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Processo nº 111/2021 Data: 15.10.2021
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “vendas «em pirâmide»”.
Recurso para o Tribunal de Última Instância.
Aplicação da lei penal no espaço.
Jurisdição/competência dos Tribunais da R.A.E.M..


SUMÁRIO

1. Ainda que nos termos do art. 390°, n.° 1, al. g) do C.P.P.M., do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância impugnado não devesse caber recurso para o Tribunal de Última Instância, em causa estando a “jurisdição/competência dos Tribunais da R.A.E.M.”, admissível é o recurso para a apreciação e decisão desta “questão”.

2. Uma “pirâmide financeira” é um modelo comercial que assenta em esquemas empresariais que têm como (principal) objectivo a “remuneração pela indicação de novos membros”, ou seja, através de uma “taxa de entrada no negócio”.

Como cada novo membro faz um investimento inicial, os membros dos níveis inferiores vão sustentando os superiores, fazendo com que o dinheiro suba em direcção ao topo.

Assim, a “forma” para sustentar o negócio não é a venda de um produto ou serviço, mas sim a adesão de novas pessoas no esquema que, ao entrar, precisam de fazer uma “contribuição financeira”.

Conforme o esquema vai ganhando volume, ele, inevitavelmente, vai acabar por se tornar insustentável, pois que acaba por ser (absolutamente) impossível pagar todas as pessoas, dado que o número de membros torna-se tão grande que os pagamentos deixam de poder acontecer, apenas obtendo ganhos quem esteja no topo.

3. Nos termos do art. 7° do C.P.M: “O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico se tiver produzido”.

Com o assim preceituado, adoptou o legislador de Macau um critério amplo, que tanto atende ao lugar onde a conduta ocorreu como ao lugar onde se deu o resultado, e que se costuma designar por critério misto, plurilateral ou da ubiquidade.

4. Em termos de regulamentação da questão da “aplicação da lei penal no espaço” optou-se assim por uma conjugação de várias teorias, a da actividade ou da acção (o crime pratica-se no lugar onde o agente realizou o processo executivo – acção ( ou omissão); a do efeito (o lugar do crime é onde se produz o resultado); e a do efeito intermédio (o crime acontece onde a energia movimentada pelo agente atinge o objecto ou alcança a vítima).

O relator,

José Maria Dias Azedo

Processo nº 111/2021
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão de 28.02.2020 proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-18-0468-PCC do Tribunal Judicial de Base decidiu-se condenar os (1° e 2ª) arguidos, A (甲) e B (乙), com os restantes sinais dos autos, como co-autores materiais da prática de 1 crime de “promoção e organização de vendas «em pirâmide»”, p. e p. pelo art. 28°-A, n.° 2, al. b) e 45°-A da Lei n.° 6/96/M, (na redacção introduzida pela Lei n.° 3/2008), na pena individual de 4 anos de prisão; (cfr., fls. 1261 a 1268-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Do assim decidido, os referidos (1° e 2ª) arguidos recorreram para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 25.02.2021, (Proc. n.° 426/2020), negou provimento ao recurso, confirmando a decisão condenatória recorrida; (cfr., fls. 1489 a 1527).

*

Ainda inconformados, trazem os ditos arguidos o presente recurso, onde, nas suas alegações e conclusões, colocam “questões” que identificam como a “falta de jurisdição/competência dos Tribunais da R.A.E.M.” (para julgar o “crime” matéria dos autos); “nulidade do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância por omissão de pronúncia”; “indevida qualificação jurídico-penal dos factos”; e “erro na determinação da pena”; (cfr., fls. 1562 a 1575-v).

*

Dando-se aqui como integralmente reproduzido o teor da decisão proferida nos “Autos de Reclamação n.° 3/2021/R”, datada de 18.06.2021, (cfr., fls. 1676 a 1678), sem mais demoras se passa a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base (e pelo Tribunal de Segunda Instância), foi dada como “provada” a factualidade seguinte:

