Processo nº 588/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 25 de Novembro de 2021
Recorrente: A, S.A.
Recorrida: B Limited
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
B Limited, com os demais sinais dos autos,
veio instaurar acção declarativa sob a forma sumária contra
A, S.A.,
Pedindo a condenação desta a pagar o montante de MOP125.991,50, acrescidos dos juros legais, a contar da data da sentença de 1ª Instância até ao pagamento integral.
Foi proferida sentença condenando a Ré, agora Recorrente a pagar à Autora o montante de MOP125.991,50 acrescido de juros legais a contar do trânsito em julgado da sentença até efectivo e integral pagamento.
Não se conformando com a sentença proferida vem a Ré interpor o presente recurso apresentando as seguintes conclusões:
I. O acórdão recorrido incorreu em vício de violação de lei.
II. O acidente ocorrido no trajecto directo de ida e regresso entre a residência e local de trabalho em transporte não fornecido pelo empregador não integra a previsão legal do artigo 3º, alínea a), do DL nº 40/95/M, nem a cláusula inserta no contrato de seguro de trabalho nos autos tem a capacidade de aplicar o conceito legal, nem qualificar o acidente como sendo de trabalho.
III. A cláusula inserta no contrato de seguro de trabalho celebrado entre a Autora e a entidade patronal do trabalhador, com exclusiva eficácia entre as partes, somente alarga a cobertura dos danos sofridos pelo trabalhador, não permitindo qualificar o acidente como trabalho.
IV. Não se provou tratar simultaneamente de acidente de viação e de trabalho, não estão preenchidos os pressupostos para a sub-rogação nos termos do artigo 58.º do DL 40/95/M.
V. Não estão, também, preenchidos os pressupostos para a aplicação da sub-rogação legal nos termos do artigo 586.º do Código Civil.
Respondendo veio a Recorrida contra-alegar apresentando as seguintes conclusões:
1. Salvo o devido respeito, a recorrida não concorda com o entendimento explanado pela recorrente na petição de recurso.
2. A recorrida já interpôs recurso do despacho de indeferimento constante das fls. 248 a 249 dos autos, e por Acórdão n.º 989/2020 proferido pelo TSI, foi anulado o referido despacho.
3. O TSI tem o seguinte entendimento no seu Acórdão:
“I – A obrigatoriedade de seguro contra o acidente de trabalho através de cláusulas estandardizadas, não afasta a possibilidade de, entre as partes do contrato de seguro, estipular cláusulas de conteúdo mais favorável ao segurado/trabalhador, sendo uma das hipóteses introduzir uma cláusula ampliadora do conceito de “ida e regresso do local de trabalho a casa”, ou seja, incluir no seguro de acidente de trabalho a cobertura dos acidentes que possam ocorrer durante o trajecto para o local de trabalho ou no regresso deste, independentemente do meio de transporte utilizado.
II – Na situação em que o acidente seja simultaneamente laboral e de viação, e, caso ele seja provocado pelo condutor do veículo acidentado, é este que se responsabiliza pelo dano causado, sem prejuízo de que tal responsabilidade civil seja transferida para a seguradora nos termos da legislação reguladora da matéria em causa. Uma vez provada a culpa do condutor do veículo acidentado, em termos de justiça e em situação normal, é ele que deve ser responsável pelos danos causados.
III – O artigo 58º/1 do DL n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, consagra uma situação de sub-rogação legal, figura igualmente prevista no artigo 586.º do CCM, cuja aplicação é independentemente da natureza do direito da indemnização (exercido pelo sub-rogante/segurador), que pode assumir uma natureza convencional ou legal.”
4. Foi também decidido no Acórdão n.º 989/2020 do TSI que “Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em conceder provimento ao presente recurso, anulando-se a sentença recorrida e remeter os autos ao TJB a fim de continuar os termos processuais até final, caso inexista obstáculo legal.”
5. Nos termos do art.º 582.º do CPC, o respectivo acórdão já foi transitado em julgado.
6. A recorrente interpôs recurso que versa sobre a mesma questão, mas no Acórdão n.º 989/2020, o TSI já conheceu da matéria do exercício, por parte da recorrida, do direito de regresso por sub-rogação previsto pelo DL n.º 40/95/M.
7. Se o MM.º Juiz do TSI conheça novamente do recurso interposto pela recorrente, violará, na realidade, o caso julgado e o princípio “ne bis in idem” previsto pelo art.º 580.º do CPC, pelo que pede-se ao MM.º Juiz do TSI para rejeitar o recurso da recorrente.
8. Se assim não for entendido, vem a recorrida alegar o seguinte.
9. É verdade que o contrato de seguro de acidente de trabalho em causa tem cláusula especial de ida e regresso do local de trabalho a casa. No entanto, não se trata duma cláusula especial estipulada entre a recorrente e a entidade patronal na falta de qualquer norma jurídica.
