Processo nº 1157/2020
Data do Acórdão: 25NOV2021
Assuntos:
Acção para determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos
Ilegitimidade passiva
Associação dos Advogados de Macau
Conselho Superior de Advocacia
SUMÁRIO
À Associação dos Advogados de Macau que chegou a accionar os meios contenciosos contra uma sanção disciplinar aplicada a um advogado pelo Conselho Superior de Advocacia com vista à sua agravação, deve ser reconhecida a legitimidade passiva para intervir, na qualidade de contra-interessada, na acção para determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos, instaurada pelo advogado contra o Conselho Superior de Advocacia, em que se pede a condenação desse conselho na prática do acto consubstanciado na declaração da prescrição do procedimento disciplinar.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 1157/2020
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
A, advogado devidamente identificado nos autos, vem instaurar acção para determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos, contra o Conselho Superior de Advocacia (doravante simplesmente designado por CSA, pedindo a condenação do CSA na prática do acto consubstanciado na declaração da prescrição do procedimento disciplinar contra ele instaurado e consequentemente, da sanção disciplinar que lhe foi aplicada.
Citado, o CSA contestou pugnando pela improcedência da acção.
Findos os articulados, veio o Réu CSA suscitou a ilegitimidade passiva por não ter sido pedida a citação da Associação dos Advogados de Macau (doravante simplesmente designado por AAM) para intervir na acção como contra-interessada, pedindo com fundamento nisso a absolvição dele da instância, mediante o requerimento do teor seguinte:
Conselho Superior da Advocacia (“CSA”), Réu nos autos supra cotados, tendo-se apercebido de que o A. não pediu a citação da Associação dos Advogados de Macau (“AAM”) para intervir nesta acção como contra-interessada, vem assinalar a sua
ilegitimidade passiva
nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. A AAM recorreu contenciosamente da sanção disciplinar que foi aplicada pelo CSA ao aqui Autor, Sr. Dr. A, visando com esse recurso não a sua absolvição, mas o agravamento da referida pena.
2. Esse recurso, dirigido ao Tribunal de Segunda Instância, foi autuado com o n.º 776/2017 e encontra-se pendente.
3. É, pois, manifesto o interesse directo da AAM em participar na discussão, que deverá ser feita nos presentes autos, da alegada prescrição do procedimento disciplinar que sancionou o Sr. Dr. A.
4. Esta circunstância impõe a caracterização da AAM como contra-interessada, à luz do preceituado nos artigos 105.º, n.º 1, 106.º in fine, e 46-°, n.º 2, f), do CPAC,
5. e, salvo o devido respeito, depreendia-se já dos próprios termos da petição inicial.
6. A omissão do pedido de citação de contra-interessado gera ilegitimidade, em obediência ao disposto no já referido artigo 106.º do CPAC.
7. A ilegitimidade, passiva neste caso, é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, segundo o estabelecido nos artigos 413.º, e), e 414.º do CPC, aplicáveis subsidiariamente no âmbito do contencioso administrativo ex vi o artigo 1.º do CPAC,
8. obsta ao conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, por força do preceituado no artigo 412.º, n.º 2, do CPC, também aplicável subsidiariamente pela mesma razão,
9. e deveria ter logo conduzido à rejeição liminar da petição inicial, em harmonia com o disposto nos supra indicados artigos 106.º e 46.º, n.º 2, f), do CPAC, o que se observa sempre sem quebra do dever de respeito.
Pelo exposto, requer respeitosamente a V. Exa. que, verificada oficiosamente a apontada ilegitimidade, absolva o CSA da instância.
Cumprido o contraditório, o Autor respondeu pedindo a rejeição por intempestividade da excepção deduzida, subsidiariamente, o indeferimento da excepção, ou ainda subsidiariamente o suprimento da ilegitimidade passiva.
O Dignº Magistrado do Ministério Público pronunciou-se sobre a excepção suscitada pelo Réu, pugnando pela procedência da excepção e consequentemente pela absolvição do Réu da instância.
Pela simplicidade da questão suscitada, no uso da faculdade conferida pelos artºs 619º/-a) e 626º/2 do CPC, ex vi do artº 1 do CPAC, e com a concordância dos Adjuntos do Colectivo, o Relator determinou que fossem dispensados os vistos e que a excepção suscitada pela entidade recorrida fosse imediatamente submetida à conferência.
Cumpre conhecer.
