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Processo nº 138/2021 Data: 01.12.2021
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Recurso para o Tribunal de Última Instância.
Crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”.
Pena especialmente atenuada.
Dupla conforme.
Gravidade da pena.
Recurso de despacho do Relator do Tribunal de Segunda Instância.
“Decisão que (não) põe termo ao processo”.



SUMÁRIO

1. Ainda que o “direito ao recurso” não esteja expressamente consagrado na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, dúvidas não existem que o mesmo se deve ter como um “direito fundamental” que a todos assiste de “obter uma reapreciação de uma decisão proferida por um Tribunal de hierarquia superior”.

2. Embora (teoricamente) desejável a consagração de um “direito ao recurso” com a amplitude que a todos pudesse agradar, reconhecido se apresenta contudo que nenhum sistema jurídico o faz por motivos dos mais variados.

3. O art. 390°, n.° 1, al. g) do C.P.P.M. prevê um “mecanismo impeditivo de recurso”, afastando a susceptibilidade de recurso para o Tribunal de Última Instância, desde que:
(1) a decisão recorrida (do Tribunal de Segunda Instância) seja uma “decisão de confirmação” da antecedente decisão do Tribunal Judicial de Base; e, desde que,
(2) ao crime dos autos “aplicável não seja uma pena superior a 10 anos de prisão”.

Adoptou assim o legislador local como “critérios” para impedir o acesso ao Tribunal de Última Instância: o da “dupla conforme”, e o da “gravidade da pena (aplicável)”.

4. O primeiro, tem como fundamento o entendimento no sentido de que um “segundo juízo confirmativo” proferido pela 2ª Instância, seja ele absolutório ou condenatório, é sinal (fortemente) seguro de que justa e correcta é a solução a que se chegou, e que excessivo era (provocar) uma nova pronúncia.

5. Quanto à “gravidade da pena aplicável”, importa ponderar no “momento processual” que se deve ter como adequado para efeitos de se identificar e aferir da mesma.

Duas são as soluções possíveis.

Uma, atribuindo relevância à “pena aplicável” ao tipo de crime cuja prática ao arguido se imputa nos exactos termos constantes do “despacho de acusação” ou de “pronúncia”.

A outra, reconhecendo-se (tão só) relevância à “pena – abstractamente – aplicável” em face do “enquadramento e qualificação jurídico-penal” efectuada à conduta do arguido atenta a factualidade que do julgamento se revelou relevante e provada.

6. Temos como mais adequada esta segunda, até mesmo porque, a atrás referida “dupla conforme” – à semelhança do que sucede com a situação prevista na alínea e), do n.° 1 do mesmo art. 390°, quanto aos “acórdãos absolutórios” – diz (necessariamente) respeito a “decisões judiciais” proferidas por Tribunais de julgamento (de 1ª Instância), não se mostrando igualmente de olvidar que são, precisamente, este tipo de “decisões”, (no nosso caso, “condenatória”, em pena não superior a 10 anos), que o preceito agora em questão tem por referência.

Nestes termos, e tendo o Tribunal Judicial de Base decidido que ao arguido dos autos aplicável era uma pena “especialmente atenuada”, adequado se apresenta que a “moldura penal” para efeitos de recurso deverá ser a que corresponde à “pena – abstracta – aplicável” após esta “atenuação especial”.

7. Não se pode deixar de ter também (bem) presente que, como princípio geral, o direito ao recurso em matéria penal está, (tão só), consagrado em “um grau”, possibilitando a impugnação das decisões penais através da reapreciação por uma Instância superior das decisões sobre a culpabilidade e a medida da pena, sendo estranho a tal dispositivo a obrigatoriedade de um “terceiro grau de jurisdição”.