“ 1.
O arguido A tomou conhecimento dum projecto de “investimento de capital puro” que funcionava na cidade Guangxi Nanning da China, o qual não tem qualquer produto material, companhia oficialmente registada ou representante legal (titular).
2.
O referido projecto de “investimento de capital puro” obtinha lucro não através de compra e venda de produtos, mas sim de angariar participantes novos e cobrar as taxas de adesão:
   * No início, é preciso comprar “acção original” comum, no valor de CNY$3.800,00, e depois cada acção a comprar é no valor de CNY$3.300,00;
   * Os residentes de Macau que comecem a participar têm de comprar 21 acções, pelo preço total de CNY$69.800,00, para ser “chefe”, só podem comprar 21 acções com cada BIRM.
   * Após investir a referida quantia, podem receber uma comissão no valor de CNY$19.000,00, e depois só podem continuar a receber comissões se consigam angariar novo participante para investir;
   * Por cada participante novo que consiga angariar para ser “chefe” (ou seja comprar 21 acções), um participante do nível de “chefe” pode receber uma comissão no valor de CNY$7.000,00;
   * Se tiver comprado 65 acções no momento de ingresso, podem ser “gerente”, mas precisam de pagar uma quantia de CNY$162.800,00;
   * Por cada participante novo que consiga angariar para ser “chefe” (ou seja comprar 21 acções), um participante do nível de “gerente” pode receber uma comissão no valor de CNY$13.000,00; Por cada participante novo que consiga angariar para ser “gerente”, pode receber uma comissão no valor de CNY$27.900,00;
   * Quando um “gerente” e os seus subordinados do nível de “chefe” tiverem comprado 600 acções no total, esse “gerente” torna-se em “gerente-geral”.
   * E “gerente-geral” é dividido em 4 níveis:
   * “Gerente-geral” do 1º nível: logo depois de se tornar em “gerente-geral”, pode receber dos seus subordinados ou dos participantes que esses subordinados angariaram uma quantia de CNY$380,00 por acção como comissão;
   * “Gerente-geral” do 2º nível: quando qualquer subordinado do “gerente-geral” do 1º nível se torne em “gerente-geral”, o original “gerente-geral” do 1º nível torna-se em “gerente geral” do 2º nível, pode receber dos seus subordinados ou dos participantes que esses subordinados angariaram uma quantia de CNY$57,00 por acção como comissão;
   * “Gerente-geral” do 3º nível: quando qualquer subordinado do “gerente-geral” do 2º nível se torne em “gerente-geral” do 2º nível, o original “gerente-geral” do 2º nível torna-se em “gerente geral” do 3º nível, pode receber dos seus subordinados ou dos participantes que esses subordinados angariaram uma quantia de CNY$38,00 por acção como comissão;
   * “Gerente-geral” do 4º nível: quando qualquer subordinado do “gerente-geral” do 3º nível se torne em “gerente-geral” do 3º nível, o original “gerente-geral” do 3º nível torna-se em “gerente geral” do 4º nível, o original “gerente geral” do 4º nível tem de desligar-se do respectivo investimento.
3.
Os arguidos A e B procuraram participantes de nível inferior, comprometeram-se a que poderiam desligar-se do projecto a qualquer tempo e arrecadar o fundo investido no momento de desligação, convidaram e acompanharam os indivíduos interessados para ir visitar Guangxi Nanning, promovendo esse projecto.
4.
De Julho de 2008 a Julho de 2009, os 2 arguidos, como organizador e convocador, promoveram e recrutaram em Macau participantes de nível inferior, formaram uma estrutura de 5 níveis de participantes que são todos residentes de Macau. O 1º nível foi formado pelos convocadores A e B; o 2º nível pelo casal C e D; o 3º nível por E, F e 5 indivíduos desconhecidos; o 4º nível por G, subordinado de F, e casal H e I; o 5º nível por J, subordinado do casal H e I (vide a estrutura orgânica constante da fls. 906 dos autos).
