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Processo nº 636/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data do Acórdão: 11 de Novembro de 2021

ASSUNTO:
- Regime de casamento
- Correcção do Registo

SUMÁRIO:
- Em sede de inventário para partilha de bens na sequência de divórcio proferindo-se decisão onde se define qual o regime de bens que vigorou no dissolvido casamento, face aos efeitos do caso julgado, a questão (do regime de bens que vigorou entre cônjuges) ficou definitivamente resolvida com força obrigatória geral;
- Com base naquela decisão haveria a cabeça-de-casal de ter requerido a alteração no registo predial das inscrições das aquisições feitas pelos cônjuges na pendência do casamento em que constava outro regime de bens que não aquele;
- Não há que instaurar outra acção para corrigir o regime de bens uma vez que por decisão transitada em julgado já se decidiu qual o regime de bens segundo o qual os cônjuges estão casados.


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Rui Pereira Ribeiro






















Processo nº 636/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 11 de Novembro de 2021
Recorrente: A
Recorrido: B
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO

Nos autos de inventário para partilha de bens na sequência do divórcio decretado entre A e B, foi indeferido o pedido de suspensão dos autos formulado pela cabeça-de-casal com fundamento na rectificação judicial dos registos prediais dos imóveis envolvidos, uma vez que o regime de bens que consta do registo é o da comunhão de adquiridos, quando o regime de bens do casamento é outro que não aquele.
Não se conformando com o despacho referido a cabeça-de-casal A veio interpor recurso daquele apresentando as seguintes conclusões:
I. O Tribunal a quo incorreu em erro na interpretação da lei
1. A substância e efeitos do regime de bens do casamento entre a recorrente e o recorrido, e do regime de bens, legal ou convencional, são definidos pela lei da residência habitual dos nubentes ao tempo da celebração do casamento – lei de Taiwan (art.º 51.º, n.º 1 do Código Civil de Macau). E com base nisso, o Tribunal a quo reconheceu que o regime de bens aplicável ao casamento era o regime de bens legal de Taiwan (vide as fls. 191v dos autos).
2. O presente processo de inventário envolve principalmente os seguintes três imóveis adquiridos na constância do casamento entre a recorrente e o recorrido:
➢ Fracção B23, sita no Edf. XX (XX, XX, XX), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXX2
Foi efectuado o registo de propriedade desta fracção autónoma (adiante designada por fracção B23), sita no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXX2, a favor da recorrente e do recorrido (sob o n.º 2XXX8G), do qual consta que o regime de bens é o regime da comunhão de adquiridos;
➢ Fracção 16E, sita no Edf. XX, Torre XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXX4-G
Foi efectuado o registo de propriedade desta fracção autónoma (adiante designada por fracção E16), sita no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob n.º 2XXX4-G, a favor da recorrente e do recorrido (sob o n.º 2XXX2G), do qual consta que o regime de bens é o regime da comunhão de adquiridos;
➢ Fracção 17E, sita no Edf. XX, Torre XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXX4-C
Foi efectuado o registo de propriedade desta fracção autónoma (adiante designada por fracção E17), sita no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXX4-C, a favor do recorrido, e de C e D (sob o n.º 2XXX7G), do qual consta que o regime de bens do recorrido é o regime da comunhão de adquiridos, sendo metade da fracção adquirida pelo recorrido, e a outra metade adquirida conjuntamente por C e D.
3. Tendo em consideração o regime de bens declarado e registado pela recorrente e o recorrido ao adquirir os supracitados imóveis e a pretensão da recorrente no seu requerimento inicial1, vislumbra-se facilmente que antes do presente processo de inventário, eles entenderam, por engano, que era aplicável o regime da comunhão de adquiridos.
4. Por um lado, o Juiz do Tribunal a quo reconheceu, no dia 16 de Junho de 2020, que o regime de bens aplicável ao casamento entre a recorrente e o recorrido era o regime de bens legal de Taiwan (vide as fls. 191v dos autos).