8. O despacho do Exmo. Relator do Tribunal de Segunda Instância que decidiu manter o arguido/recorrente em prisão preventiva é susceptível de “impugnação” através de reclamação para a Conferência, (e então, se tempestiva, podia ser objecto de apreciação e decisão por Acórdão do Colectivo de Juízes do Tribunal de Segunda Instância)

9. Porém, não constituindo “decisão que põe termo ao processo”, abrangida se mostra (desde já) de considerar pela alínea d), do n.° 1, do referido art. 390° do C.P.P.M. que, (aliás), referindo-se a “acórdãos proferidos em recurso pelo Tribunal de Segunda Instância”, afasta, (totalmente), a sua recorribilidade para este Tribunal de Última Instância.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 138/2021
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), (2°) arguido com os restantes sinais dos autos, recorreu do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 29.07.2021 e proferido nos Autos de Recurso Penal aí registados com n.° 559/2021 que confirmou anterior Acórdão do Tribunal Judicial de Base com o qual foi condenado como co-autor material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção resultante da Lei n.° 10/2016, e que, por aplicação dos art°s 66°, n.° 1 e 2, al. f) e 67°, n.° 1, al. a) e b) do C.P.M., lhe fixou a pena especialmente atenuada de 3 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 551 a 554-v e 563 a 584 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Admitido o recurso, foram os autos remetidos a este Tribunal de Última Instância, nos mesmos subindo também um “recurso de uma decisão do Exmo. Relator do Tribunal de Segunda Instância que ao arguido manteve a medida de coacção de prisão preventiva”; (cfr., fls. 586 a 605 e 616).

*

Nesta Instância, após douto Parecer do Ministério Público no sentido da procedência dos recursos, (cfr., fls. 627), proferiu o ora relator o despacho seguinte:

“Vem-nos os presentes autos conclusos para efeitos de exame preliminar; (cfr., art. 407° do C.P.P.M.).
Nesta conformidade, vejamos.

1. Dois são os recursos trazidos a esta Instância; (cfr., fls. 563 a 584 e 586 a 605 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
O primeiro, tendo como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 29.07.2021, (Proc. n.° 559/2021), que confirmou o anterior Acórdão pelo Tribunal Judicial de Base proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-20-0363-PCC, no âmbito do qual, e em Primeira Instância, se decidiu condenar o ora recorrente – A, (甲) – como co-autor material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção dada pela Lei n.° 10/2016, na pena especialmente atenuada de 3 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 425 a 434 e 551 e 554-v).
O segundo, incidindo sobre o despacho do Exmo. Relator do Tribunal de Segunda Instância que, após a prolação do referido Acórdão, manteve a decisão de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao dito recorrente; (cfr., fls. 556).

2. Ponderando sobre o teor das referidas “decisões” assim como o alegado e pretendido nos ditos “recursos”, mostra-se-nos de consignar o que segue.
Nos termos do art. 404°, n.° 3 do referido C.P.P.M.:
“A decisão que admita o recurso, que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal a que o recurso se dirige”.
Assim, e antes de mais, cabe-nos aferir da adequação do despacho do Exmo. Relator do Tribunal de Segunda Instância que admitiu os referidos recursos; (cfr., fls. 616).

–– E começando-se pelo interposto do aludido aresto, vejamos.
Como resulta do que se deixou consignado, o Acórdão ora recorrido confirmou a condenação do ora recorrente pelo Tribunal Judicial de Base na pena especialmente atenuada de 3 anos e 6 meses de prisão.
Como é bom de ver, (tendo-se também presente o consignado no Acórdão do Tribunal Judicial de Base), tal “pena” (especialmente atenuada) foi achada em conformidade com o estatuído no art. 66°, n.° 1 e 2, al. f) e art. 67°, n.° 1, al. a) e b) do C.P.M.; (cfr., fls. 432-v a 433).
Dest’arte, considerando-se que por aplicação do referido art. 67°, n.° 1, al. a) e b), a “moldura penal aplicável” ao crime pelo ora recorrente cometido passou a ser de “1 a 10 anos de prisão”, e visto estando também que o Acórdão agora recorrido “confirmou” o decidido – e a dita “pena” decretada – pelo Tribunal Judicial de Base, afigura-se-nos que o “presente recurso” não se apresenta em conformidade com o pressuposto legal ínsito no art. 390°, n.° 1, al. g) do C.P.P.M..

–– Por sua vez, (e ressalvado o devido respeito a entendimento diverso), susceptível de recurso (para esta Instância) não se nos mostra também ser o despacho do Exmo. Relator do Tribunal de Segunda Instância que manteve a medida de coacção de prisão preventiva decretada ao arguido.
Com efeito, (e independentemente do demais), atenta a sua “natureza”, de mero “despacho” (sobre uma “questão” relativa ao estatuto processual do recorrente), e não se tratando de um “Acórdão” proferido em sede de um “recurso”, (de uma “decisão que tenha posto termo ao processo”), adequado não se nos mostra o seu prosseguimento.