5.
O casal C e D, do referido 2º nível, cobrou dos participantes um montante total de mais de CNY$1.000.000,00, que foi remetido aos arguidos A e B. Também recebeu desses arguidos comissões no valor de cerca de CNY$1.000.000,00, que foram parcialmente devolvidas aos seus subordinados que se desligaram do projecto, o fundo investido pelo casal C e D e os fundos investidos pelos subordinados, remetidos por estes aos arguidos A e B, não foram devolvidos pelos 2 arguidos.
6.
De Março de 2008 a Outubro de 2009, os 2 arguidos, como organizador e convocador (K foi cabeça nominal), promoveram e recrutaram pelo menos 14 pessoas, formaram uma estrutura de 6 níveis de participantes, entre os quais, L e M são residentes do Interior da China, enquanto que os outros são todos residentes de Macau. O 1º nível foi formado pelos convocadores A e B (K foi cabeça nominal); o 2º nível por N; o 3º nível por O, P e Q; o 4º nível por R, subordinado de P, S, subordinado de Q, T, subordinado de O; o 5º nível por U e L, subordinados de T; o 6º nível por V, subordinado de U, M, subordinado de L. (vide a estrutura orgânica constante da fls. 906 dos autos)
7.
De Outubro de 2008 a Maio de 2009, os 2 arguidos, como organizador e convocador (B foi cabeça nominal), promoveram e recrutaram pelo menos 9 pessoas, formaram uma estrutura de 7 níveis de participantes, entre os quais, W é residente de Hong Kong, enquanto que os outros são todos residentes de Macau. O 1º nível foi formado pelos convocadores A e B; o 2º nível por X; o 3º nível por Y; o 4º nível por Z; o 5º nível por AA; o 6º nível por W e AB, subordinados de AA; o 7º nível por AC, subordinado de AB. (vide a estrutura orgânica constante da fls. 906 dos autos)
8.
Antes de Maio de 2009, os 2 arguidos, como organizador e convocador, promoveram e recrutaram participantes de nível inferior, formaram uma estrutura de 4 níveis de participantes. O 1º nível foi formado pelos convocadores A e B; o 2º nível por AD; o 3º nível por AE e AF; o 4º nível por AG e o tio deste AH, subordinados de AF.
9.
De Abril de 2010 a Abril de 2011, AG (pediu dinheiro de AH para fazer investimento), U, Z, AA, o casal C e D, N não conseguiram arrecadar dos arguidos Ai e B os seus fundos investidos no projecto de “investimento de capital puro”, portanto, fizeram denúncia à PJ, os seus fundos investidos variam-se de CNY$69.800,00 a CNY$265.000,00. Mesmo deduzindo as comissões recebidas por estes por angariação de participantes de nível inferior, os prejuízos sofridos pelos denunciantes superam MOP$50.000,00.
10.
A Polícia averiguou a conta bancária da 2ª arguida B no [Banco(1)] (n.º XXX-X-XXXXX-X), o registo de transacção de 1 de Junho de 2008 a 1 de Junho de 2010 demonstra que, há 3 quantias superiores a HKD$180.000,00 transferidas à conta, as quais estão conformes ao preço acima aludido para ser “gerente” na operação de capital pura, no valor de CNY$162.800,00 (calculando em função da taxa de câmbio daquela altura) (vide as fls. 916 a 921 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido).
11.
O arguido A e a arguida B, agindo em conjugação de vontade e acordos comuns e em coordenação, impulsionaram em cadeia ou em forma semelhante a actividade de vendas em pirâmide, que funcionou em nome de “investimento de capital puro”, a obtenção de um benefício para o participante dependeu essencialmente do número de novos participantes que este conseguisse angariar.
12.
Agindo live, voluntaria e conscientemente, os arguidos A e B promoveram e organizaram dolosamente a actividade de vendas em pirâmide, cujos participantes são principalmente residentes de Macau, causaram aos participantes o prejuízo patrimonial global de valor consideravelmente elevado.
13.
Os 2 arguidos sabiam que a sua conduta referida era proibida e punida pela lei.

