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Processo nº 104/2021 Data: 30.07.2021
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “associação criminosa”.
Fundamentação da decisão da matéria de facto.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Elementos típicos.



SUMÁRIO

1. A nova redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. “reforçou” o dever de fundamentação, exigindo (agora) o “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal”, suficiente (já) não sendo uma (mera) “enumeração dos elementos probatórios” a que se atendeu com a afirmação (conclusiva) de que se lhes deu crédito, evidente sendo assim que o Tribunal deve, (na medida do possível, e ainda que de forma concisa), expor também os “motivos” que o levaram a atribuir relevo e/ou crédito aos elementos probatórios de que se serviu para decidir a matéria de facto da forma que fez.

Porém, se é certo que com a nova redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. se pretendeu acabar com a chamada “fundamentação tabelar”, igualmente certo é que com a mesma não se quis introduzir a exigência de uma fundamentação “exaustiva” relativamente a todos os “pontos”, “pormenores” ou “circunstâncias” da matéria de facto.

Não se pode esquecer que o comando em questão faz, (continua a fazer), referência a “uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa…”, não se podendo igualmente olvidar que a “fundamentação do Tribunal” não é o segmento da sentença ou acórdão com o qual se tenta dar resposta a toda e qualquer (eventual e possível) questão (ou dúvida) que os sujeitos processuais possam (ou venham a) ter, (esgotando-se, em absoluto, o tema sobre eventuais e hipotéticas questões), destinando-se, antes, a expor e a permitir conhecer os “motivos que levaram o Tribunal a decidir (a matéria de facto) da forma como decidiu”, (acolhendo, ou não, uma ou mais versões apresentadas e discutidas em audiência de julgamento), devendo-se ter – sempre – em conta os “ingredientes do caso concreto”.

2. O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”.

Isto é, o aludido vício apenas existe se houver “omissão de pronúncia” sobre “factos relevantes”, e os “factos provados” não permitirem uma boa e sã aplicação do direito ao caso submetido a julgamento.

3. Em termos gerais, são três os elementos essenciais constitutivos da “associação criminosa”:
- o elemento organizativo: uma recíproca conjugação de vontades, em que os elementos integrantes dão a sua adesão expressa ou tácita com vista à finalidade colectiva, ainda que esses elementos nunca se tenham encontrado nem se conheçam;
- o elemento de estabilidade associativa: a intenção de manter, no tempo, uma actividade criminosa estável, mesmo que concretamente assim não venha a acontecer;
- o elemento da finalidade criminosa: a conjugação de vontades visando a obtenção de vantagens ilícitas ou a prática de crimes perfeitamente identificados na lei.

Daqui resulta, pois, que haverá “associação criminosa” sempre que se configure uma união de vontades, ainda que sem organização ou acordo prévio, com o propósito de, estável e de modo mais ou menos duradouro, se praticarem actos criminosos de certo tipo, ficando assim naturalmente arredado do conceito o mero ajuntamento, ou seja, a simples reunião acidental e precária de pessoas, que sem a mínima estabilidade associativa e sedimentação, praticam uma ou mais acções criminosas.

Contudo, não é necessário que possua qualquer grau de “organização específica”, ou que provado esteja que ela tenha uma “sede” ou um lugar determinado para “reunião”, não sendo mesmo essencial que os seus membros se reúnam ou que se conheçam.

O relator,

José Maria Dias Azedo



Processo nº 104/2021
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação do Ministério Público e em audiência colectiva no Tribunal Judicial de Base responderam, A (甲), e (a sua esposa) B (乙), respectivamente, (4°) e (5ª) arguidos com os restantes sinais dos autos.

Realizada a audiência de julgamento, (e na parcial procedência da acusação deduzida), proferiu-se Acórdão (datado de 09.10.2020, Proc. n.° CR5-20-0023-PCC), onde, em sede do “dispositivo” se decidiu:

–– condenar o (4°) arguido A, como co-autor da prática em concurso real de:
- 1 crime de “associação criminosa”, p. e p. pelo art. 288°, n.° 1 e 3 do C.P.M., na pena de 6 anos e 6 meses de prisão;
- 23 crimes de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 1 e 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão cada; e,
- em cúmulo jurídico com a pena que lhe foi aplicada no âmbito do Processo CR3-14-0061-PCC, fixou-lhe o Tribunal a pena única de 18 anos de prisão; e,

–– condenar a (5ª) arguida B, como co-autora da prática em concurso real de:
- 1 crime de “associação criminosa”, p. e p. pelo art. 288°, n.° 1 e 3 do C.P.M., na pena de 6 anos e 6 meses de prisão;
- 19 crimes de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 1 e 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão cada; e,
- em cúmulo jurídico, fixou-lhe o Tribunal a pena única de 12 anos de prisão; (cfr., fls. 9422 a 9688-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Em sede do recurso que do assim decidido interpuseram os ditos (4° e 5ª) arguidos, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 03.06.2021, (Proc. n.° 13/2021), julgando-o improcedente; (cfr., fls. 11010 a 11059-v).

*

Ainda inconformados, trazem os mesmos (4° e 5ª) arguidos o presente recurso, imputando – em síntese – à decisão recorrida, (e na parte relativa ao crime de “associação criminosa”), o vício de “nulidade por falta de fundamentação” e de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”; (cfr., fls. 11292 a 11319).

*

Após resposta do Exmo. Magistrado do Ministério Público pugnando pela sua improcedência, (cfr., fls. 11321 a 1325), e remetidos os autos a esta Instância, foram os mesmos objecto de adequada tramitação processual, com douto Parecer do Ministério Público onde se opinou também no sentido da confirmação do decidido; (cfr., fls. 11373).

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Admitido o recurso – atento o estatuído no art. 390°, n.° 1, al. g) do C.P.P.M. – e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados e constantes de fls. 9433-v a 9535 do Acórdão do Tribunal Judicial de Base que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (e que, mais adiante, se fará adequada referência para efeitos de apreciação e decisão das questões colocadas).

Do direito

3. Vêm os referidos (4° e 5ª) arguidos recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a “decisão condenatória” do Tribunal Judicial de Base.

Assacam à decisão recorrida, (na parte relativa ao crime de “associação criminosa” pelo qual foram condenados), o vício de “nulidade por falta de fundamentação” e “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

Sem mais demoras, vejamos se lhes assiste razão.