5. Por outro lado, o Tribunal a quo entendeu que “o presente processo de inventário visa partilhar os bens comuns do casal, e o regime de bens requerido pelo casal no registo predial não prejudica a partilha dos imóveis como bens comuns do casal (…), pelo que este Juízo indefere o pedido de suspensão da instância formulado pela cabeça-de-casal.” (vide as fls. 225 do despacho recorrido) (sublinhado e negrito nosso)
6. Salvo o devido respeito pelo entendimento do Tribunal a quo, achamos que este incorreu em erro na interpretação da lei.
7. De acordo com o art.º 1017.º do Código Civil de Taiwan, por ser aplicável o regime de bens legal entre a recorrente e o recorrido, os seus bens adquiridos antes e depois do casamento, são bens próprios deles, pelo que não há qualquer bem comum;
8. De acordo com o art.º 1030-1.º do Código Civil de Taiwan, aquando da extinção da relação matrimonial, é atribuído ao cônjuge cujo acréscimo patrimonial for menor o direito de participar pela metade nos patrimónios adquiridos por outro cônjuge na constância do regime de bens do casamento. Quer dizer, o regime de bens legal de Taiwan é aproximadamente igual ao regime da participação nos adquiridos de Macau.
9. Por outra palavra, o presente processo de inventário visa determinar o titular do crédito emergente do regime de bens legal de Taiwan (marido/esposa), o montante do respectivo crédito e a forma da liquidação da dívida que o devedor for condenado a pagar a outro cônjuge, em vez de partilhar os bens comuns, como entendeu o Tribunal a quo.
10. Por isso, é manifestamente errado o entendimento do Tribunal a quo assente na errada interpretação da lei acima referida, isto é, os respectivos imóveis são bens comuns do casal, pelo que o prosseguimento do presente processo de inventário não depende da alteração do registo predial, bem como a decisão de indeferir a suspensão da instância.
II. Preenchimento do pressuposto da suspensão do inventário
A. Questão prévia do inventário
11. Nos termos do art.º 970.º, n.º 1 do CPC, “1. Se, na pendência do inventário, se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, o juiz determina a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva, remetendo as partes para os meios comuns, logo que os bens se mostrem relacionados.” (sublinhado e negrito nosso)
12. Em princípio, para reconhecer os direitos das partes sobre os imóveis envolvidos, deve-se atender ao regime de bens indicado nos respectivos registos prediais, uma vez que tais registos definitivos constituem presunção de que as menções neles constantes correspondem à verdade (art.º 7.º do CRP).
13. Porém, devido à divergência entre o regime de bens do casamento constante dos registos prediais e o regime cuja aplicação foi reconhecida, foi causada a incerteza sobre a quota dos bens, o que conduzirá, necessariamente, à impossibilidade da liquidação da diferença entre acréscimos patrimoniais, e em consequência, da distribuição do valor dos bens remanescentes, e do exercício dos respectivos direitos pelos seus titulares.
14. Por isso, para a decisão do presente processo de inventário, constitui questão prévia da determinação de direito dos interessados directos na partilha dos bens a rectificação judicial dos respectivos registos prediais, de modo a fazer corresponder à verdade o regime de bens do casamento constante destes.
B. Tal questão prévia não deve ser incidentalmente decidida
15. Face à inexactidão do regime de bens do casamento constante dos referidos registos prediais, o legislador estipulou exclusivamente um meio de assistência – rectificação mediante o acordo de todos os interessados ou por decisão judicial (art.ºs 116.º, n.º 1 e 119.º do CRP).
16. As duas partes não chegaram a qualquer acordo sobre a rectificação dos respectivos registos, pelo que só se pode proceder ao procedimento de rectificação judicial (art.º 121.º, n.º 1 do CRP).
17. A respectiva questão prévia constitui um processo autónomo, pelo que não deve ser incidentalmente decidida; e de facto, no dia 11 de Fevereiro de 2021, a recorrente já requereu procedimento de rectificação judicial ao Juízo Cível do TJB. Só está em condições de liquidar a diferença entre acréscimos patrimoniais depois de ser proferida decisão definitiva no procedimento de rectificação judicial, e se tornar expressa a quota dos bens.

Pelo interessado no inventário não foram apresentadas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos.

