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Processo n.º 891/2020 Data do acórdão: 2021-11-18
Assuntos:
– crime de usura
– art.o 219.o do Código Penal
– situação de necessidade
S U M Á R I O
O provado circunstancialismo de que todas as pessoas ofendidas nos autos se encontravam, no tempo em que pediam emprestar dinheiro ao arguido, em dificuldade financeira, em situação de falta de dinheiro para circulação do capital e em situação de precisarem urgentemente de dinheiro dá para integrar o conceito de “situação de necessidade” de que se fala na norma do n.o 1 do art.o 219.o do Código Penal, incriminadora da conduta de usura.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 891/2020
(Autos de recurso penal)
  Recorrente (arguido): A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 645 a 671 do Processo Comum Colectivo n.º CR3-19-0166-PCC do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que o condenou como autor material, na forma consumada, de 25 crimes de usura (como modo de vida), p. e p. pelo art.o 219.o, n.os 1 e 3, alínea a), do Código Penal (CP), em um ano e seis meses de prisão por cada, e de um crime de ameaça (qualificada), p. e p. pelo art.o 147.o, n.os 1 e 2, do CP, em seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única de cinco anos e três meses de prisão, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a essa decisão, na sua motivação apresentada a fls. 678 a 688 dos presentes autos correspondentes:
– desde já, a propósito da condenação em sede do tipo legal de usura:
– erro de aplicação do Direito (porquanto as causas dos pedidos de empréstimo de dinheiro em questão nos autos referidas na fundamentação fáctica do acórdão recorrido não dão para integrar os conceitos de “situação de necessidade”, ou de “anomalia psíquica”, ou de “incapacidade”, ou de “inépcia”, ou de “inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor”, ou de “relação de dependência” do devedor postulados na norma incriminadora do n.o 1 do art.o 219.o do CP, para efeitos de verificação do crime de usura), devendo o próprio recorrente passar a ser absolvido de todos os crimes de usura por que vinha condenado em primeira instância;
– e, subsidiariamente falando, vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (dado que como “precisar urgentemente de dinheiro” não equivale necessariamente à “situação de necessidade”, há que existir prova bastante ou factos provados concretos para justificar a existência da situação de necessidade), daí (em face da dúvida, por falta de prova, não só acerca da existência da “situação de necessidade”, como também da existência de juros mensais de 10% ou da já devolução, ou não, pelas pessoas ofendidas nos autos, de montantes de dinheiro declarados por elas) devendo o recorrente passar a ser absolvido de todos os crimes de usura em causa, em obediência ao princípio de in dubio pro reo;
– por outro lado, no tocante ao crime de ameaça por que vinha condenado em primeira instância:
– violação do princípio de in dubio pro reo (devendo o recorrente ser absolvido desse mesmo crime, por falta da prova);
– por fim, e ainda subsidiariamente falando, excesso na medida da pena (com necessária pretendida redução das penas parcelares e única de prisão aplicadas no aresto recorrido).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 692 a 695 dos autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 707 a 710, no sentido de absolvição dos crimes de usura em causa, e da suspensão da pena de prisão do crime de ameaça.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos e tendo ficado vencido o Ex.mo Juiz Relator do presente processo na votação sobre a solução do recurso por ele proposta, cumpre decidir nos termos seguintes do presente acórdão definitivo, elaborado nos termos do art.o 417.o, n.o 1, parte final, do Código de Processo Penal (CPP).
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido consta de fls. 645 a 671 dos autos, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
O arguido recorrente começou por preconizar que as causas dos pedidos de empréstimo de dinheiro em questão nos autos referidas na fundamentação fáctica do acórdão recorrido não dão para integrar os conceitos de “situação de necessidade”, ou de “anomalia psíquica”, ou de “incapacidade”, ou de “inépcia”, ou de “inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor”, ou de “relação de dependência” do devedor postulados na norma incriminadora do n.o 1 do art.o 219.o do CP, para efeitos de verificação do crime de usura, devendo, pois, ele passar a ser absolvido de todos os crimes de usura por que vinha condenado em primeira instância.
Pois bem, segundo o facto provado 29, descrito na página 29 do texto do aresto recorrido, a fl. 659: no acima referido período da prática da sua conduta, o arguido sabia claramente que todas as pessoas ofendidas acima referidas se encontravam, no tempo em que lhe pediam emprestar dinheiro, em dificuldade financeira, em situação de falta de dinheiro para circulação do capital, e em situação de precisarem urgentemente de dinheiro.
Diversamente do defendido pelo recorrente, realiza o presente Tribunal Colectivo de recurso (por votos de maioria) que essas circunstâncias referidas no facto provado 29 ainda dão para integrar, em conjunto, e de modo cabal, o conceito de “situação de necessidade” de que se fala na norma do n.o 1 do art.o 219.o do CP (que prevê que: Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, […], fizer com que ele prometa ou se obrigue a conceder, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstâncias do caso, manifestamente desproporcionada face à contraprestação, é punido com pena de prisão […]). Portanto, não pode ter havido erro, por parte do Tribunal recorrido, de aplicação do Direito no tangente à condenação do recorrente nos 25 crimes de usura (como modo de vida) em causa.
Por outra banda, relativamente aos mesmos crimes de usura, não deixou o recorrente de invocar a existência, na decisão condenatória recorrida, de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Entretanto, os argumentos concretamente tecidos por ele para sustentar a verificação desse vício não têm a ver propriamente com o vício nominado na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas sim já com a questão de falta de prova bastante ou de insuficiência de prova.
Como o recorrente também invocou a falta de prova para o condenar em sede do tipo legal de ameça, é de ajuizar agora, uma vez por todas, se já tenha sido feita prova bastante para efeitos de condenação dele nos 25 crimes de usura e no crime de ameaça nos termos constantes da decisão penal recorrida.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, depois de vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se mostra patente que o Tribunal recorrido tenha violado quaisquer normas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência da vida humana, ou ainda quaisquer leges artis vigentes no julgamento da matéria de facto, pelo que é de respeitar o resultado do julgamento dos factos já feito por esse Tribunal.
E ante toda a matéria de facto já dada por provada em primeira instância (sem qualquer insuficiência ou falta de prova), é legal a condenação do arguido pelos 25 crimes de usura como modo de vida e por um crime de ameaça (qualificada).
Por fim, no que à medida da pena diz respeito, vistas todas as circunstâncias fácticas já dadas por apuradas na fundamentação fáctica do aresto recorrido, com pertinência à medida concreta das penas dos dois tipos legais de ilícito em questão, aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, e tendo em conta também as exigências da prevenção geral desses dois tipos-de-ilicito, não se vislumbra que haja injustiça notória nas penas de prisão aplicadas pelo Tribunal recorrido aos ditos 25 crimes de usura e crime de ameaça, e o mesmo se pode dizer em relação à pena única de prisão aí achada, em sede do art.o 71.o , n.os 1 e 2, do CP. (Nota-se que é inviável a atenuação especial da pena desses dois tipos de crime, devido à necessidade da pena, em função das elevadas exigências da prevenção geral – cfr. o critério material consagrado no n.o 1 do art.o 66.o do CP, para efeitos de activação, ou não, do mecanismo de atenuação especial da pena).
Naufraga in totum o recurso, sem mais indagação, por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pelo recorrente, com oito UC de taxa de justiça.
Macau, 18 de Novembro de 2021.
___________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
___________________________
Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
__________________________ (附表決聲明)
Choi Mou Pan
(Relator do processo)