10. Nos termos do art.º 72.º do DL n.º 40/95/M, “A transferência para as seguradoras das responsabilidades que recaem sobre as entidades patronais, nos termos do presente diploma, é feita mediante apólice uniforme de seguro de acidentes de trabalho e doenças profissionais, de modelo a aprovar por portaria do Governador.”
11. A apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho e doenças profissionais aprovada pela Portaria n.º 237/95/M, incluiu também cláusulas especiais aplicáveis quando expressamente referidas nas condições particulares, das quais a cláusula n.º 3 regulou a cobertura do risco de trajecto (in itinere).
12. Depois, a respectiva cláusula foi alterada pela Ordem Executiva n.º 39/2015, e passou a ter a redacção seguinte: “Cláusula n.º 3 Cobertura do risco de trajecto (in itinere) – Mediante a aplicação da correspondente sobretaxa, este seguro abrange também os acidentes que os trabalhadores possam sofrer no trajecto normal para o local de trabalho ou no regresso deste, fora das situações referidas na subalínea (7) da alínea a) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto.
13. Daí que, a cláusula especial do contrato de seguro de acidente de trabalho em causa, tem por base da ratio legis o art.º 72.º do DL n.º 40/95/M, e a cláusula n.º 3 da apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho e doenças profissionais aprovada pela Portaria n.º 237/95/M (alterada pela Ordem Executiva n.º 39/2015), não se tratando duma cláusula arbitrária negociada e estipulada entre a entidade patronal e a recorrente nos termos do art.º 400.º do Código Civil.
14. A referida cláusula especial tem por finalidade a extensão do âmbito do acidente de trabalho definido no DL n.º 40/95/M, de modo a garantir melhor os direitos e interesses dos trabalhadores quando o empregador esteja disposto a pagar a sobretaxa.
15. Ao abrigo dos dispostos no art.º 3.º, al. a), subalíneas (5) e (6) do DL n.º 40/95/M, alterado pela Lei n.º 6/2015, é igualmente considerado como acidente de trabalho o ocorrido no percurso de ida e volta entre a residência e o local de trabalho.
16. Nas normas imperativas sobre acidente de trabalho, o legislador admitiu expressamente que o acidente ocorrido no percurso de ida e volta entre a residência e o local de trabalho podia ser considerado como acidente de trabalho, e era abrangido pelas normas do DL n.º 40/95/M, incluindo o caso previsto no art.º 58.º, em que o acidente for, simultaneamente, de trabalho e de viação.
17. E segundo o ponto 89 nas fls. 15 do Parecer da 1ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa n.º 2/V/2015 (Assunto: Proposta de lei intitulada “Alteração ao regime de reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”), “E, nos termos da apólice uniforme contida na Portaria n.º 237/95/M, de 14 de Agosto, e na prática dos seguros de Macau, essa cobertura do risco de trajecto para o local de trabalho pode ser alargada, para incluir as deslocações em qualquer meio de transporte, mesmo que não fornecido pelo empregador, facultativamente, estando em aberto se as partes pretendem ou não celebrar uma cláusula especial nesse sentido.”
18. Daí que, do ponto de vista do legislador, reconheceu-se também que a cobertura do risco de trajecto para o local de trabalho pode ser alargada para incluir as deslocações em qualquer meio de transporte, sendo tal expansão uma prática dos seguros de Macau.
19. Na aplicação dos termos jurídicos, a “expansão” significa ampliar a alcance da lei partindo da sua base original, sendo a alcance ampliada também regulada pela respectiva lei, incluindo os eventuais direitos e deveres.
20. Entendeu-se na petição de recurso que “o contrato de seguro de acidente de trabalho em causa tem cláusula especial da ida e volta do local de trabalho a casa, mas tal cláusula apenas ampliou o âmbito da indemnização, não permitindo caracterizar o acidente como sendo de trabalho”, e salvo o devido respeito, entende a recorrida que não foi tido em consideração o regime jurídico geral dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
21. Em contrário, o TJB indicou expressamente na sua sentença n.º CV1-19-0007-CAS que “Este Tribunal entende que o acidente em apreço foi causado pelo condutor do ciclomotor por não ter cedido a passagem ao peão que se encontrava na passagem para peões, pelo que o condutor do ciclomotor é o único culpado pela ocorrência do acidente. Por o ciclomotor acidentado estar legalmente segurado pela ré A S.A., de acordo com o art.º 3.º do DL n.º 57/94/M - «Regime Legal do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel», deve a ré, na qualidade de seguradora do ciclomotor acidentado, assumir a responsabilidade da indemnização pelos danos sofridos pelo sinistrado no respectivo acidente de viação.”
