jogou frequentemente na Sala VIP B, e também acompanhou amigos e clientes a jogar.
42. Além disso, a razão nuclear do depósito das fichas foi exactamente para facilitar os jogos na Sala VIP em causa.
43. Portanto, não pode o Tribunal a quo sem prova em contrário considerar que o recorrente não depositou, mas antes só entregou as fichas, devendo, antes, dar como provado que o recorrente depositou as fichas junto da recorrida, com o propósito de jogar.
44. Por outro lado, convém notar que o acórdão recorrido também remete para a petição inicial do processo n.º CV3-16-0038-CAO (fls.147 a 163 dos autos) submetida pela recorrida, para fundamentar a sua convicção e juízo dos factos.
45. Importa reiterar que no supra referido processo n.º CV3-16-0038-CAO houve alguns mal-entendidos entre o recorrente e o seu mandatário judicial (devido à má tradução português-chinês e à má comunicação), dos quais resultou que os factos de depositar as fichas foram erradamente descritos, na dita petição inicial, como contratos de mútuo.
46. Por outras palavras, a causa de pedir do respectivo processo é diferente da do presente processo, sendo eles independentes entre si, e não podendo os factos alegados na petição inicial do primeiro servir de fundamento para se questionar os invocados na petição inicial do segundo.
47. Além disso, no processo anterior o pedido do ora recorrente foi rejeitado por não se lograr provar a existência de relação de mútuo entre ele e a ora recorrida.
48. Os factos invocados nos dois processos são diferentes. Ademais, no processo anterior meramente se julgou inexistente o mútuo, o que não afasta a possibilidade de existir entre as partes outra relação jurídica.
49. Da alínea D do Facto Provado resulta que a tesouraria da Sala VIP B fornece aos seus membros serviços de troca, depósito e levantamento de fichas, inter alia.
50. E consta da alínea F do Facto Provado que o número da conta de depósito de fichas que o recorrente abriu na “Sala VIP B” da C é: ....
51. Isto quer dizer que, qualquer membro pode depositar fichas na respectiva tesouraria, incluindo o recorrente.
52. Além disso, o Tribunal a quo deu como provado que o recorrente tinha entregue fichas na tesouraria da “Sala VIP B” e que, de cada vez que o fazia, o trabalhador da tesouraria emitia-lhe um “talão de depósito de fichas” com o valor correspondente para o efeito comprovativo.
53. No entanto, o mesmo Tribunal, ao decidir se o recorrente depositou fichas, fez a seguinte fundamentação: “…o termo “depositar” tem associada a ideia de confiar algo a outrem para guardar e o tribunal não alcançou a convicção de que fosse este o propósito do autor…”
54. Por um lado, o Tribunal recorrido deu como provado que o depósito de fichas era uma das funções da tesouraria da sala VIP em causa; por outro, considerou que os actos do recorrente de entregar as fichas não constituíam “depósito”.
55. Deste modo, parece que a supra citada fundamentação estar em desarmonia com a alínea D) acima referida.
56. Isto quer dizer que, ou as tarefas da respectiva tesouraria não se limitavam ao fornecimento dos serviços de troca, depósito e levantamento de fichas e de diversas facilidades aos membros, ou o recorrente estava a depositar fichas.
57. Logo, o recorrente entende existir manifestas contradições entre os factos dados com provados.
58. Face ao exposto, o recorrente é da opinião de que o Tribunal recorrido viola manifestamente as regras da experiência comum e padece do vício de erro na apreciação da prova, por as faladas certidão do depósito por sócio e petição inicial do processo n.º CV3-16-0038-CAO não bastar, por si sós, para ilidir a relação contratual de depósito demonstrada pelos respectivos talões de depósito de fichas, nem para concluir que o recorrente não depositou as fichas em causa com o propósito de jogar.
59. Ao considerar “não provado” os quesitos 3.º,4.º, 6.º e 8.º da base instrutória, o Tribunal impugnado ainda defende que o recorrente era jogador esporádico, o que não se compadece com o depósito de quantia tão avultada para facilitar o jogo, como faria um jogador frequente.
60. No entender do recorrente, essa fundamentação da convicção viola completamente as regras da experiência comum, carece de lógica e padece de contradições evidentes.
61. Primeiro, o facto de alguém ser um jogador esporádico não significa necessariamente que ele faça pequenas apostas; do mesmo modo, nem todos os jogaBs frequentes fazem grandes apostas.
62. Além disso, o valor das fichas depositadas não tem a ver com a frequência dos jogos.
63. O facto de o recorrente não ser um jogador frequente não lhe impede de fazer apostas de valor elevado.
64. Na verdade, o tamanho das apostas depende da capacidade do jogador. Tendo exercido actividades ligadas ao sector do jogo durante muitos anos, e enquanto explorador de diversos negócios no interior da China, o recorrente era obviamente capaz de fazer apostas maiores.
65. Razão pela qual, entende o recorrente que o juízo do Tribunal a quo sobre os factos deve ser ilidido por contradições evidentes que violam as regras da experiência comum.
66. Nestes termos, o recorrente entende que a convicção do Tribunal recorrido sobre os factos dos quesitos 3.º, 4.º, 6.º e 8.º da base instrutória padece dos vícios de erro na apreciação da prova e dos factos, de omissão de pronúncia e de violação das regras da experiência comum, razão pela qual deve ser alterada e passar a ser “provado”.
67. Há que portanto modificar a decisão sobre a supra exposta matéria de facto, para evitar a remessa dos autos em caso de procedência do recurso. Ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do CPC, o recorrente entende necessária a reapreciação dos depoimentos prestados pelas testemunhas D, E e G.
68. Refere-se na motivação do direito da sentença recorrida que:
“…Com efeito, o autor não alega que acordou com a ré entregar-lhe fichas de jogo para esta guardar e restituir quando o autor lhe solicitasse. Alegou apenas os factos materiais de depósito e de comprovação desse depósito…”
69. Salvo o devido respeito, o recorrente discorda dos fundamentos acima expostos e entende que estes incorreram em vícios de contradições manifestas, de violação da lei, de violação do princípio dispositivo e de excesso de pronúncia.
(IV) Depósito irregular
70. De acordo com os artigos 1111.º e 1131.º do CC, e tendo em conta o circunstancialismo do presente caso, o contrato em causa deve qualificar-se como contrato de depósito irregular.
71. Como nota o insigne Prof. Vaz Serra, «O contrato de depósito tem por objecto a guarda (custódia) de uma coisa. É esta a obrigação dominante no negócio: o depositário recebe a coisa para a guardar.»
72. Daí e do artigo 1113.º, alínea a) do CC resulta que o elemento constitutivo mais essencial do contrato de depósito é a guarda da coisa pelo depositário.
73. Todavia, não há juridicamente uma definição expressa sobre como determinar se o depositário está, ou não, a guardar a coisa depositada.
74. A esse respeito, escreve o ilustre Prof. Menezes Cordeiro, in «Direito das obrigações», que “O legislador não faz referência específica à diligência exigida à esta obrigação, pelo que parece que o depositário ficará sujeito à diligência de um bom pai de família, segundo as circunstâncias do caso, nos termos gerais (art.º 487.º, n.º 2), sendo assim efectuada uma apreciação em abstracto da diligência do depositário.”
75. De acordo com o circunstancialismo concreto do caso vertente, a guarda da coisa depositada começou a partir da entrega, pelo recorrente, das referidas fichas à Sala VIP B, que, por sua vez, passou a guardar as fichas desde a emissão, ao recorrente, do talão de depósito de fichas, devendo restituir-lhas quando fossem exigidas.
76. Na verdade, a entrega das fichas e a emissão do talão de depósito são o único facto externo do depósito das fichas.
77. Cumpre salientar que, emitem-se os talões de depósito de fichas para provar que o cliente tenha depositado na sala VIP fichas de valor correspondente.
78. É como depositar dinheiro nas instituições bancárias, sendo os dois actos praticamente idênticos, excepto que a Sala VIP B não tem licença bancária.
79. Se uma pessoa depositar dinheiro na sua conta bancária através do balcão do banco sem acordar com o funcionário que o dinheiro ser-lhe-á restituído quando o solicitar, será que isso leva a um acordo de outra natureza entre ele e o banco? A resposta é evidentemente negativa.
80. A simples palavra «depósito» dirigida ao funcionário bancário é naturalmente suficiente para chegar ao contrato de depósito com o banco, não sendo necessário adicionar que “guarde este dinheiro para mim” ou “restitua-mo quando eu o solicitar”, por se tratar do consenso geral.
81. Tendo em consideração a quase identidade entre a tesouraria da Sala VIP B e os balcões bancários a nível do seu modo de funcionamento, não há a mínima necessidade de chegar com a recorrida a um acordo adicional de “guarda” e “restituição quando exigida”, por se tratar dum hábito/uso de funcionamento do conhecimento geral, tanto no lado dos bancos como das salas VIP de Macau.
82. O supra mencionado facto do conhecimento geral é um facto notório que não precisa de ser alegado pelo recorrente.
83. Acresce que, a testemunha D também esclareceu um pouco a este sentido na audiência:
Testemunha: Era o mesmo que as outras salas VIP, vi ele dizer A, o número de conta, depositar fichas, e o tesoureiro perguntou-lhe quanto queria depositar, ele disse 15 milhões, e a seguir o tesoureiro procedeu à contagem das fichas dividindo-as em três filas, quer dizer 15 peças, 15 milhões, e depois foi emitido um talão, A levou-o, e saímos.
…
Testemunha: Com certeza, é como depositar dinheiro no banco, tem uma caderneta, posso ter o dinheiro de volta sempre que quiser.
(vide gravação da audiência Recorded on 2020-10-12 at 12.17.23 28:22-29:08, e 31:27 a 31:45, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
84. Por conseguinte, o recorrente entende que o Tribunal a quo devia ter considerado existente o contrato de depósito, ainda que as partes não tenham chegado a um acordo adicional sobre a guarda e a “devolução quando exigida”, e que o recorrente não tenha alegado o respectivo factualismo.
