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Processo nº 259/2021
(Autos de Recurso Contencioso)

Data do Acórdão: 4 de Novembro de 2021

ASSUNTO:
- Revogação da autorização de permanência.
- Prática de factos que constituem um tipo legal de crime.
- Poder discricionário.

SUMÁRIO:
- Demonstrada a prática de factos que constituem um tipo legal de crime é possível concluir pelo perigo para a segurança e ordem pública, fundamento da Revogação da autorização de permanência, independentemente da eventual condenação criminal;
- Só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável – art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC -.
- A intervenção do tribunal fica reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre o acto praticado e os interesses particulares sacrificados.



_______________
Rui Pereira Ribeiro





















Processo nº 259/2021
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 4 de Novembro de 2021
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A, com os demais sinais dos autos,
  vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Segurança de 19.02.2021 que rejeita o recurso hierárquico necessário mantendo a revogação da autorização de permanência na qualidade de trabalhador não residente, formulando as seguintes conclusões e pedidos:
a) A Entidade Recorrida manteve a anterior decisão de ordenar a revogação da autorização de permanência e do correspondente título de identificação de trabalhador não-residente do Recorrente.
b) A Decisão Recorrida fundamenta-se no facto do Recorrente constituir “perigo para a segurança ou ordem públicas, nomeadamente pela prática de crimes, ou sua preparação, na RAEM”, para os efeitos previstos no artigo 11.º, n.º 1, alínea 3) da Lei n.º 6/2004.
c) Defende a Entidade Recorrida que “o princípio da presunção de inocência previsto no art. 29.º, n.º 2 da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau (...) não é de acolher, na medida em que estamos no domínio de um procedimento administrativo (e não de um processo judicial), de carácter securitário (não sancionatório), onde, através da aplicação de uma medida de natureza preventiva e não punitiva, se procura garantir a segurança e estabilidade da sociedade e onde não é determinante a apreciação da responsabilidade penal do Recorrente em sede de justiça criminal”.
d) No entanto, o Recorrente não foi sequer acusado da prática de qualquer crime, quer pelo Ministério Público, quer pela titular do direito de queixa.
e) Estando o Recorrente apenas indiciado por ter cometido factos típicos e expressamente previstos e punidos pelo artigo 191.° do Código Penal, que configuram o crime de “gravações e fotografias ilícitas”.
f) Crime esse para o qual o respectivo procedimento depende de queixa, nos termos do disposto no artigo 193.º do Código Penal e no n.º 1 do artigo 38.º do Código de Processo Penal.
g) Ora, a presunção da inocência é de aplicação transversal a todo o direito, aplicando-se, nomeadamente, ao direito administrativo.
h) Pelo que, a delimitação restritiva da aplicação do princípio da presunção de inocência que faz a Entidade Recorrida, atendendo aos factos subjacentes à Decisão Recorrida, não pode ser aceite, porquanto viola princípio fundamental e basilar do sistema jurídico da RAEM.
i) O direito fundamental à presunção de inocência, em todas as suas vertentes e âmbito de aplicação, é legalmente conferido também aos não residentes de Macau (como o era o Recorrente), em virtude do previsto no artigo 43.º da Lei Básica.
j) Toda a actividade administrativa está subordinada à lei, existindo, em cada poder conferido, um campo de actuação vinculada e um campo de actuação discricionária.
k) O poder discricionário é aquele no qual é permitido à Administração praticar actos com liberdade de escolha, pautada na conveniência e oportunidade dos mesmos.
l) Quando utiliza um poder discricionário, a Administração deve fazer a escolha entre as alternativas permitidas no ordenamento, sob pena de agir com arbitrariedade.
m) Em crise está a interpretação que se faz do previsto na alínea 3) do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 6/2004, quando ali se refere “constitua perigo para a segurança ou ordem públicas”.
n) No caso em concreto, aceitar a fundamentação da Entidade Recorrida significa aceitar que a mera denúncia é critério suficiente para a Administração usar do poder que lhe é conferido na alínea 3) do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 6/2004.
o) A aceitar-se tal fundamentação, esvazia-se por completo o princípio da presunção da inocência de qualquer aplicação prática ou relevância para um procedimento administrativo, de carácter securitário.