3. Nesta conformidade, e em obediência ao princípio do contraditório, dê-se conhecimento do ora consignado ao recorrente e Ministério Público para, querendo, dizerem o que entenderem conveniente.
*
Oportunamente, voltem-nos os autos conclusos.
(…)”; (cfr., fls. 628 a 629).

*

Regularmente notificado, sobre a suscitada questão veio o recorrente responder, pugnando pela susceptibilidade de recurso de ambas as decisões impugnadas; (cfr., fls. 634 a 636).

*

Por sua vez, considerou o Ministério Público que não se devia admitir o recurso do despacho do Exmo. Relator do Tribunal de Segunda Instância que manteve a medida de coacção àquele aplicada; (cfr., fls. 638 a 639).

*

Sem mais demoras se passa a decidir.

Fundamentação

2. Como breve nota preliminar – e como também tivemos oportunidade de consignar no nosso Acórdão de 29.09.2021, Proc. n.° 34/2021 – salienta-se, desde já, que ainda que o “direito ao recurso” não esteja expressamente consagrado na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, dúvidas não existem que o mesmo se deve ter como um “direito fundamental” que a todos assiste de “obter uma reapreciação de uma decisão proferida por um Tribunal de hierarquia superior”; (cfr., v.g., Miguel A. L. M. de Lemos in, “O direito ao recurso da decisão condenatória enquanto direito constitucional e direito humano fundamental”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias, pág. 923 a 948; e “Direitos Fundamentais e Processo Penal: o Habeas Corpus, o Direito ao Recurso de Decisão Condenatória e as Funções de Tutela de Direitos Fundamentais do Tribunal de Instrução Criminal”, 2as Jornadas de Direito e Cidadania da Assembleia Legislativa da RAEM, Direitos Fundamentais – Consolidação e Perspectivas de Evolução, pág. 257 a 286, onde vem citada vasta doutrina sobre o tema).

De facto, tal conclusão mostra-se-nos aliás imperativa em face do que preceituado está no art. 14°, §5 do “Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”, aplicável por força do art. 40° da dita L.B.R.A.E.M., assim como atenta a (própria) redacção do art. 36° desta mesma Lei quanto ao “acesso ao direito e aos Tribunais” e do estatuído no seu art. 41° quanto aos “outros direitos e liberdades asseguradas pelas leis da R.A.E.M.”.

Por sua vez, e notando-se, igualmente, que embora também tenhamos como (teoricamente) desejável a consagração de um “direito ao recurso” com a amplitude que a todos pudesse agradar – mas adquirido e reconhecido se nos apresentando contudo que nenhum sistema jurídico o faz por motivos dos mais variados, (não sendo este o momento ou local para sobre os mesmos reflectir) – e, em causa não estando (agora) a abordagem do dito “direito (ao recurso)” atenta esta sua “natureza” de “princípio-geral-fundamental de direito (processual penal)”, (cfr., v.g., o art. 389° do C.P.P.M.), cabendo-nos, tão só, decidir da “situação (concreta)” que agora nos ocupa, ou seja, da susceptibilidade de recurso do já referido “Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 29.07.2021” assim como do aludido “despacho do Exmo. Relator”, mostra-se de referir ainda que os “recursos” assumem (apenas) o papel de “remédios jurídicos”, (constituindo a prova cabal e acabada que os Juízes, como simples e comuns mortais, não são incansáveis e infalíveis).

Isto dito, cabe consignar que se tem como adequado o que em sede de exame preliminar se considerou quanto à “insusceptibilidade de recurso” das duas já mencionadas “decisões”, passando-se a (tentar) explicitar este nosso ponto de vista.

2.1 Comecemos pelo “recurso do Acórdão de 29.07.2021”.

Nos termos do art. 390° do C.P.P.M.:

“1. Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De decisões proferidas em processo sumaríssimo;
d) De acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que não ponham termo à causa;
e) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância;
f) De acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
g) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
h) Nos demais casos previstos na lei.
2. O recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil é admissível desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido”.