Conforme o CRC, o 1º arguido A e a 2ª arguida B são primários.
Consta do seguinte a situação pessoal e familiar dos 2 arguidos:
Arguido A - funcionário público, auferindo mensalmente uma quantia de MOP$40.000,00.
- tem uma filha menor a seu cargo.
- tem como habilitação académica o ensino superior.
Arguida B - mulher de casa.
- tem a mãe e 2 filhas menores a seu cargo.
- tem como habilitação académica o ensino superior”; (cfr., fls. 1263-v a 1266, 1517 a 1518-v e 82 a 88 do Apenso).

Do direito

3. Vem os (1° e 2ª) arguidos, A e B, recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que negou provimento ao recurso que interpuseram do Acórdão do Tribunal Judicial de Base que, como se viu, declarando-os co-autores materiais da prática de 1 crime de “promoção e organização de vendas «em pirâmide»”, p. e p. pelo art. 28°-A, n.° 2, al. b) e 45°-A da Lei n.° 6/96/M, (na redacção introduzida pela Lei n.° 3/2008), condenou-os na pena individual de 4 anos de prisão.

–– Antes de mais, importa aqui fazer uma “nota prévia”.

É a seguinte.

O presente recurso foi pelo Exmo. Relator do Tribunal de Segunda Instância admitido no seguimento e em conformidade com o decidido em sede da reclamação de anterior decisão que não o tinha admitido; (cfr., fls. 1676 a 1678).

Com efeito, (e como se salientou na aludida decisão que determinou a sua admissão), visto que o recurso tinha como fundamento a “violação de regras de competência”, atento o estatuído no art. 583°, n.° 2, al. a) do C.P.C.M., (aplicável por força do art. 4° do C.P.P.M.), motivos não existiam para que não fosse admitido.

Sendo de subscrever este entendimento, cremos, porém, que o mesmo não deve implicar eventual consideração no sentido de dever esta Instância conhecer e emitir pronúncia sobre “todas as questões pelos recorrentes colocadas nas suas conclusões”, cabendo, (tão só), decidir, como cremos dever ser o correcto, da dita “questão da competência” que justificou a admissão e subida do recurso a esta Instância, (sob pena de encontrada estar à “forma” para se poder recorrer para este Tribunal de Última Instância de decisões do Tribunal de Segunda Instância que, de acordo como o preceituado no art. 391° do C.P.P.M., não eram susceptíveis de recurso, bastando, para tal, que em causa esteja a questão da “Jurisdição/competência dos Tribunais da R.A.E.M.”, para, por arrastamento, se obter nova apreciação sobre outras questões…).

Isto é, se do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância não cabia recurso de acordo com as normas do art. 391° do C.P.P.M., a invocação de eventual “vício de violação das regras de competência” em sede do seu recurso deve apenas justificar a admissão de recurso em relação a esta “questão”, tão só devendo o Tribunal de Última Instância emitir pronúncia sobre a mesma, daí se retirando as necessárias consequências; (com a revogação do decidido em caso de verificação do alegado vício, ou com a improcedência do recurso no caso da sua inexistência; sobre a matéria, cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 22.01.2016, Proc. n.° 83/2015).

–– Dest’arte, e atento o estatuído no art. 404°, n.° 3 do C.P.P.M., passa-se a apreciar da questão pelos recorrentes identificada como relativa à “jurisdição e/ou competência dos Tribunais da R.A.E.M.”.

Previamente, tem-se como adequado consignar que em sede de qualquer pedido apresentado perante um Tribunal, a este apenas cabe apreciá-lo atentas as “questões” que aí se colocam, e não quanto a todo e qualquer dos “fundamentos”, “razões”, “opiniões”, ou mesmo doutrinas que os sujeitos processuais invoquem para sustentar ou justificar o seu ponto de vista sobre as (verdadeiras) “questões” que colocam, pois que o vocábulo (legal) “questão” não pode ser entendido de forma a abranger todos os “argumentos” invocados pelas partes; (neste sentido, cfr., v.g., entre outros os Acórdãos deste T.U.I. de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020, de 09.09.2020, Procs. n°s 62/2020, 63/2020 e 147/2020, de 16.09.2020, Proc. n.° 65/2020 e de 12.05.2021, Proc. n.° 39/2021).

Isto dito, vejamos, sendo de recordar que nos termos do art. 1°, n.° 2 da Lei n.° 9/1999, (“Lei de Bases da Organização Judiciária”) – na redacção introduzida pela Lei n.° 4/2019 – “Os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau têm jurisdição sobre todas as causas judiciais na Região, com excepção dos casos previstos na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau”, (que, como se apresenta claro, não é a situação dos autos; cfr., art. 19° da L.B.R.A.E.M.).

Pois bem, como se deixou relatado, os ora recorrentes estão condenados como co-autores materiais da prática de 1 crime de “promoção e organização de vendas «em pirâmide»”, p. e p. pelo art. 28°-A, n.° 2, al. b) e 45°-A da Lei n.° 6/96/M, (na redacção introduzida pela Lei n.° 3/2008).