p) Tal configura, em última análise, uma decisão arbitrária por parte da Administração.
NESTES TERMOS, atentos os factos supra expostos e com a presente pronúncia, fica demonstrado que não subsistem quaisquer fundamentos por via dos quais possa a permanência do Recorrente ser considerada como constituindo perigo para a segurança ou ordem públicas da RAEM.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a Decisão Recorrida declarada nula, por vício de violação de lei, na medida em que ofende um direito fundamental do Recorrente.
Ou, se tal não for o entendimento de V. Exas.,
deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a Decisão Recorrida anulada, por vício de violação de lei, na medida em que constitui uma decisão arbitrária em virtude de uso desrazoável de um poder discricionário conferido por lei à administração.
  Citada a entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Segurança contestar, pugnando pela improcedência do recurso.
  Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido o seguinte parecer:
  «1.
  A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Segurança, datado de 19 de Fevereiro de 2021, que indeferiu o recurso hierárquico interposto da decisão do Comandante do Corpo da Polícia de Segurança Pública que revogou a sua autorização de permanência na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM) como trabalhador não residente.
  Alegou, em síntese, que o acto recorrido enferma do vício de violação de lei porque, em seu entender (i) contraria o princípio da presunção de inocência; do dever de fundamentação dos actos administrativos e (ii) Exerceu de modo totalmente desrazoável um poder discricionário.
  2.
  2.1.
  Considera o Recorrente que a concreta actuação da Administração que agora questiona através do presente recurso contencioso constitui violação do princípio fundamental e basilar do sistema jurídico da RAEM, que encontra consagração na parte final do artigo 29.º da Lei Básica, que é o da presunção de inocência.
  Parece-nos, salvo o devido respeito, que não tem razão.
  Sem pretendermos entrar em ociosas elucubrações sobre a matéria, podemos dizer que o dito princípio da presunção de inocência, cujo carácter fundamental se não controverte, encontra o seu campo de aplicação no direito procedimental ou processual sancionatório, em geral, e, dentro deste, com particular acuidade, no campo do direito processual penal, constituindo uma garantia incontornável de quem seja arguido num processo com essa natureza.
  De acordo com esse princípio, o arguido deve ser tratado no decurso do processo como se fosse inocente, estando, por isso, isento de qualquer ónus da prova negativa relativamente aos factos que lhe sejam imputados. É sobre a acusação que recai tal ónus e por isso, a dúvida sobre a questão de facto que sobreviva ao esgotamento da actividade instrutória não pode deixar de ser valorada a favor do arguido.
  A verdade, porém, é que o acto recorrido não é um acto com natureza sancionatória ou punitiva. Trata-se, antes, de um acto administrativo de natureza revogatória no qual se detecta uma indiscutível dimensão de natureza securitária que visa prevenir a concretização futura de um prognosticado perigo para a segurança ou para a ordem públicas, mas cuja finalidade em nada se confunde com aquela que é própria dos actos punitivos, seja uma sentença condenatória proferida em processo penal, seja uma sanção administrativa.
  Naturalmente não pode sofismar-se que o juízo de prognose que sustenta o acto administrativo recorrido arrancou de uma concreta actuação do Recorrente que, em abstracto, poderia integrar a prática de uma infracção à lei penal. Todavia, daí não decorre, como é evidente, que a Administração ao actuar da forma como concretamente o fez, revogando a autorização de permanência do Recorrente, na sequência de uma actividade procedimentalmente adequada à prolação dessa decisão e no âmbito da qual foi recolhido o material instrutório indispensável a consubstanciar os pressupostos de facto dessa actuação agressiva, tenha infringido o princípio da presunção da inocência.
  Não só porque, como vimos, tal princípio não tem relevância, enquanto tal, no procedimento administrativo geral, como também porque, no caso, a Administração se desincumbiu satisfatoriamente do ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito, vamos dizer assim, de revogação da autorização de permanência do Recorrente na RAEM, ou, se preferirmos, dos pressupostos positivos da sua actuação ablativa que se concretizou no acto recorrido.
  Do que antecede decorre, parece-nos, a evidente inviabilidade da invocação relevante do falado princípio da presunção de inocência no presente contexto processual tendo em vista suportar a pretensão impugnatória deduzida pelo Recorrente.
