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Processo nº 614/2021
(Autos de Recurso Cível e Laboral)

Data do Acórdão: 25 de Novembro de 2021

ASSUNTO:
- Registo Predial
- Ónus da Colacção

SUMÁRIO:
- Com a alteração legislativa resultante da entrada em vigor do actual Código Civil o ónus da colação previsto no artº 2118º do Código Civil de 1966 deixou de ser um ónus real e como tal deixou, também, de fazer parte do elenco dos factos sujeitos a registo previstos no artº 2º do CRP;
- O actual Código Civil ao não ter norma idêntica ao artº 2118º do C.Civ. de 1966 passou a dispor directamente sobre o conteúdo da relação jurídica sucessória em que houve doações sujeitas à colação;
- Deixando o ónus da colação de ser “real” o bem sobre o qual incide o registo deixa de responder pelo valor a que haja lugar a restituir caso se verifique inoficiosidade da doação, ou seja, o registo do ónus sobre o bem em causa não goza de sequela característica fundamental dos direitos e ónus reais;
- A inscrição no registo predial de um ónus que não é real não tem qualquer efeito prático;
- O registo de um facto de carácter obrigacional e que como tal apenas onera o donatário, não gozando de sequela sobre o bem, é um acto manifestamente inútil uma vez que não tem qualquer relação com o bem sobre o qual se encontra registado;
- Na ausência de norma de direito transitório que o defina e não ocorrendo alguma das causas previstas no artº 14º do CRP, nada obsta que em sede de decisão judicial se venha a reconhecer que o facto já não está sujeito a registo e como não é um ónus real deve ser expurgado do mesmo.


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Rui Pereira Ribeiro












Processo nº 614/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 25 de Novembro de 2021
Recorrentes: A ou A1, B ou B1, C ou C1 e D
Recorrido: Conservador do Registo Predial
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO

A ou A1, B ou B1, C ou C1 e D, todos com os demais sinais dos autos,
vêm interpor recurso judicial do despacho do
Conservador do Registo Predial,
que recusou o registo do cancelamento do Ónus da Colação melhor identificada nos autos.
Proferida sentença julgando o recurso improcedente, vêm os Recorrentes interpor recurso da mesma para este tribunal, apresentando as seguintes conclusões:
a) Nos termos do parágrafo 7.º do artigo 2107.º do Código de Seabra, a obrigação da colação constituía um ónus real sobre os bens imobiliários doados, não podendo fazer-se o registo da respectiva transmissão sem se fazer simultaneamente o registo do ónus de colação.
b) Com a entrada em vigor do Código Civil de 1966 o ónus de colação deixou de ser um ónus real.
c) O Código Civil de Macau, que entrou em vigor em 1999, mantém a posição do Código Civil de 1966, considerando que o ónus de colação não tem a natureza real, pois está disposto no n.º 1 do artigo 1949.º do Código Civil de 1999: “A colação faz-se pela imputação do valor da doação ou da importância das despesas na quota hereditária (…)”.
d) Com base nesta expurgação do carácter real do instituto da colação, os ónus de colação constituídos antes da entrada em vigor do Código Civil de 1999 extinguiram-se pelo que, consequentemente, deveriam cancelar-se os respectivos registos.
e) Este entendimento é o que foi adoptado na douta sentença proferida no Proc. CV2-11-0006-CRJ, entendimento que, com todo o respeito, deve ser adoptado por V. Exª no âmbito deste recurso.
f) E como aí se escreve, em jeito conclusivo; “os ónus de colação constituídos antes da entrada em vigor do Código Civil de 1999 extinguiram-se. E se se extinguiram os ónus, tem de cancelar-se os registos respectivos. Não pode haver dúvidas.”

Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Foram colhidos os vistos.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO

a) Factos:

Da sentença sob recurso consta a seguinte factualidade:
A) Relativamente ao terreno urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º XXXXX, A1, B ou B1, C ou C1 e D fizeram o registo da sua aquisição em 17 de Agosto de 2020, cada um adquiriu a quota de 1/4, com o número de descrição XXXXXXG (vide fls. 87 a 90 dos autos).
B) Relativamente ao terreno urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º XXXXX, A1 e B1 fizeram o registo da sua aquisição, cada um adquiriu a quota de 10/48 em 15 de Novembro de 1989, com o número de descrição XXXXXX, a fls. 148 do livro G103; D e C fizeram o registo da sua aquisição em 28 de Agosto de 1990, cada um adquiriu a quota de 5/48, com o número de descrição XXXX, a fls. 94 do livro G5 (vide fls. 91 a 97 dos autos).
C) Relativamente ao terreno urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º XXXXX, o seu domínio directo pertencia à RAEM; a aquisição do seu domínio útil foi inscrita por E, F e G em 3 de Setembro de 2020, cada um adquiriu a quota de 1/3, com o número de descrição XXXXXXG (fls. 98 a 103).
D) Por escritura pública exarada pelo notário Dr. H em 3 de Setembro de 1949, a fls. 77 do livro n.º 209-A, J doou ao seu filho I a quota de 3/8 dos terrenos urbanos, descritos na Conservatória do Registo Predial, sob os n.ºs XXXXX e XXXXX e a quota de 3/8 do domínio útil do terreno urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º XXXXX, a respectiva aquisição foi inscrita na Conservatória do Registo Predial em 5 de Setembro de 1949, com o número de descrição XXXXX, a fls. 43V do livro G20 (vide fls. 87 a 103 dos autos).
E) Em 5 de Setembro de 1949, com base no título da escritura pública supracitada, o conservador da Conservatória do Registo Predial fez a inscrição do ónus de colação devido à doação supracitada, com o número XXXX, a fls. 157V do livro F6 (vide fls. 87 a 103 dos autos)
F) Em 22 de Outubro de 2020, o advogado K, em representação de J, apresentou à Conservatória do Registo Predial as requisições de registo n.ºs 259, 260 e 261 e requereu o cancelamento o registo do ónus de colação n.º XXXX, mas não entregou nenhum documento para fazer registo (fls. 71 a 76 dos autos).
G) Em 30 de Outubro de 2020, o advogado K apresentou à Conservatória do Registo Predial as requisições de registo n.ºs 187, 188 e 189 e requereu a alteração dos titulares das requisições de registo n.ºs 259, 260 e 261 para os recorrentes A ou A1, B ou B1, C ou C1 e D. (fls. 77 a 82 dos autos).
H) Em 3 de Novembro de 2020, o conservador da Conservatória do Registo Predial proferiu despacho n.º XXXX com base na requisição de registo n.º 259, e nos termos do art.º 65.º n.º 2 do Código do Registo Predial, as requisições de registo nºs 260 e 261 foram convoladas para a requisição de registo n.º 259; e nos termos dos art.ºs 14.º e 60.º n.º 1 al. a) do Código do Registo Predial, recusou a respectiva requisição de registo, para o respectivos despacho e os fundamentos, vide fls. 21 a 22 dos autos (para os efeitos devidos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
I) No mesmo dia (3 de Novembro de 2020), a Conservatória do Registo Predial notificou o advogado K do referido despacho da recusa de registo.
J) Em 25 de Novembro de 2020, os recorrentes interpuseram o presente recurso.
b) Do Direito