Na parte que agora interessa, tem a decisão do Tribunal de Segunda Instância o teor seguinte:

“Antes de mais, no tocante ao recurso interposto pelo 4º arguido A e a sua esposa, 5ª arguida, B, contra o acórdão a quo:
Eles sustentam que, quanto à decisão condenatória sobre o crime de associação criminosa, o Tribunal a quo não fez fundamentação nos termos do art.º 355.º n.º 2 do Código de Processo Penal.
Entretanto, o teor do acórdão a quo demonstra manifestamente que o Tribunal a quo observou a exigência da aludida disposição. O Tribunal a quo enumerou no acórdão os factos provados e não provados, indicou as provas com que formou a sua convicção (incluindo as declarações dos arguidos, depoimentos das testemunhas e análise dos documentos dos autos), bem como especificou os motivos, de facto e de direito, que fundamentaram o acórdão. Os 2 recorrentes podem não concordar com a decisão do conhecimento de facto, mas isso não significa que o Tribunal a quo violou a exigência da disposição referida.
Cumpre destacar que, o art.º 355.º n.º 2, sobre a fundamentação, do Código de Processo Penal, não exige que o tribunal justifique o processo de formação da sua convicção a partir de cada facto provado e/ou não provado, mas sim indique os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão e enumere as provas que serviram para formar a convicção. Pelo que, o acórdão a quo não incorre em nulidade suscitada pelos 2 recorrentes.
O que os 2 recorrentes sustentam na petição de recurso relaciona-se, na verdade, à suficiência ou não dos factos provados para a decisão condenatória pelo crime de associação criminosa. Isso é uma questão no âmbito do conhecimento de direito, não pode ser classificado como insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista pelo art.º 400.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Penal, de resto, após analisar o teor do acórdão a quo, não se vê qualquer omissão na investigação do objecto do presente processo penal, por isso, o acórdão a quo não padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada no conhecimento de facto (quanto à definição, âmbito e jurisprudência sobre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista pelo art.º 400.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Penal, vide o acórdão do recurso penal n.º 721/2007 de 13 de Dezembro de 2007 do TSI).
Quanto à condenação ou não pelo crime de “associação criminosa”, é de concordar com a seguinte análise do Procurador-adjunto, constante da 4ª linha da fls. 72 à 17ª linha da fls. 74 do parecer:
“Tem-se entendido na jurisprudência de Macau que, em termos gerais, há três os elementos essenciais constitutivos da associação criminosa, ou seja, elemento organizativo, elemento de estabilidade associativa e elemento da finalidade criminosa: - o elemento organizativo: uma recíproca conjugação de vontades, em que os elementos integrantes dão a sua adesão expressa ou tácita com vista à finalidade colectiva, ainda que esses elementos nunca se tenham encontrado nem se conheçam; - o elemento de estabilidade associativa: a intenção de manter, no tempo, uma actividade criminosa estável, mesmo que concretamente assim não venha a acontecer; - o elemento da finalidade criminosa: a conjugação de vontades visando a obtenção de vantagens ilícitas ou a prática de crimes perfeitamente identificados na lei.” (vide o acórdão do recurso penal n.º 22/2002 do TUI)
Não é elemento dos crimes de promotor, fundador, chefe, director ou membro de associação criminosa, previstos e puníveis pelo artigo 288.º do Código Penal, o fim de obtenção de vantagens ou benefícios ilícitos. Os elementos são apenas a existência de organização com estabilidade, cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes. (vide o acórdão do recurso penal n.º 34/2009 do TUI)
Em conjugação com os factos dados assentes e as informações dos autos, pelo menos desde 2010, A e B fundaram e formaram um grupo ou associação, que, aproveitando várias empresas detidas ou controladas materialmente, através de criar uma ilusão de contratação ou investimento, se dedicou exclusivamente a elaborar documentos de pedido para os requerentes de autorização de residência temporária empregando os meios como falsificação de documentos com teor falso, a fim de fazer satisfazer as condições de fixação de residência em Macau os requerentes que não satisfizessem as condições para pedir a residência temporária, de forma a obter para eles a respectiva autorização. A contratação falsa acima mencionada foi realizada através de contratar fingidamente os requerentes pelas empresas detidas ou controladas materialmente em Macau, elaborar documentos falsos e induzir o IPIM em erro de que existiam relação de trabalho entre essas empresas e os requerentes e essas empresas exerciam efectivamente actividades, deste modo, obtiveram para os requerentes a autorização de residência temporária na qualidade de técnicos especializados. O método de investimento falso acima referido consiste na colocação dos requerentes que não têm efectivamente participação de capital, como accionista nominal, às empresas tituladas ou substancialmente controladas por A e B em Macau, fazendo com que o “IPIM” entenda erradamente que os requerentes detêm participações de tais empresas, fazendo a existência de uma ilusão de investimento relevante, para que os requerentes requeiram uma autorização de residência temporária com fundamento do “investimento relevante”. E, no procedimento subsequente, através do pessoal interno de alto nível do “IPIM”, pode-se saber, a qualquer momento, as informações internas favoráveis ou desfavoráveis do requerimento e o seu andamento mais actualizado, bem como pode-se solicitar ao respectivo pessoal de alto nível a apresentação de orientação, caso necessário, aproveitando-se das informações falsas, fazendo com que o caso possa preencher os requisitos do requerimento. C e D participavam na associação criada por A e B e, eram essencialmente responsáveis pela produção de vários documentos falsos em caso concreto, pelo contacto do pessoal de várias partes, pelo acompanhamento e assistência ao requerimento de autorização de residência temporária.
Quanto ao elemento organizativo, os recorrentes cometeram os actos criminosos de forma organizada, dividida e sistemática, entre eles, o recorrente, A, era responsável por fixar os critérios da cobrança de despesas e decidir se o caso deveria ser reembolsado, e mais ainda responsável pelo contacto com o responsável do “IPIM”, E; a recorrente, B, era principalmente responsável pelo âmbito financeiro, incluindo a emissão de cheque, o tratamento de injecção falsa de capital, o pagamento falso de salário, etc., bem como era responsável pela assistência aos requerentes, como seu procurador, para tratar os documentos do requerimento; e, as recorrentes, C e D, eram responsáveis, em casos concretos e conforme as instruções dadas pelos recorrentes A e B, pela produção pessoalmente dos falsos documentos necessários do requerimento, pelo acompanhamento do andamento dos requerimentos, bem como actuando como intermediário para contactar os requerentes, o pessoal do “IPIM” e os recorrentes A e B. Na operação de toda a associação, os recorrentes, A e B, eram líderes e orientadores que participavam pessoalmente nas actividades criminosas ou emitiram as instruções aos subordinados; e, as recorrentes, C e D, eram membros da associação que exerciam efectivamente as actividades criminosas conforme as instruções recebidas. Enquanto os quatro recorrentes estavam bem cientes de que os actos por si praticados são criminosos, ainda cometeram, em conjugação de vontades e divisão de tarefas, uma série dos actos criminosos.
Quanto ao elemento da finalidade, substancialmente, eles constituíram uma associação, através da actuação do acto criminoso de falsificação de documentos, para ajudar os requerentes, que não se encontram preenchidos os requisitos do requerimento de autorização de residência temporária em Macau, a satisfazer formalmente os requisitos desse requerimento, com a intenção de alcançar a finalidade de obter interesses ilegais de honorários de montante elevado. Sendo obviamente que se encontra satisfeito o elemento da finalidade.
Quanto ao elemento de estabilidade associativa, in casu, ficou provado que os recorrentes eram conjuntamente responsáveis por fazer os requerentes formalmente qualificáveis para requerer a fixação de residência temporária, através da falsificação de documentos. Nos muitos casos, pode-se saber que, além da ingressão da recorrente D em 2013, pelo menos desde o caso de F em 2010, eles já formaram uma associação criminosa, tinham o modo de crime já definido, eram capazes de fornecer serviços, de forma ordenada e de longa duração, a requerentes que pretendem requerer com informações falsas, operando até ao momento em que o caso foi descoberto. Durante esse período, para os diversos casos, a associação tinha vindo a actuar uma série de falsificação de documentos, e elaborou um conjunto de procedimentos definidos, a fim de poder falsificar documentos necessários para os requerentes que pretendem fixar a residência com investimentos relevantes falsos ou técnico especializado falso, fazendo com que tais requerentes possam utilizar os documentos falsos para alcançar os requisitos do “IPIM” relativos à autorização de residência temporária, incluindo as operações efectuadas por diferentes pessoas da associação antes da apresentação do requerimento, a indignação do pessoal do “IPIM” sobre as informações relevantes que são considerados pelo mesmo instituto como informações internas ou confidenciais, o acompanhamento e a sua completação após a apresentação do requerimento, etc.. Além disso, os recorrentes abriram uma pasta exclusiva para cada requerente, arquivando os documentos falsos produzidos pelos mesmos para cada requerente ou as suas cópias, de modo a falsificar, de forma sistemática, os documentos relevantes para mais requerentes que pretendem fixar a residência com investimentos relevantes falsos ou técnico especializado falso. Obviamente, formou-se uma operação associativa estável e de longa duração entre os quatro recorrentes, a coordenação mútua e a cooperação activa entre si, o que se encontra totalmente preenchido o elemento da estabilidade associativa.
Pelo exposto, de acordo com os factos dados como provados no acórdão recorrido, o Tribunal a quo decidiu condenar A e B, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um “crime de associação criminosa” p. e p. pelo art.º 288.º, n.º 3 conjugado n.º 1 do Código Penal de Macau.
Assim, não restam quaisquer dúvidas de que o Tribunal a quo condenou os dois recorrentes pela prática do crime de “associação criminosa”, o que não viola a lei, e em consequência, os dois recorrentes não são simplesmente comparticipantes no crime de “falsificação de documento”.
(…)”; (cfr., o Ac. do T.S.I. de 03.06.2021, fls. 11036 a 11037-v).