II. FUNDAMENTAÇÃO
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«A cabeça-de-casal A requereu a suspensão do presente “processo de inventário” com fundamento na rectificação judicial dos registos prediais dos imóveis envolvidos. É de mencionar que, o presente “processo de inventário” visa partilhar os bens comuns do casal, e o regime de bens requerido pelo casal no registo predial não prejudica a partilha dos imóveis como bens comuns do casal, ademais, no dia 16 de Junho de 2020, este Juízo já tomou decisão sobre a partilha dos bens comuns do casal em Macau e o regime de bens aplicável, contra a qual não foi deduzido embargo pelas partes. Assim, o prosseguimento do presente processo de inventário não depende da alteração do registo predial, e em consequência, não se corresponde ao disposto no n.º 1 do art.º 970.º do CPC, pelo que este Juízo indefere o pedido de suspensão da instância formulado pela cabeça-de-casal.
Com base nisso, a cabeça-de-casal tem que apresentar de novo a “relação de bens” no prazo de 10 dias, de acordo com a decisão deste Juízo constante das fls. 191 a 193 dos autos, conjugada com o valor de arrendamento dos imoveis em causa fornecido pela DSF (vide as fls. 204 dos autos).».

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

Antes de mais cabe apreciar quanto ao regime de bens do casamento que houve entre a cabeça-de-casal e o interessado.
Constando já do despacho proferido a fls. 107 a 110 dos autos, não se justifica que novamente se reproduzam os artigos do Código Civil da Região de Taiwan, sendo que do artº 1005º daquele diploma resulta que não havendo contrato relativo aos bens do casal o regime supletivo é o regime legal consagrado no mesmo diploma, o qual divide os bens em antenupciais e pós-nupciais.
Da leitura do artº 1017º do C.Civ. da Região de Taiwan resulta que os bens pós-nupciais podem ser próprios de cada um dos cônjuges ou comuns.
Dos artigos 1017º e 1030º do C.Civ. da Região de Taiwan, resulta que de uma forma geral o regime legal ali consagrado é em tudo semelhante ao Regime de participação nos adquiridos consagrado no C.Civ. de Macau.
No âmbito do regime de participação nos adquiridos, regulado no artº 1581º e seguintes do C.Civ. de Macau, «cada um dos cônjuges tem o domínio e fruição, tanto dos bens que lhe pertenciam à data da celebração do casamento ou da adopção superveniente desse regime de bens, como dos que adquiriu posteriormente por qualquer título, podendo, salvas as excepções previstas na lei, dispor deles livremente».
Ou seja no que concerne à titularidade, fruição, e actos de disposição dos bens, tudo se processa como no regime de separação de bens2.
Durante a vigência3 do regime da participação nos adquiridos cada um dos cônjuges é livre de adquirir, onerar e dispor dos bens que possuía antes do casamento/vigência do regime e daqueles que veio a adquirir durante a pendência do casamento/vigência do regime, sem prejuízo das excepções legais.
O património em participação é constituído pelo produto do trabalho adquirido na constância do regime e pelos bens adquiridos na constância do mesmo, praticamente de acordo com as mesmas regras do regime de comunhão de adquiridos, até porque, as normas que definem o património comum embora com redacção diferente são em termos de conteúdo idênticas e são as mesmas as regras que definem os bens excluídos da participação/comunhão.
Contudo, embora a forma de definir o património em participação e o património em comunhão seja praticamente igual, o resultado final é substancialmente diferente.
Durante a constância do regime em participação os cônjuges são livres de adquirirem, onerarem e disporem dos seus bens como entenderem sem autorização do outro, sendo que o património em participação só releva no momento da cessação do regime, o que coincidirá, ou com a alteração do regime por convenção pós-nupcial, ou com a separação de bens, ou com a dissolução do casamento. Nesse momento é aferido o valor do “património em participação de cada um dos cônjuges”.
Note-se que não se confunde com o apuramento do património em comunhão nos regimes de comunhão (os chamados bens comuns), uma vez que, no regime em participação o que se apura é o valor do património (próprio) de cada um dos cônjuges que foi adquirido durante a vigência do regime, sendo que a metade da diferença para mais encontrada no património de um dos cônjuges corresponde ao crédito em participação – cf. art. 1582º do C.Civ. -.