De acordo com os elementos existentes nos autos, é de dar como assente a seguinte matéria de facto com relevância à apreciação e decisão da excepção suscitada pelo Réu:
* O Autor é advogado inscrito na AAM;
* Foi criminalmente condenado, em última instância, por Acórdão do TSI, de 14JUL2016, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos;
* No âmbito do procedimento disciplinar contra ele instaurado, pelos factos que motivaram a condenação criminal, o ora Autor foi punido disciplinarmente pelo CSA com a pena de suspensão do exercício da advocacia pelo período de dois anos, suspensa, na sua execução por um período de três anos;
* Notificado da condenação disciplinar, o ora Autor não reclamou nem recorreu;
* Contra a sanção disciplinar, foi interposto pela AAM recurso contencioso de anulação para o TSI, onde foi registado sob o nº 776/2017 e se encontra pendente;
* Da mesma sanção, a AAM reclamou para o CSA, tendo pedido a agravação da pena disciplinar;
* Em sede de reclamação, o CSA deliberou manter a pena reclamada;
* Da deliberação que manteve a sanção disciplinar objecto do recurso contencioso de anulação nº 776/2017, o ora Autor interpôs recurso contencioso de anulação para o TSI, onde foi registado sob o nº 690/2018;
* Por Acórdão do TSI proferido em 13JUN2019, no processo nº 690/2018, foram julgadas procedentes as excepções de ilegitimidade activa e de intempestividade e determinada a absolvição da entidade recorrida CSA e da contra-interessada AAM;
* Desse Acórdão foi interposto pelo ora Autor recurso jurisdicional para o TUI, onde se encontra pendente; e
* Na pendência de ambos os recursos, o Autor intentou contra o CSA a presente acção para determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos, pedindo a condenação do CSA na prática do acto consubstanciado na declaração da prescrição do procedimento disciplinar e consequentemente, da sanção disciplinar nele aplicada.
Inteirados do que se tem passado, já estamos em condições para a apreciação da tempestividade do presente recurso contencioso.
Vejamos.
Defende o Autor, em resposta à excepção da ilegitimidade passiva suscitada pelo Réu, que não tendo sido deduzida em sede de contestação, a excepção da ilegitimidade passiva teria de ser indeferida por intempestividade.
Não tem razão o Autor.
Constitui excepção dilatória a ilegitimidade de alguma das partes – artº 413º/-e) do CPC.
Diz o artº 414º do CPC, aplicável ex vi do artº 99º do CPAC, que o tribunal deve conhecer oficiosamente de todas as excepções dilatórias.
Sendo de conhecimento oficioso, não releva a questão da intempestividade suscitada pelo Autor e temos de a apreciar.
Urge saber portanto se a AAM pode ser considerada contra-interessada e deve ser chamada enquanto tal para intervir na presente acção.
Sobre este aspecto, o Ministério Público opinou em sede de vista dizendo que:
……
ora, o art.105.º do CPAC manda, quanto à legitimidade, aplicar os arts.33.º a 40.º deste Código, inclusive o seu art.39º que dispõe: Têm legiti-midade para intervir no processo como contra-interessados, as pessoas a quem o provimento do recurso possa directamente prejudicado. O que implica que têm legitimidade de intervir no processo como contrainteressado quaisquer pessoas que ficam directamente prejudicadas pela procedência da acção para determinação da prática de acto legalmente devido.
Sufragamos a brilhante doutrina que inculca (José Cândido de pinho: Notas e Comentários ao Código de Processo Administrativo Contencioso, Volume. I, CFJJ 2018, p.287, sublinha nossa): A forma como o legislador desenhou esta figura transmite a sensatez de ter querido colocar o contra-interessado dotado de um interesse contrário ao do recorrente, pois se este pretende destruir o acto através da declaração de nulidade ou da anulação (isto no recurso, bem entendido), aquele pretenderá mantê-lo na ordem jurídica, porque em princípio ele lhe será favorável.
Importa ter presente que o dito art.39º exige tão-só “directamente prejudicadas”. Em obediência ao preceito do art.8.º do Cód. Civil, temos de presumir que o legislador alude, propositada e acertadamente, apenas ao adverbio “directamente”. O que nos leva a inferir que a legitimidade do contrainteressado não pressupõe o prejuízo pessoal.
Em reforço da nossa opinião, basta pensarmos na acção popular e na legitimidade atribuída pelo legislador tanto ao M.ºP.º como às pessoas colectivas (art.33.º, alíneas b), c) e d), do CPAC). Convém notar que a legitimidade da Associação dos Advogados de Macau, prevista na alínea c) do art.46.º do Código Disciplinar dos Advogados, constitui o excelente exemplar da legitimidade contemplada na alínea d) do art.46.º do CPAC.