É do seguinte teor a decisão recorrida:
«A questão que se coloca nesta causa é a de saber se o registo do ónus de colação feito antes do estabelecimento da RAEM fique caducado ou cancelado nos termos do Código Civil e do Código do Registo Predial vigentes.
O conservador da Conservatória do Registo Predial decidiu que:
“Nos termos dos art.ºs 14.º e 60.º n.º 1 al. a) do Código do Registo Predial, recusa o registo, com os seguintes fundamentos:
1. O registo do ónus de colação fica cancelado devido à extinção do ónus ou por causa da execução da decisão transitada em julgado. Quando o requerente não apresentou nenhum documento comprovativo da extinção do ónus ou da decisão judicial do cancelamento do registo, o respectivo registo não pode ser cancelado por falta de título.
2. Mesmo que a obrigação da colação prevista nos Códigos Civis de 1966 e de 1999 não seja o ónus real (o ónus real previsto no art.º 2118.º do Código Civil de 1966 reside na eventual redução das doações sujeitas a colação, e não na própria obrigação da colação; enquanto o Código Civil de 1999 não prevê que a eventual redução das doações sujeitas a colação constitui um ónus real), e a obrigação da colação no Código Civil de 1867, alterado pelo D.L. n.º 19:126 de 16 de Dezembro de 1930, aplica-se directamente no Código Civil de 1999, essa obrigação da colação não se extingue, apenas fica a ter eficácia obrigacional. E o registo lavrado por força do art.º 2107, § 7, do Código Civil de 1867, alterado pelo D.L. supracitado, tem natureza meramente publicitária, em vez de natureza declarativa. O registo de natureza meramente publicitária, como outros registos, segue a mesma norma, isto é, o registo só fica cancelado devido à extinção do facto registado ou por ordem da decisão judicial.”
Entendem os recorrentes que o ónus de colação previsto no art.º 1949 n.º 1 do Código Civil vigente deixa de ter natureza real, assim, o ónus de colação constituído antes da entrada em vigor deste Código Civil também ficou extinto, pelo que o respectivo registo deve ser cancelado.
O Director da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça concordou com a opinião do conservador da Conservatória do Registo Predial, julgando que devem negar provimento ao presente recurso.
Igualmente, o MP entende que devem negar provimento ao presente recurso.
Cumpre conhecer.
O registo do ónus de colação n.º XXXX que os recorrentes requereram o cancelamento foi feito em 5 de Setembro de 1949, altura em que o Código Civil vigente era o Código Civil de 1867, alterado pelo D.L. n.º 19126 de 16 de Dezembro de 1930.
Ao abrigo do art.º 2107, § 7, do Código Civil, a obrigação da colação constitui um ónus real sobre os bens imobiliários doados, não podendo fazer-se o registo da respectiva transmissão sem se fazer, simultaneamente, o desse ónus.
Portanto, quando J fez o registo da doação ao seu filho I da quota de 3/8 dos terrenos urbanos, descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs XXXXX e XXXXX e da quota de 3/8 do domínio útil do terreno urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial n.º XXXXX, deve fazer simultaneamente o registo do ónus de colação, tais factos foram registados sob o n.º XXXXX, fls. 43V, do livro G20 e o n.º XXXX, fls. 157V, do livro F6 respectivamente.
O Código Civil de 1966 alterou o art.º 2107.º § 7, do Código Civil de 1867, prevendo, no seu art.º 2118.º, que: 1. A eventual redução das doações sujeitas a colação constitui um ónus real.2. Não pode fazer-se o registo de doação de bens imóveis sujeita a colação sem se efectuar, simultaneamente, o registo do ónus.
De acordo com a norma supracitada, a obrigação da colação deixa de ser um ónus real, enquanto o facto de “eventual redução das doações sujeitas a colação” constitui um ónus real, e o respectivo facto deve ser registado simultaneamente com as doações.
Ao abrigo do art.º 1949.º do Código Civil de 1999, 1. A colação faz-se pela imputação do valor da doação ou da importância das despesas na quota hereditária, ou pela restituição dos próprios bens doados, se houver acordo de todos os herdeiros. 2. Se não houver na herança bens suficientes para igualar todos os herdeiros, nem por isso são reduzidas as doações, salvo se houver inoficiosidade.
De acordo com esta norma jurídica, combinando com o princípio de numerus clausus previsto no art.º 1230 do mesmo Código, no sistema jurídico vigente, quer a colação, quer a eventual redução das doações sujeitas a colação, não constituem o ónus real.
No regime de registo, tal como se referiu, antes da entrada em vigor do Código Civil de 1999, o ónus de colação ou a eventual redução das doações sujeitas a colação são factos sujeitos a registo, sem o registo, a respectiva doação também não pode ser registada.