E, em face do assim estatuído, de admitir não é o “recurso” em questão, pois que, (como se consignou em sede de exame preliminar), não se nos apresenta em conformidade com o preceituado na “alínea g)” do transcrito comando legal.

Com efeito, atenta a redacção (e ratio) do dito preceito, (e no que para agora interessa), evidente se nos apresenta a intenção legislativa de com o mesmo se prever um “mecanismo impeditivo de recurso”, afastando a susceptibilidade de recurso para o Tribunal de Última Instância desde que:
(1) a decisão recorrida (do Tribunal de Segunda Instância) seja uma “decisão de confirmação” da antecedente decisão do Tribunal Judicial de Base; e, desde que,
(2) ao crime dos autos “aplicável não seja uma pena superior a 10 anos de prisão”.

Adoptou assim o legislador local como “critérios” para impedir o acesso ao Tribunal de Última Instância: o da “dupla conforme”, e o da “gravidade da pena (aplicável)”.

O primeiro, tem como fundamento o entendimento no sentido de que um “segundo juízo confirmativo” proferido pela 2ª Instância, seja ele absolutório ou condenatório, é sinal (fortemente) seguro de que justa e correcta é a solução a que se chegou, e que excessivo era (provocar) uma nova pronúncia; (cfr., v.g., Manuel Leal-Henriques in, “Anotação e Comentário ao C.P.P.M.”, Vol. III, pág. 134, e “Manual de Formação de Direito Processo Penal de Macau”, Tomo II, pág. 201).

Assim, é caso para se dizer que a “dupla conforme” é assegurada através da possibilidade de os sujeitos processuais fazerem reapreciar, em via de recurso, pela 2ª Instância, a precedente decisão, impedindo, (ou tendendo a impedir), por outro lado, que este “segundo juízo” confirmativo, (seja ele absolutório ou condenatório), seja sujeito a uma “terceira apreciação” pelos Tribunais.

In casu, e verificando-se que o Acórdão (recorrido) do Tribunal de Segunda Instância de 29.07.2021, “confirmou”, (integralmente), o anterior Acórdão do Tribunal Judicial de Base, mais não se apresenta necessário dizer no que toca à referida “dupla conforme”.

Quanto à “gravidade da pena aplicável”, importa ponderar no “momento processual” que se deve ter como adequado para efeitos de se identificar e aferir da mesma.

E, aqui, se bem ajuizamos, duas são as soluções que se nos apresentam possíveis.

Uma, atribuindo relevância à “pena aplicável” ao tipo de crime cuja prática ao arguido se imputa nos exactos termos constantes do “despacho de acusação” ou de “pronúncia”.

A outra, reconhecendo-se (tão só) relevância à “pena – abstractamente – aplicável” em face (ou em resultado) do “enquadramento e qualificação jurídico-penal” efectuada à conduta do arguido atenta a factualidade que do julgamento se revelou relevante e provada.

Ou seja, uma, em que se atribui relevo à “pena aplicável” ao tipo de crime tal como vem descrito e/ou qualificado em sede do Inquérito ou Instrução, e, a outra, que (apenas) tem em conta a “pena – abstractamente – aplicável” ao ilícito em conformidade com a qualificação jurídico-penal efectuada aos factos apurados após audiência de julgamento.

Em nossa opinião, temos como mais adequada esta segunda, até mesmo porque, a atrás referida “dupla conforme” – à semelhança do que sucede com a situação prevista na alínea e), do n.° 1 do mesmo art. 390°, quanto aos “acórdãos absolutórios” – diz (necessariamente) respeito a “decisões judiciais” proferidas por Tribunais de julgamento (de 1ª Instância), não se mostrando igualmente de olvidar que são, precisamente, este tipo de “decisões”, (no nosso caso, “condenatória”, em pena não superior a 10 anos), que o preceito agora em questão tem por referência.