85. Ademais, nem a recorrida nem a 2ª ré deduziram na fase de articulado esse facto excepcional.
86. Prevê o artigo 5.º, n.º 1 do CPC que «Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções.»
87. Tal como reconhece Abrantes Geraldes, in «Temas da Reforma do Processo Civil», “Conforme dispõe o art.º 660º, n.º 2 o juiz está adstrito, em regra, às questões que sejam suscitadas pelas partes e, nomeadamente, aos meios de defesa invocados pelo réu.” (a referida norma corresponde ao artigo 563.º, n.º 2 do CPC de Macau)
88. Por outras palavras, os factos em que se alicerce a decisão devem ser suscitados pelas partes, não podendo ser considerados os factos que não sejam invocados pelas mesmas; e o juiz só está adstrito às questões suscitadas pelas partes e, nomeadamente, aos meios de defesa invocados pelo réu.
89. No caso em apreço, todavia, o Tribunal a quo afirmou que o recorrente e a recorrida não chegaram a acordo, quer quanto à “guarda” e quer à “restituição quando exigida”.
90. Não tendo a recorrida nem a 2ª ré invocado o supramencionado facto como excepção, o conhecimento do Tribunal a quo esteve adstrito aos meios de defesa invocados pela parte ré. Ou seja, não podia negar a existência da relação de depósito entre o recorrente e a Sala VIP B com base nesse facto.
91. Face ao exposto, por um lado, a decisão do Tribunal a quo não pode ter como fundamento que as partes não acordaram adicionalmente sobre a “guarda” e a “restituição quando exigido pelo recorrente” e nem que o facto não se encontra alegado no recurso, por se tratar dum facto notório; por outro lado, o Tribunal a quo ao conhecer duma questão que nunca foi suscitada pelas recorrida e 2ª ré e fazer dela uma parte indispensável da fundamentação da sua decisão violou o princípio dispositivo das partes.
92. Nestes termos, o recorrente entende que a decisão recorrida deve ser revogada por erro insanável da fundamentação e por conhecimento de questão de que não podia tomar conhecimento (artigo 571.º, n.º 1, alínea d), segunda metade, do CPC).
Pela 1ª Ré foram apresentadas contra-alegações com as seguintes conclusões:
1. Antes de mais, a Recorrida vê-se obrigada a levantar duas questões prévias, uma que se prende com a junção da transcrição integral dos depoimentos das testemunhas do Autor e a segunda, a maneira como as conclusões foram apresentadas pelo Recorrente,
2. Salvo melhor entendimento, a junção integral do depoimento das testemunhas, sem que o Recorrente tenha justificado tal junção, sequer identificado tal no corpo das alegações é um comportamento atentatório às boas práticas processuais e, assim, não deverá ser admitido,
3. Qualquer documento que seja junto com o articulado correspondente, deverá ser devidamente identificado, assim como, a junção deverá ser fundamentada, tal como nos termos prescritos no artigo 450,° do Código de Processo Civil mutatis mutandis, o que não sucedeu,
4. Ora, o Recorrente ao não cumprir com os ónus legais a que estava adstrito, tal deverá culminar com a transcrição integral dos depoimentos a ser dada por não escrita e deverá ser ordenado o desentranhamento da referida transcrição das alegações de recurso.
5. As conclusões como formuladas não são sucintas, violando, o disposto no artigo 598.º do Código de Processo Civil, socorrendo-se a Recorrida para os devidos efeitos, do Acórdão de 6 de Setembro de 2016 do Tribunal da Relação de Guimarães, que defende que as conclusões deverão apenas enunciar de forma clara e concisa os fundamentos do recurso.
6. Razão pela qual, com o devido respeito, as conclusões, não deverão ser admitidas, como foram redigidas, pela falta de síntese, ou, in extremis, não deverá haver lugar ao conhecimento do objecto do recurso.
7. O Recorrente discorda da maneira como o tribunal julgou os quesitos 3.º, 4.º, 6.º e 8.º da base instrutória, contudo, nunca indicando os(s) erro(s) de que a sentença recorrida padece apoiando-se para tal, nas normas jurídicas, i.e., artigo 599.º e artigo 556.º, n.º 5, ambos do Código de Processo Civil.
8. Salvo melhor entendimento, as alegações de recurso deverão ser alvo de convite ao aperfeiçoamento, ou in exiremis, ao não conhecimento do objecto do recurso.
9. O Autor, desta feita, sustentou a acção em três depósitos, alegadamente realizados juntos da Recorrida, isto porque, já havia intentado uma acção sob o n.º CV3-16-0038-CAO contra as mesmas Rés, mas colocando a tónica em relações de empréstimo.
10. A Recorrida entende, que, muito bem andou o tribunal a quo em dar como provados os quesitos sobre os quais o Recorrente agora reclama uma decisão diversa.
11. Relativamente ao 3.º quesito da base instrutória o tribunal a quo entendeu, e bem, não foi provado que a finalidade fosse “facilitar jogos”, pois o Autor não removeu a dúvida que surgiu com os documentos a fls. 147 a 163, 414 a 416, cópia da petição inicial “onde o autor afirmou que a sua finalidade era emprestar com remuneração dinheiro à primeira ré” e cópias de “documentos onde, com a assinatura do autor e sem que este negue a genuinidade nem a autoria, se refere que o autor, na qualidade de sócio, depositou dinheiro na primeira ré com a finalidade de receber dividendos.”
12. Relativamente aos restantes quesitos, o tribunal referiu “... Quanto aos termos “depositou” constante dos quesitos 4.º,6.º e 8.º e “entregou”, constante das respostas dadas pelo tribunal, a convicção do tribunal formou-se nos termos já referidos quanto ao quesito 3.º a propósito dos conceitos depositar e entregar.”
13. Conforme decorre da prova testemunhal, e contrariamente ao alegado pelo Recorrente, as testemunhas do Recorrente não foram capazes de convencer o tribunal de que o Autor havia depositado fichas em numerário num total de HKD$20,000,000.00 (vinte milhões de dólares de Hong Kong).
14. A testemunha D, em várias instâncias do seu depoimento disse que tinha visto o depósito, ainda que não de perto. Contudo, também refere em sede de contra-instância que não tinha visto o Autor assinar o talão de depósito, mas refere o seguinte, Recorded on 12 October 2020 Translator 1 at 10.20.21, aos 49minutos e 41segundos refere a instâncias do seu depoimento: “Na B eu nunca tinha praticado esses actos [de depósito]” ... que o Autor tinha. Eu não sei se A chegou a assinar. Eu não verifiquei. Eu não cheguei a presenciar.
15. Dizendo mais à frente a testemunha quando questionada se estava familiarizada com os procedimentos da Recorrida, Recorded on 12 October 2020 Translator 1 at 10.20.21, à lhora, 54minutos e 45segundos “Como é que ela funciona, eu não sei porque eu não tenho conta.”
16. Já a testemunha, E, amiga do Autor, lembra-se dos acontecimentos pois, o Autor estava muito contente nesse dia, conforme o relata a Recorded on 12 October 2020 Translator 1 at 11.33.07, aos minutos 05 e 01segundos.
17. Pasme-se, volvidos quase 5 anos sobre os acontecimentos, a testemunha conseguese recordar deste encontro com este amigo, mas o que teve de tão memorável ou de tão diferente, sendo que foi um dia como outro qualquer, não se conseguiu apurar, até porque novamente a instâncias do depoimento, já em sede de contra-instância, a testemunha refere que tinha sido uma “mera casualidade” ter encontrado o Autor naquele dia, Recorded 12 October 2020 Translator 1 at 11.33.07, 16minutos e 46segundos.
18. Finalmente, e relativamente à última testemunha, G, mulher do Autor, conforme decorre da passagem em sede de contra instância da mandatária da 1ª Ré, Recorded 12 October 2020 Translator 1 at 11.33.07, aos 34minutos e 45segundos, a testemunha não viu nem presenciou nenhum depósito por parte do Autor, ora Recorrente.
19. Foram transcritas inúmeras passagens dos depoimentos das referidas testemunhas, mas que em nada vieram acrescentar aos autos, nem podia, porque são declarações vazias de conteúdo e nas quais nunca o tribunal a quo se poderia apoiar, de modo a suportar a pretensão do Recorrente! (sublinhado e negrito nosso)
20. Não obstante as diversas tentativas do Recorrente de tentar afastar o ónus de prova que impedia sobre este, ou seja de prova do depósito, entendendo que o tribunal se apoiou em documentos como (acção previamente intentada pelo Autor mas com base num empréstimo e certificado de sócio a fls. 147 a 163 e 414 a 416 dos autos), facto é que prova documental abunda e no sentido contrário ao da pretensão do Autor.
21. Prova disso são os documentos indicados pelo tribunal, fls. 147 a 163, 414 a 416, cópia da petição inicial e cópia de declarações prestadas pelo Autor junto da Polícia Judiciária, fls. 410 a 416 dos autos, sendo que em ambos os documentos em que nada é dito no sentido de ter depositado qualquer montante pelo Autor junto da B.
22. E não colhe, o alegado pelo Recorrente que tudo (primeiro empréstimos e depois depósitos) se deve a “desentendimentos” ou “falhas de comunicação” com o anterior mandatário.
23. Tais “desentendimentos ou falhas de comunicação” a terem existido, não relevam para os presentes autos nem são argumento que possa ser esgrimido junto destes autos porque estamos a trazer factos alheios ao tribunal e à Recorrida e, pertinentes a um anterior mandatário que não é parte nos autos!
24. A isto acresce que, os talões de depósito apresentados pelo Autor, datados de 3 de Junho de 2015, 19 de Junho de 2015 e 1 de Setembro de 2015, em nenhum deles consta a assinatura do Autor.