  2.2.
  Melhor sorte não pode merecer, em nosso modesto entendimento, a invocada desrazoabilidade manifesta no exercício de poderes discricionários que o Recorrente também invoca.
  De acordo com o referido artigo 15.º do Regulamento Administrativo n.º 8/2010, «a autorização de permanência na qualidade de trabalhador é recusada ou revogada quando se verifiquem os pressupostos previstos na lei, respectivamente, para a recusa ou interdição de entrada a quaisquer não residentes, ou para a revogação da respectiva autorização de permanência».
  Por sua vez, a norma da alínea 3) do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 6/2004, preceitua que a autorização de permanência na RAEM pode ser revogada, sem prejuízo da responsabilidade criminal e das demais sanções previstas na lei, por despacho do Chefe do Executivo, quando a pessoa não residente constitua perigo para a segurança ou ordem públicas, nomeadamente pela prática de crimes, ou sua preparação, na RAEM.
  A simples leitura da norma do referido n.º 3 do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 6/2004 permite afirmar que, (i) por um lado, na respectiva estatuição, o legislador confere poderes discricionários à Administração na medida que lhe permite, na presença dos pressupostos tipificados na previsão da norma, escolher entre duas soluções alternativas, no caso, entre a de revogar e a de não revogar a autorização de permanência na RAEM ao não residente; (ii) por outro lado, na respectiva previsão, o legislador utilizou um conceito jurídico verdadeiramente indeterminado, qual seja o de «perigo para a segurança ou ordem públicas», o qual, como é pacífico, por isso que confere discricionariedade à Administração (ou, noutra perspectiva das coisas, uma margem de livre apreciação) não é plenamente fiscalizável pelo Tribunal.
  Com efeito, relativamente ao conceito indeterminado de «perigo para a segurança ou ordem públicas», a jurisprudência dos nossos tribunais superiores vai no sentido de que, «o juízo sobre se o interessado constitui ou não ameaça para a ordem pública ou para a segurança de Macau é um juízo de prognose, visto que envolve uma apreciação da hipotética conduta futura do interessado», daí que se deva entender que o legislador defere à Administração uma margem de livre apreciação na sua aplicação, com a consequência, em termos de possibilidade de sindicância judicial, que acima referimos (veja-se o Ac. do TSI de 18.10.2012, processo n.º 127/2012 e Ac. do TSI de 29.1.2015, processo n.º 619/2013).
  Ora, no campo da actividade discricionária em sentido amplo, seja de decisão, seja de avaliação, para além do desvio de poder, do erro de facto e da falta de fundamentação, consideram-se também controláveis, a partir da fundamentação apresentada pelo órgão decisor, o erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários por parte da Administração, sendo que só em casos flagrantes de mau uso do poder discricionário e de evidentes e intoleráveis violações dos princípios gerais da actividade administrativa como o da proporcionalidade ou o da justiça, deve o acto contenciosamente atacado ser objecto de anulação judicial (assim, por todos, com ampla referência a jurisprudência anterior, veja-se o Ac. do Tribunal de Última Instância de 30.4.2019, processo 35/2019).
  Revertendo ao caso concreto e tomando como ponto de partida a fundamentação do acto recorrido, dela se extrai que o Recorrente praticou factos que, abstractamente, como já dissemos, são susceptíveis de integrar a prática de um crime, nomeadamente o que se encontra previsto no artigo 191.º do Código Penal.
  A partir desses factos e com base num juízo de prognose por apelo a uma avaliação que é própria da Administração, esta concluiu que, no caso, a presença do Recorrente na Região constituiria um perigo para a ordem e segurança públicas, pelo que estavam reunidos os pressupostos do exercício do poder discricionário de revogação da autorização de permanência do Recorrente na Região.
  Parece-nos óbvio que, independentemente daquele que possa ser o juízo do Tribunal relativamente ao mérito da actuação administrativa, de modo algum se demonstra que a Administração tenha efectuado uma avaliação manifestamente desacertada ou inaceitável da situação ou que tenha incorrido em erro manifesto ou notório no exercício dos poderes discricionários que a lei, na alínea 3) do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 6/2004, lhe deferiu na matéria aqui em discussão.
  Estamos, pois, em crer, que, também neste particular, não ocorre a violação de lei invocada pelo Recorrente.
  3.
  Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o presente recurso contencioso deve ser julgado improcedente.».
  