Ou seja, tal como em Macau no regime de participação nos adquiridos, no regime legal consagrado no C.Civ. de Taiwan os cônjuges mantêm a titularidade dos bens próprios ainda que sejam pós-nupciais, excepto nos casos em que haja dúvida em que se presume que pertencem a ambos, sendo esta a única interpretação possível a dar ao 1º parágrafo do já indicado artº 1017º do C.Civ. da Região de Taiwan.
Contudo, neste último aspecto – a existência de bens comuns – o regime legal de Taiwan é diferente do de Macau, uma vez que em Macau do património em participação fazem parte apenas bens próprios de cada um dos cônjuges, sem prejuízo de os haver em compropriedade entre os cônjuges, mas não há “bens comuns” no verdadeiro conceito jurídico desta expressão, enquanto no da Região de Taiwan é possível haver também bens comuns.
No caso em apreço a cabeça-de casal entende que se deve proceder à correcção do regime de casamento inscrito no registo predial quanto às fracções 23B, 16E e 17E melhor identificadas nos autos e que, tal questão é prejudicial à apresentação da relação de bens.
Ora, como resulta das certidões do registo predial e matriciais cujas cópias constam deste apenso a fls. 56 a 104 a cabeça-de-casal e o interessado no inventário segundo o que consta do registo adquiriram a fracção 23B e a 16E em conjunto pelo que, segundo o regime de bens da Região de Taiwan estes bens são comuns, enquanto a metade da fracção autónoma 17E que só foi adquirida pelo cônjuge marido aqui interessado B, embora o regime legal da Região de Taiwan a qualifique como bem pós-nupcial, é apenas bem próprio do cônjuge marido.
Ou seja, em termos de inventário não é irrelevante que a situação em termos de registo predial dos bens em causa seja definida em termos correctos, isto é de acordo com a situação jurídica real.
Assim sendo, se no despacho de fls. 107 a 109 (traduzidos a fls. 154 a 160) se reconhece que o regime de bens que vigorou no casamento entre os ex-cônjuges é o regime legal da Região de Taiwan, logo não faz sentido, considerar como correcta a inscrição no registo predial como “casados no regime de comunhão de adquiridos”, uma vez que, como já se explicou um e outro não são a mesma coisa.
Destarte, considerando o disposto nos artº 8º e 10º do C.R.P. – trato sucessivo – impõe-se antes de proceder à partilha corrigir a situação registral dos bens imóveis em causa no que concerne ao regime de bens que vigorou no dissolvido casamento, fazendo-se constar que não é o de comunhão de adquiridos como indicado mas o regime legal da Região de Taiwan, uma vez que daí emergem todo um suceder de regras distintas quanto à partilha, nomeadamente, os bens pós-nupciais comuns poderão vir a ser partilhados e atribuídos a um dos cônjuges e os bens pós-nupciais próprios pertencem ao cônjuge a favor de quem se encontra a inscrição registral, sem prejuízo do direito do outro cônjuge a ser pago pelo valor a que tiver direito se o reclamar antes do prazo de caducidade, mas sempre sem que isso afecte a titularidade do direito sobre o imóvel.