E o Código do Registo Predial vigente suprimiu dos factos sujeitos a registo o ónus de colação ou a eventual redução das doações sujeitas a colação, só que o D.L. n.º 46/99/M não fez nenhuma norma transitória para regular a colação ou a eventual redução das doações sujeitas a colação pré-existentes.
Cumpre resolver a questão de saber se o registo do ónus de colação feito antes do estabelecimento da RAEM1 fica caducado ou cancelado nos termos do Código Civil e do Código do Registo Predial vigentes?
Aqui se cita a opinião brilhante do Dr. Vicente João Monteiro:
“Refira-se, por último que, à semelhança do que ainda hoje se prevê no Código, português, nas duas versões do anteprojecto do Código, estava incluída no elenco das caducidades especiais o registo do ónus de eventual redução das doações sujeitas a colação (No Código português prevê-se que o registo do ónus de eventual redução das doações sujeitas a colação caduca decorridos 20 anos a contar da data da morte do doador (cfr. n.º 3 do seu art.º 12.º), sendo também esse o prazo que estava previsto nas versões do anteprojecto do Código de Macau), que não estava incluído no n.º 1 do art.º 225.º do Código revogado. Conforme já atrás referido, o novo Código Civil de Macau deixou de configurar a colação como ónus real, ao invés do que sucedia no Código Civil anteriormente vigente (cfr. art.º 2118.º do Código Civil de 1966), razão pela qual aquele facto foi excluído do elenco do art.º 2.º do Código, e, desse modo, também do elenco do n.º 1 do art.º 13.º.
Coloca-se agora a questão de saber como proceder face à existência dos registos de pretérito daquela natureza. Quer dizer, porque a colação deixou de configurar um ónus real sujeito a registo deve entender-se que a não tipificação da colação como ónus real conduz à caducidade dos registos (que, lembre-se, deve ser averbada ao registo logo que verificada) ou à extinção do direito neles traduzido, o que implica um acto de cancelamento nos termos do art.º 14.º?
Do nosso ponto de visto, tal como acontecia no domínio da lei civil anterior, a colação extingue-se com a conferencia dos bens doados (cfr. art.º 1949.º do Código Civil), feita no acto da partilha por óbito do doador, ou quando se verifique que a conferência não tem razão de ser, nomeadamente por se comprovar que o donatário é o único sucessor do doador. Assim, o registo de ónus de colação poderia continuar a ser cancelado à vista de documento que comprovasse um daqueles factos. Mas, a verdade é que das tábuas constam ainda inúmeros registos antigos de ónus de colação, apesar de o direito de propriedade do imóvel ter entretanto mudado de mão, e para cujo cancelamento não é agora fácil obter um daqueles documentos, dada a grande propensão que as gentes de Macau sempre tiveram para a emigração e circulação de e para o interior da China e outras regiões próximas e até para outros continentes.
À falta de documentos que comprovassem a extinção do referido ónus de colação, podiam sempre os interessados socorrer-se dos meios de suprimento previstos no Código para proceder ao cancelamento do registo (cfr. art.ºs 104.º n.º 1, e 113.º n.º 1 al. b) do Código). Mas, será que se justifica o recurso a este procedimento, que é sempre algo moroso e não deixa de ser dispendioso? Estamos em crer que não. Encurtando razões, pode dizer-se que, face ao princípio da tipicidade que caracteriza os direitos reais, que estão sujeitos à regra do numerus clausus prevista no art.º 1230.º do Código Civil, a exclusão da figura da colação como ónus real deve ser entendida como tendo sido ela própria excluída do elenco dos direitos reais. Mas, como ela se mantém no direito positivo, deverá então entender-se que passou a ter carácter meramente obrigacional. Resta saber se a exclusão da colação como ónus real no Código Civil foi feita apenas para o futuro ou se foi feita com eficácia retroactiva e, neste caso, o que acontece com os registos que ainda hoje subsistem em vigor. Quanto a nós, nada se dizendo quanto aos ónus de colação anteriormente registados, estando eles agora excluídos do ordenamento jurídico como facto sujeito a registo, deverá entender-se que todos eles caducaram, independentemente da data em que foram registados.
Na verdade, não faria sentido considerar em vigor inscrições de ónus de colação de pretérito, quando os mesmos factos jurídicos em que elas se fundaram deixaram, a partir da entrada em vigor do novo Código Civil, de poder fundamentar registos de idêntica natureza. Qual a razão jurídica e racional para manter uma desigualdade tão evidente? Note-se que a caducidade das inscrições de ónus de colação ainda existentes não implica que o respectivo donatário deixe de estar sujeito à obrigação de conferência e eventual restituição do prédio doado à massa da herança para igualação da partilha, tal como esta obrigação se mantém no Código Civil (art.º 1945.º e ss). Simplesmente, essa obrigação deixou de ficar garantida por um registo de ónus sobre o prédio doado. Concordemos ou não, foi essa a opção do legislador, que há que respeitar com todas as consequências jurídicas daí resultantes.