  Foram colhidos os vistos.
  
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  
  O Tribunal é o competente.
  O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
  Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
  
  Cumpre assim apreciar e decidir.
  
III. FUNDAMENTAÇÃO

a) Dos factos
  
  Destes autos e do processo administrativo apenso foi apurada a seguinte factualidade:
a) Em 16.05.2014 foi concedida ao Recorrente a autorização de trabalhador não residente nº ********, o qual tendo sido sucessivamente renovado era válido até 20.05.2022 – fls. 1, 38 e 91 do PA -;
b) Em 21.11.2000 foi elaborada a Participação nº 18336/2020/CZN a qual consta de fls. 34 e 35 do processo administrativo apenso e aqui se dá integralmente por reproduzida de onde em síntese consta que o Recorrente na data indicada foi encontrado a fazer filmes com o telemóvel das pernas e partes íntimas de uma senhora que vestia saias, o que depois de denunciado por outro transeunte, se veio a apurar ser verdade e possuir o seu telemóvel outros vídeos idênticos, situação que o Recorrente admitiu e confessou;
c) Em 07.01.2021 foi proferido despacho a revogar a autorização de permanência na qualidade de trabalhador não residente do aqui Recorrente com os fundamentos constantes de fls. 69 a 71 do processo administrativo apenso e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;
d) Interposto recurso hierárquico necessário daquela decisão veio a ser negado provimento ao mesmo com os fundamentos constantes do despacho de fls. 121 a 122 do processo administrativo apenso cujo teor aqui se dá por reproduzido;
e) O Recorrente foi notificado daquela decisão em 08.03.2021 conforme consta de fls. 124 do processo administrativo apenso.
  
b) Do Direito
  Nas suas alegações de recurso invoca o Recorrente que o despacho recorrido enferma do vício de violação de lei porquanto viola o princípio da presunção da inocência e fez um uso desrazoável do poder discricionário, uma vez que, em síntese contra o agora Recorrente não foi apresentada queixa, nem condenado pela prática de crime algum.
  
  Vejamos então.
  
  O vício de violação de lei «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis» - Cit. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 4ª Ed., Vol. II, pág. 350.
  «O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. A ofensa não se verifica aqui nem na competência do órgão, nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste, nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objecto do ato.
  Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre a decisão tomada ou os efeitos de direito determinados pela Administração e o que a norma ordena.
  (…)
  A violação de lei, assim definida, comporta várias modalidades:
  a) A falta de base legal, isto é, a prática de um ato administrativo quando nenhuma lei autoriza a prática de um ato desse tipo;
  b) O erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas;
  c) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo;
  d) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do objeto do ato administrativo;
  e) A inexistência ou ilegalidade dos pressupostos, de facto ou de direito, relativos ao conteúdo ou ao objeto do ato administrativo:
  f) A ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do ato – designadamente, condição, termo ou modo -, se essa ilegalidade for relevante, nos termos da teoria geral dos elementos acessórios;
  g) Qualquer outra ilegalidade do ato administrativo insuscetível de ser reconduzida a outro vício. Este último aspeto significa que o vício de violação de lei tem um carácter residual, abrangendo todas as ilegalidades que não caibam especificamente em nenhum dos outros vícios.» - Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit. pág. 351 a 353 -.