No entanto, concluindo-se que não é irrelevante para a partilha a definição em termos cadastrais (entenda-se registo predial) do direito sobre os imóveis para se saber em que termos se procede à partilha, daí não resulta necessariamente que o processo haja de ser suspenso.
Havendo sido definido nos autos por despacho que o regime de bens entre os cônjuges é o regime legal de Taiwan esta questão está definitivamente julgada, por decisão transitada em julgado uma vez que da mesma não foi interposto recurso.
Sobre o trânsito em julgado das decisões proferidas em sede de inventário mostra-se oportuno reproduzirmos o que já tivemos oportunidade de escrever no Acórdão de 17.09.2020 proferido no processo 155/2020:
«Da excepção do caso julgado.
Rezam os artº 416 e 417º do CPC, o seguinte:
Artigo 416.º
(Conceitos de litispendência e caso julgado)
1. As excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado.
2. Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
3. É irrelevante a pendência da causa perante jurisdição do exterior de Macau, salvo se outra for a solução estabelecida em convenção internacional aplicável em Macau ou em acordo no domínio da cooperação judiciária.
Artigo 417.º
(Requisitos da litispendência e do caso julgado)
1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, considerando-se como causa de pedir nas acções reais o facto jurídico de que deriva o direito real e, nas acções constitutivas e de anulação, o facto concreto ou a nulidade específica que a parte invoca para obter o efeito pretendido.
De acordo com o disposto nos artº 412º, 413º al. j) e 414º todos do CPC o tribunal deve conhecer oficiosamente das excepções dilatórias.
Mostra-se adequado transcrever o que Paulo Ramos Faria escreve em O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa, «1.2. Efeitos da deserção. O efeito extintivo da concreta instância em desenvolvimento – não do direito à ação – permite que se tome a deserção por uma forma de caducidade (art. 298º, nº 2, do CC). De algum modo, por efeito do decurso do tempo, caduca o direito do demandante de manter constituída a concreta instância e de promover os termos do processo em que se desenvolve. O direito de ação não é afectado pela decisão, assim como não o é, directamente, o direito substantivo exercido.
As decisões interlocutórias da instância julgado extinta, que não tenham por objeto o mérito da causa, não produzem caso julgado material.».
Do trecho acima transcrito resulta a concordância “a contrário” que as decisões proferidas sobre o mérito da causa no processo julgado deserto produzem caso julgado material.
Aliás nem de outro modo se poderia entender, bastando para tal equacionar um processo em que em sede de saneador venha a ser proferida decisão quanto a determinados pedidos, prosseguindo apenas para apreciação de outros, vindo após o despacho saneador a ser julgada deserta a instância. Sem dúvida alguma que na situação configurada a decisão proferida quanto aos pedidos de que se conheceu no despacho saneador, tendo transitado em julgado, têm efeito de caso julgado sobre a matéria que incidem.
O mesmo pode acontecer em sede de inventário.
João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso, em Partilhas Judiciais, 5ª Edição, Vol. I, pág. 587 e 588, sustenta que as decisões proferidas nos incidentes suscitados no inventário têm força de caso julgado material quanto ao mérito da matéria apreciada (que não sejam, efectivamente, questões de forma/processuais). Assim será quando no inventário se decide que o bem pertence à herança, ou é bem comum, ou bem próprio, etc., sendo a respectiva decisão vinculativa para os interessados dentro e fora do processo.
No mesmo sentido se decidiu em Jurisprudência comparada, no Tribunal da Relação de Guimarães de 10.11.2004, Processo 1841/04.1, consultado em www.dgsi.pt, e onde consta que:
«I. Não faz sentido requerer uma tutela jurisdicional que antes se tinha já requerido e peticionar um efeito já estabelecido na ordem jurídica. Tal ordem de princípios conduz às excepções dilatórias de caso julgado e de litispendência (artº 494º nº1 al.i) C.P.Civ.). O caso julgado pressupõe o ne bis in idem, ou seja, que, sendo idêntico o objecto do litígio, é inadmissível (não faz sentido) uma decisão repetida, em face de uma decisão anterior (Jauernig, Direito Processual Civil, §62). A litispendência visa afastar o risco de decisões contraditórias que aniquilem o êxito processual das partes e prejudiquem o crédito da justiça (Jauernig, op. cit., §40-2) – mantém-se até ao trânsito em julgado da sentença ou até à extinção, por qualquer outro modo, da primeira acção. Ambas as excepções pressupõem, todavia, que sejam idênticos os sujeitos e idênticos os objectos dos processos – artº 498º nº1 C.P.Civ. E é esse o cerne do recurso: saber se, de uma questão incidental suscitada e julgada num processo de inventário divisório pendente, pode resultar seja a excepção de caso julgado (como entendeu a Mmª Juiz “a quo”), seja a excepção de litispendência, para a presente demanda em acção declarativa comum. Ora, não se tendo decidido ainda o inventário por decisão final com trânsito em julgado, encontrando-se o inventário ainda em curso, deve optar-se pela verificação em concreto da excepção de litispendência (artº 497º nº1 C.P.Civ.), excepção de conhecimento oficioso e da qual, como assim, poderá sempre este tribunal conhecer, no presente momento.