25. Sequer, foi elaborado um Relatório de Operações de Valor Elevado (ROVE) sobre estes montantes, nos termos da secção 6 da Instrução n.º 2/2006, conforme se se alcança pelo ofício emitido pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ), a fls. 361 dos autos, em que é atestado que não foi elaborado qualquer ROVE respeitante aos montantes peticionados pelo Autor no período compreendido entre 3 de Junho de 2015, 19 de Junho de 2015 e 1 de Setembro de 2015.
26. O Recorrido teria que ter feito prova cabal e suficiente de que havia depositado aqueles montantes junto da ora Recorrida, com que finalidade, e, cremos, salvo melhor entendimento que, não é através da prova testemunhal apresentada que o logrará. Muito menos quando conjugada com a prova documental, já atrás melhor identificada e dilucidada.
27. Ainda que assista e impere o princípio de livre apreciação de prova, nos termos do artigo 437.º do Código de Processo Civil, na dúvida sobre a realidade de um facto e repartição do ónus, tal dúvida resolve-se contra que aproveita o facto, ou seja, o facto àproveita-se contra o Autor.
28. Por fim, socorremo-nos da sentença final quando diz, “A qualificação dos negócios jurídicos depende da vontade negocial dos respectivos sejutos. É nessa vontade negocial que se há-de encontrar a natureza do negócio, Não tendo sido alegada, nem se tendo provado aquela vontade negocial, o passo seguinte a dar na tentativa de qualificar a relação negocial é revisitar as normas de interpretação do negócio jurídico ou da declaração negocial...”.
29. Para mais à frente dizer: “Cabe ao autor alegar e provar os factos que habilitem o tribunal a encontrar o regime jurídico que deve solucionar a controvérsia das partes. Não o fez. Sibi imputet.”
30. Pelo que, muito bem andou o tribunal a quo ao julgar improcedente a acção, por não provada, devendo por todo o exposto, o recurso apresentado pelo Recorrente não merecer provimento e manter-se a decisão proferida pelo tribunal a quo.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
São vários recursos interpostos, a saber:
- Recurso do despacho que julgou improcedente a excepção do caso julgado;
- Recurso do despacho que reconheceu prescrito o direito do Autor relativamente à 2ª Ré absolvendo esta do pedido;
- Recurso da decisão final.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a. Dos factos
Na decisão recorrida foi dada por assente a seguinte factualidade:
a) Em 24/06/2006, a 2.ª Ré, C RESORTS (MACAU), S.A., na qualidade de concessionária, celebrou, com o Governo da Região Administrativa Especial de Macau, um Contrato de Concessão para a Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar ou Outros Jogos em Casino na RAEM (cfr. B.O. da RAEM n.º 27, de 2002); assim, passou a ser companhia concessionária de jogos de fortuna e azar.
b) Depois, com autorização e consentimento da 2.ª Ré, a 1.ª Ré passou a promotora de jogos em casino C da 2.ª Ré.
c) A 1.ª Ré, com autorização e consentimento da 2.ª Ré, exercia a actividade de promotora de jogos e operava, no casino C, uma sala VIP/Jogos, denominada “Sala VIP B”.
d) Do mesmo modo, com autorização e consentimento da 2.ª Ré, a 1.ª Ré explorava, na “Sala VIP B”, uma tesouraria para a prestação de serviços de troca, depósito, levantamento de fichas e fornecimento de várias facilidades aos seus membros.
e) e) Segundo o contrato e o acordo de promotora de jogos, celebrados entre a 1.ª e 2.ª Rés, as duas Rés acordaram, ainda, em comparticipar (na proporção de 40% para a 1.ª Ré e de 60% para a 2.ª Ré, respectivamente) as receitas de jogo, provenientes dos clientes da “Sala VIP B”, bem como responsabilizar-se, conjuntamente, pelos valores ganhos e perdas, verificados nas mesas de jogo da dita sala.
f) F era responsável pela supervisão do funcionamento da tesouraria da “Sala VIP B”.
g) O número da conta de membro para depósito de fichas de jogo, aberta pelo Autor na “Sala VIP B”, da C, é ....
h) A partir de Março de 2014 até à presente data, a 1ª. Ré é detida unipessoalmente por K, único administrador.
i) Segundo o contrato e o acordo de promotora de jogo, celebrados entre a 1.ª e 2.ª Rés, era da responsabilidade da 1.ª Ré ajudar a 2.ª Ré a promover, acompanhar e angariar clientes para jogar no casino C (quesito 1º).
j) A partir de 2006, a 1.ª Ré explorava, sob a forma de colaboração, a “Sala VIP B” acima referida (como alegado na alínea E) dos Factos assentes e no 1.º quesito da Base Instrutória) no casino C, pertencente à 2.ª Ré.
k) O Autor entregava com frequência fichas na tesouraria da “Sala VIP B”, da C e cada vez que o Autor entregava fichas o trabalhador da tesouraria da 1.ª Ré emitia-lhe um “talão de depósito das fichas” com o valor correspondente para efeito comprovativo.
l) Em 03/06/2015, o Autor entregou pessoalmente fichas numerárias da C no valor correspondente a HKD$3.000.000,00 no balcão da tesouraria da “Sala VIP B”.
m) O trabalhador da tesouraria da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré, depois de ter feito devidamente a contagem e de ter recebido as fichas numerárias, no valor de HKD$3.000.00,00, emitiu logo ao Autor, para o efeito comprovativo, o talão de depósito de fichas, em nome da “Sala VIP B”, no montante de HKD3.000.000,00, cuja pública-forma, constante das fls. 82 a 83 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, talão esse assinado por dois trabalhadores presentes na tesouraria de B, com aposição do carimbo da companhia da 1.ª Ré, para confirmação, sendo um desses trabalhadores F, supervisora da tesouraria da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré.
n) Em 19/06/2015, no casino C, o Autor entregou pessoalmente fichas numerárias da C no valor de HKD$2.000.000,00 no balcão da tesouraria da “Sala VIP B” (quesito 6º).
o) O trabalhador da tesouraria da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré, depois de ter feito devidamente a contagem e após ter recebido as fichas numerárias, no valor de HKD$2.000.00,00, emitiu logo ao Autor, para o efeito comprovativo, o talão de depósito de fichas, em nome da “Sala VIP B”, no montante de HKD2.000.000,00, cuja pública-forma, constante das fls. 84 a 85 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, talão esse assinado por dois trabalhadores, presentes na tesouraria de B, com aposição do carimbo da companhia da 1.ª Ré para confirmação, sendo um desses trabalhadores F, supervisora da tesouraria da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré.
p) No dia 01/09/2015, o Autor entregou pessoalmente fichas numerárias da C no valor de HKD$15.000.000,00 no balcão da tesouraria da “Sala VIP B” (quesito 8º).
q) O trabalhador da tesouraria da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré, depois de ter feito devidamente a contagem e após ter recebido as fichas numerárias, no valor de HKD$15.000.00,00, emitiu logo ao Autor, para o efeito comprovativo, o talão de depósito de fichas, em nome da “Sala VIP B”, no montante de HKD15.000.000,00, cuja pública-forma, constante das fls. 86 a 87 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, talão esse assinado por dois trabalhadores, presentes na tesouraria de B, com aposição do carimbo da companhia da 1.ª Ré para confirmação, sendo um desses trabalhadores F, supervisora da tesouraria da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré.
r) A supervisora da tesouraria, F, exercia principalmente funções de: liderar, instruir, gerir horários, o conteúdo e o âmbito das competências dos trabalhadores da tesouraria de “B”, aceitar depósitos de fichas dos membros e emitir os respectivos talões de depósitos de fichas.
s) Em 09/09/2015, o Autor deslocou-se à tesouraria da “Sala VIP B” da C, explorada pela 1.ª Ré, para solicitar o valor de HKD$20.000.000,00 que ali entregara em fichas numerárias, o que lhe foi recusado pelo trabalhador da tesouraria da 1.ª Ré.
t) Em 11/09/2015, o Autor voltou a descolar-se à tesouraria da “Sala VIP B”, da C, para solicitar novamente ao trabalhador da 1.ª Ré o valor de HKD$20.000.000,00 que ali entregara em fichas numerárias, mas tal foi-lhe igualmente recusado.
u) Em 03/12/2015, o Autor, através do seu advogado representante, emitiu à 1.ª Ré a carta de “interpelação extrajudicial” cuja cópia se mostra junta a fls. 96 a 98 e cujo teor aqui se dá por reproduzido, designadamente comunicando e solicitando à 1.ª Ré o valor de HKD$20.000.000,00.
v) O Autor não teve provimento na primeira acção intentada sob o n.º CV3-16-0038-CAO e vem agora intentar nova acção com os mesmos talões de depósito no montante de HKD$20.000.000,00, e vem pedir a condenação solidária da 1ª. e 2ª. Rés no pagamento da quantia de HKD$20.000.000,00.
w) F era responsável pela gestão do funcionamento da tesouraria da “Sala VIP B”.
b. Do Direito
Do recurso interposto do despacho que julgou improcedente a excepção do caso julgado.
É o seguinte o teor do despacho recorrido:
«- Excepção de caso julgado
As Rés invocaram a excepção de caso julgado, alegando que se verificaram uma repetição da causa entre a presente acção e a acção autuada sob o n.º CV3-16-0038-CAO.
O Autor entende que não se verifica a excepção de caso julgado visto que a causa de pedir invocada nesta acção não é igual à causa de pedir invocada na acção sob o n.º CV3-16-0038-CAO.
A excepção do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 416.º/2 do CPC).
A verificação de excepção de caso julgado pressupõe a repetição da causa (artigo 416.º/1 do CPC).
Se a repetição de causa se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar a excepção do caso julgado (artigo 416.º/1 do CPC).
Como a sentença proferida na acção ordinária n.º CV3-16-0038-CAO já transitou em julgado (fls. 146), a excepção em causa é o caso julgado e não litispendência.