Em abono do que se acaba de referir, mostra-se de ponderar também que – como em anotação ao art. 65° do C.P.M. afirma Manuel Leal-Henriques – a tarefa de determinação da pena “envolve diversos impulsos até chegar ao quantum exacto da pena a aplicar em concreto.
Começa, desde logo, por uma 1.ª operação que consiste em fazer o enquadramento jurídico-penal dos factos tidos por provados e das suas circunstâncias, para que, a partir deles, se possam encontrar os limites da pena correspondente, operação que se designa por determinação da moldura penal abstracta cabível ao facto ilícito julgado.
Encontrado o tipo de crime onde os factos apurados se encaixam, só há, pois que surpreender que censuras penais esse tipo prevê para tais factos, censuras que nos são dadas, nesta 1.ª operação, em termos de pura abstracção, ou seja, definindo-se, entre um máximo e um mínimo, os extremos dentro dos quais, em concreto, a medida da pena pode flutuar e por fim fixar-se.
Este será, assim, «o ponto de partida da actividade do julgador na fase da determinação da pena e a sua primeira tarefa: enquadrar jurídico-criminalmente os factos imputados ao agente (isto é, dizer qual o tipo de crime cometido) e encontrar a moldura legal da pena que lhe cabe (ou seja, a espécie ou espécies de penas e os correspondentes máximos e mínimos» (Simas Santos/Leal-Henriques, op. cit., pág. 238).
Como iremos ver, as “coisas” não se passam sempre com esta linearidade, (isto é, em que as molduras penais decorrem simplesmente dos limites nos diversos tipos de crime), pois casos há em que a concorrência de determinados factores (agravantes ou atenuantes) pode conduzir a que os limites estabelecidos abstractamente na lei sejam alterados, obrigando assim à realização de algumas operações prévias para se ficar a saber, com exactidão, qual a verdadeira moldura com que se terá que lidar. (…)
3.- Concluída a 1.ª operação, tendente à determinação da moldura abstracta da pena, quer usando a chamada via directa ou autónoma (a que parte do tipo legal de crime), quer usando uma via que designaríamos por indirecta ou complementar (em resultado da concorrência de circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes), é chegado o momento mais solene, mais complexo e mais crítico com que o julgador se depara, que é o da fixação concreta da pena, se, como é óbvio, não tiver havido uma opção, quando legalmente admissível, pela dispensa de pena ou pelo adiamento da sentença”; (in “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. II, pág. 164 e 170).

Idêntico raciocínio é também defendido por Maia Gonçalves ao afirmar que: “Numa primeira fase o juiz procede à investigação e determinação da moldura penal abstracta, ou seja da pena aplicável. Para tanto, parte do tipo de crime que o agente preencheu e da moldura penal que lhe cabe; seguidamente, ainda dentro da mesma fase, o juiz verifica se a moldura penal que encontrou é modificada ou substituída por outra, devido à existência de circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes.
Uma vez encontrada a moldura penal que em abstracto ao caso cabe, numa segunda fase deve o juiz encontrar, dentro dessa moldura abstracta, a pena que em concreto ao caso cabe, ou seja a medida da pena em sentido estrito ou a pena concreta”; (in “C.P. Português, Anotado e Comentado”, 18ª ed., 2007, pág. 270).

Dentro desta lógica, (e a título de direito comparado), pode-se também ver o recente Acórdão do S.T.J. de 13.05.2021, proferido no Proc. n.° 45/14.3, onde se considerou (nomeadamente) que:

“34. A atenuação especial (art. 72.º e 73.º, CP) que o recorrente reivindica, não incide sobre a moldura penal abstrata do cúmulo é uma operação prévia à determinação da concreta medida das penas singulares, quer à determinação da pena conjunta. Verificados os pressupostos da atenuação especial ela incide sobre o limite máximo e o limite mínimo das molduras penais abstratas dos singulares crimes que beneficiam da atenuação, obtendo-se assim a moldura penal especialmente atenuada, dentro da qual e por aplicação dos critérios dos arts. 40.º e 71.º, CP, se determina a medida concreta da pena. A determinação da pena conjunta é uma operação posterior, quer à eventual atenuação especial da moldura penal abstrata, quer à subsequente escolha e fixação da medida da pena. Dito de outro modo, verificados os pressupostos de atenuação especial essa é a operação prioritária em tema de medida da pena; decidida essa questão importa escolher e fixar a medida da pena e só depois de percorrido este iter é que, no caso de concurso, se fixa a pena única. A decisão da primeira instância não atenuou especialmente as penas singulares o mesmo acontecendo com a decisão do Tribunal da Relação. A pretensão do recorrente de atenuação especial das penas, é uma questão atinente às penas singulares, que a irrecorribilidade dessas penas obriga a considerar como definitivamente julgada não podendo ser revisitada. Improcede a pretensão do arguido”.