–– Aqui chegados, passa-se a apreciar e decidir da assacada “falta de fundamentação”.

Sobre a “questão” agora em apreciação incide o art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M., onde se prescreve que:

“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Cabe aqui notar que a (actual) redacção do transcrito normativo foi introduzida pela Lei n.° 9/2013 com a qual se aditou à sua versão original a necessidade do “exame crítico das provas …”, (em sede de “fundamentação da decisão sobre a matéria de facto”).

Como no Parecer n.° 3/IV/2013 da 3ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa relativo à então “Proposta de Lei de alteração ao C.P.P.M.” se consignou:

“Conforme decorre da Nota Justificativa, a alteração do n.° 2 do artigo 355.° visa aprofundar os requisitos da sentença, determinando a necessidade desta conter uma análise crítica da prova que foi feita para efeitos da decisão sobre a matéria de facto. Assim, “não obstante estar consagrada na lei a exigência de fundamentação da matéria de facto na sentença, atendendo a que subsiste discrepância na interpretação deste artigo e a que há uma concordância genérica de que, por forma a assegurar a credibilidade das sentenças, o juiz deve fundamentar as suas decisões, tanto quanto à matéria de facto quanto à de direito, bem como indicar e analisar as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e ainda para melhor assegurar o direito ao recurso do arguido e de outros sujeitos processuais e a transparência da Justiça, propomos consagrar expressamente a exigência de que a fundamentação da sentença pelo juiz deve incluir um exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 355.°, n.° 2 do CPP)”.
A proposta de lei introduz um desenvolvimento do regime vigente relativamente aos requisitos materiais da fundamentação da sentença, acrescentando que não apenas se deve indicar a prova que serviu para formar a convicção do tribunal, mas também proceder a “um exame crítico” dessa prova.
Esta alteração visa reforçar a exigência de fundamentação da decisão em matéria penal, clarificando que é obrigatório que· a sentença faça referência à ponderação que foi realizada em termos da valoração da prova apresentada. Quanto à matéria de facto, em particular, é necessário não apenas referir as provas que permitiram ao tribunal dar certos factos como provados ou não provados, mas também examinar criticamente o valor desses elementos de prova e a sua susceptibilidade para formarem a convicção do tribunal. Tal implica que a fundamentação da sentença deva permitir que os intervenientes processuais e os tribunais superiores, em sede de recurso jurisdicional, possam compreender o processo lógico ou racional que levou a dar a matéria de facto como provada. Assim, “(…) não basta uma declaração genérica e tabelar que lesaria as garantias de defesa do arguido, por não assegurar a apreciação pelo tribunal de toda a matéria de acusação e de defesa, proporcionando julgamentos implícitos, subtraídos a qualquer tipo de fiscalização, afrontando as exigências de fundamentação das decisões judiciais, passando a ser imprescindível que a fundamentação, como base do juízo decisório, seja exteriorizada em termos de permitir revelar o processo cognitivo e valorativo ínsito à decisão jurisdicional”. Uma vez que se trata “(…), pois, de referir os elementos objectivos de prova que permitam verificar se a decisão respeitou ou não a exigência de prova, por uma parte, e de indicar o iter formativo da convicção, isto é, o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir, em especial na prova indiciária, comprovar se o raciocínio foi lógico ou se for irracional ou absurdo. A fundamentação não é um critério de valoração da prova, é simplesmente um meio ao serviço da racionalidade e da transparência da decisão, mas por isso mesmo essencial e também por isso que a sua falta seja sancionada com a nulidade da sentença”.
Esta exposição da valoração que o tribunal realizou da prova que serviu para formar a sua convicção deve ser “tanto quanto possível completa”, ainda que possa ser fundamentada de forma “concisa”, conforme decorre dos termos do n.° 2 do artigo 355.°, desde que seja possível compreender as razões e o raciocínio que permitiram dar certos factos como provados ou não provados, impondo-se “a apreciação crítica das provas em ordem a permitir a sua apreciação pelo tribunal de recurso”. Não é suficiente, portanto, fazer constar da fundamentação a enumeração dos factos provados ou não provados; no que concerne aos factos que serviram para fundamentar a convicção do julgador deve mencionar-se, ainda que de forma breve, as razões que determinaram essa convicção ou juízo crítico dessa prova. A falta de fundamentação determina a nulidade da sentença.
(…)”; (cfr., fls. 43 a 46 do dito Parecer).

Pronunciando-se sobre idêntica questão, também já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de consignar que:

“(…)
Ora, a fundamentação da sentença é prevista nos termos do art.º 355.º n.º 2 do CPP, segundo o qual (na redacção actual) a fundamentação deve constar “da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Com esta nova redacção dada pela Lei n.º 9/2013 ao n.º 2 do art.º 355.º do CPP, a lei passa a ser mais exigente em ralação à fundamentação da sentença, impondo ao tribunal que faça “exame crítico das provas”, para além da enumeração dos factos e da exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com indicação das provas, como foi exigido antes.
A alteração da norma justifica-se com a intenção de “melhor assegurar o direito ao recurso do arguido e de outros sujeitos processuais e a transparência da Justiça”.1
Não se deve ignorar, no entanto, que o exame crítico, bem como a indicação da provas, faz parte da exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, que pode ser concisa, mas completa, conforme a disposição legal, daí que o legislador não exige que a fundamentação da sentença seja exaustiva, exaustão esta que é sempre difícil de ser alcançada, como bem se compreende.
Por outro lado, tanto a indicação como o exame crítico das provas servem para revelar as razões essenciais da convicção a que chegou o tribunal sobre a decisão de facto. E a extensão e o conteúdo da motivação são função das circunstâncias específicas do caso concreto, nomeadamente da natureza e complexidade do processo, havendo de ter sempre em conta os ingredientes do caso concreto.
(…)”; (cfr., v.g., o Ac. de 30.07.2015, Proc. n.° 39/2015).