  A autorização de permanência na RAEM do Recorrente foi revogada com base na alínea 3) do nº 1 do artº 11º da Lei nº 6/2004, porquanto o Recorrente foi encontrado a praticar factos típicos do crime de “gravações e fotografias ilícitas” p. e p. no artº 191º do C.P..
  Segundo a alínea 3) do nº 1 do artº 11º da Lei nº 6/2004 «1. A autorização de permanência na RAEM pode ser revogada, sem prejuízo da responsabilidade criminal e das demais sanções previstas na lei, por despacho do Chefe do Executivo, quando a pessoa não residente: (…) 3) Constitua perigo para a segurança ou ordem públicas, nomeadamente pela prática de crimes, ou sua preparação, na RAEM.».
  Entende o Recorrente que a decisão sob recurso viola o princípio da presunção de inocência consagrado no artº 29º da Lei Básica, porquanto não foi deduzida queixa ou acusação contra si nem tão pouco foi condenado por crime algum.
  A este respeito remete-se para o que o Ilustre Magistrado do Ministério Público no seu Douto Parecer refere a respeito do princípio da presunção de inocência.
  Este princípio apenas implica que até que seja condenado não podem recair sobre o “suspeito” quaisquer efeitos decorrentes da prática dos factos criminalmente puníveis que lhe são imputados.
  No entanto, não invalida que noutra sede, que não a criminal, se possa fazer a prova dos mesmos factos para os efeitos que daí sejam decorrentes.
  Tal como já referimos noutras decisões a exigência de uma decisão penal condenatória não é requisito fundamental para que se possa concluir no sentido de estar verificado o “perigo para a segurança e ordem públicas”, desde que, o juízo da administração assente em factos, que demonstrados, permitam concluir que a conduta do sujeito em causa constitui um perigo para a segurança ou ordem públicas, o que, entre outras razões, pode derivar da prática de factos enquadráveis em situações que sejam susceptíveis de vir a preencher algum tipo legal de crime, como é o caso dos autos.
  O que releva para a atribuição da autorização de residência ou sua caducidade não é a existência concreta de uma condenação pela prática de actos criminalmente puníveis mas a formulação de um juízo de prognose para a segurança ou ordem pública que a actuação dessa pessoa tenha gerado.
  São várias as situações que, podendo ser integradas como factos criminalmente puníveis, podem nunca vir a dar origem a uma condenação criminal, nomeadamente por prescrição do procedimento, ausência de queixa, ou outras circunstâncias que obstem àquele, sem que contudo, deixe de ser evidente em face dos factos apurados que a conduta do sujeito foi contrária ao direito e à ordem pública da RAEM.
  Mais, quando na alínea 3) do nº 1 do artº 11º da Lei nº 6/2004 se usa o advérbio “nomeadamente” no que concerne à prática de crimes, o legislador está expressamente a afastar a exigência de uma condenação criminal para o efeito, aludindo a esta apenas como um dos elementos a considerar entre outros.
  Isto é, a relevância dos factos criminalmente puníveis é um dos, mas não o único aspecto, no que concerne à prognose do perigo para a segurança que releva.
  Destarte, a exigência de uma decisão penal condenatória ou, até de acusação, não é requisito fundamental para que se possa concluir no sentido de estar verificado o “perigo para a segurança e ordem pública”, desde que, o juízo da administração assente em factos, que demonstrados, permitam concluir que a conduta do sujeito em causa constitui um perigo para a segurança ou ordem pública, por exemplo se esses factos forem enquadráveis em situações que sejam susceptíveis de vir a preencher algum tipo legal de crime, como é o caso dos autos.
  Ora, tal como resulta de todo o processo em momento algum o Recorrente põe em causa a prática dos factos que lhe são imputados, o que nada obstava que o fizesse, demonstrando a sua inocência, sendo certo que, em sede das declarações que prestou ao tempo confessou a prática dos mesmos, para além das diligências de prova realizadas e que constam do PA, de onde resulta a prática daqueles.
  Assim sendo, sem necessidade de outras considerações, ao assentar em factos que poderiam fundamentar uma condenação criminal sem que tenha havido lugar à mesma, a decisão recorrida não ofende o princípio da presunção de inocência do Recorrente.
  O que releva para a decisão é que estejam demonstrados os factos que fundamentam o juízo de prognose da administração de que o comportamento da pessoa em causa poderá vir a revelar-se uma ameaça para a ordem pública ou para a segurança de Macau, prova que neste caso foi feita.
  