Nos termos do referido art. 28°-A:

“1. É punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias quem promover ou organizar vendas «em pirâmide», tal como se encontram definidas no artigo 45.º-A.
2. Se o prejuízo patrimonial global resultante de qualquer dos actos referidos no número anterior for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos ou, tratando-se das entidades previstas no n.º 1 do artigo 3.º, com pena de multa de 100 a 800 dias, sem prejuízo de outras penas aplicáveis.
3. É punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias quem angariar pessoa para vendas «em pirâmide».
4. Havendo negligência no caso do crime previsto no número anterior, o agente é punido com pena de multa até 60 dias”.

Por sua vez, em conformidade com o art. 45°-A:

“1. Considera-se venda «em pirâmide» a actividade que promova ou efectue transacções de bens ou serviços em cadeia ou em forma semelhante e que faça depender a obtenção de um benefício para o participante essencialmente do número de novos participantes que este consiga angariar e não do número de bens ou serviços que o participante ou o novo participante tenham efectivamente vendido, ou que, na entrada para esta actividade, ou em momento posterior, condicione os participantes à obrigação de adquirir um determinado número de bens ou serviços por preço manifestamente superior ao normal do mercado ou sem garantia de retorno em condições justas.
2. Para os efeitos do número anterior, o benefício inclui a remuneração, o reembolso, a comissão, o valor resultante de uma redução do preço dos bens ou serviços, e qualquer outro pagamento, serviço ou vantagem”.

Tais preceitos legais, constituem, em nossa opinião, fiel respeito às preocupações manifestadas no processo que levou à alteração do primitivo “Regime jurídico das infracções contra a saúde pública e contra a economia” – a Lei n.° 6/96/M de 15.07 – pois que são a clara resposta da intenção legislativa de “criminalização das actividades de venda «em pirâmide», definindo-se os elementos constitutivos do crime e moldura penal”, punindo-se, “não só quem promova ou organize vendas «em pirâmide», como também quem angarie outras pessoas para esta actividade”, pois que, como se consignou no Parecer n.° 2/III/2008 da 2ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa à então “Proposta de lei intitulada «Alterações à Lei n.° 6/96/M»”, “Face às características organizacionais e ao elevado número de participantes nas actividades de venda «em pirâmide», a Comissão discutiu de forma aprofundada sobre a necessidade, ou não, de se punirem as pessoas que nestas actividades angariam outras para a organização. A questão prende-se com o facto de, por um lado, as pessoas que entram para estas actividades serem, muitas vezes, vítimas da organização em que se inserem e, por outro, por normalmente serem em número elevado as pessoas envolvidas, circunstância que tornará difícil a responsabilização dos angariadores e a consequente execução da lei. A estas preocupações acresceu a de a proposta de lei pretender punir os angariadores ainda que estes ajam com mera negligência”.

Fixado assim, tanto quanto cremos, o sentido e o pretendido alcance dos normativos que se deixaram transcritos, mostra-se adequada uma ainda que breve consideração sobre aquilo que constitui uma “pirâmide financeira”, (que não se confunde com outros métodos de venda, como a “venda directa” ou o “multi level marketing”).

Como sabido é, as empresas comerciais recorrem às mais diversas formas e estratégias para que o mercado receba e consuma os seus bens e serviços.

A isto se pode clamar “marketing”.

No fundo, e em termos gerais, consiste na arte de conquistar e manter clientes, (e que comporta diversas vertentes, podendo ser utilizado de muitas maneiras).

Uma das estratégias do marketing é o chamado “marketing multinível” ou “marketing de rede”, que consiste em recrutar pessoas que trabalham vendendo produtos ou serviços de uma empresa e que, em simultâneo, recrutam outras para tal efeito, formando uma “rede”.

Os participantes, passam, então, a ganhar com as suas próprias vendas como com as vendas daqueles que fazem parte da sua rede.

Ora, uma “pirâmide financeira” – ou esquema de “Ponzi”, nome dado em homenagem a Charles Ponzi, um dos seus mais conhecidos precursores nos inícios do século passado – é um “modelo comercial” que assenta em esquemas empresariais que têm como (principal) objectivo a “remuneração pela indicação de novos membros”, ou seja, através de uma “taxa de entrada no negócio”.

A palavra “pirâmide”, vem exactamente do formato em que o “modelo” é desenhado: começa com um vendedor no topo, que convida um grupo de membros para o degrau abaixo, sendo cada pessoa deste degrau responsável por recrutar o seu próprio grupo que ficará no próximo nível, e, assim por diante…

Como cada novo membro faz um investimento inicial, os membros dos níveis inferiores vão sustentando os superiores, fazendo com que o dinheiro suba em direcção ao topo.