Este nosso entendimento foi já confirmado por decisão judicial proferida em 27/07/2011, no âmbito do Processo n.º CV2-11-0006-CRJ, que correu termos no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, na sequência de impugnação judicial interposta da decisão de recusa do conservador do Registo Predial em efectuar o cancelamento de registo de ónus de colação, requerido pelo interessado. Ali se referiu que a colação é um «instituto geral das sucessões, destinando-se ao cálculo do valor da herança a partilhar e à igualação da partilha dos herdeiros legitimários (...) quer na sucessão legítima, quer na legitimária, quer na voluntária. (...) Mas também diz respeito ao direito das coisas. Por tudo isso se conclui que a abolição do ónus de colação não se inclui na disposição transitória do art.º 39.º do D.L. n.º 39/99/M, de 2 de Agosto, que aprova o Código Civil de 1999. Nesta disposição transitória estipula-se que as novas regras da sucessão legítima e legitimária apenas se aplicam às sucessões abertas após a entrada em vigor do novo Código Civil». Contudo, acrescenta-se na referida decisão judicial, «a nova lei que “destipifica” o ónus real de colação dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas sucessórias, abstraindo dos factos que lhes deram origem, pelo que se aplica também as relações jurídicas anteriormente constituídas e que ainda não se extinguiram». Quer dizer, «com independência dos factos genéricos, essa lei nova (o C.C. de 1999) dispõe directamente sobre o conteúdo da relação jurídica sucessória em que houve doações a herdeiros legitimários presuntivos que importem redução. Assim, por aplicação da doutrina do n.º 2 do art.º 11.º do Código Civil, abrange as próprias relações jurídicas sucessórias anteriormente constituídas. Desta forma, os ónus de colação constituídos antes da entrada em vigor do Código Civil de 1999 extinguiram-se».
Podemos, pois, concluir que não estamos perante uma caducidade dos efeitos de um negócio jurídico, que conduziria à inerente caducidade do respectivo registo, mas sim perante a extinção de determinado facto jurídico face à sua exclusão do ordenamento jurídico como ónus real e do elenco dos factos sujeitos a registo. Porém, se excluíssemos a hipótese da sua caducidade, teria de entender-se que aquela extinção só poderia ser levada a registo através do cancelamento da respectiva inscrição. Ora, como o cancelamento só pode ser efectuado oficiosamente nos termos previstos na lei e esta não prevê o cancelamento da inscrição de uma figura jurídica que tenha sido excluída do ordenamento jurídico como facto sujeito a registo, impõe-se resolver o impasse (com efeito, no caso concreto, a decisão, dando provimento ao recurso, determinou o cancelamento do registo em causa; mas, salvo melhor opinião, ela não pode ser considerada como solução automática para os restantes casos). E, do nosso ponto de vista, ele só se revolve através de uma norma transitória a inserir no decreto preambular que expressamente prescreva a caducidade das inscrições daquela natureza que tenham sido efectuadas na vigência do Código revogado”.2
Este Juízo concordou basicamente com a opinião supracitada e justificou o seguinte.
Primeiro, o ónus de colação resulta do acto de doação. É de sabido, em princípio, a doação é um contrato gratuito que resulta imediatamente eficácia real. Então, in casu, a lei aplicável à colação deve ser as normas do Código Civil de 1867 ou do Código Civil de 1999? Por outras palavras, o ónus constante no registo n.º XXXX envolvido no presente caso tem eficácia real ou eficácia meramente obrigacional?
O D.L. n.º 47344 que aprovou o Código Civil de 1966 não prevê a norma transitória sobre a colação. E nos termos do art.º 39.º do D.L. n.º 39/99/M que aprovou o Código Civil de 1999, as disposições do novo Código Civil relativas à sucessão legítima e legitimária, assim como ao direito de representação sucessória, só são aplicáveis às sucessões abertas após a sua entrada em vigor. E nos termos do art.º 40.º do mesmo D.L., as disposições do novo Código Civil relativas à colação do cônjuge só são aplicáveis às doações efectuadas após a sua entrada em vigor. Para além das normas supracitadas, não há mais norma transitória.
Considerando o capítulo relativo à colação no Código Civil de 1999 e o art.º 40.º do D.L. n.º 39/99/M, o regime de colação no Código Civil de 1999 não se enquadra no âmbito previsto no art.º 39.º do D.L. n.º 39/99/M.