22. A indemnização paga pela recorrida ao empregado lesado deveu-se inteiramente ao acidente de viação causado por culpa do condutor do ciclomotor segurado pela recorrente, e só foi adiantada pela autora em virtude do seguro de acidente de trabalho, mas não resta dúvida que deve a recorrente, na qualidade de entidade seguradora da responsabilidade automóvel, assumir, enfim, a responsabilidade da indemnização.
23. Salvo o devido respeito, não se vislumbra que a recorrente tem qualquer razão para excluir a sua responsabilidade da indemnização pelo acidente de viação em causa.
24. Além disso, a recorrente ainda apresentou o fundamento de “Não estão, também, preenchidos os pressupostos para a aplicação da sub-rogação legal nos termos do artigo 586.º do Código Civil”, com o qual não concorda a recorrida.
25. E de acordo com o contrato de seguro de acidente de trabalho celebrado entre a recorrida e a entidade patronal, conjugado com o DL n.º 40/95/M alterado pela Lei n.º 6/2015, e a “apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho e doenças profissionais” aprovada pela Portaria n.º 237/95/M (alterada pela Ordem Executiva n.º 39/2015), a recorrida necessitou de cumprir o contrato de seguro de acidente de trabalho, e proceder antecipadamente à reparação dos danos sofridos pelo empregado lesado C conforme o DL n.º 40/95/M.
26. Segundo as alíneas B) e C) dos factos provados na sentença n.º CV1-19-0007-CAS do TJB, fica provado que o acidente de viação em causa ocorreu ao empregado lesado C no trajecto do local de trabalho à residência, e ao mesmo tempo, tanto a sentença n.º CV1-19-0007-CAS do TJB, como o acórdão n.º 989/2020 do TSI, reconheceram que estava em causa também um acidente de trabalho.
27. Dos documentos 8 a 11 juntados à petição inicial resulta que, ao assinar cada “acordo de indemnização entre a empregadora e o empregado”, o empregado lesado C afirmou expressamente que “eu, ‘C’, e a ‘D LIMITED’ conhecem perfeitamente e aceitam o pagamento, por parte da ‘B Limited – Filial de Macau’, da indemnização de MOP$*****, para efeitos de resolução e renúncia à parte da indemnização pelo acidente de trabalho ocorrido em 9 de Abril de 2016, prevista pelas legislações da indemnização aos empregados vigentes em Macau (DL n.º 40/95/M de 14 de Agosto de 1995 e outros diplomas). Quanto à indemnização final, prevalece a fixada depois de ser completamente curado o empregado e conforme os respectivos documentos. O supracitado pagamento foi efectuado nos termos das legislações vigentes em Macau; porém, ainda está em curso a investigação da causa do respectivo acidente e das suas consequências. Por isso, eu sei que a companhia de seguros reserva, nos termos legais, o direito de me exigir o reembolso da supracitada quantia paga, se a conclusão da aludida investigação revele que a quantia paga não se encontra na cobertura da apólice de seguro de acidentes de trabalho e doenças profissionais. Eu e a B conhecem perfeitamente o conteúdo do presente acordo, e concordam com a imediata entrada em vigor do mesmo após a recepção da supracitada quantia indemnizatória. No futuro, qualquer direito de acção relacionado com o acidente em causa pertencerá à B Limited – Filial de Macau.”
28. Daí que, quer ao nível jurídico, quer ao nível voluntário, a recorrida pode exercer o direito de regresso por sub-rogação.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
De acordo com o disposto no nº 3 do artº 589º do CPC o objecto do recurso limita-se pelas conclusões.
Das conclusões de recurso resulta que a Recorrente apenas se insurge contra a inclusão da cláusula no contrato de seguro de trabalho que prevê a qualificação como acidente em serviço de qualquer acidente que ocorra no trajecto de ida e regresso entre a residência e o local de trabalho em transporte não fornecido pelo empregador, daí que conclui não ter sido o acidente em serviço, não estarem preenchidos os pressupostos do artº 58º do Decreto-Lei nº 40/95/M nem os da sub-rogação legal nos termos do artº 586º do C.Civ..
Nestes autos havia já sido proferido despacho a fls. 248 a 249 onde se julgou a acção improcedente por considerar que não havia lugar à sub-rogação.
Interposto recurso daquele despacho veio a ser concedido provimento ao mesmo por este Tribunal e anulada a decisão por “violar o artigo 58º do citado DL e remeter os autos ao TJB a fim de continuar os termos processuais até final, caso inexista obstáculo legal”.
Proferida sentença a condenar a Ré e ali e aqui Recorrente, veio esta interpor novamente recurso com o mesmo fundamento.
Ora, sendo o processo o mesmo e havendo já sido proferida decisão sobre esta questão a qual transitou em julgado não pode este fundamento ser novamente apreciado havendo que julgar o recurso improcedente, sem necessidade de outras considerações.
II. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo da Recorrente.
Registe e Notifique.
RAEM, 25 de Novembro de 2021
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
588/2021 CÍVEL 10