Segundo o artigo 417.º/1 do CPC, repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
O n.º 2 a 4.º do artigo 417.º do CPC estabelece o que se entende por identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (artigo 417.º/2 do CPC).
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (artigo 417.º/3 do CPC).
In casu, não subsiste dúvidas de que se verifica a identidade de sujeitos entre a presente acção e a acção que corre os termos no processo n.º CV3-16-0038-CAO porquanto as partes das duas acções são as mesmas.
O Autor, nas duas acções, como pedido principal, pede que as Rés sejam condenadas solidariamente no pagamento do montante de HK$20,000,000.00.
Portanto, não há também dúvidas de que se verifica também a identidade de principal pedido formulado pelo Autor nas duas acções.
Contudo, entendemos que não se verifica a identidade de causa de pedir.
Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (artigo 417.º/4 do CPC).
A causa de pedir é integrada pelos factos necessários para fundamentar o direito ou interesse invocado pela parte e o pedido por ela formulado; é integrada pelos factos essenciais para individualizar a situação subjectiva alegada. E são essenciais aqueles factos sem cuja verificação o pedido não pode ser julgado procedente1.
Nesta acção, o Autor invocou a celebração de 3 contratos de depósito com a 1.ª Ré, titulados pelos talões de depósito n.º ... e ..., ..., o incumprimento de obrigação de restituição de fichas depositadas por parte da 1.ª Ré, o facto de 1.ª Ré ser promotor de jogo da 2.ª Ré, C RESORTS (MACAU) S.A. e o incumprimento do dever de fiscalização que sobre a 2.ª Ré recaía quanto à actividade desenvolvida pela 1.ª Ré na sua sala de VIP como causa de pedir.
No processo n.º CV3-16-0038-CAO, o Autor invocou a celebração de 3 contratos de empréstimo com a 1.ª Ré, ora 1.ª Ré neste processo, o incumprimento de obrigação de restituição de importância mutuada por parte da 1.ª Ré, o facto de a 1.ª Ré ser promotor de jogo da 2.ª Ré, C RESORTS (MACAU) S.A. e o incumprimento do dever de fiscalização que sobre a 2.ª Ré recaía quanto à actividade desenvolvida pela 1.ª Ré na sua sala de VIP como causa de pedir. Mais alegou que a entrega da quantia mutuada foi feita através de depósitos em dinheiro, depósitos destes foram titulados pelos recibos de depósitos emitidos pela 1.ª Ré.
Dos factos alegados pelo Autor nas duas acções resultam claramente que o Autor alegou causa de pedir diferentes nas duas acções. Na presente acção, o que se alega é a relação jurídica resultante de contratos de depósito enquanto o que foi alegado noutra acção é a relação jurídica resultante de contratos de mútuo.
Depósito e mútuo são dois institutos jurídicos diferentes. Depósito é o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida (artigo 1111.º do CC). Mútuo é o contrato pelo qual uma parte empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artigo 1070.º do CC). Ou seja, depósito e mútuo implicam declarações negociais diferentes e as obrigações que nascem da relação de depósito e mútuo são diferentes. Não está por isso em causa o enquadramento jurídico ou qualificação jurídica da situação feita pelo Autor tal como defendido pela 2.ª Ré mas os factos essenciais e concretos para procedência do pedido de condenação. Cabe salientar que na acção de cumprimento, a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que deriva o direito de crédito e consequentemente o direito de obrigação. Tal como afirmado pelo Professor Alberto dos Reis, se eu peço o pagamento de 5 contos, com base num determinado contrato de empréstimo e mais tarde peço ao mesmo réu o pagamento de 5 contos, alegando que me são devidos como preços de certa venda, não há, entre duas acções, identidade de causa de pedir2.
Destarte, por o facto essencial de que deriva o direito de crédito de Autor ser diferente. i.e. a celebração dos contratos de depósito versus a celebração dos contratos de mútuo, podemos concluir que não existe a identidade de causa de pedir entre a presente acção e a acção que corre os seus termos no processo n.º CV3-16-0038-CAO.
Por último, cabe ainda dizer que o depósito de importância mutuada na conta aberta na 1.ª Ré, B ENTRETENIMENTO SOCIEDADE UNIPESSOAL LIMITADA, não é mais de que a forma de entrega de importância mutuada o que não interfere a natureza de declaração negocial alegada, i.e. mútuo.
Pelo tudo exposto, por não existir a identidade de causa de pedir, julga-se improcedente a excepção de caso julgado.».
Mostra-se relevante para apreciar a questão em litígio comparar o que se invoca na p.i. que deu origem a estes autos e o que se invocava na p.i. do processo que correu termos sob o nº CV3-16-0038-CAO.
Nestes autos consta da p.i. o seguinte:
«(11) Em Abril de 2015, o Autor passou a ser membro da “Sala VIP B”, da C, com conta de membro para depósito de fichas sob o n.º ... e assinou um boletim de abertura da conta do membro. (cfr anexo 4, a cópia do boletim de abertura da conta do membro da “Sala VIP B”, da C)
(12) Depois, o Autor de vez em quando, ia sozinho ou acompanhado de amigos à “Sala VIP B”, da C para jogar e, através da aludida conta, efectuava depósito, a troca e o recebimento das comissões de “rolling” das fichas (cfr anexo 5, os extractos mensais das comissões emitidos pela 2.ª Ré, extraviaram-se a maior partes dos extractos).
(13) Para facilitar os jogos, o Autor depositava, com frequência, fichas na tesouraria da “Sala VIP B”, da C; cada vez que o Autor depositava as fichas, o trabalhador da tesouraria da 1.ª Ré, emitia-lhe um “talão de depósito das fichas” com valor correspondente, para o efeito comprovativo.
(14) Sempre que o Autor levantava as fichas, seria necessário devolver o respectivo “talão de depósito das fichas” ao trabalhador da tesouraria da “Sala VIP B”.
(15) Em 03/06/2015, o Autor depositou, pessoalmente, fichas numerárias da C, no valor correspondente a HKD$3,000.000,00 junto do balcão da tesouraria da “Sala VIP B”, na sua conta de depósito das fichas n.º ....
(16) O trabalhador da tesouraria da “Sala VIP B”, da l.ª Ré, depois de ter feito devidamente a contagem e de ter recebido as fichas numerárias atrás referidas, emitiu logo ao Autor, para o efeito comprovativo, o anexo 6, isto é, o talão de depósito das fichas (para os devidos efeitos jurídicos, aqui se dá por integralmente reproduzido); de que consta o valor de HKD$3.000.000,00, fora assinada por dois trabalhadores, presentes da tesouraria de B, com aposição do carimbo da companhia da 1.ª Ré para confirmação, sendo um desses trabalhadores F, supervisora da tesouraria da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré.
(17) Depois, em 19/06/2015, no casino C, o Autor depositou, pessoalmente, do mesmo modo e de novo, uma quantia de HKD2.000.000,00 em fichas numerárias da C, junto do balcão da tesouraria da “Sala VIP B”, da C, na sua conta de depósito das fichas n.º ....
(18) O trabalhador da tesouraria da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré, depois de ter feito devidamente a contagem e após ter recebido as fichas numerárias, atrás referidas e emitiu logo ao Autor, para o efeito de comprovativo, o anexo 7, isto é, o talão de depósito das fichas (para os devidos efeitos jurídicos, aqui se dá por integralmente reproduzido); de que consta o valor de HKD$2.000.000,00, fora assinada por dois trabalhadores, presentes da tesouraria de B, com aposição do carimbo da companhia da 1.ª Ré para confirmação, sendo um desses trabalhadores F, supervisora da tesouraria da “Sala VIP B”, da l.ª Ré.
(19) Depois, no dia 01/09/2015, no casino C, o Autor depositou, acompanhado pelo seu amigo, D, do mesmo modo e de novo, uma quantia de HKD15.000.000 em fichas numerárias da C, junto do balcão da tesouraria da “Sala VIP B”, da C, na sua conta de depósito das fichas n.º ....
(20) O trabalhador da tesouraria da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré, depois de feito devidamente a contagem e após ter recebido as fichas numerárias, atrás referidas, emitiu logo ao Autor, para o efeito de comprovativo, o anexo 8, isto é, o talão de depósito das fichas (para os devidos efeitos jurídicos, aqui se dá por integralmente reproduzido); de que consta o valor de HKD$15.000.000,00, fora assinada por dois trabalhadores presentes da tesouraria de B, com aposição do carimbo da companhia da 1.ª Ré para confirmação, sendo um desses trabalhadores F, supervisora da tesouraria da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré.
(21) Assim, até à data de instauração da presente acção, o Autor depositou um valor total de HKD$20.000.000,00, de fichas numerárias da C, na sua conta de depósito de fichas n.º ....
(22) O aludido valor total de HKD$20.000.000,00 de fichas numerárias da C depositado pelo Autor, provinha dos depósitos feitos pelo Autor, junto das duas salas de jogos, nomeadamente, “X International Club” e “X Group”,
(…)
(24) Além do mais, consta no espaço de “Assinatura da testemunha presencial” dos três talões de depósitos de fichas atrás referidos, emitidos pela “Sala VIP B”, o carácter “Chao”, assinado pela supervisora presente, da “Sala VIP B”, da 1.ª Ré, ou seja, F.».
No processo que correu termos sob o nº CV3-16-0038-CAO consta da p.i. o seguinte:
«6º
No decurso da relação de confiança que se estabeleceu entre o Autor e a 1ª Ré, na pessoa dos seus responsáveis e colaboraBs, foram-lhe solicitados por ela, e efectivamente concedidos pelo Autor, três empréstimos em numerário,
7º
Empréstimos onerosos, retribuídos com uma taxa de juro de 2% ao mês,
8º
Tendo o primeiro empréstimo sido concedido pelo Autor em 3 de Junho de 2015, no valor de HKD3.000.000,00, correspondentes a MOP3.090.047,30 (três milhões noventa mil e quarenta e sete patacas e trinta avos) – Doc. 4.