Assim, resta recorrer à regra geral da aplicação das leis no tempo prevista no art.º 11.º do Código Civil, 1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Relativamente à questão da aplicação das normas da colação no tempo, a jurisprudência e a doutra têm opiniões divergentes. Nas perspectivas de João António Lopes Cardoso e de João Baptista Machado, a lei aplicável é aquela que vigorava quando foi celebrada a doação ou aquela que vigorava quando a produção desses efeitos ocorreu. Diversamente, Antunes Varela e com ele quiçá a maioria da jurisprudência, pronunciam-se no sentido de ser aplicável a lei vigente à data da abertura da sucessão.3
Este Juízo entende que no presente caso, o Código Civil de 1999 prevê que a colação deixa de ter natureza real, regulando directamente o conteúdo da relação jurídica. E à luz do art.º 11.º n.º 2, 2ª parte do Código Civil, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor, isto é, todas as relações jurídicas de sucessão ainda não concluídas.
Só assim pode corresponder ao princípio de numerus clausus previsto no art.º 1230.º do Código Civil.
In casu, de acordo com os factos provados e a certidão do registo predial, não se verifica que a relação jurídica de sucessão envolvida no ónus de colação constante do registo n.º XXXX já foi concluída antes da entrada em vigor do Código Civil de 1999.
Portanto, nos termos do art.º 1949.º n.º 1 do Código Civil de 1999, a colocação constante do registo n.º XXXX tem eficácia meramente obrigacional e não eficácia real.
Assim, o respectivo registo deve ser caducado ou cancelado?
A nível da legislação, o ónus de colação foi suprimido nos factos sujeitos a registo no Código do Registo Predial vigente, porque o Código Civil de 1999 prevê que a colação deixa de ter natureza real, assim, este facto também deixa de ser facto carecido de protecção registral no regime de registo. Assim, o melhor tratamento é estipular a norma transitória para regular a caducidade dos registos do ónus de colação pré-existentes.
Todavia, como se referiu acima, o D.L. n.º 46/99/M que aprovou o Código do Registo Predial não prevê nenhuma norma transitória sobre os registos do ónus de colação pré-existentes.
A nível da legislação, ao abrigo do art.º 12.º n.º 1 do Código do Registo Predial, 1. Os registos caducam por força da lei ou pelo decurso do prazo de duração do direito inscrito.
Dado que o regime de registo predial segue severamente o princípio da legalidade, na falta da norma especial sobre a caducidade e a duração do direito de registo, o respectivo registo não deve ser caducado apenas devido à alteração jurídica da natureza do direito inscrito.
Além disso, à luz do art.º 14.º do Código do Registo Predial, os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos ou em execução de decisão judicial transitada em julgado.
A alteração jurídica da natureza da colação não implica que os respectivos direitos e obrigações também ficam extintos, só que a sua natureza foi alterada da natureza real para a natureza meramente obrigacional.
Os recorrentes não apresentaram nenhum documento para provar a extinção do ónus de colação, não satisfazendo o disposto no art.º 14.º do Código do Registo Predial.
É de salientar que à luz do art.º 1 do Código do Registo Predial, o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio imobiliário.
Combinando com o disposto nos art.º 4.º n.º 1, art.º 5.º n.º 1 e art.º 7 do Código do Registo Predial, em princípio, o registo predial tem efeito meramente declarativo; os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo, e o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito.
A lei apenas qualifica a situação jurídica de imóveis carecidos de ser divulgados como facto sujeito a registo e tal facto deve seguir severamente o princípio da legalidade. Além disso, nem todo o facto com eficácia real deve ser sujeito a registo, por exemplo, o direito de retenção previsto nos art.ºs 744.º e ss do Código Civil. Tudo depende das normas jurídicas da lei de registo.
Portanto, se um facto tem eficácia real ou não é uma coisa e se está sujeito a registo ou não é outra.
Face ao exposto, considerando que o regime do registo predial segue severamente o princípio da legalidade, o conservador da Conservatória do Registo Predial tomou a decisão da recusa do registo nos termos do art.º 60.º n.º 1 al. a) do Código do Registo Predial, o que não incorreu em nenhum erro.
Por fim, é de indicar que relativamente ao terreno urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º XXXXX e de acordo com os factos provado, o seu domínio directo pertencia à RAEM; e a aquisição do seu domínio útil foi registada em nome de E, F e de G em 3 de Setembro de 2020, cada um adquiriu a quota de 1/3, com o número de inscrição de XXXXXXG.
Aqui, não se verifica nenhum interessado dos recorrentes.
Todavia, mesmo que os recorrentes justifiquem o seu interessado após o aperfeiçoamento, se os recorrentes não apresentarem nenhum documento de registo, resta recusar a requisição do registo dos recorrentes com base nas razões acima invocadas.».