Mais do que ao critério formal do artº 498º C.P.Civ., olhamos à directriz substancial do artº 497º nº2 C.P.Civ. – existe litispendência nos autos a fim de evitar que, aqui, o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior, ainda que, no primeiro processo, tal questão haja sido colocada por excepção ou impugnação (neste sentido, Varela, Bezerra e S. e Nora, Manual, 1ªed., §94). Dir-se-à, no sentido da verificação de caso julgado, que a questão se encontra decidida no inventário, uma vez que transitou em julgado o suscitado incidente de reclamação da relação de bens; todavia, só a sentença homologatória da partilha estabiliza definitivamente os efeitos da mesma partilha quanto aos interessados na herança (como decorria claramente da inserção sistemática do artº 1397º C.P.Civ., hoje revogado – cf. também, neste sentido, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, II/4ªed./§430). Uma vez que, no momento em que a presente acção foi proposta, o inventário ainda se encontrava pendente, a excepção que se verificará, no caso concreto, será por força a de litispendência, constatação que não assume relevância para o efeito, já decretado em 1ª instância, de absolvição do Réu da instância – artº 493º nº2 C.Civ., isto caso seja de considerar verificada tal excepção. É do que cuidaremos seguidamente.
II. Desde logo há que afastar a ideia que poderia resultar de que o processo de inventário tem um objecto diverso de uma acção de reivindicação.
É que não prejudica a identidade objectiva o facto de serem de diversa natureza os processos concernentes às duas acções (neste sentido, confrontando o processo declarativo com os processos executivo e de falência, A. dos Reis, Anotado, III, pgs. 102 e 118). De resto, o processo de inventário assume uma natureza mista, tanto graciosa como contenciosa. Se no respectivo decurso surgirem questões entre os interessados, designadamente as que são tipificadas na lei processual, a controvérsia terá de ser dirimida por uma decisão judicial. A natureza contenciosa do processo de inventário surge, as mais das vezes, do facto de os interessados não se encontrarem de acordo a respeito dos bens a partilhar, acusando tal falta logo com a relação de bens apresentada.
Tal natureza encontra-se há muito estabelecida na doutrina - A. dos Reis, Processos Especiais, II/381, e Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ªed., §1º-17. Significativamente, este último Autor: “Os autos ou termos deste processo são tanto ou mais complicados que outros quaisquer; os prazos, até pela sua versatilidade, não acusam diminuição sensível, e dentro dele podem suscitar-se ou resolver-se todas as questões que interessem para a organização da partilha; o actual diploma consente a produção de qualquer espécie de prova, obriga o juiz a proferir decisão sobre as questões suscitadas e só remete os interessados para os meios ordinários quando elas exijam uma larga instrução; a índole sumária ou sumaríssima não se compadece com os novos princípios orientadores do processo de inventário, diversos dos que inspiraram outros diplomas”. Finalmente, Alberto dos Reis escreveu: “há evidentemente questões que podem e devem decidir-se no processo de inventário; quanto a elas, o processo funciona precisamente como uma acção, assume o aspecto de processo contencioso” (Anotado, III, pg.117). Ou seja, para o caso que nos ocupa, a démarche a efectuar consiste, em primeiro, na verificação da identidade tríplice de sujeitos, pedido e causa de pedir. Confronte-se ainda, neste particular, a doutrina dos Ac.R.L. 25/6/92 Col.III/216 (que versou sobre hipótese muito semelhante à dos presentes autos) e, mutatis mutandis, Ac.S.T.J. 6/7/00 Bol.498/173.
III. É irrefutável a identidade de sujeitos – as partes no inventário divisório para partilha dos bens do extinto casal são as mesmas que agora litigam, Autora e Réu. No tocante à identidade de pedido, a Recorrente entende que uma coisa é peticionar a alteração de uma relação de bens, outra coisa é formular um pedido de reivindicação para um património comum.
