Processo n.º 921/2020 Data do acórdão: 2021-11-25
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– despesas para reparação do motociclo danificado no acidente
S U M Á R I O
1. A livre apreciação da prova nos termos do art.o 114.o do Código de Processo Penal não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por normas atinentes à prova legal), com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
2. No caso, tendo o ofendido assinado no formulário de exame ao seu motociclo feito pelo Departamento de Trânsito do Corpo de Polícia de Segurança Pública após ocorrido o acidente de viação dos autos, em sintonia com o seu teor o motociclo ficou danificado em grau leve no pedal da parte lateral esquerda do corpo do próprio motociclo e também danificado em grau leve na parte lateral esquerda do seu corpo perto do recinto para depósito de gasolina, e tendo o preço de compra do motociclo, conforme o declarado por ele na audiência de julgamento, sido de cerca de mais de $173.000,00, é manifestamente contra a experiência da vida humana quotidiana o total de despesas, fixado na sentença em 168.240,24, para efeitos de reparação daquelas duas partes danificadas em grau leve do motociclo, pelo que, com fundamento na efectiva verificação do erro notório na apreciação da prova como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, há que ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, para efeitos de indagação de qual o montante total de despesas necessárias para reparação do motociclo.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 921/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 226 a 237 do Processo Comum Singular n.° CR4-19-0350-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido A, aí já melhor identificado, ficou condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência no exercício da condução, p. e p. pelo art.o 142.o, n.o 1, do Código Penal, conjugado com o art.o 93.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário, na pena principal de três meses de prisão (suspensa na execução por dois anos, sob condição de prestação, no prazo de um mês a contar do trânsito em julgado da decisão, de oito mil patacas de contribuição a favor da Região Administrativa Especial de Macau), e na pena acessória de inibição de condução por seis meses (suspensa na execução por um ano, sob condição de ele só poder conduzir táxi no período da suspensão dessa pena), bem como no pagamento de MOP175.330,24 (cento e setenta e cinco mil e trezentas e trinta patacas e vinte e quatro avos) de indemnização a favor do ofendido B, com juros legais a contar nos termos do douto Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Venerando Tribunal de Última Instância de 2 de Março de 2011 do Processo n.o 69/2010.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando na sua motivação apresentada a fls. 247v a 255 dos presentes autos correspondentes, que:
– a sentença recorrida padecia do vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), ao descrever como provados os factos provados 1, 4, 9 e 10, já que apesar de o Tribunal recorrido ter julgado que o táxi conduzido por ele tinha embatido na roda transeira do motociclo da pessoa ofendida, os elementos probatórios dos autos não davam para comprovar esse embate como causa do acidente de viação dos autos;
– a decisão de arbitramento oficioso da indemnização feita na mesma sentença estava a violar o princípio do contraditório e o disposto nos art.os 71.o, n.o 4, e 74.o, n.o 1, do CPP, para além de enfermar do erro notório na apreciação da prova;
– razões por que deveria ele passar a ser absolvido do crime e da indemnização por que vinha condenado na mesma sentença.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 257 a 261 dos autos, pugnando pela manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 270 a 272, opinando pela procedência do recurso apenas na parte respeitante ao subsidiariamente rogado reenvio do processo para novo julgamento, para efeitos de nova indagação do montante exacto do dano patrimonial sofrido pela pessoa ofendida por causa da danificação do motociclo resultante do acidente de viação dos autos.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A sentença ora recorrida ficou proferida a fls. 226 a 237 dos autos, cujo teor integral (incluindo-se nele a fundamentação fáctica e probatória da decisão) se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Em 2 de Janeiro de 2020, já depois de deduzida a acusação pública contra o arguido, a própria pessoa do ofendido fez submeter ao subjacente Processo n.o CR4-19-0350-PCS um conjunto de documentos alusivos a “repair quotation” do seu motociclo e “medical expenses” (cfr. o teor de fls. 140 a 151).
3. Em 7 de Janeiro de 2020, o ofendido voltou a submeter ao mesmo Processo um documento adicional (cfr. o teor de fls. 154 a 157), relativo à “repair quotation” do seu motociclo, no valor estimado total de MOP168.240,24 (MOP154.640,24 de peças de substituição e MOP13.600,00 de obra de reparação).
4. Em 20 de Janeiro de 2020, o arguido, na pena do seu Ex.mo Advogado, fez uma exposição escrita (a fls. 165 a 166v) ao mesmo Processo, para se pronunciar sobre o teor de fls. 140 a 151 e de fls. 154 a 157 acima referidas.
5. Por despacho judicial de 3 de Fevereiro de 2020 (de fls. 170 a 171), (a) foi indeferido o pedido do arguido de desentranhamento dos documentos apresentados pelo ofendido, (b) foi julgado que o ofendido não chegou a fazer enxertar pedido cível de indemnização, mas sim se limitou a fazer juntar aos autos documentos por si considerados relevantes para a descoberta da verdade, e (c) assim ficou admitida a junção nos autos dos documentos em causa, sem prejuízo do ulterior cumprimento rigoroso do disposto no art.o 74.o, n.o 1, do CPP.
6. Desse despacho, foi notificado o arguido na pessoa do seu Ex.mo Advogado, por via da telecópia de 19 de Fevereiro de 2020, confirmada por carta registada de 19 de Fevereiro de 2020 (cfr. o processado de fls. 172 a 172v), não tendo o arguido feito sindicar desse despacho (cfr. o teor do processado de fls. 173 a 201, a contrario sensu).