9º
O segundo teve lugar no dia 19 de Junho de 2015, no valor de HKD2.000.000,00, correspondente a MOP2.060.031,60 (dois milhões sessenta mil e trinta e uma patacas e sessenta avos) – Doc. 5,
10º
E o terceiro empréstimo foi concedido no dia 1 de Setembro de 2015, no valor de HKD15.000.000,00, correspondente a MOP15.450.236,00 (quinze milhões quatrocentas e cinquenta mil e duzentas e trinta e seis patacas) – Doc. 6,
11º
Totalizando os três empréstimos a importância global de HKD20.000.000,00, correspondente a MOP20.600.314,90 (vinte milhões seiscentas mil e trezentas e catorze patacas e noventa avos).
12º
Como se constata do exame dos documentos 4 a 6, todos eles constituem Recibos de Depósito emitidos pela 1ª Ré,
13º
Que titulam o depósito em dinheiro por parte do Autor dos montantes deles constantes em benefício da 1ª Ré,
14º
Na conta de cliente do Autor nº ... junto da 1ª Ré,
15º
Mostrando-se os mencionados Recibos de Depósito subscritos por um empregado da tesouraria da 1ª Ré e por uma testemunha da sala,
16º
E neles se mostrando igualmente aposto o carimbo da 1ª Ré.».
A questão a decidir no caso em apreço – da existência de caso julgado – resulta da resposta que se der quanto à identidade de causas de pedir.
Para o efeito, impõe-se identificar o que se entende por causa de pedir.
Sendo a causa de pedir a par com o pedido, um elemento constitutivo do objecto do processo, a sua definição está longe de ser unânime na Doutrina.
Maria França Gouveia em “A Causa de Pedir Na Acção Declarativa”, Colecção teses, Almedina, Coimbra 2004, de forma exaustiva e para cuja leitura se remete, trata o assunto.
Distinguindo aquela Autora entre teses monistas e pluralistas, para a teses monistas identifica 3 grupos de noções, sendo que:
- Um deles identifica a causa de pedir com a qualificação jurídica dos factos, conceito que vem a ser abandonado uma vez que apenas faz sentido quanto ao principio dispositivo – instituto com o qual a o conceito de causa de pedir também esta relacionado;
- Um outro grupo que identifica a causa de pedir como o conjunto de factos naturais adquiridos no processo, teoria que também vem a ser abandonada porque a selecção dos factos naturais pressupõe também uma pré-decisão quanto à norma aplicável, sendo que a importação dos factos naturais já pressupõe uma instrumentalização jurídica dos mesmos para a acção, pelo que se entende que este critério também não é praticável;
- Um terceiro grupo que entende a causa de pedir como o conjunto dos factos essenciais, a qual é a posição unânime na doutrina portuguesa, a qual por sua vez é também fonte de interpretação do direito em Macau.
Sobre esta matéria veja Autora e Obra citada a pág. 77 a 80:
«2. Na doutrina portuguesa esta é a posição unânime, normalmente fundamentada no artigo 498.º n.º 4 e quase sempre referenciada à tese da substanciação.
Manuel de Andrade, entendendo que a nossa lei aderiu à teoria da substanciação, define causa de pedir como “acto ou facto jurídico (contrato, testamento, facto ilícito, etc.) donde o Autor pretende ter derivado o direito a tutelar; o acto ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito.”
Na versão de Alberto dos Reis, “ A causa de pedir é o acto ou o facto central da demanda, o núcleo essencial de que emerge o direito do autor ...”
Já Castro Mendes se detém um pouco mais na noção, aproximandose ligeiramente da versão naturalista: a causa de pedir identifica o processo - deve ser alegada de forma a identificar suficientemente um acto ou facto. Aqui há uma certa margem de arbítrio: se o acto for nominado basta o nomen iuris; se inominado, exige-se maior detalhe. Neste último caso a descrição limita-se funcionalmente, isto é, há que identificar o facto ou o acto jurídico de que procede a pretensão em juízo. Castro Mendes é, porém, claro ao dizer, logo de seguida, que a causa de pedir só pode ser alegada com base na sua qualificação jurídica.
Estas definições de causa de pedir não são porém suficientes para esclarecer o problema e aplicar a noção. No momento da concretização do conceito, as dificuldades surgem, oscilando-se sempre entre uma maior ou menor qualificação dos factos. Por outro lado, atendendo à possibilidade de alteração da qualificação inicial pelo tribunal, esta concepção fica ainda mais comprometida.
As posições mais recentes procuram, pois, ainda que na mesma linha, um conceito mais preciso e capaz.
Miguel Teixeira de Sousa entende que “a causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a situação jurídica alegada pela parte e para fundamentar o pedido formulado para essa situação. A causa de pedir é composta pelos factos constitutivos da situação jurídica invocada pela parte, isto é, pelos factos essenciais à procedência do pedido. São essenciais aqueles factos sem cuja verificação o pedido não pode ser julgado procedente.”
O autor, porém, prevendo as dificuldades advenientes da alteração da qualificação jurídica, afirma que “os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma norma jurídica, mas valem independentemente dessa qualificação.”
Mais recentemente, Miguel Teixeira de Sousa, identificando a causa de pedir com os factos essenciais, define-os como aqueles que “permitem individualizar a situação jurídica alegada na acção”. Os exemplos que apresenta reconduzem os factos essenciais a uma única previsão normativa.
Diz também o autor que os factos serão essenciais segundo um critério de classificação relativo, ou seja, só mediante um certo objecto processual se poderá saber se determinado facto é essencial, complementar ou instrumental.
Este entendimento encerra na sua formulação um ciclo vicioso. É que se os factos essenciais se determinam através da causa de pedir, e se essa causa de pedir constitui um dos elementos do objecto, para determiná-lo é necessária ... a causa de pedir. Ou seja, precisa-se do objecto para determinar a causa de pedir e da causa de pedir para determinar o objecto.
(…)
Lebre de Freitas utiliza também, para a sua definição de causa de pedir, o conceito de previsão da norma jurídica, “matizado porém com a ideia de que o acontecimento da vida narrado pelo autor é susceptível de redução a um núcleo fáctico essencial, tipicamente previsto por uma ou mais normas materiais como causa do efeito pretendido.”
Numa definição mais recente, diz que a causa de pedir é “o facto constitutivo da situação jurídica material que [o autor] quer fazer valer”, tratando-se do “facto concreto que o autor diz ter constituído o efeito pretendido”.
Abrantes Geraldes define causa de pedir como aqueles “factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definiBs do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil” ou “é consubstanciada tão só pelos factos que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjectiva alegada pela parte.” Tendo consciência que a enunciação da noção não é, porém, suficiente, exemplifica com maior ou menor grau de concretização o que deve ser a causa de pedir em determinados tipos de acções: nas acções baseadas em contratos; nas acções constitutivas em geral; nas acções de anulação e declaração de nulidade, etc., etc..».
Continuando a acompanhar a mesma Autora as teses pluralistas não vão mais longe do que as noções das teses monistas, apenas com a especialidade de que os conceitos podem variar consoante os princípios processuais, a espécies de acções ou os institutos a aplicar.
No caso em apreço a questão haverá que ser resolvida de acordo com o instituto do caso julgado por ser aquilo que importa decidir.
O facto natural que subjaz a esta acção e àquela outra que correu termos sob o nº CV3-… consiste na entrega pelo Autor na tesouraria da sala VIP B das quantias de HKD3.000.000,00, HKD2.000.000,00 e HKD15.000.000,00 conforme resulta das alíneas k) a q) da factualidade apurada, as quais são tituladas pelos mesmos documentos conforme resulta do confronto de fls. 82 a 87 e 164 a 166.
Ou seja, para melhor concretizar temos três entregas de fichas de jogo tituladas por documentos identificados, que o Autor pretende que lhe sejam devolvidos que são o facto natural subjacente a estes autos e aquele outro que correu termo sob nº do CV3-… já antes identificado.
Porém, como já antes se viu, nem a teoria dos factos naturais nem a da qualificação jurídica são suficientes para definir o conceito de causa de pedir.
O melhor exemplo disso volta a ser a comparação entre estas duas acções.
Na acção que correu termos sob o nº CV3-..., perguntava-se nos quesitos 2 a 5 da Base Instrutória o seguinte:
«2.
A 3 de Junho de 2015 a A. declarou emprestar e entregou o valor de HKD3.000.000,00, correspondentes a MOP3.060.047,30, à 1ª R., e esta aceitou-o, tudo conforme doc. 4 junto com a p.i. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos?
3.
A 19 de Junho de 2015 A. declarou emprestar e entregou o valor de HKD2.000.000,00, correspondentes a MOP2.060.031,60, à 1ª R., e esta aceitou-o, tudo conforme doc. 5 junto com a p.i. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos?
4.
A 1 de Setembro de 2015 a A. declarou emprestar e entregou o valor de HKD15.000.000,00, correspondente a MOP15.450.236,00, à 1ª R. e esta aceitou-o, tudo conforme doc. 6 junto com a p.i. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos?
5.
A 1ª R. declarou pagar à A. como retribuição dos valores que esta lhe entregou, e esta aceitou receber, uma taxa de juro de 2% ao mês?».
A resposta dada àquela matéria foi “Não Provado”, sendo a fundamentação da convicção do tribunal o seguinte:
«(…)
Em especial, sobre os factos se o Autor concedeu três empréstimos à 1ª Ré, do depoimento das testemunhas do Autor, ninguém tomou conhecimento do facto de empréstimo entre o Autor e a 1ª Ré nem presenciou a entrega do alegado montante pelo Autor à 1ª Ré por causa disso, os documentos de fls. 37 a 39 apenas constata que houve depósito das quantias aí mencionadas pelo Autor na tesouraria da 1ª Ré, assim, todas as provas produzidas não conduzem a existência da relação de empréstimo entre o Autor e a 1ª Ré e por causa disso foi-lhe entregue o montante declarado pelo Autor, nem da retribuição de juros, pelo que não se convence a veracidade dos factos alegados pelo Autor. Assim, deram-se como não provados os factos dos quesitos 2º a 5º.