Não tem razão, nesse particular. De acordo com o disposto no artº 498º nº3 C.P.Civ., há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. E o efeito jurídico pretendido é o do reconhecimento de que os bens integraram a comunhão conjugal formada por Autora e Réu. Não é exacto afirmar que o objecto da presente acção (posterior) não está incluído no objecto da primeira, na medida em que nesta segunda acção se peticiona uma restituição de um bem, enquanto na primeira se analisou tão só a titularidade de um direito (caso em que as acções se encontrariam numa relação de prejudicialidade – Teixeira de Sousa, As Partes, O Objecto e A Prova, §19º-3). O incidente de reclamação contra a relação de bens visa, também ele, a inclusão do bem em falta num património comum, e não meramente a apreciação acerca da titularidade de um direito.».
(…)
Destarte, face a todo o exposto, a situação dos autos não poderia revestir maior simplicidade.
No caso em apreço nem sequer estamos numa situação de inventário versus acção declarativa, o que ocorre, é que tendo-se iniciado o inventário para partilha das heranças dos aqui inventariados e com estes interessados, vieram as partes por inércia a deixar que a instância viesse a ser declarada deserta.
Tempo volvido, vieram novamente requerer a instauração de inventário, repetindo-se a causa quanto aos sujeitos, objecto e pelos vistos quanto às questões em que não estão de acordo.
Contudo quanto às fracções autónomas (…) já na decisão proferida no processo CV (…)houve pronuncia transitada em julgado no sentido de que estes bens são próprios da inventariada (…), pelo que, por força do efeito do caso julgado não pode o tribunal ser colocado na situação de apreciar novamente questão já antes decida.
Assim sendo, pese embora essa decisão seja igual à decisão recorrida, uma vez que esta (a decisão recorrida) se pronuncia sobre questão que já havia sido julgada por decisão transitada em julgado, impõe-se anular a decisão recorrida nesta parte (da titularidade dos bens), havendo que observar o que havia já sido decidido no processo CV (…)».
No caso em apreço não estamos confrontados com duas decisões, mas com uma que definiu a situação quanto ao regime de bens que vigorou no dissolvido casamento, pelo que, face aos efeitos do caso julgado, tendo a questão do regime de bens que vigorou entre cônjuges sido resolvida por despacho judicial em processo em que intervêm ambos os cônjuges a mesma está definida com força obrigatória geral.
O único detalhe que se omitiu foi decidindo-se no inventário qual o regime de bens segundo o qual os cônjuges estiveram casados, haveria a cabeça-de-casal de ter requerido a alteração no registo predial das inscrições das aquisições feitas pelos cônjuges na pendência do casamento em que constava estarem casados no regime de comunhão de adquiridos, fazendo-se constar que estavam casados segundo o “Regime Legal da Região de Taiwan”, bastando para o efeito certidão com nota de trânsito em julgado do despacho em que tal matéria foi decidida.
Ou seja, não há que instaurar outra acção para corrigir o regime de bens uma vez que por decisão transitada em julgado já se decidiu qual o regime de bens segundo o qual os cônjuges estão casados.

Assim sendo, não porque a questão não seja prejudicial, uma vez que entendemos que face ao princípio do trato sucessivo a questão da qualificação do regime de bens quanto aos bens adquiridos pelos cônjuges na constância do casamento é prejudicial relativamente à partilha e deve constar do registo predial, mas porque a questão já se encontra decidida por despacho transitado em julgado, entendemos que não há fundamento para ordenar a suspensão da instância (para decidir o que já está decidido).
III. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida embora por fundamentos diversos.

Custas a cargo da Recorrente.

Registe e Notifique.

RAEM, 11 de Novembro de 2021
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Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
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Lai Kin Hong
_________________________
Fong Man Chong



1 Art.º 4.º do requerimento inicial, “os dois casaram-se sem qualquer convenção antenupcial ou registo quanto ao regime de bens, pelo que é supletivamente aplicável o regime da comunhão de adquiridos.”
2 Veja-se por comparação a redacção do artº 1601º do C.Civ. quanto ao regime de separação.
3 Diz-se vigência porque em Macau é possível a alteração do regime de bens durante a constância do casamento o que significa que ao longo da relação matrimonial podem ser vários os regimes de bens adoptados pelos cônjuges cf. artº 1578º do C.Civ.
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636/2021 CÍVEL 1