E em sede de um outro idêntico recurso, (em que se imputava igualmente ao Acórdão do Tribunal de Segunda Instância o mesmo vício de “falta de fundamentação”), teve-se também a oportunidade de considerar que:

“(…)
É verdade que a lei é mais exigente do que antes, na medida em que fala do “exame crítico das provas”.
Repare-se, no entanto, que só é exigido o exame crítico das provas “que serviram para formar a convicção do tribunal”. Ou seja, entre todas as provas produzidas e examinadas em audiência de julgamento, a lei chama atenção para aquelas que serviram para formar a convicção do tribunal e só quanto a estas provas que se exige uma apreciação e exame crítico que deve constar na sentença.
E mesmo em relação a estas provas tidas como essenciais, não é prático exigir uma apreciação exaustiva de todas as provas (já que a lei fala na exposição “tanto quanto possível completa” e “concisa”), naturalmente porque o legislador sabe bem que é uma tarefa impossível para o tribunal a cumprir.
É de salientar ainda que a avaliação da prova deve ser feita segundo o princípio consagrado no art.º 114.º do CPP, valendo para o efeito as regras da experiência e a livre convicção do tribunal, salvo disposição legal em contrário, o que implica que pode o tribunal acolher, ou não, uma das versões apresentadas pelos interessados em discussão.
(…)
Finalmente, não podemos deixar de fazer consignar o seguinte: não se encontra nenhuma norma legal a exigir que o tribunal de recurso faça também no seu acórdão uma análise e apreciação crítica das provas oferecidas, tal como se exige no n.º 2 do art.º 355.º do CPP em relação à decisão de 1.ª instância.
(…)”; (cfr., v.g., o Ac. de 17.02.2016, Proc. n.° 58/2015).

Com efeito, a nova redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. “reforçou” o dever de fundamentação, exigindo (agora) o “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal”, suficiente (já) não sendo uma (mera) “enumeração dos elementos probatórios” a que se atendeu com a afirmação (conclusiva) de que se lhes deu crédito, evidente sendo assim que o Tribunal deve, (na medida do possível, e ainda que de forma concisa), expor também os “motivos” que o levaram a atribuir relevo e/ou crédito aos elementos probatórios de que se serviu para decidir a matéria de facto da forma que fez.

Porém, se é certo que com a nova redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. se pretendeu acabar com a chamada “fundamentação tabelar”, igualmente certo é que com a mesma não se quis introduzir a exigência de uma fundamentação “exaustiva” relativamente a todos os “pontos”, “pormenores” ou “circunstâncias” da matéria de facto.

Não se pode esquecer que o comando em questão faz, (continua a fazer), referência a “uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa…”, não se podendo igualmente olvidar que a “fundamentação do Tribunal” não é o segmento da sentença ou acórdão com o qual se tenta dar resposta a toda e qualquer (eventual e possível) questão (ou dúvida) que os sujeitos processuais possam (ou venham a) ter, (esgotando-se, em absoluto, o tema sobre eventuais e hipotéticas questões), destinando-se, antes, a expor e a permitir conhecer os “motivos que levaram o Tribunal a decidir (a matéria de facto) da forma como decidiu”, (acolhendo, ou não, uma ou mais versões apresentadas e discutidas em audiência de julgamento), devendo-se ter – sempre – em conta os “ingredientes do caso concreto”.

E, em face do que se deixou exposto, quid iuris?

Ora – ainda que se mostre de considerar que a abordagem pelo Tribunal de Segunda Instância efectuada à “questão” podia ser mais generosa – cremos que justo não é dizer-se que o Tribunal Judicial de Base não expôs os motivos que o levaram a decidir a matéria de facto da maneira que decidiu, (tendo, desta forma, incorrido na pelos recorrentes imputada “nulidade”).

In casu, cremos mesmo que a “decisão” em questão é ela própria a evidência do (grande) esforço pelo Tribunal Judicial de Base efectuado em expor e explicitar, e com particular pormenor, as razões da sua convicção.

Basta, (aliás), ver que (só) a “exposição” em questão ocupa mais de 200 páginas do Acórdão, (com início na página 227 e acabando na página 466), onde, com referências específicas aos arguidos, às suas declarações (ou posturas processuais), aos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, aos documentos apreendidos e examinados, nomeadamente, respeitantes a movimentos em contas bancárias e à contabilidade das empresas envolvidas assim como a diversos “registos informáticos” e de “mensagens telefónicas” – com referência aos respectivos “Apensos” onde as mesmas se encontram transcritas – se justifica o porque da “convicção” a que chegou o Tribunal relativamente à “conduta” (de cada um) dos arguidos dos autos.

Como é óbvio, possível é – sempre – dizer-se que o que se consignou não é relevante ou que podia ser (ainda) melhor…, (mais explícito, mais claro, mais objectivo…).

Porém, em nossa modesta opinião, (e atenta a concreta “questão” agora a tratar), adequado (e razoável) não se apresenta considerar que, no caso, observado não foi o “dever de fundamentação” da decisão da matéria de facto (a que o Colectivo chegou) nos termos do atrás referido art. 355°, n.° 2, do C.P.P.M..

Importa ter em conta as – especiais e particulares – “características” do presente processo, com uma extensa acusação pública, (com mais de 700 artigos vertidos em 213 páginas), imputando vários e diversos crimes a 26 arguidos, e que, em julgamento, (efectuado em 50 sessões), se procedeu à inquirição de 50 testemunhas; (cfr., “actas de julgamento” de fls. 8059 a 9369-v).

Com isto, (e como é obviamente evidente), não se quer – de maneira alguma – dizer que se podia (ou que motivos havia para) aligeirar o “dever de fundamentação” em questão.

Contudo, e como se referiu, importa ter em conta os “ingredientes do processo”.

Com efeito, para além de inegável ser que o Tribunal Judicial de Base consignou (e justificou), especificamente, o motivo da sua convicção relativamente ao crime de “associação criminosa” pelo qual foram os ora recorrentes condenados e agora em causa – cfr., fls. 9544 e segs., onde, nomeadamente, identifica, a testemunha, (um investigador do C.C.A.C.), e o teor do seu depoimento – de olvidar não é (toda) a restante explicitação efectuada ao longo da sua fundamentação quanto ao “plano” pelos recorrentes traçado (e assumido) de se aproveitarem da sua qualidade de comerciantes e do conhecimento e confiança que mantinham com outros arguidos que detinham poderes de decisão sobre a matéria, e, assim, apresentando-se como “sócios” (ou donos) de várias sociedades/empresas, (de “fachada” e em número total de 9), acabaram por criar um “grupo” que, com “métodos estabelecidos” e “actuação entre eles concertada”, e com invocados motivos de alegados “investimento” e/ou “recrutamento de trabalhadores especializados” – demonstrados e requeridos com recurso a “manobras de depósitos e levantamentos bancários” e documentação forjada, nomeadamente, quanto a contratos vários – obtia “autorizações de residência em Macau” para indivíduos do exterior nelas interessados a troco de avultadas quantias monetárias que lhes eram pagas, conduta esta que, com o “apoio” das 6ª e 7ª arguidas dos autos, levaram a cabo de forma regular, estável e contínua por um período de vários anos, (com início em 2010 – cfr., v.g., facto 349° e 402° – até princípios de 2019, cfr., v.g., facto 595°).