(…)».
Ora, se atentarmos à convicção do tribunal, a razão de não se ter provado foi porque o tribunal entendeu que não se provou que “haja emprestado”, mas como da própria fundamentação resulta, não está em causa que não haja entregue. Porém, entendeu o tribunal que o facto essencial era o empréstimo e não a entrega da quantia.
Porém, aquilo que se invocou foi que A emprestou a B, tendo sido isso que se quesitou e respondeu-se que não se provou que emprestou, sem prejuízo de em sede de fundamentação se dizer que se constata que A entregou as quantias na tesouraria de B.
Aqui chegados, somos forçados a concluir que pese embora as páginas que a Doutrina dedica à tentativa de definição do conceito de causa de pedir, invocando-se factos não naturais, mas já juridicamente qualificados, quesitando-se factos juridicamente qualificados e decidindo-se quanto a estes, temos que aceitar, a despeito de qual das noções a que pudéssemos aderir que na acção que correu termos sob o nº CV3-… o facto de onde emergiu a causa de pedir não foi o facto natural – entrega da quantia em dinheiro – mas o facto jurídico empréstimo. E o que não se provou foi que não houve empréstimo, mas nada se diz quanto à entrega do dinheiro em termos de factos apurados sem prejuízo do que consta da fundamentação da convicção do tribunal em que reconhece que essa – a entrega - existiu.
Na nossa acção volta-se a alegar-se da mesma forma. Alega-se que se depositou, vindo da mesma sorte que a anterior a ser quesitado se “depositou” – quesitos 3º, 4º, 6º e 8º da Base Instrutória -.
Contudo nesta acção a resposta do tribunal vem a ser diferente e não dá como provado o depósito, mas dá como provado que entregou.
Em ambas as acções a causa de pedir e o objecto do processo foi construído a partir de um facto juridicamente qualificado – empréstimo numa, depósito noutra -.
Poderia suscitar-se a questão do efeito preclusivo do caso julgado no sentido de que, tendo o Autor invocado os factos naturais e qualificado os mesmos como “empréstimo” já não poder vir a tribunal com base nos mesmos factos invocando tratar-se de um depósito.
Contudo, entendemos que no que concerne ao Autor e à qualificação jurídica dos factos não se verifica o efeito preclusivo.
Sobre esta questão veja-se Acórdão do STJ de Portugal de 12.05.2017 proferido no processo nº 1565/15.8T8VFR-A.P1S1:
«2.1.2. O caso julgado como exceção dilatória: da tríplice identidade exigível para a sua aferição
Conforme ficou referido, para efeitos de exceção, verifica-se o caso julgado quando a repetição de uma causa se dá depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (cfr. parte final do nº 1 do artigo 580º do Código de Processo Civil).
E o nº 1 do artigo 581º do Código de Processo Civil vem estabelecer que se repete a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (nº 2 do mesmo preceito), identidade de pedido quando numa e noutra se pretende obter o mesmo efeito jurídico (nº 3 do preceito em análise) e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (nº 4 do referido artigo 581º).
(…)
Por sua vez, a identidade de pedido é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos (ainda que implícitos), do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objeto do direito reclamado.
E, assim, ocorrerá identidade de pedido se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional (implícita ou explícita) pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a ação, se pretende obter.
Por último, a identidade de causa de pedir verifica-se quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico concreto, simples ou complexo, de que emerge o direito do autor e fundamenta legalmente a sua pretensão, constituindo um elemento definidor do objeto da acção.
E, de acordo com a "teoria da substanciação", subjacente ao mencionado nº 4 do artigo 581º do Código de Processo Civil, tal factualidade afirmada pelo autor de que faz derivar o efeito jurídico pretendido terá de traduzir a causa geraB (facto genético) do direito alegado ou da pretensão invocada, de modo a individualizar o objeto do processo e a prevenir assim a repetição da mesma causa.
Visando a salvaguarda de eventuais relações de concurso que se possam estabelecer entre o objeto da decisão transitada e o do processo ulterior, adianta, ainda, TEIXEIRA DE SOUSA que «o caso julgado abrange todas as qualificações jurídicas do objecto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não das qualificações que podem ser atribuídas a esse fundamento3» (in "Estudos sobre o Novo Processo Civil", p. 576).
(…)
2.1.3.3. Dos limites temporais a que o caso julgado está sujeito
Por último, o caso julgado é temporalmente limitado, tomando como referência temporal o momento do encerramento da discussão em 1ª. instância, tal como decorre do disposto no nº 1 do artigo 611º do Código de Processo Civil, pelo que a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
Já para as partes, o estabelecido naquele nº 1 do artigo 611º do Código de Processo Civil significa que têm o ónus de alegar os factos supervenientes, ou a verificação superveniente de factos alegados, que ocorram até ao encerramento da discussão em 1ª. instância.
A relevância desse momento implica, então, a preclusão da invocação, no processo subsequente, das questões não suscitadas no processo em foi proferida a decisão transitada, mas anteriores ao encerramento da discussão e que nele podiam ter sido apresentadas. Ou seja: tal referência temporal do caso julgado consubstancia um momento preclusivo.
(…)
Quanto à posição do Autor, CASTRO MENDES ensinava que «sem sombra de dúvida que a pretensão do autor não está sujeita a este efeito preclusivo» e que «… é lícito ao autor em processo civil formular n vezes a mesma pretensão, desde que a baseie em n causas de pedir» (in “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, p. 179)
(…)
Por outro lado, importa referir o ensinamento de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (citado na decisão impugnada), «O âmbito da preclusão é substancialmente distinto para o autor e para o réu. Quanto ao autor, a preclusão é definida exclusivamente pelo caso julgado: só ficam precludidos os factos que se referem ao objeto apreciado e decidido na sentença transitada. Assim, não está abrangida por essa preclusão a invocação de uma outra causa de pedir para o mesmo pedido, pelo que o autor não está impedido de obter a procedência da ação com base numa distinta causa de pedir. Isto significa que não há preclusão sobre factos essenciais, ou seja, sobre factos que são suscetíveis de fornecer uma nova causa de pedir para o pedido formulado.».
Face a isso não resta outra conclusão que não seja a de acompanhar a decisão recorrida de que não há identidade de causa de pedir numa e noutra acção, sem prejuízo daquilo que se entende por causa de pedir e como ela haveria de ter sido construída em face dos factos naturais subjacentes aos autos e a norma jurídica à qual se pretendia subsumi-la.
Assim sendo será de decidir em conformidade negando provimento ao recurso do despacho saneador na parte em que julgou improcedente a excepção do caso julgado.
- Recurso do despacho que reconheceu prescrito o direito do Autor relativamente à 2ª Ré absolvendo esta do pedido;
É o seguinte o teor da decisão recorrida quanto à excepção da prescrição:
«- Excepção de prescrição
A 2.ª Ré invocou a excepção de prescrição do direito que o Autor invoca contra ele por já ter passado 3 anos a contar de momento em que o Autor teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe assistia e da pessoa do responsável pela devolução dos depósitos ou pelo pagamento do valor depositado.
O Autor entende que a 2.ª Ré não tem razão na medida em que o direito invocado resulta de responsabilidade contratual e o prazo ordinário de 15 anos ainda não decorreu, e o Regulamento Administrativo n.º 6/2002 não consagra qualquer disposição sobre a prescrição de direito contra as concessionárias de jogo pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administraBs e colaboraBs destes.
Considerando que ainda que todos os factos alegados pelo Autor na petição inicial fossem provados, o pedido formulado pelo Autor contra a 2.ª Ré não pode proceder, passamos a conhecer já a excepção de prescrição.
A responsabilidade alegada da 2.ª Ré resulta do disposto no artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002.
Segundo o artigo em causa, as concessionárias são responsáveis solidariamente com os promotores de jogo pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administraBs e colaboraBs destes, bem como pelo cumprimento, por parte dos mesmos, das normas legais e regulamentares aplicáveis.
Trata-se de uma responsabilidade civil consagrada na lei e relacionada com a obrigação de fiscalização de actividade dos promotores de jogo a que as concessionárias de jogo estão sujeito nos termos do artigo 30.º/5) do Regulamento Administrativo n.º 6/2002. Podemos configurar a responsabilidade das concessionárias de jogo neste caso como responsabilidade objectiva na medida em que a sua responsabilidade não depende de culpa segundo o estabelecido no artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002.
Não está em causa qualquer relação contratual entre o Autor e a 2.ª Ré visto que não existe nenhum vínculo contratual entre o Autor e a 2.ª Ré.
Ou seja, a fonte de obrigação das concessionárias de jogo pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo é a responsabilidade civil.
Por sua vez, a responsabilidade da 1.ª Ré alegada tem por origem o incumprimento dos contratos de depósito celebrados entre a 1.ª Ré e o Autor. Contudo, a solidariedade de responsabilidade da 2.ª Ré, enquanto concessionária de jogo, com a 1.ª Ré não interfere a natureza de obrigação da 2.ª Ré porque uma coisa é a modalidade de obrigação quanto ao sujeito, outra coisa é fonte de obrigações. Tal como afirmado pelo artigo 505.º/2 do CC, a obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os deveBs estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um dele. Ou seja, o facto de a obrigação ser solidária não implica que os deveBs estão obrigados em termos iguais. O que se determina a natureza de obrigação não deixa de ser a fonte de obrigação.
É a fonte de obrigação que determina a norma aplicável à prescrição de obrigação em causa.
Como a fonte de obrigação da 2.ª Ré é a responsabilidade civil, a norma aplicável para prescrição do direito de autor contra a 2.ª Ré é o artigo 491.º do CC, aplicável por artigo 492.º do CC.