Assim, a “forma” para sustentar o negócio não é a venda de um produto ou serviço, mas sim a adesão de novas pessoas no esquema que, ao entrar, precisam de fazer uma “contribuição financeira”.

Por outras palavras: paga-se para entrar, e, depois, ao se conseguir indicar – ou “angariar” – um certo número de pessoas para entrar também, ganha-se uma certa remuneração.

Conforme o esquema vai ganhando volume, ele, inevitavelmente, vai acabar por se tornar insustentável, pois que acaba por ser (absolutamente) impossível pagar todas as pessoas, dado que o número de membros torna-se tão grande que os pagamentos deixam de poder acontecer, apenas obtendo ganhos quem esteja no topo; (o próprio “Ponzi” ficou rico com este esquema – antes de ser preso – mas causou um prejuízo enorme a muitas pessoas).

Pode-se perguntar: mas porque é que o esquema é insustentável?

Ora, a resposta apresenta-se simples: porque para ser sustentável, uma “pirâmide financeira” precisava de continuar a crescer ad eternum, e, como se mostra óbvio, tal não se mostra (física e cientificamente) possível; (num esquema em que cada pessoa deve indicar – por exemplo – outras seis, seriam necessários 10 milhões de membros até o nível 9, o nível 11 exigiria cerca de 360 milhões de participantes, não havendo pessoas suficiente para sustentar o nível 13; sobre o tema, cfr., v.g., Mitchell Zuckoff in, “Pondi’s Scheme: the trurstory of a financial legend”; The Wall Street Journal, 06.03.2009, “The Madoff case: A Timeline”; Helio Beltrão in, “O maior esquema de Pirâmide do Século – como Bernie Madoff enganou meio mundo durante 30 anos”; Amorim Pinho in, “Pirâmides Financeiras”, R.A.N.M. n.° 2; B. Souza de Andrade in, “Pirâmides Financeiras e Marketing Multinível”, 2018; e J. Kayky in, “Esquema Pirâmides – um crime sofisticado”, 2019).

Feita esta rápida síntese sobre o “crime” dos autos, continuemos.

In casu, e relativamente à referida questão suscitada e agora em apreciação, o Tribunal de Segunda Instância ponderou, essencialmente, nos termos seguintes:

“(…)
(1) Falta de jurisdição internacional
Esse fundamento dos recorrentes tem a ver, na verdade, com 2 questões, isto é, a questão de aplicação no espaço previsto nos art.º 4.º e 5.º do Código Penal de Macau e a questão de se os tribunais de Macau têm jurisdição in lato sensu sobre o presente processo.
Dispõem os art.º 4.º e 5.º do Código Penal que
“Artigo 4.º (Princípio geral da aplicação no espaço)
Salvo disposição em contrário constante de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária, a lei penal de Macau é aplicável a factos praticados:
a) Em Macau, seja qual for a nacionalidade do agente; ou

Artigo 5.º (Factos praticados fora de Macau)
1. Salvo disposição em contrário constante de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária, a lei penal de Macau é ainda aplicável a factos praticados fora de Macau:

d) Contra residente de Macau, por residente, sempre que o agente for encontrado em Macau.
…”
No presente processo, de acordo com o ponto 10 dos factos provados, a Polícia descobriu que na conta da arguida B no [Banco(1)] havia 3 quantias superiores a HKD$180.000,00 transferidas à conta, as quais estão conformes ao preço para ser “gerente” na operação de capital pura, no valor de CNY$162.800,00, indicado pela testemunha O no ponto 2 dos factos provados, por isso, tiveram lugar em Macau não só os factos de angariação, mas também a conclusão da formalidade de pagamento, está completamente preenchido o art.º 4.º do Código Penal, os tribunais de Macau têm a jurisdição.
Outrossim, segundo os pontos 4, 6 e 7 dos facto provados, os 2 arguidos A e B e os 7 ofendidos são todos residentes de Macau, mesmo entendendo que a conduta de angariação não ocorreu em Macau, ao abrigo do art.º 5.º n.º 1 alínea d) do Código Penal, descobriu-se que os 2 arguidos se encontravam em Macau, portanto, os tribunais de Macau ainda têm a jurisdição, salvo que a sua conduta não seja considerada como crime em Macau. Entretanto, em Macau, dispõe a sanção sobre as vendas em pirâmide a Lei n.º 6/96/M “Proibição da venda «em pirâmide»”, alterada pela Lei n.º 3/2008, a qual entrou em vigor em 19 de Junho de 2008, desde então, a respectiva conduta já constitui crime nos termos da lei.
(…)
Pelo que, é inequívoco que os tribunais de Macau tenham a jurisdição plena, estão preenchidos os art.º 4.º e 5.º n.º 1 alínea d) do Código Penal, os recursos dos recorrentes A e B obviamente não procedem nesta parte.
(…)”; (cfr., fls. 1521 a 1521-v e 96 a 98 do Apenso).