Na verdade, (cabe salientar), não se pode olvidar que provado ficou, igualmente, que os arguidos ora recorrentes cometeram, respectivamente, “23” e “19” crimes de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 1 e 2 da Lei n.° 6/2004, (“Lei da Imigração Ilegal e da Expulsão”), e que as referidas 6ª e 7ª arguidas foram também condenadas pela prática de 1 crime de “associação criminosa” e de “23” e “21” dos ditos crimes de “falsificação de documentos”, respectivamente.

Dest’arte, (atenta a fundamentação exposta, e transitado em julgado estando o decidido no que toca a estes crimes), razoável nos parece que da mesma se extraiam (também) os “devidos efeitos” em relação ao crime de “associação criminosa” pelo qual foram os recorrentes condenados, adequado não se mostrando desta forma de considerar que observado não foi o “dever de fundamentação” em questão.

–– Quanto à assacada “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

Pois bem, (repetidamente) tem este Tribunal considerado que o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”.

Isto é, o aludido vício apenas existe se houver “omissão de pronúncia” sobre “factos relevantes”, e os “factos provados” não permitirem uma boa e sã aplicação do direito ao caso submetido a julgamento.

Importa pois (também) atentar que a dita “insuficiência” não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devem suportar a matéria de facto, em causa estando, antes, o “elenco” desta, que poderá ser “insuficiente”, não por assentar em provas nulas ou deficientes, mas por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver.

O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada traduzir-se-á, afinal, na “falta de investigação” e de “pronúncia” sobre os “elementos fácticos” que permitam a integração na previsão típica criminal por falência de matéria integrante do seu tipo “objectivo” ou “subjectivo”, ou, até, de uma qualquer circunstância modificativa agravante ou atenuante, sendo, por sua vez, de se considerar que inexiste qualquer “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” quando os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento; (sobre o vício e seu alcance, cfr., v.g., e entre outros, o Ac. deste T.U.I. de 26.03.2014, Proc. n.° 4/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017, de 27.11.2020 Proc. n.° 193/2020, e, mais recentemente, de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021).

In casu, e em face do que (em concreto) alegam os recorrentes, adequada se mostra desde já a consideração do Tribunal de Segunda Instância no sentido de que a questão colocada em nada tem a ver com a dita “insuficiência”, constituindo, antes, uma questão relacionada com o “enquadramento jurídico-penal da matéria de facto dada como provada”, pelo que, atento o que se decidiu no Tribunal Judicial de Base e no Acórdão agora recorrido, possível não se nos apresenta reconhecer razão aos ora recorrentes.

Vejamos.

Em abreviada síntese que se nos apresenta adequada dizem os recorrentes que a “matéria de facto dada como provada” é “curta”, não permitindo a decisão de que verificados estão todos os elementos típicos do crime de “associação criminosa” pelo qual foram condenados.

Ora, sem prejuízo do muito respeito pelo assim entendido, outro é o nosso ponto de vista, mostrando-se-nos de consignar que, na parte em questão, inteiramente adequada se nos apresenta a análise e exposição pelo Tribunal de Segunda Instância efectuada (e atrás transcrita), pouco havendo a acrescentar.

Conduto, não se deixa de dizer o seguinte.

O crime de “associação criminosa” é tipificado no art. 288° do C.P.M. que prescreve que:

“1. Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.
2. Na mesma pena incorre quem fizer parte de tais grupos, organizações ou associações ou quem os apoiar, nomeadamente fornecendo armas, munições, instrumentos de crime, guarda ou locais para as reuniões, ou qualquer auxílio para que se recrutem novos elementos.
3. Quem chefiar ou dirigir os grupos, organizações ou associações referidos nos números anteriores é punido com pena de prisão de 5 a 12 anos.
4. As penas referidas nos números anteriores podem ser especialmente atenuadas ou o facto deixar de ser punível se o agente impedir ou se esforçar seriamente por impedir a continuação dos grupos, organizações ou associações, ou comunicar à autoridade a sua existência de modo a esta poder evitar a prática de crimes”.

Comentando o tipo de crime em questão – e vale a pena aqui atentar – é Manuel Leal-Henriques de opinião que:

“Como delito de perigo abstracto que é, o crime de associação criminosa tutela um bem jurídico que atende ao perigo acrescido de que se reveste uma concentração de vontades direccionada para a prática de crimes, independentemente da consumação destes, visando, portanto, proteger a paz social ante a ameaça de acções susceptíveis de gerar intranquilidade e insegurança públicas.
Entendeu assim o legislador – e bem – que uma entidade desse tipo, só porque existe e porque consegue imprimir aos seus membros uma força mobilizadora intensa, necessita de ser travada criminalmente logo a partir da sua constituição, já que é desde aí que a comunidade começa a conhecer e a sentir o peso da ameaça que ela pode representar para o bem-estar e a paz a que tem direito.
Ou seja: é o perigo especial representado pela constituição da organização para o crime que se pretende sancionar e não os derivados dos ilícitos que ela mesma venha a desencadear, pois, como é recorrentemente aceite, a organização em si passa a constituir uma entidade própria e autónoma, criminalmente relevante, independente das infracções que se lhe seguem ou possam seguir, embora com aquela obviamente cumulável.
Há aqui, pois, uma antecipação da tutela penal, como é próprio dos crimes de perigo abstracto.
Por conseguinte, é a paz pública que importa aqui salvaguardar, «no preciso sentido das expectativas sociais de uma vida comunitária livre da especial perigosidade de organizações que tenham por escopo o cometimento de crimes» (J. FIGUEIREDO DIAS, op. cit., pág. 1157).
Esta é, de resto, a posição da Doutrina conhecida (cfr., v.g., PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, op. cit., ar.° 299.°; M. MIGUEZ GARCIA/J. M. CASTELA RIO, op. cit., art.° 299.°) e da Jurisprudência em geral (vd., entre outros, os Acs. STJ de Portugal, de 17.04.2008, Proc.° n.° 4457/06-3.ª; e de 03.12.2009, Proc.° n.° 187/09.7YREVR.S1-3.ª).
É deveras elucidativo, a propósito, o último aresto arrolado, ao sentenciar que o bem jurídico tutelado no tipo em causa é a «paz pública no preciso sentido das expectativas sociais de uma vida comunitária livre da especial perigosidade de organizações que tenham por escopo o cometimento de crimes».
3.– Reunindo o que de concreto e útil têm a Doutrina e a Jurisprudência reflectido e dito sobre a estrutura objectiva do crime – de resto, com apoio expresso na lei –, poderemos chegar à conclusão de que são essencialmente três os pressupostos em que assenta o tipo:
- o associativo;
- o temporal;
- o finalístico.
O pressuposto associativo, implica que, antes de mais, duas pessoas se aliem por forma a constituírem uma entidade diferente da individualidade de cada um dos seus membros e com determinada finalidade, de que daremos nota a seguir.
O conceito de associação pressupõe exactamente isso mesmo: conjugação de vontades, irmanadas de um espírito comum (que se costuma designar por sentimento de pertença a algo superior aos próprios membros integrantes), visando levar por diante e cumprir os objectivos que foram propostos como metas a atingir pela entidade criada ou a criar.
A ideia associativa perpassa claramente por todo o texto da norma, através do uso recorrente da expressão “grupo”, “organização” ou “associação”, onde não cabem, obviamente, conjuntos de pessoas que colaboram ou participam na prática de crimes, em regime de simples aderência ou mero ajuntamento (como na participação em motim – art.° 291.°) ou até em comparticipação conjuntural (nos termos do art.° 25.°), sem que dessas actividades decorra uma entidade autónoma, à qual se possa imputar a responsabilidade pelas actividades criminosas desenvolvidas.
Na linguagem de NÉLSON HUNGRIA, «associar-se quer dizer reunir-se, aliar-se ou congregar-se … para a consecução de um fim comum» (op. cit., pág. 177).
E, no discurso de FIGUEIREDO DIAS, a associação supõe, «no plano das realidades psicológica e sociológica, que do encontro de vontades tenha resultado um centra autónomo de imputação fáctica das acções prosseguidas ou a prosseguir em nome e no interesse do conjunto» (op. cit., pág. 1160), ideia que atravessa também a argumentação insistente da Jurisprudência, como pode ver-se, v.g., dos Ac. Rel. Évora, Portugal, de 13.10.89, BMJ 390-483; e dos Acs. do STJ de Portugal, de 08.01.2003, Proc.° n.° 4221; do 896/07-5.ª; de 17.04.2008, Proc.° n.° 4457/06-3.ª, e de 27.05.2010, Proc.° n.° 18/07.2GAAMT.P1.S1-3.ª.
A tal “organização” ou “associação” de que estamos falando tanto pode ser aquela que se venha a constituir de novo como a que, aproveitando-se da existência legal de uma qualquer outra, se passa a direccionar para um objecto diferente, neste caso para o desenvolvimento de uma actividade criminosa.
Portanto, e em resumo, só poderemos atribuir carácter associativo ao encontro de vontades que se proponha criar uma entidade autónoma e diferente ou transformar uma já existente e legal, tendo em qualquer caso como finalidade dedicar-se à prática de ilícitos criminais.
A associação de que aqui se trata não obedece, porém, a qualquer pauta de regras usualmente concebida para as associações em geral, nem segue a formalismos rigorosos de constituição ou estruturação.
Como apropriadamente se expressa NÉLSON HUNGRIA, ao falar-se aqui em associação «não se quer indicar o sodalício que obedece a estatutos, regulamentos ou normas disciplinares», bastando «uma organização social rudimentar, a caracterizar-se apenas pela continuada vontade de um esforço comum» (op. cit., págs. 177 e segts.), ideia que é entre nós partilhada pela Doutrina em geral, nomeadamente por FIGUEIREDO DIAS, ao referir-se a «um mínimo de estrutura organizatória», no sentido de não ter de «ser tipicamente cunhada …, antes podendo concretizar-se pelas formas mais diversas», de modo a servir de «substracto material à existência de algo que supere os simples agentes» (op. cit., págs. 1161 e 1162); e também pela Jurisprudência (cfr., entre outros, os Acs. Rel. Évora, Portugal, de 12.04.88, Col. Jur. XIII, 2, pág. 277; e do STJ de Portugal de 23.04.86. BMJ 356-136; de 30.06.94. Proc.° n.° 4527J-3.ª; de 18.10.95, Proc.° n.° 45540; de 08.01.98. Proc.° n.° 1042/97; de 27.01.98, Proc.° n.° 490/97; e de 27.05.2010, Proc.° n.° 18/07.2GAAMT.P1.S1-3.ª).
Enfim: não será nunca o carácter mais ou menos organizado, definido ou estruturado que há-de marcar o essencial da associação criminosa, mas sim, e principalmente, um encontro de vontades programado para a prática de actividade delituosa, aliado a outros pressupostos (a estudar adiante), para podermos concluir que estamos perante uma associação de tipo criminoso.
Daí que a Doutrina e a Jurisprudência não façam sequer a exigência de que os associados se conheçam entre si (podendo até haver quem faça parte dela agindo na clandestinidade …), que disponham de sede ou lugar de reunião ou que cheguem mesmo a reunir-se, bastando que tenham possibilidade de conhecer o projecto ou programa da entidade em que se integram para poderem de algum modo pôr a sua vontade individual ao serviço da vontade colectiva e assim participar na execução dos seus planos.
Outro dos pressupostos estruturantes do tipo é aquele que designei por temporal e que tem a ver com o que usualmente se rotula de estabilidade associativa.
E aqui – como iremos ver – reina uma certa instabilidade, particularmente no seio da Jurisprudência, quanto a saber se a associação, para ter carácter criminoso, haverá de possuir ou não uma certa duração temporal.
Lá fora, e em sectores próximos do nosso, a associação só releva criminalmente quando se apresente como «reunião estável e permanente (que não significa perpétua», sendo que «a nota de estabilidade ou permanência da aliança é essencial», não bastando, pois, como na participação criminosa, «um ocasional e transitório concerto de vontades para determinado crime» (NÉLSON HUNGRIA, op. cit., pág. 177 e segts.).
Do lado da Doutrina portuguesa, e recuando a BELEZA DOS SANTOS, na esteira de Manzini, só haverá associação criminosa quando a convergência de vontades para a prática de ilícitos penais se apresente com «urna certa estabilidade ou permanência ou, ao menos, o propósito de ter esta estabilidade», concluindo que «ainda que a associação se dissolva logo depois de constituída e por isso não tenha na realidade durado, não deixará de existir o crime, se tiver havido nos associados a resolução de a constituir para durar» (op. cit., pág. 114).
Mais recentemente, FIGUEIREDO DIAS acentua a indispensabilidade de o grupo possuir «uma certa duração, que não tem de ser a priori determinada, mas tem forçosamente de existir para permitir a realização do fim criminoso da associação», «só com esse espírito … se atingindo o limiar mínimo de revelação de um ente autónomo que supere o mero acordo ocasional de vontades» (op. cit., pág. 1161), por esse caminho seguindo igualmente a Jurisprudência mais recente, como pode ver-se, por exemplo dos Acs. do STJ de Portugal, de 17.04.2008, Proc.° n.° 4457/06-3.ª e de 27.05.2010, Proc.° n.° 18/07.2GAAMT.P1.S1.3.ª.
A permanência e a estabilidade não respeitam propriamente à estrutura organizativa (estatutos, sede, direcção e comando) mas ao projecto criminoso em si, que deve ser de tal modo consistente que possa ser visto como um congregar de vontades virado para o futuro, isto é, que tenha "ambição" de perdurabilidade, por forma a que tal projecto se mostre concretizável e com energia para vingar.
Isto vale por dizer que, pelo menos, tem que ser pensado e concebido “para durar”, “para se impor” por um tempo que possa ser ajuizado como susceptível de potenciar uma autêntica actividade criminosa, o que dificilmente se esgotará na prática fugaz de um só ilícito criminoso, embora – há quem o admita … – um simples e isolado acto típico possa servir aos desideratos da lei, desde que, obviamente – dizem – a associação haja partido com o propósito de durabilidade e prolongamento no tempo (cfr., v.g., os Acs. Rel. Lisboa, Portugal, de 13.04.88, BMJ 376-647; do STJ de Portugal, de 03.11.94, Proc.° n.° 46571; de 18.05.95, Proc.° n.° 43.103; de 08.01.98, Proc.° n.° 1042/97; de 17.04.2008, Proc.° n.° 4457/06-3.ª).
A verdade é que – segundo me parece – não será fácil provar, através da prática de urna única conduta criminosa, que o objecto inicial e determinante da constituição da associação - que nos termos expressos da lei deve dirigir-se à ''prática de crimes" (portanto no plural …) – se haja concretizado com o cometimento de uma só infracção criminal, a menos que algum factor imprevisível e externo tenha condicionado ou impedido a prossecução da respectiva actividade.
O terceiro pressuposto da estrutura objectiva do ilícito é o finalístico.
A associação deve ter por objectivo a prática de crimes, consoante prescreve a lei, o que significa que uma tal finalidade constitui elemento essencial e imprescindível.
Assim, e pegando na linguagem de NÉLSON HUNGRIA, «não basta, como na comparticipação criminosa, um ocasional e transitório concerto de vontades para determinado crime», sendo preciso que «o acordo verse sobre uma duradoura actuação em comum, no sentido da prática de crimes não precisamente individuados, ou apenas ajustados quanto à espécie, que tanto pode ser uma única (ex.: roubos) ou plúrima (ex.: roubos, extorsões e homicídios)» (op. cit., pág. 177), parecendo de entender – em obediência à redacção da lei e à perigosidade que se quis combater com a incriminação da associação enquanto entidade autónoma – não bastar «em caso algum que o acordo colectivo se destine à prática de um só crime», (J. FIGUEIREDO DIAS, op. cit., pág. 1163), podendo, porém, sê-lo em continuação criminosa, uma vez que esta figura jurídica, segundo o nosso direito, é constituída por uma pluralidade de crimes, apenas ficticiamente unificada, com vista a impedir a sujeição a determinados efeitos, nomeadamente ao cúmulo material de penas, e em que cada um dos factos integradores mantém a sua plena autonomia, mesmo quanto ao seu elemento subjectivo (vd., contudo, Acs. Rel. Lisboa, Portugal, de 13.04.88. BMJ 376-647 e do STJ de Portugal de 11.07.96, Proc.° n.° 483/96). (…)”; (in “Anotação e Comentário ao C.P.M. – Parte especial”, Vol. VI, 2018, C.F.J.J., pág. 91 e segs.).