Nestes termos, e tendo o Tribunal Judicial de Base decidido que ao arguido dos autos aplicável era uma pena “especialmente atenuada”, adequado se nos apresenta que a “moldura penal” para efeitos de recurso deverá ser a que corresponde à “pena – abstracta – aplicável” após esta “atenuação especial”, (aliás, de modo idêntico tem este Tribunal de Última Instância vindo a decidir em relação a processos por crimes cometidos sob a “forma tentada” e que, como se sabe, são também punidos com a pena “especialmente atenuada”; cfr., v.g., os Acs. de 24.10.2003, Proc. n.° 24/2003, de 23.02.2005, Proc. n.° 2/2005, e de 13.04.2005, Proc. n.° 1/2005, de onde se retira e se tem como adquirido que “Para os crimes condenados na forma tentada, é a moldura abstracta da pena destes crimes na forma tentada que releva para efeito de determinar a admissibilidade do recurso”).

Como é óbvio, admite-se – e respeita-se – outro entendimento, nomeadamente, no sentido de que é no “momento da acusação” ou “pronúncia” que se fixa a “organização judiciária” para o processo, ficando, a partir deste momento, determinado o conjunto de órgãos judiciários – “Tribunais” – cuja intervenção as partes podem prever que ocorra na progressão e desenvolvimento da lide, e desta forma, prevendo também os “graus de recurso” de que dispõem; (sobre a matéria, cfr., v.g., Damião da Cunha in, “Algumas considerações sobre o actual regime de recursos em processo penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2018, pág. 63 e segs., onde se cita também C. de Ferreira in, “Curso de Processo Penal”, Vol. I, 1955, pág. 177).

Também não se olvida que as dúvidas em “matérias” como a ora em questão – quanto a “pressupostos de recorribilidade” – devem ser (sempre) consideradas em “favor do direito (e da garantia de defesa)”, e não contra o titular do direito, (requerente).

Na verdade, no domínio dos direitos e garantias a regra é em “favor reo” e “favorabilia amplianda, odiosa restringenda”; (cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 03.03.2004, Proc. n.° 03P4421).

Porém, cremos ser o que se deixou exposto o mais razoável e adequado face ao (referido) objectivo legislativo de restringir o recurso ao Tribunal de Última Instância aos casos de “maior merecimento penal”, obviando-se, especialmente, (em certas situações), uma repetição de juízos em sede de sucessivos recursos até o total esgotamento do sistema; (apresentando-se-nos também ser este o sentido que melhor reflecte a redacção do comando legal em questão; cabendo aqui notar que, quiçá, neste aspecto, mais feliz é a expressão “pena aplicada” adoptada em idêntico preceito do C.P.P. português).

Como se referiu, não se nega, (e tem-se, aliás, bem presente), que o “direito ao recurso” em processo penal constitui uma das mais importantes dimensões das “garantias de defesa do arguido”.

Contudo, o processo penal não pode deixar de ser o “ponto de equilíbrio” entre estas mesmas “garantias” e a “necessidade de efectivação do ius puniendi”.

Como já salientava A. Henriques Gaspar – em Comunicação apresentada no ano de 1997 nas “Jornadas do Novo Código de Processo Penal de Macau” – “O processo penal moderno, confrontando-se cada vez mais com exigências de eficácia como meio de resposta instrumental no combate à criminalidade (que, conforme as latitudes, se diversifica e marcadamente eleva a sofisticação), assume, do mesmo modo, um lugar central na realização do sistema democrático de direito, participando na construção efectiva do Estado de Direito.
São conhecidas as fórmulas de referência de caracterização do processo penal: direito constitucional aplicado, 'sismógrafo' do direito constitucional.
O processo penal, para responder às exigências que lhe são pressupostas e que tem por finalidade realizar, confronta-se sempre em notória tensão dialéctica entre as imposições pragmáticas de eficácia, de resposta efectiva e pronta às manifestações de menor ou maior grau de criminalidade, e o respeito, garantístico e efectivo, pelos direitos e liberdades individuais: o inafastável confronto. entre o dever essencial do Estado na efectivação do jus puniendi, no respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos, tanto das vítimas como dos acusados.
(…)”.