Acompanhando a posição de Vicente João Monteiro em Código do Registo Predial de Macau Anotado e Comentado, pág. 206 a 208, a qual transcreve, conclui-se na decisão recorrida que se o facto estava sujeito a registo quando ocorreu e não se verificando nenhuma das situações previstas no artº 14º do CRP, e na ausência de norma transitória que preveja a situação, pese embora deixe ter de eficácia real não se pode extinguir o registo.

Numa outra decisão proferida no processo que correu termos no TJB sob o nº CV2-11-0006-CRJ se decidiu em sentido diferente ao da decisão agora recorrida no essencial pelos seguintes fundamentos:
«No sistema jurídico de Macau não existe actualmente o ónus real de colação4. Sobreviveu apenas a obrigação de colação que perdeu as características de direito real, mesmo que como obrigação propter rem5. E, com independência dos factos genéticos, essa lei nova (o C.C. de 1999) dispõe directamente sobre o conteúdo da relação jurídica sucessória em que houve doações a herdeiros legitimários presuntivos que importem redução. Assim, por aplicação da doutrina do nº 2 do art. 11º do Código Civil, abrange as próprias relações jurídicas sucessórias anteriormente constituídas. Desta forma, os ónus de colação constituídos antes da entrada em vigor do Código Civil de 1999 extinguiram-se. E se se extinguiram os ónus, tem de cancelar-se os registos respectivos. Não pode haver dúvidas. Uma coisa é eliminar um ónus real de entre os factos sujeitos a registo, outra coisa é eliminar o mesmo ónus real da classe dos direitos reais.
Significa que hoje o herdeiro que tenha direito a redução por inoficiosidade de uma doação feita a outro (descendente do de cujus6) e o obrigado não cumpra a sua obrigação de conferir e já tenha transmitido a coisa doada, não a pode penhorar em execução nem reivindica-la ou persegui-la por outra forma fora da esfera jurídica do obrigado à colação.
E também não tem razão o despacho de sustentação quando refere que hoje a colação “cabe”, como facto sujeito a registo, na al. p) do nº 1 do art. 2º do CRP. Na verdade ali se referem quaisquer outras restrições ao direito de propriedade e a obrigação de colação não implica essas restrições, como se viu e considerando ainda que, além de a colação poder ser dispensada pelo doador, o donatário pode evitar a colação não estrando na sucessão e só com o acordo de todos os interessados pode a colação ser operada com restituição dos bens doados (arts. 1945º, 1949º e 1954º do Código Civil). Não há, pois, qualquer característica propter rem na actual obrigação de colação.».