  Mais invoca o Recorrente a violação do princípio da proporcionalidade por assentar a decisão Recorrida numa mera denúncia.
  Dispõe o artº 5º do Código do Procedimento Administrativo que:
Artigo 5.º
(Princípio da igualdade e da proporcionalidade)
  1. Nas suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever nenhum administrado em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.
  2. As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar.
  O poder de revogar a autorização de residência é um poder discricionário a cargo da Administração.
  Actualmente é pacífico o entendimento de que mesmo no exercício de poderes discricionários pode haver vício de violação de lei quando se ofenderem «os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente os princípios constitucionais: o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o princípio da justiça, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa-fé, etc.» – Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit a pág. 352.
  Para Vitalino Canas o princípio da proporcionalidade é um «princípio geral de direito, constitucionalmente consagrado, conformador dos actos do poder público e, em certa medida, de entidades privadas, de acordo com o qual a limitação instrumental de bens, interesses ou valores subjectivamente radicáveis se deve revelar idónea e necessária para atingir os fins legítimos e concretos que cada um daqueles actos visam, bem como axiologicamente tolerável quando confrontada com esses fins”1»..
  Tem vindo a ser entendimento deste Tribunal e do TUI que «a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.» - Acórdão do TUI de 31.07.2012, Procº nº 38/2012, entre outros.
  O princípio da proporcionalidade haverá de ser aferido em função do objectivo preconizado pela norma em causa, isto é, dos bens e interesses que se pretendem proteger ou alcançar em função da norma.
  Destarte, sendo o princípio da proporcionalidade também entendido como a proibição do excesso, cabendo a decisão de revogação de autorização de residência à Administração no âmbito de poderes discricionários, estando em causa a segurança e ordem pública, e estando demonstrados os factos de onde emerge o juízo que fundamenta a conclusão a que a Administração chegou, pelas razões já antes expostas, na balança entre o interesse público e os interesses do Recorrente, impõe-se concluir que também este vício não se verifica.
  Em sentido idêntico se decidiu no Acórdão do TUI de 24.02.2021 proferido no processo nº 206/2020 relativamente a esta questão e ao conceito indeterminado que encerra:
  «E, como no Acórdão de 21.10.2020, (Proc. n.° 84/2020), já tivemos oportunidade de considerar:
  «Apresenta-se-nos inquestionável que a expressão “perigo para a segurança ou ordem pública” vertida na referida “alínea 3 do n.° 1 do art. 11°”, constitui um “conceito jurídico indeterminado”.
  Sobre o seu “sentido” e “alcance”, teceram-se já considerações abundantes, valendo a pena aqui lembrar o que este Tribunal já teve oportunidade de sobre o mesmo explanar:
“Como refere ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA a expressão conceito indeterminado pretende referir aqueles conceitos que se caracterizam por um elevado grau de indeterminação. A estes opõem-se os conceitos determinados, sendo os relativos a medidas (metro, litro, hora) ou a valores monetários (pataca, dólar norte-americano) os conceitos mais determinados.
  Quase todos os conceitos jurídicos contêm algum grau de indeterminação, de tal sorte que PHILLIP HECK sublinhou que os conceitos absolutamente determinados seriam muito raros no direito.
  A utilização pelo legislador de conceitos indeterminados constitui expediente de que aquele se serve por motivos vários, como para «permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações, ou para facultar uma espécie de osmose entre as máximas ético-sociais e o Direito, ou para permitir levar em conta os usos do tráfico, ou, enfim, para permitir uma “individualização” da solução».
  ROGÉRIO SOARES acentua que o legislador utiliza prodigamente os conceitos indeterminados perante as complexidades da sociedade moderna.