Nesta linha de raciocínio, e na medida em que no seu recurso con-tencioso autuado com o n.º776/2017 nesse Venerando TSI, a Direcção da Associação dos Advogados de Macau tomou a posição manifestamente contrária com o Autor da acção em apreço, parece-nos que tal Associação adquire a legitimidade de intervir nesta acção como contrainteressada.
Sendo assim e em virtude de que na petição, o Autor não indica a supramencionada contrainteressada nem requereu a citação dela, afigura-se-nos que se verifica a invocada ilegitimidade passiva que, constituindo pressuposto processual, pode ser arguida mesmo após a contestação e é do conhecimento oficioso.
……
Estamos inteiramente de acordo.
Na verdade, é o próprio artº 46º do Código Disciplinar dos Advogados que confere a legitimidade à AAM para reagir contra as deliberações versando sobre decisões na matéria disciplinar do CSA.
Com a instauração da presente acção, o que pretende o ora Autor é a extinção do procedimento disciplinar em que foi punido disciplinarmente com a pena de suspensão do exercício da advocacia pelo período de dois anos, suspensa, na sua execução por um período de três anos.
E esse acto punitivo praticado pelo CSA é objecto de um recurso contencioso de anulação, ainda pendente, interposto pela AAM, com vista à anulação com fundamento no erro na determinação concreta da pena, mais concretamente falando, na alegada insuficiência do quantum da pena para satisfazer a exigência imposta pela necessidade da prevenção geral.
Ou seja, o que tem em vista a AAM com a interposição do recurso contencioso de anulação é a agravação da pena aplicada ao ora Autor na sequência da anulação do acto punitivo.
Assim, a eventual procedência da presente acção conduzirá à extinção do procedimento disciplinar onde o ora Autor foi punido e por arrastamento à extinção da pena nele aplicada.
Se isso vier acontecer, irá frustrar certamente a pretensão de ver agravada a pena disciplinar aplicada ao ora Autor, implicitamente vertida no petitório do acima dito recurso contencioso de anulação da deliberação do CSA que puniu disciplinarmente o ora Autor.
É justamente por essa eventual frustração que a AAM poderá vir a ser directamente prejudicada pela procedência da presente acção.
O que obviamente justifica o reconhecimento à AAM a legitimidade passiva para intervir, na qualidade de contra-interessada, na presente acção, nos termos do disposto no artº 39º do CPAC.
Julgado ilegítimo CSA, por não acompanhado da AAM ao seu lado, resta saber se há lugar ao suprimento da ilegitimidade passiva, tal como assim pediu o Autor a título subsidiário.
Ou antes pelo contrário se deve determinar simplesmente a absolvição do Réu da instância, conforme assim entendeu o Ministério Público.
Bom para nós, por força do princípio do aproveitamento do processado em prol da justiça célere, consagrado no artº 60º do CPAC, considerando que constitui um oficio do juiz providenciar pelo suprimento das excepções dilatórias, de forma a permitir que o processo possa prosseguir com regularidade e possibilitar uma decisão de mérito sobre a pretensão das partes, e ainda tendo em conta a fase processual em que se encontra a presente acção, é sempre mais vantajoso permitir ao Autor chamar intervir a AAM, enquanto contra-interessada, na presente acção, do que determinar a absolvição do Réu da instância e obrigar o Autor instaurar uma nova acção idêntica para reivindicar a justiça.
Resumindo e concluindo:
À Associação dos Advogados de Macau que chegou a accionar os meios contenciosos contra uma sanção disciplinar aplicada a um advogado pelo Conselho Superior de Advocacia com vista à sua agravação, deve ser reconhecida a legitimidade passiva para intervir, na qualidade de contra-interessada, na acção para determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos, instaurada pelo advogado contra o Conselho Superior de Advocacia, em que se pede a condenação desse conselho na prática do acto consubstanciado na declaração da prescrição do procedimento disciplinar.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência julgar procedente a excepção da ilegitimidade passiva e determinar a notificação do Autor para o seu suprimento no prazo de 10 dias, sob pena de absolvição do Réu da instância.
Custas pelo Autor, com a taxa de justiça fixada em 4 UC.
Registe e notifique.
RAEM, 25NOV2021
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Mai Man Ieng
1157/2020-10