Que dizer do assim decidido?

Ora, cremos que a decisão em questão se apresenta “clara” e “objectiva” nas suas razões e sentido, sucinta, mas “completa”, dado que responde, cabalmente, à “questão” suscitada, e “adequada”, pois que se tem como acertada em face da pertinente matéria de facto e relevante base legal, mostrando-se em total consonância com o “princípio da territorialidade” que, indubitavelmente, incide sobre a matéria, pouco havendo a acrescentar; (sobre o tema, cfr., v.g., M. Lopes Rocha in, “Aplicação da Lei Criminal no Tempo e no Espaço”, Jornadas de Direito Criminal do C.E.J.; Júlio A. C. Pereira in, “Conflitos de Jurisdição Penal”, Revista Jurídica de Macau, n.° Especial, 2004; Liu Gaolong in, “Leis Nacionais a Aplicar na RAEM”; Maria Leonor Assunção in, “Âmbito de Aplicação da Lei de Macau – Problemas Afins”, B.F.D.U.M., Ano I, n.° 3, 1997, pág. 210”; e L. Henriques in, “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. I, 2018, C.F.J.J., pág. 118 e segs.).

Reconhece-se – e obviamente, respeita-se – o esforço argumentativo dos ora recorrentes.

Porém, e como se nos mostra evidente, (no que toca à questão agora em apreciação), não se lhes pode reconhecer razão, pois que se limitam a controverter factos, acabando por colocar uma (verdadeira) “falsa questão”.

Na verdade, na apreciação e decisão da “questão”, não se pode olvidar também o estatuído no art. 7° do C.P.M., que preceitua que:

“O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico se tiver produzido”.

E, notando-se – como observa L. Henriques in ob. cit., pág. 187 – que com o dito preceito adoptou o legislador de Macau “um critério amplo, que tanto atende ao lugar onde a conduta ocorreu como ao lugar onde se deu o resultado, e que se costuma designar por critério misto, plurilateral ou da ubiquidade”, que, como se mostra claro, oferece reconhecidas vantagens, pois que, como igualmente salienta M. Leonor Assunção, “à vocação tendente à equilibrada solução das situações mais complexas de continuidade e permanência da actividade criminosa, habitualidade ou comparticipação, acresce a capacidade de eliminação dos riscos de impunidade que, no que toca aos crimes comissivos (materiais ou de resultado) que sempre poderão resultar da opção por critérios unilaterais (seja o da acção ou omissão, ou o do resultado ou, finalmente, o da lesão do bem jurídico)”; (in ob. cit., pág. 210).

E, assim, em face da factualidade dada como provada, e mostrando-se de concluir que em termos de regulamentação da questão da “aplicação da lei penal no espaço” se optou por uma conjugação de várias teorias, “a da actividade ou da acção (o crime pratica-se no lugar onde o agente realizou o processo executivo – acção ( ou omissão); a do efeito (o lugar do crime é onde se produz o resultado); e a do efeito intermédio (o crime acontece onde a energia movimentada pelo agente atinge o objecto ou alcança a vítima)”, (cfr., L. Henriques in, ob. citado), vista está a solução para esta questão pelos recorrentes colocada.

Dest’arte, e constatado o acerto e adequação da decisão (na parte) recorrida – no que toca à “questão” que justificou a admissão do presente recurso – e de nenhuma outra se podendo conhecer, resta decidir como segue.

Decisão

4. Em face do que se deixou exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes com a taxa individual de justiça que se fixa em 10 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 15 de Outubro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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