De acordo com o artigo 491.º/1 do CC, o direito de indemnização prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, embora com desconhecimento da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.
Segundo o alegado pelo autor, o Autor solicitou à 1.ª Ré a devolução dos 3 depósitos no dia 9 de Setembro de 2015 e foi recusado. Ou seja, desde 9 de Setembro de 2015, o Autor teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete contra a 2.ª Ré.
O Autor só instaurou a presente acção no dia 14 de Dezembro de 2018 pelo que podemos concluir que o direito invocado pelo Autor contra a 2.ª Ré já prescreveu à data de instauração da acção.
Pelo exposto, julga-se procedente a excepção de prescrição invocada pela 2.ª Ré e decide-se em absolver a 2.ª Ré do pedido.
Custas desta parte pelo Autor.».
Nas suas conclusões de recurso podemos resumir a três os fundamentos que entende levam à ilegalidade do despacho recorrido:
- Aplicarem-se a todos os deveBs solidários a mesma regra da prescrição independentemente da causa responsabilidade;
- Ser o prazo de prescrição quanto à 2ª Ré o ordinário;
- Interrupção e Suspensão da prescrição;
Comecemos pela suspensão e interrupção da prescrição invocadas, pese embora, o Autor e Recorrente não se haja decidido por qual delas invoca recorrendo a um “ou” e a um “e” entre os dois institutos como se fosse irrelevante tratar-se de um ou outro.
Não podemos deixar de lamentar que conceitos jurídicos sejam tratados desta forma como se fosse irrelevante a sua qualificação e sem se cuidar dos efeitos de um ou de outro.
Invoca o Autor que com a citação da 2ª Ré para a acção que correu termos sob o nº CV3-… a prescrição se interrompeu só voltando a correr após o trânsito em julgado da decisão que pôs termo ao processo.
Para o efeito cita o Autor que o nº 1 do artº 315º do C.Civ. sublinhando “interrompe-se pela citação ou notificação judical de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito”.
A análise desta questão não deixa de estar relacionada com a anterior – a do caso julgado -.
A causa de pedir e o direito que se pretende exercer estão ligados.
Se nesta acção se pretende exercer o mesmo direito que na anterior então há caso julgado, porque naquela outra já se decidiu que o direito não existe.
Se como se alega nesta acção não se vem reclamar o mesmo direito que naquela outra, então até à instauração desta nunca se manifestou que se pretendia exercer o direito.
Na acção onde já foi proferida decisão com trânsito em julgado o Autor reclamava o pagamento de um empréstimo que havia feito, o qual por sinal não se provou que houvesse feito, julgando-se que não tinha o direito que reclamava, vindo essa decisão a transitar em julgado.
Nesta acção o Autor e agora Recorrente vem invocar que fez um depósito e reclamar que lhe devolvam/entreguem o depósito que fez.
Numa o direito é que seja pago do empréstimo que fez, nesta o direito é que lhe seja devolvido o que depositou.
Tivesse a causa de pedir sido apresentada e construída em termos juridicamente correctos e não estaríamos agora nesta confusão.
Ora bem se o direito que se pretende agora exercer é o da devolução do depósito feito e se não foi isto que se quis pedir na primeira acção – sob pena de proceder a excepção do caso julgado -, então nunca o Autor (com a instauração da acção que correu termos sob o nº CV3-…) manifestou querer exercer o direito.
Logo, é manifesta a improcedência da alegada interrupção (e não suspensão) da prescrição com a citação da 2ª Ré para a acção.
Invoca o Autor/Recorrente e bem, que o devedor solidário pode defender-se por todos os meios que pessoalmente lhe competem ou que são comuns a todos os condeveBs, nos termos do nº 1 do artº 507º do C.Civ., mas, mais uma vez, não faz correcta aplicação do conceito.
A circunstância dos meios de defesa pessoais entre os condeveBs poderem não ser iguais decorre, entre muitas causas, precisamente de a fonte da obrigação poder não ser a mesma para todos.
Invoca o Autor como fonte da obrigação da 2ª Ré o disposto no artº 29º e 430º de Regulamento Administrativo nº 6/2002.
Óbvio fica que a responsabilidade civil da 2ª Ré não decorre de qualquer contrato pois nada se alega que haja sido celebrado entre si e o Autor, igualmente não se invoca que decorra da prática de factos ilícitos.
Logo, estão excluídas a responsabilidade contratual e a extracontratual.
A ser assim, apenas nos resta a responsabilidade objectiva, que mais não é do que uma forma de responsabilidade pelo risco prevista em legislação especial avulsa para além das que resultam nos artº 492º e seguintes do C.Civ..
A responsabilidade objectiva resulta de se entender que determinadas actividades pela sua natureza envolvem um risco para terceiros que justifica a responsabilização independentemente de culpa.
Veja-se Antunes Varela em Das Obrigações em Geral Vol. I, 4ª Ed. pág. 557 a 562:
«Há largos e importantes sectores da vida em que as necessidades sociais de segurança se têm mesmo de sobrepôr às considerações de justiça, alicerçadas sobre o plano das situações individuais.
Torna-se necessário, quando assim seja, temperar o pensamento clássico da culpa com certos ingredientes sociais de carácter objectivo.
Foi no domínio dos acidentes de trabalho que primeiro se chegou a tal conclusão.
(…)
Ao lado da doutrina clássica da culpa, um outro princípio aflorou assim neste sector: o da teoria do risco.
Quem utiliza em seu proveito coisas perigosas, quem introduz na empresa elementos cujo aproveitamento tem os seus riscos; nunca palavra, quem cria ou mantém um risco em proveito próprio, deve suportar as consequências prejudiciais do seu emprego, já que deles colhe o principal benefício (ubi emolumentum, ibi ónus; ubi commodum ibi incommodum). Quem aufere os (principais) lucros da exploração industrial, justo é que suporte os encargos dela, entre os quais se inscreve, como fenómeno normal e inevitável, o dos acidentes no trabalho.
A imposição desta responsabilidade constituirá, por outro lado, um estímulo eficaz ao aperfeiçoamento da empresa, tendente a diminuir o número e a gravidade dos riscos na prestação de trabalho, bem como a segurar os empregados contra os acidentes a que continuamente se encontram expostos.
(…)
A partir da evolução registada nestes dois sectores, muitos foram os autores que pretenderam ampliar o domínio da responsabilidade objectiva a outras actividades também consideradas perigosas, transplantando para o âmbito delas o mesmo critério de justiça distributiva (ubi commoda ibi incommoda), que serve de fundamento ao regime excepcional da responsabilidade no capítulo dos acidentes de trabalho e dos acidentes de viação.».
É essa a situação dos autos quanto à 2ª Ré. A sua responsabilidade é meramente objectiva, isto é, responsabilidade pelo risco.
Nos termos do artº 492º do C.Civ. aplicam-se à responsabilidade pelo risco as regras da responsabilidade pelos factos ilícitos (na falta de disposição legal em contrário) a qual no artº 491º do mesmo diploma legal consagra que o prazo de prescrição do direito à indemnização prescreve no prazo de 3 anos a partir do momento que o Autor teve conhecimento do direito e da pessoa do responsável.
É este o sentido da decisão recorrida, a qual pelas razões expostas nenhum reparo nos merece.
Assim sendo, impõe-se decidir em conformidade negando provimento a este recurso e mantendo a decisão constante do despacho saneador que julgou procedente a excepção da prescrição quanto à 2ª Ré absolvendo-a do pedido.
- Recurso da decisão final.
- Da impugnação da decisão da matéria de facto quanto às respostas dadas pelo tribunal “a quo” aos quesitos 3º, 4º, 6º e 8º da Base Instrutória.
É do seguinte o teor dos indicados quesitos:
«3º
Para facilitar os jogos, o Autor depositava, com frequência, fichas na tesouraria da “Sala VIP B”, da C; cada vez que o Autor depositava fichas, o trabalhador da tesouraria da 1ª Ré emitia-lhe um “talão de depósito das fichas”, com o valor correspondente, para o efeito comprovativo?
4º
Em 03/06/2015, o Autor depositou, pessoalmente, fichas numerárias da C, no valor correspondente a HKD3.000.000,00 através do balcão da tesouraria da “Sala VIP B”, na sua conta de depósito das fichas n.º ...?
6º
Depois, em 19/06/2015, no casino C, o Autor depositou, do mesmo modo e de novo, uma quantia de HKD2.000.000,00 em fichas numerárias da C, junto do balcão da tesouraria da “Sala VIP B”, da C, na sua conta de depósito de fichas n.º ...?
8º
No dia 01/09/2015, no casino C, o Autor depositou, do mesmo modo e de novo, uma quantia de HKD15.000.000,00 em fichas numerárias da C, junto do balcão da tesouraria da “Sala VIP B”, da C, na sua conta de depósito de fichas n.º ...?».
Relativamente a esta matéria as respostas dadas pelo Tribunal foram as seguintes:
«3.º
Para facilitar os jogos, o Autor depositava, com frequência, fichas na tesouraria da “Sala VIP B”, da C; cada vez que o Autor depositava fichas, o trabalhador da tesouraria da 1.ª Ré emitia-lhe um “talão de depósito das fichas”, com o valor correspondente, para o efeito comprovativo?
Provado apenas que o Autor entregava com frequência fichas na tesouraria da “Sala VIP B”, da C e que, cada vez que o Autor entregava fichas, o trabalhador da tesouraria da 1.ª Ré emitia-lhe um “talão de depósito das fichas” com o valor correspondente para efeito comprovativo.
4.º
Em 03/06/2015, o Autor depositou, pessoalmente, fichas numerárias da C, no valor correspondente a HKD$3.000.000,00 através do balcão da tesouraria da “Sala VIP B”, na sua conta de depósito das fichas n.º ...?