Por sua vez, importa também ter presente que esse “direito ao recurso”, (como “garantia de defesa”), é de há muito identificado como a garantia do “duplo grau de jurisdição” (quanto a decisões penais condenatórias, e, quanto a decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais; sobre o tema, cfr., v.g., Marcelo C. Magano in, “O duplo grau e os recursos”; e M. F. Mata-Mouros in, “Direito ao recurso enquanto garantia de defesa no Processo Penal”).

Mostra-se, assim, de reter, que embora valha no processo penal o “princípio (geral) da recorribilidade das decisões judiciais”, (cfr., art. 389° do C.P.P.M.), ilegítimas não são determinadas “restrições do direito ao recurso”.

Isto é, o reconhecimento e a legítima concessão ao arguido do direito (fundamental) de recorrer, não implica que o possa (ou que o deva poder) fazer “ad eternum” ou “ad infinitum”, e/ou, em relação a “toda e qualquer decisão judicial que lhe seja desfavorável”, (ou seja, como se disse, até ao total esgotamento do sistema).

Não se pode pois deixar de ter também (bem) presente que como princípio geral, o direito ao recurso em matéria penal, (inscrito, repete-se, como integrante da garantia fundamental do “direito à defesa”), está, (tão só), consagrado em “um grau”, possibilitando a impugnação das decisões penais através da reapreciação por uma Instância superior das decisões sobre a culpabilidade e a medida da pena, sendo estranho a tal dispositivo a obrigatoriedade de um “terceiro grau de jurisdição”: isto é, as garantias de defesa do arguido em processo penal não incluem (para todas as situações), o “3° grau de jurisdição”; (sobre a matéria, igualmente neste sentido, e com abundante referência a outras decisões, cfr., v.g., os Acs. do S.T.J. de 17.10.2018, Proc. n.° 138/16, de 11.07.2019, Proc. n.° 1203/16, de 18.06.2020, Proc. n.° 28/06 e de 25.02.2021, Proc. n.° 1/16, in “www.dgsi.pt”).

Aqui chegados, vista se nos apresenta a solução, bastando, até mesmo, ponderar na hipótese de um “recurso” de uma decisão que – como a ora em causa – em virtude de uma “atenuação especial da pena”, e perante uma moldura penal de 1 a 10 anos de prisão, ao arguido tenha sido aplicada uma pena de “1 ano e 1 mês de prisão”, cabendo, então, a esta Instância, apreciar se possível era uma pelo mesmo reclamada redução para uma outra mais próxima do mínimo legal de “1 ano”…

Como é óbvio, sempre se poderá dizer que “um dia de reclusão” na vida de uma pessoa, é “um dia de reclusão” – e de privação do seu “bem mais precioso” – e que em causa pode até estar uma pena “até 10 anos de prisão”.

Ora, compreende-se – e respeita-se – esta argumentação.

Todavia, mostra-se de ponderar também que o art. 41° do C.P.M. prescreve que a “pena de prisão tem a duração máxima de 25 anos”, (podendo, em caso de cúmulo jurídico, chegar aos 30 anos; cfr., art. 71°, n.° 2 do mesmo código), havendo, sempre, que se ter presente o atrás referido “equilíbrio” que se pretende alcançar com o direito processual penal.

E, nesta conformidade, adequada se nos mostra a solução adiantada.

2.2 Passemos ao “recurso do despacho do Exmo. Relator do Tribunal de Segunda Instância que decidiu manter o arguido ora recorrente em prisão preventiva”.

Ora, considerando o que se teve oportunidade de até aqui ponderar e consignar, igualmente vista se nos apresenta a resposta.