Quid Juris?

Dúvidas não há que com a alteração legislativa resultante da entrada em vigor do actual Código Civil o ónus da colação previsto no artº 2118º do Código Civil de 1966 deixou de ser um ónus real e como tal deixou, também, de fazer parte do elenco dos factos sujeitos a registo previstos no artº 2º do CRP.

Em todas as decisões citadas e referidas é unânime o entendimento que a alteração legislativa decorrente do actual Código Civil ao não ter norma idêntica ao artº 2118º do C.Civ. de 1966 passou a dispor directamente sobre o conteúdo da relação jurídica sucessória em que houve doações sujeitas à colação.
Daí decorre que, deixando o ónus da colação de ser “real” o bem em causa – aquele sobre o qual incide o registo - deixa de responder pelo valor a que haja lugar a restituir caso se verifique inoficiosidade da doação, ou seja, o registo do ónus sobre o bem em causa não goza de sequela característica fundamental dos direitos e ónus reais.
Isto é, o registo de um ónus que não é real não tem qualquer efeito prático.
Pese embora, como se alega a determinado passo que o registo predial visa dar publicidade à situação dos bens, nomeadamente quanto aos ónus e direitos que sobre os mesmos incidem, impõe-nos considerar que o registo de um facto que, também, como todos reconhecem é de caracter obrigacional, onera o donatário, não goza de sequela sobre o bem e como tal não tem natureza real, é um acto manifestamente inútil uma vez que não tem qualquer relação com o bem sobre o qual se encontra registado.
Assim é, que desde a entrada em vigor do actual do Código Civil e Código do Registo Predial os ónus de colação que hajam surgido deixaram de estar sujeitos a registo.
Ora, se a alteração decorrente da entrada em vigor do actual Código Civil dispõe directamente sobre o conteúdo da relação jurídica, se as relações jurídicas sujeitas à colação e a bens imóveis que tenham surgido após a entrada em vigor daquele diploma não estão sujeitas a registo porque o legislador entendeu que não devia ser assim, pergunta-se porque é que as relações jurídicas que nasceram antes, em tudo sujeitas ao regime actual continuam sujeitas a registo?
Quiça porque o legislador entendeu que não era necessário dizer mais nada uma vez que “o facto sujeito a registo” deixava de contar do elenco dos factos registáveis.
É certo que no rigor e provavelmente de acordo com a melhor técnica legislativa melhor teria sido que se tivesse dito que os registo existentes se extinguiam.
Certo é também, que em direito comparado, por recurso à legislação portuguesa em que a redução das doações sujeitas à colação continua a ser um ónus real e sujeito a registo, este caduca decorrido 20 anos contados da morte da doador, o que nos induz que quando se entende que o ónus é registável, o registo caduca pelo decurso do tempo por se presumir que o direito se extinguiu.
Não havendo norma que fixe a caducidade do registo no direito de Macau porque o ónus deixou de ser registável e tendo o ónus deixado de ser real, isto é de gozar de sequela sobre o bem doado, ou seja de ter qualquer relevância prática o registo na assepção dos direitos reais, e deixando o facto de estar sujeito a registo, corremos o risco de nas tábuas do registo predial de Macau se perpetuarem eternamente o registo dos ónus de colação realizados antes de 1999 sem que daí decorra qualquer efeito jurídico.
Isto é, reconhecendo-se como se faz que o ónus é meramente obrigacional, logo, como tal obriga apenas o donatário e eventualmente os seus representantes se concorreram à herança, não goza de sequela sobre o bem em causa nem com ele tem conexão alguma, perpetua-se a inscrição de um facto no registo predial que é, nem mais nem menos do que, irrelevante.

Ora, entendendo-se e bem e como melhor explica Vicente João Monteiro na anotação já transcrita na decisão recorrida que, na ausência de norma de direito transitório que o defina e alguma das causas previstas no artº 14º o Conservador não possa oficiosamente ou a requerimento do interessado proceder ao cancelamento do registo uma vez que não há documento que o legitime a tal, nada obsta, contudo, que em sede de decisão judicial se venha a reconhecer que o facto já não está sujeito a registo e como não é um ónus real deve ser expurgado do mesmo.

Termos em que, acompanhamos a posição que entende que deve ser lavrado o cancelamento do registo do ónus da colação requerido.

III. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida, e em substituição ordena-se que se proceda ao registo do cancelamento do registo do ónus da colação sobre os prédios a que respeitam os autos como requerido.

Sem custas.

Registe, notifique e cumpra o disposto no artº 149º nº 1 do CRP.

RAEM, 25 de Novembro de 2021
Rui Pereira Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong




1 Considerando que o registo do ónus de colação envolvido no presente caso foi lavrado em 1949 nos termos do art.º 2107.º § 7, do Código Civil de 1867, não se justificará mais sobre a eventual redução das doações sujeitas a colação prevista no art.º 2118.º do Código Civil de 1966.
2 CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL DE MACAU, ANOTADO E COMENTADO, VICENTE JOÃO MONTEIRO, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2016, p. 206 a 208.
3 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Novembro de 2014, n.º 11360/05.7TBMAI.P1.
4 Cfr. Professor Manuel Trigo, Lições Preliminares de Direito da Família e das Sucessões, Segundo as Aulas ao 4º ano … 1999-2000, revistas no ano lectivo de 2004-2005, policopiado, p. 682.
5 Henrique Mesquita, op. cit., loc. cit..
6 Quanto ao cônjuge a situação poderá ser diversa.
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614/2021 CÍVEL 1