Pronunciando-se sobre o dito crime, seus “elementos típicos” e “distinção com a figura da comparticipação” e do crime de “associação secreta”, (p. e p. na Lei n.° 6/97/M), já teve este Tribunal oportunidade de considerar que:

“Em termos gerais, são três os elementos essenciais constitutivos da associação criminosa:
- o elemento organizativo: uma recíproca conjugação de vontades, em que os elementos integrantes dão a sua adesão expressa ou tácita com vista à finalidade colectiva, ainda que esses elementos nunca se tenham encontrado nem se conheçam;
- o elemento de estabilidade associativa: a intenção de manter, no tempo, uma actividade criminosa estável, mesmo que concretamente assim não venha a acontecer;
- o elemento da finalidade criminosa: a conjugação de vontades visando a obtenção de vantagens ilícitas ou a prática de crimes perfeitamente identificados na lei.
Daqui resulta, pois, que haverá associação criminosa sempre que se configure uma união de vontades, ainda que sem organização ou acordo prévio, com o propósito de, estável e de modo mais ou menos duradouro, se praticarem actos criminosos de certo tipo, ficando assim naturalmente arredado do conceito o mero ajuntamento, ou seja, a simples reunião acidental e precária de pessoas, que sem a mínima estabilidade associativa e sedimentação, praticam uma ou mais acções criminosas, (cfr., v.g., Leal-Henriques e Simas Santos in, “Código Penal de Macau”, 1996, pág. 847 e 848 e o Acórdão do antigo Tribunal Superior de Justiça de 27.07.1998, Proc. n.° 882 em Jurisprudência, 1998, Tomo II, pág. 351), (…)”.

No que toca à “comparticipação”, como forma de cometimento de crime(s) – considerou-se também que:

“A finalidade de se dedicar a uma actividade criminosa e a permanência desta intenção distingue o crime de associação ou sociedade secreta da comparticipação, esta como simples acordo conjuntural para se cometer um crime em concreto. Segundo o referido art.° 25.° do CP, a figura da comparticipação é apenas uma causa de extensão de autoria singular e, em alguns casos, como agravante modificativa”; (cfr., v.g., o Ac. de 21.02.2003, Proc. n.° 22/2002).

Nesta conformidade, e como se deixou adiantado, evidente se nos apresenta que aos recorrentes não assiste razão.

Com efeito, está (nomeadamente) provado que:

“ 1.
Pelo menos desde 2010, os dois arguidos A e B fundaram e formaram em Macau uma associação criminosa, que, aproveitando várias empresas detidas ou controladas materialmente pelos 2 arguidos A e B, através de criar uma ilusão de contratação ou investimento, se dedicou exclusivamente a elaborar vários tipos de documentos de pedido para os requerentes da autorização de residência temporária empregando os meios como falsificação de documentos com teor falso, a fim de fazer satisfazer as condições de fixação de residência em Macau os requerentes que não satisfizessem as condições para pedir a residência temporária, de forma a obter para eles a respectiva autorização e, deste modo, cobrar dinheiro de valor elevado pelo serviço.
2.
A contratação falsa acima mencionada foi realizada através de contratar fingidamente os requerentes pelas empresas detidas ou controladas materialmente pelos 2 arguidos A e B em Macau, elaborar documentos falsos para induzir o Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau (adiante designado por IPIM) em erro de que existia relação de trabalho entre essas empresas e os requerentes e essas empresas exerciam efectivamente actividades (como entregavam contratos de negócios ao IPIM para demonstrar o exercício de actividades dessas empresas, os quais, de facto, eram contratos falsos sobre adjudicações falsificadas entre essas empresas e as outras empresas do arguido A, não havendo qualquer indício de operação dessas empresas, além disso, aproveitavam as informações de identidade dos outros indivíduos para prestar declaração falsa do fundo de segurança social e do imposto profissional, bem como criavam através de injecção falsa de fundos uma ilusão de exercício efectivo de actividades das empresas em causa), deste modo, obtiveram para os requerentes a autorização de residência temporária na qualidade de técnicos especializados.
3.
O método de investimento falso acima referido consiste em tornar pelos 2 arguidos A e B os requerentes que na verdade não tivessem participação de capital em sócios nominais das empresas tituladas ou substancialmente controladas por estes em Macau, fazendo com que o IPIM entendesse erradamente que os requerentes tinham quotas dessas empresas, criando uma ilusão de investimento relevante, deste modo, obtiveram para os requerentes a autorização de residência temporária com fundamento em “investimento relevante”.
4.
Os dois arguidos A e B eram os cabecilhas da associação criminosa e os planeadores dos pedidos de autorização de residência temporária através de contratação e investimento falsos, entre os quais, o arguido A era responsável principalmente por angariar os clientes que pretendessem imigrar, gerir o funcionamento da associação criminosa, mandar e instruir os membros a acompanhar os clientes em pedir por meio de contratação e investimento falsos a autorização de fixação de residência temporária. A arguida B era a gerente financeira da associação criminosa, nomeadamente administrava os trabalhos financeiros, cobrava comissões, assinava documentos falsos, executava para os requerentes injecções falsas de fundos, ordenava aos membros falsificar documentos e pagamento de salários para os requerentes.
5.
A arguida C tem sido sempre um membro importante da associação criminosa, enquanto que a arguida D só ingressou até Outubro de 2013. Ambos eram subordinados dos dois arguidos A e B, desempenhavam o papel de executor, coordenador e distribuidor de tarefas na mesma associação. Os arguidos C e D eram os procuradores e as pessoas de contacto relativos aos pedidos de fixação de residência, tratados pela associação encabeçada pelos dois arguidos A e B, também acompanhavam pessoalmente os casos de pedido e falsificavam, pessoalmente ou através de ordenar outrem, os documentos com teor falso a fim de pedir para os requerentes a autorização de fixação de residência temporária, de acordo com as instruções dos arguidos A e B. Ao mesmo tempo, as arguidas C e D desempenhavam o papel de ponte entre os requerentes e os dois arguidos A e B, transmitindo informações entre eles.
6.
Em 1 de Fevereiro de 2010, o arguido E foi nomeado como Presidente do IPIM, pelo menos desde Janeiro de 2011 ele contactava frequentemente com o arguido A. O arguido E divulgou ao arguido A as informações confidenciais internas do IPIM, que eram favoráveis à concessão de autorização de residência temporária, o arguido A recebeu ajuda do arguido E nos pedidos de autorização de residência temporária, nomeadamente na consulta de andamento e apreciação dos pedidos.
7.
De Janeiro de 2002 a Março de 2012, o arguido G foi director-adjunto do Gabinete Jurídico e de Fixação de Residência do IPIM. Pelo menos desde 2014, o arguido A comprometeu-se ao arguido G retribuí-lo com a subscrição pelo preço muito inferior ao preço do mercado das fracções habitacionais construídas pelo arguido A no Interior da China. Aproveitando as experiências de apreciação e análise de processos de pedido da autorização de residência temporária durante tantos anos no IPIM, o arguido G ofereceu à associação criminosa soluções ilegais nos casos dos arguidos H, I, J e K, elaborou pessoalmente ou instruiu os 2 arguidos C e D a elaborar documentos falsos com teor irreal”; (cfr., fls. 9433-v a 9434-v, com tradução pelo G.P.T.U.I. efectuada).