  Pois bem, a distinção fundamental entre discricionariedade e conceitos indeterminados está em que, enquanto no primeiro caso, o órgão tem uma liberdade actuação quanto a determinado aspecto, no segundo caso estamos perante uma actividade vinculada, de mera interpretação da lei, com base nos instrumentos da ciência jurídica.
  Aqui, nos conceitos indeterminados, não há liberdade. Logo que se apure qual a interpretação correcta da norma – e em direito só há uma interpretação correcta em cada caso – o aplicador da lei tem de a seguir necessariamente.
  Por isso, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA referiu que «a discricionariedade começa onde acaba a interpretação».
  Deste modo, quando se conclua que a tarefa a efectuar é apenas a de interpretar a lei, o tribunal pode fiscalizar a aplicação do direito feita pela Administração.
  (…)”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.05.2000, Proc. n.° 9/2000, com vasta doutrina sobre a questão).
  In casu, apresenta-se-nos ser exactamente o que sucede, pois que a consideração no sentido de que o ora recorrente constituía “uma ameaça para a ordem pública ou para a segurança de Macau”, implica uma “decisão administrativa”, mas “judicialmente sindicável”».
  No âmbito do mesmo aresto, teve-se também oportunidade de considerar que «Como salienta Pedro J. Lopes Clemente: “a ordem pública representa o ponto de equilíbrio entre a desordem suportável e a ordem indispensável, pois que a liberdade não sobrevive na anarquia …”, (in “Da Polícia de Ordem Pública”, Lisboa, Governo Civil do Distrito de Lisboa, 1998), sendo de se ter em consideração dois princípios fundamentais intrinsecamente ligados à matéria da “ordem pública”: o da “legalidade” e o da “proporcionalidade” (ou, “proibição do excesso”), necessário sendo um permanente e são equilíbrio entre as “razões” e os “meios utilizados” e os “resultados” que se pretendem obter, não se podendo olvidar igualmente que o tema da “ordem pública” tem vindo a desempenhar um papel cada vez mais relevante, exigindo uma redobrada atenção (e responsabilidade) na sua abordagem por parte do Legislador, da Administração, dos Órgãos Judiciários e da própria Opinião Pública.
  Da mesma forma, (e relacionada com a questão), mostra-se de reconhecer que, como o salienta G. Marques da Silva, a questão da “prevenção criminal” é de sobeja importância, podendo-se considerar que até suplanta a ideia de punir os que prevaricam: “o que importa à colectividade, (…), não é tanto punir os que transgridem, mas evitar, pelo adequado uso dos meios legais de dissuasão, que transgridam”; (in “A Polícia e o Direito Penal”, 1993)».
  Nenhum motivo se nos afigurando existir para não se ter por adequado o que se deixou exposto, apresenta-se-nos absolutamente claro que o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância fez uma correcta apreciação da “matéria de facto” (aí) dada como “provada”, tendo efectuado, igualmente, a um acertado “enquadramento jurídico”.
  Com efeito, encontrando-se – no momento – o ora recorrente “acusado da prática de 3 crimes de emprego ilegal”, nenhuma razão existia para se censurar a decisão administrativa proferida (e então recorrida) que considerou verificada a situação da já referida “alínea 3, do n.° 1 do art. 11° da Lei n.° 6/2004” para efeitos da revogação da sua autorização de permanência na R.A.E.M.».
  
  Assim se concluindo que o acto recorrido não enferma dos vícios de violação de lei que o Recorrente lhe imputa, deve em consequência ser negado provimento ao recurso.
  
IV. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
  
  Custas a cargo do Recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5 UC´s – artº 89º nº 1 do RCT -.
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 4 de Novembro de 2021
  
  (Relator)
  Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro
  
  (Primeiro Juiz-Adjunto)
  Lai Kin Hong
  
  (Segundo Juiz-Adjunto)
  Fong Man Chong
  
  
  Mai Man Ieng
  
  
1 Em O princípio da proporcionalidade Uma Nova Abordagem em Tempos de Pluralismo, de Laura Nunes Vicente, pág. 23, Publicação de Instituto Jurídico, Faculdade De Direito da Universidade de Coimbra.
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259/2021 REC CONT 1