上訴案第891/2020號


表決聲明

作為原裁判書製作人,不同合議庭大多數意見有關暴利罪方面的決定,特發表以下表決聲明:
雖然,上訴人A在其就暴利罪的部份的補充性的上訴理由中,提出了事實審理的瑕疵,認為而原審法庭判處上訴人作出暴利罪的犯罪行為,是沾有《刑事訴訟法典》第400條第2款a項規定的 “獲證明之事實上之事宜不足以支持作出該裁判”的瑕疵,但是,罪名的客觀構成要素之一的“利用債務人之困厄狀況“的事實屬於一個結論性事實,即使沒有載明也可以通過其他客觀事實進行推論予以認定。因此,上訴人所提出的有關暴利罪的上訴理由也僅僅是一個法律適用的問題。因為,正如我們一直認為的,根據原審法院所認定的已證事實不能確定某一犯罪的構成要件,屬於一個法律適用層面的問題,而非事實的認定方面出現對事實的審理的遺漏或者在認定的時候造成事實的漏洞以致不能作出合適的法律適用,包括有罪和無罪的決定。
那麼,在本案中,要作出有罪判決,關鍵在於“利用債務人之困厄狀況“這個結論性事實是否可以通過已證的客觀事實予以推論,然後得出肯定的結論。
從《刑法典》第219條第1款的罪狀結構而言,暴利罪的構成要件:
- 債務人處於困厄狀況、精神失常、無能力、無技能、無經驗或性格軟弱,債務人之依賴關係;
- 行為人知悉債務人的上訴狀況;
- 行為人利用債務人上述狀況與債務人約定高額利息。
立法者希望透過刑事保護的,並非一般的借貸行為,而是利用被害人處於一種幾乎不能反抗的狀況下被強迫進行借貸的行為,從而使犯罪行為人能夠獲取遠高於對等給付的不法利益。因此,怎樣的狀況才應視為“困厄狀況”是認定是否存在暴利罪的一個關鍵事實問題。
正如中級法院曾於2021年5月13日在第457/2019號卷宗中的判決中指出的,“困厄狀況”,是指債務人在經濟上急需金錢的情形或壓力,即:需錢恐急的情形,若債務人不能馬上借到錢,就會受到難以回復的損失。判決書已證事實中“急需金錢”的表述,對於確認在《刑法典》第219條第1款中所要求的存在“困厄狀況”而言,是不足及過於簡單的。
這種理解對解決本案的問題很有助益。
在本案中,已證事實並不存在關於“利用債務人之困厄狀況“方面的事實:已證事實第4點至第28點,可以知悉案中25名被害人困“急需金錢週轉”以支付的士費用、交車租、交房租、維修的士、作為生活費用、家庭急用、支付賠償金等等之緣故,分別相約嫌犯會面。很明顯,被害人的這種借款理由及借款的金額,未能直接反映到彼等是處於上述的“困厄狀況”,因為各受害人並沒有處於一種經濟處境艱難,甚至基本生存和生活權利受威脅,需要在別無選擇下借款的境地。
雖然,被上訴裁判中的“事實的判斷”部分,當中亦載明各被害人急需金錢週轉的情況和原因,某程度上反映出各借款人似乎處於“無可選擇”的處境,看到其等借款之相對必要性甚至是無可選擇性,但是,在本案中,僅證實受害人“急需金錢週轉”,並不能由此推論出受害人們處於《刑法典》第219條第1款中所要求的存在“困厄狀況”狀態。
因此,被上訴的判決存在法律適用的瑕疵,上訴人的這部分的上訴理由成立,並開釋上訴人被判處的25項《刑法典》第219條第1款結合第3款a項所規定及處罰的「暴利罪」。
基於此,應該在維持恐嚇罪的判罪和量刑的基礎上,考慮本案的犯罪情節,給予上訴人3年緩刑期限。
澳門特別行政區,2021年11月18日
蔡武彬



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