Provado que em 03/06/2015, o Autor entregou pessoalmente fichas numerárias da C no valor correspondente a HKD$3.000.000,00 no balcão da tesouraria da “Sala VIP B”.
6.º
Depois, em 19/06/2015, no casino C, o Autor depositou, do mesmo modo e de novo, uma quantia de HKD2.000.000,00 em fichas numerárias da C, junto do balcão da tesouraria da “Sala VIP B”, da C, na sua conta de depósito de fichas n.º ...?
Provado que em 19/06/2015, no casino C, o Autor entregou pessoalmente fichas numerárias da C no valor de HKD$2.000.000,00 no balcão da tesouraria da “Sala VIP B”.
8.º
No dia 01/09/2015, no casino C, o Autor depositou, do mesmo modo e de novo, uma quantia de HKD15.000.000 em fichas numerárias da C, junto do balcão da tesouraria da “Sala VIP B”, da C, na sua conta de depósito de fichas n.º ...?
Provado que no dia 01/09/2015, o Autor entregou pessoalmente fichas numerárias da C no valor de HKD$15.000.000,00 no balcão da tesouraria da “Sala VIP B”.».
Quanto a esta matéria a fundamentação do tribunal recorrido é a seguinte:
«Quanto à prova testemunhal, ponderou-a o tribunal tendo em conta a razão de ciência demonstrada pelas testemunhas inquiridas e a forma mais ou menos espontânea, clara, coerente, serena ou exaltada, pormenorizada ou vaga, fundamentada ou conclusiva e firme ou vacilante como foram prestados os respectivos depoimentos. Considerou o tribunal, designadamente, que todas as testemunhas inquiridas demonstraram conhecimento directo dos factos sobre que depuseram, a primeira e a segunda (E e D) por terem presenciado a entrega de fichas de jogo pelo autor à primeira ré e a terceira (G) por ser esposa do autor e o ter acompanhado às instalações da ré solicitar o valor de HKD20.000.000,00.
Quanto à prova documental, como já supra referido, foi valorada no âmbito da “livre convicção”, tendo em conta que nenhuma razão de dúvida mereceu nem ao tribunal nem às partes a genuinidade dos documentos.
(…)
Quanto ao quesito 3º.
O quesito 3º contém três factos: 1 – se o autor depositava fichas na tesouraria da primeira ré; 2 – se o objectivo dos depósitos era facilitar os jogos; 3 – Se um empregado da primeira ré emitia documento comprobativo.
O tribunal considerou provado que o autor entregava fichas de jogo porquanto o termo “depositar” tem associada a ideia de confiar algo a outrem para guardar e o tribunal não alcançou a convicção de que fosse este o propósito do autor, como a seguir se refere. Porém, o tribunal convenceu-se que o autor entregou as fichas à primeira ré com base na análise que fez do depoimento das duas primeiras testemunhas inquiridas em conjugação com o teor dos documentos de fls.83, 85, 87 e 414 a 416. Cada uma das testemunhas referiu de forma que ao tribunal mereceu credibilidade que viu o autor fazer uma entrega e os documentos referidos são coerentes com a existência das entregas.
Quanto à entrega do documento comprovativo, também foi confirmada pelas testemunhas da mesma forma credível e os documentos referidos também estão em coerência, razão por que a convicção do tribunal foi no sentido de estar provada a quesitada entrega.
O tribunal não considerou provado que o autor tivesse a finalidade de facilitar os jogos porquanto a prova produzida não foi suficiente para remover a dúvida do tribunal colocada pelos documentos de fls. 147 a 163 (cópia de petição inicial de outros autos deste tribunal onde o autor afirmou que a sua finalidade era emprestar com remuneração dinheiro à primeira ré) e fls. 414 a 416 (cópias de documentos onde, com a assinatura do autor e sem que este negue a genuinidade nem a autoria, se refere que o autor, na qualidade de sócio, depositou dinheiro na primeira ré com a finalidade de receber dividendos). Acresce que as testemunhas inquiridas referiram que o autor era jugador muito esporádico, o que não se compadece com o depósito de quantia tão avultada para facilitar o jogo, como se se tratasse de um jogador frequente.
Ainda quanto ao propósito do autor com a entrega de fichas à primeira ré, o tribunal não pode deixar de equacionar como hipótese possível segundo as regras da experiência que as partes (autor e primeira ré) tivessem vontade contratual de empréstimo e que nos documentos de fls. 414 a 416 tenham sido utilizados os termos “sócio” e “dividendos” e não “depositante” ou “mutuante” e “juros” para não haver coincidência com os elementos objectivos típicos do crime de recepção não autorizada de depósitos e fundos reembolsáveis, previsto e punido pelo art. 121º do Regime Jurídico do Sistema Financeiro aprovado pela Lei nº 32/93/M de 5 de Julho. Esta ponderação do tribunal contribuiu para que o tribunal não adquirisse a convicção que o propósito da entrega das fichas fosse a respectiva guarda pela primeira ré para permitir ao autor jogar posteriormente.
Quanto aos depósitos de 03/06/2015, 19/06/2015 e 01/09/2015 (quesitos 4º a 9º) a convicção do tribunal fundou-se também nos já referidos depoimentos claros, pormenorizados e fundamentados das duas primeiras testemunhas inquiridas em conjugação com o teor dos documentos de fls. 83, 85, 87 e 414 a 416. Também quanto aos termos “depositou” constante dos quesitos 4º, 6º e 8º e “entregou”, constante das respostas dadas pelo tribunal, a convicção do tribunal formou-se nos termos já referidos quanto ao quesito 3º a propósito dos conceitos de depositar e entregar.
Também quanto aos quesitos 4º, 6º e 8º o tribunal não deu por provado que o autor depositou ou entregou na sua conta de depósito de fichas n.º ... porquanto não pode colocar de lado a hipótese de se tratar de empréstimo e de esse empréstimo ficar registado na conta do autor.».
Toda a argumentação do Autor e Recorrente quanto à impugnação da matéria de facto, assenta naquele que é o seu entendimento daquela que haveria de ter sido a resposta do tribunal.
Pese embora reproduza os depoimentos das testemunhas indicando a passagem da gravação a que correspondem o certo é que esses mesmos depoimentos falam que foi feito um depósito/entrega das fichas de jogo no balcão da Sala VIP da 1ª Ré. No entanto esses depoimentos não afastam, nem explicam, nem contrariam o que consta dos documentos de fls. 414 a 416 de onde consta que os depósitos são “certificados de depósitos de sócio”, como “capital” e que “recebe o dividendo mensal de 2%”.
Ora, considerando o disposto no artº 1111º e 1131º do C.Civ. quanto a depósito irregular, a factualidade constante daqueles documentos, cuja veracidade não foi impugnada, impede, como se decidiu no tribunal “a quo” que se respondesse de outro modo para além daquele que foi feito, considerando que se apurou que entregou as fichas de jogo na tesouraria da sala VIP e recebeu o talão correspondente à entrega/depósito, porém, se o foi a título de depósito, neste caso irregular, ou outro, essa matéria ficou por apurar, sendo certo que a título de empréstimo já noutra acção se invocou e nada se provou, tendo ficado precludida a possibilidade de voltar a apreciar essa matéria.
A fundamentação apresentada pelo tribunal “a quo” mostra-se, assim, coerente e suficiente para extrair a conclusão a que ali se chegou.
Sobre esta matéria veja-se Acórdão deste Tribunal de 15.10.2021 proferido no processo nº 240/2021:
«Ora bem, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Estatui-se nos termos do artigo 558.º do CPC que:
“1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599.º, n.º 1 e 2 do CPC.”
Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.º 332/2015 que:“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
A convicção do Tribunal alicerça-se no conjunto de provas produzidas em audiência, sendo mais comuns as provas testemunhal e documental, competindo ao julgador valorar os elementos que melhor entender, nada impedindo que se confira maior relevância ou valor a determinadas provas em detrimento de outras, salvo excepções previstas na lei.
Não raras vezes, pode acontecer que determinada versão factual seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras. Neste caso, cabe ao Tribunal valorá-las segundo a sua íntima convicção.
Ademais, não estando em causa prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
Assim, estando no âmbito da livre valoração e convicção do julgador, a alteração das respostas dadas pelo tribunal recorrido à matéria de facto só será viável se conseguir lograr de que houve erro grosseiro e manifesto na apreciação da prova.
Analisada a prova produzida na primeira instância, a saber, a prova documental junta aos autos e o depoimento das testemunhas, entendemos não assistir razão aos autores.».
Destarte, não resultando da fundamentação do tribunal “a quo” quanto às respostas dadas à Base Instrutória objecto do recurso, erro grosseiro e manifesto, de acordo com o disposto na al. b) do nº 1 e nº 2 do artº 599º do CPC, impõe que se negue provimento ao recurso nesta parte.
- Do recurso quanto à decisão de direito.
Nas restantes conclusões de recurso insurge-se o Recorrente contra a decisão recorrida por entender que se havia de ter concluído pela existência de um depósito irregular e condenar na restituição do depositado.
Porém, como já se referiu na parte anterior ficou por provar que tenha havido um depósito irregular, causa de pedir nesta acção, pelo que, à mingua de outro argumento bem se andou ao decidir pela improcedência da acção, sendo, também, de negar provimento ao recurso interposto nesta parte.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos negando-se provimento aos recursos interpostos, mantêm-se as decisões recorridas nos seus precisos termos.
Custas pelo Autor e Rés Recorrentes quanto aos recursos por cada um interposto.
Registe e Notifique.
RAEM, 4 de Novembro de 2021
Rui Pereira Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
1 Vide Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Manual de Direito Processual Civil, Acção Declarativa Comum, 3.ª ed., CFJJ, 2018, p. 150.
2 Vide Alberto dos Reis, CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, VOL. III., 3.ª ed. , Coimbra Editora, . 123.
3 Realce e sublinhado nossos.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
431/2021 CÍVEL 78