Notando-se que a “decisão” aqui em questão era susceptível de “impugnação” através de reclamação para a Conferência, (e então, se tempestiva, podia ser objecto de apreciação e decisão por Acórdão do Colectivo de Juízes do Tribunal de Segunda Instância), o que, no caso, não sucedeu, cabe salientar que com a mesma tão só se define – no caso, mantém – o “estatuto processual do arguido” na sequência da admissão e pendência do recurso do Acórdão de 29.07.2021, e, assim, não constituindo “decisão que põe termo ao processo”, abrangida se mostra (desde já) de considerar pela alínea d), do n.° 1, do art. 390° do C.P.P.M. que, (aliás), referindo-se a “acórdãos proferidos em recurso pelo Tribunal de Segunda Instância”, afasta, (totalmente), a sua recorribilidade para este Tribunal de Última Instância; (neste sentido, cfr., também, o ciado Ac. do S.T.J. de 25.02.2021, Proc. n.° 1/16 e, mais recentemente, de 27.10.2021, Proc. n.° 509/06).

Diz, porém, o recorrente, que “Nos termos do artigo 203° do CPPM a decisão que aplicar ou mantiver medida de coacção, é sempre passível de recurso”; (cfr., ponto 10 da sua resposta, a fls. 636).

Pois bem, tal afirmação, (com todo o respeito o dizemos), não se apresenta (inteiramente) verdadeira (ou correcta).

No dito art. 203° do C.P.P.M. preceitua-se que: “Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, da decisão que aplicar ou mantiver medidas previstas no presente título há recurso, a julgar no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos forem recebidos”.

E, em face do assim estatuído, importa, (antes de mais), ter em conta a sua “localização”, concretamente, na “Parte Primeira” do Código, razoável (e lógico) se nos apresentando de considerar que as aí referidas “decisões” sejam as tomadas em sede de um processo a correr termos num Tribunal de Primeira Instância, (ou a funcionar como tal), adequado não se mostrando de as identificar ou equiparar às que nesta matéria são (eventualmente) proferidas por um “Tribunal de recurso” que, em virtude da sua competência para o conhecimento do recurso, e em face da sua tramitação, pretende apenas “clarificar” a situação processual do arguido, (enquanto aquele se mantiver pendente, e certo sendo que daquelas, como atrás se referiu, cabe a dita reclamação para a Conferência).

Aliás, (e ainda que já não directamente relacionada com a questão a apreciar), mostra-se de consignar que se nos apresenta de considerar como (mais) adequado que os Tribunais de recurso apenas se devem ocupar do processamento e decisão do(s) recurso(s) em relação aos quais foram chamados (e tem competência) para conhecer, e, tão só, (muito) excepcionalmente – dada a urgência da questão (ou por outro motivo justificativo) – apreciar “outras questões” não relacionadas ou incluídas no seu “objecto”.

Daí que, em nossa opinião, mostra-se de considerar também como mais adequado que, (v.g.), para os “ditos efeitos”, e em face de um recurso, se extraia translado das peças relevantes do processo antes da sua remessa ao Tribunal a que aquele (recurso) se dirige, e que seja – mantendo-se – o Tribunal de julgamento (recorrido) a processar e apreciar todos os (eventuais) “incidentes” que venham a surgir na sua pendência, (como pode suceder com a referida “situação processual do arguido”, atento, v.g., o estatuído nos art°s 197° e 199° do C.P.P.M.), desta forma se assegurando a possibilidade de recurso em caso de eventual não concordância com qualquer decisão que sobre os mesmos vier a ser proferida.

Por fim, apresenta-se-nos igualmente relevante consignar a seguinte nota.

O sistema processual penal local faculta também como “modo de impugnação” de decisões “restritivas da liberdade”, a providência de “habeas corpus”, (cfr., art. 204° e segs. do C.P.P.M.), precisamente, para acudir a qualquer “detenção” ou “prisão” que, pelo visado seja considerada ilegal (ou irregular), a todos estando, desta forma, assegurada a possibilidade de reacção e defesa perante actos ou decisões que possam atingir o referido direito, o que não deixa de justificar igualmente a decisão que sobre o presente recurso se entende como a adequada.

Aqui chegados, e resolvidas se apresentando as “questões” a apreciar, resta decidir como segue.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos expendidos, em conferência, acordam não admitir os (dois) recursos pelo arguido interpostos.

Custas a cargo do arguido recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 5 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 01 de Dezembro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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