E, em face do que se deixou exposto, e sem se olvidar toda a restante matéria que levou à condenação dos ora recorrentes e das referidas 6ª e 7ª arguidas – C (丙) e D (丁) – pelos atrás já referidos crimes de “falsificação de documentos”, censura não merece o decidido.

Como sobre a justificação político-criminal da incriminação das “associações criminosas” escrevem os Professores Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, “é consensual o reconhecimento da extrema perigosidade destas organizações. Esta perigosidade prende-se, sobretudo, com as transformações da personalidade no interior da organização. A organização criminosa tende a quebrar os laços que ligavam os seus membros aos valores e à cultura dominante e a induzir a interiorização de valores e lealdades sub ou contra-culturais. Tudo tendo como resultado uma redução drástica do sentido da responsabilidade individual e uma mobilização, sem barreiras, para a actividade criminosa.
Em síntese e na formulação de Rudolphi: «Por via de regra, estas associações desenvolvem uma dinâmica autónoma que impele à prática das condutas almejadas e atenua, ou mesmo elimina inteiramente, os sentimentos pessoais de responsabilidade dos seus membros. Isto tem uma dupla origem: em primeiro lugar, são os processos de dinâmica de grupo que se desenvolvem no seio destas associações, que destroem as resistências individuais e, não raro, oferecem motivos adicionais para a prática de crimes; em segundo lugar, estas associações tornam o cometimento dos crimes para que se constituem extremamente fácil, já devido às suas estruturas organizatórias interiores de racionalidade finalisticamente orientada para o crime, já por força do potencial de planificação e execução do crime que nelas se contém”; (in “Associações Criminosas. Artigo 287° do Código Penal”, C.J. Ano X, 1985, Tomo IV, pág. 11 e segs.).

In casu, foi o que sucedeu.

O “plano” traçado perante a oportunidade e expectativa de se conseguir vantagens patrimoniais, levou, (deu origem), à “união” dos recorrentes que, para a sua concretização, dividindo tarefas e em conjunção de esforços, levaram a cabo a projectada conduta com o apoio das referidas 6ª e 7ª arguidas de forma concertada, regular e prolongada no tempo.

E, em face do “modus operandi” que adoptaram, (assente num “projecto” ao qual todos deram acordo e aderiram), e do “período de tempo” que em sua conformidade agiram, temos para nós que claro se apresenta que na aludida matéria de facto reflectidos estão todos os elementos do crime em questão.

Na verdade, inegável é a existência de um “acordo de vontades” em vista a “concertação” na adopção de um projecto para a prática de crimes, (fins criminosos), com acordada distribuição de tarefas e funções na realização do “projecto comum”.

E como ensina o Professor Beleza dos Santos, “Não é necessário que possua qualquer grau de organização específica. Não é necessário que ela tenha uma sede, um lugar determinado de reunião. Não é mesmo essencial que os seus membros se reúnam e nem sequer que se conheçam. Não é preciso que tenha um comando ou uma direcção que lhe dê unidade de impulso, nem que possua qualquer convenção reguladora da sua actividade ou da distribuição dos seus encargos e lucros”; (in “O Crime de Associação de Malfeitores”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 70, pág. 97 e segs., podendo-se, também, sobre o tema, e com interesse, ver, Mário Pedro A. Seixas Meireles in, “Da Associação Criminosa à Criminalidade Organizada no Ordenamento Jurídico-Penal Português”, 2017, e mais recentemente, Anabela Morais in, “Controvérsias do crime de associação criminosa”, Julgar, Dez. 2019).

Dizem, ainda, os recorrentes, que não podiam ser eles – apenas “duas pessoas” – a criar uma “associação criminosa”, e que o “tipo de crime” praticado – de “falsificação de documentos” – não se mostra apto a integrar o elemento da finalidade criminosa próprio daquela (por “falta de perigosidade”).

Respeita-se – obviamente – este ponto de vista.

Todavia, não se nos mostra de o acolher.

O “número” de elementos necessário para se dar como existente uma “associação criminosa” é tão só de “dois”, ou seja, de duas pessoas; (cfr., v.g., L. Henriques no “Comentário” que se deixou transcrito, mais concretamente, a pág. 27 deste veredicto).

Não se ignora que com a Lei n.° 59/2007 de 04.09 se alterou o art. 299° do Código Penal português, exigindo-se que a associação compreenda, pelo menos, “três elementos”.

Porém, e sem prejuízo do muito respeito, em face da redacção do art. 288° do C.P.M., motivos não vislumbramos para nos afastarmos do entendimento adoptado.

Quanto ao tipo crime de “falsificação de documentos”, também não vemos razões para considerar que o mesmo não integra o aludido “elemento finalístico”, pois que o próprio normativo exige apenas que a actividade da “associação” seja dirigida à “prática de crimes”; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 13.02.1992, Proc. n.° 42233, B.M.J. 414°-186).

Tudo visto, e resolvidas todas as questões colocadas, resta decidir pela improcedência dos recursos.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento aos recursos.

Pagarão os recorrentes a taxa de justiça individual de 8 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 30 de Julho de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Cfr. Ponto 1.9. da Nota Justificativa do Projecto da Lei n.° 9/2013, publicada no website da Assembleia Legislativa.
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