7. A fl. 24 dos autos, consta um formulário de exame ao motociclo do ofendido, preenchido no Primeiro de Dezembro de 2018 pelo pessoal do Departamento de Trânsito do Corpo de Polícia de Segurança Pública, com assinatura aposta pela própria pessoa do ofendido. Conforme o teor preenchido nesse formulário, o motociclo (a) ficou danificado em grau leve no pedal da parte lateral esquerda do corpo do próprio motociclo e (b) também danificado em grau leve na parte lateral esquerda do seu corpo, perto do recinto para depósito de gasolina.
8. Na sessão da audiência de julgamento de 5 de Maio de 2020, o ofendido declarou ao Tribunal recorrido que pretendia indemnização das despesas médicas e da reparação do motociclo (cfr. o teor da acta da audiência, concretamente na parte constante da fl. 212).
9. Em 14 de Julho de 2020, foi proferida a sentença condenatória ora recorrida pelo arguido.
10. Segundo a matéria de facto dada por provada na sentença: a situação da danificação do motociclo do ofendido ficou descrita no facto provado 7; o ofendido pagou MOP4.090,00 a título de despesas de tratamento médico.
11. O Tribunal autor da sentença fixou em MOP168.240,24 o total das despesas para reparação do motociclo do ofendido por causa da danificação no acidente dos autos foram.
12. Conforme o referido na fundamentação probatória da mesma sentença, o ofendido declarou na audiência de julgamento que tinha comprado o motociclo pelo preço de cerca de mais de 173 mil.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo.
Do assacado erro notório na apreciação da prova:
Sempre se diz que ocorre este vício, nominado na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso, o arguido começou por apontar erro notório na apreciação da prova à decisão condenatória penal na parte respeitante aos factos provados 1, 4, 9 e 10.
Observa-se que o Tribunal a quo já teceu material e concretamente (a partir da 3.a linha até à 18ª. linha da página 10 do texto da sentença, a fl. 230v) as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos demonstradores da causa do acidente de viação dos autos.
Ora, depois de vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos e então examinados pelo Tribunal recorrido, entende o presente Tribunal de recurso que não é patentemente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto a que chegou esse Tribunal na parte tocante à causa do acidente de viação em questão.
E a matéria de facto então julgada pelo Tribunal recorrido dá para sustentar cabalmente a decisão condenatória penal proferida na sentença, não podendo, pois, o arguido passar a ser absolvido penalmente.
E agora da questão do arbitramento oficioso da indemnização:
A este propósito, o arguido apontou à decisão tomada a este nível na sentença a violação do princípio do contraditório e do disposto nos art.os 71.o, n.o 4, e 74.o, n.o 1, do CPP.
Desde já há que frisar que depois do proferimento do despacho judicial referido no ponto 5 da Parte II do presente acórdão de recurso, não impugnado pelo arguido, este não pode vir agora sustentar que foi violado pelo Tribunal recorrido na sentença a norma do n.o 4 do art.o 71.o do CPP, precisamente porque este preceito postula a instauração do pedido cível de indemnização no âmbito do processo penal, pedido cível esse que o Tribunal recorrido, naquele despacho judicial, já tinha julgado não enxertado nos presentes autos penais.
E relativamente à alegada violação do princípio do contraditório, a razão também não assiste ao arguido, em face dos elementos coligidos dos autos referidos nos pontos 5 e 6 da Parte II do presente acórdão.
Resta ver se o Tribunal recorrido cometeu erro notório na apreciação da prova ao julgar que as despesas para reparação do motociclo do ofendido por causa da danificação resultante do acidente de viação dos autos foram, ao total, de MOP168.240,24.
Nesta parte em questão, procede o recurso.
Com efeito, tendo assinado o próprio ofendido no formulário referido no ponto 7 da Parte II do presente aresto, em sintonia com o qual o motociclo ficou danificado em grau leve no pedal da parte lateral esquerda do corpo do próprio motociclo e também danificado em grau leve na parte lateral esquerda do seu corpo perto do recinto para depósito de gasolina, e tendo o preço de compra do motociclo por ele sido de cerca de mais de $173.000,00, é manifestamente contra a experiência da vida humana quotidiana o total de despesas, fixado na sentença em $168.240,24, para efeitos de reparação daquelas duas partes danificadas em grau leve do motociclo.
Por isso, há que reenviar, por força do disposto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), e 418.o, n.os 1 e 2, do CPP, o processo para novo julgamento em Tribunal Colectivo no TJB, para efeitos de indagação de qual o total de despesas necessárias para efeitos de reparação do motociclo por causa da danificação sofrida no acidente de viação dos autos, para depois ser proferida nova decisão a nível do art.o 74.o, n.o 1, do CPP.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso só na parte referente ao invocado erro notório na apreciação da prova sobre o total de despesas para reparação do motociclo do ofendido por causa da danificação sofrida no acidente de viação dos autos, reenviando, por conseguinte, o processo para novo julgamento em Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, exclusivamente para efeitos de indagação de qual o total de despesas necessárias para efeitos de reparação desse motociclo por causa da danificação sofrida no acidente, para depois ser proferida nova decisão a nível do art.o 74.o, n.o 1, do Código de Processo Penal.
Custas do recurso na parte penal a cargo do arguido, com duas UC de taxa de justiça. Na parte civil do recurso, pagará o arguido duas UC de taxa de justiça por causa do decaimento do recurso nas questões de violação do princípio do contraditório e de violação do disposto no art.o 71.o, n.o 4, do Código de Processo Penal.
Macau, 25 de Novembro de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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