Processo n.º 862/2021 Data do acórdão: 2021-12-2
Assuntos:
– crime de tráfico de menor gravidade
– art.o 11.o, n.o 2, da Lei n.o 17/2009
– inexistência de droga descoberta na disponibilidade do agente
– crime de consumo ilícito de estupefaciente
– art.o 14.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009
– inexistência de detecção da presença de estupefaciente no corpo
– decisão absolutória penal
– erro notório na apreciação da prova
– confissão do agente da prática do crime
– art.o 325.o, n.o 3, alínea c), do Código de Processo Penal
– art.o 325.o, n.o 3, alínea b), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. A norma do n.o 2 do art.o 11.o da vigente Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, reflecte bem que: para efeitos da ponderação sobre a verificação do crime de tráfico ilícito de estupefacientes, é essencial o conhecimento de qual a quantidade total de estupefacientes encontrada na disponibilidade do agente, e atento o bem jurídico em causa no crime de tráfico de estupefacientes e a necessidade da sua protecção, deve ser considerada toda a quantidade “traficada” pelo agente durante uma certa época, e não em determinado momento.
2. Portanto, sem qualquer droga concretamente apreendida ou encontrada, é inviável condenar o agente por prática de crime de tráfico ilícito de estupefaciente, mesmo que de menor gravidade se tratasse, e ainda que o agente tivesse confessado a prática do crime (cfr. o espírito do art.o 325.o, n.o 3, alínea c), do Código de Processo Penal).
3. Não incorre em erro notório na apreciação da prova a decisão judicial que, apesar da confissão do agente da prática do crime de consumo ilícito de estupefaciente do art.o 14.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, o absolve deste crime com fundamento na inexistência de detecção da presença de estupefeciente dentro do corpo do próprio agente (cfr. o art.o 325.o, n.o 3, alínea b), parte final, do Código de Processo Penal).
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 862/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: 1.a arguida A
2.a arguida B
3.o arguido C
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 287 a 292 do Processo Comum Colectivo n.° CR1-21-0005-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a 1.a arguida A, a 2.a arguida B e o 3.o arguido C, todos aí já melhor identificados, ficaram absolvidos da acusada prática, em autoria material, do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.o 11.o, n.o 1, alínea 1), da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção nomeadamente dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro) (em relação à 1.a arguida) e do crime de consumo ilícito de estupefeciante do art.o 14.o, n.o 1, da mesma Lei n.o 17/2009 (em relação à 2.a arguida e ao 3.o arguido).
Inconformada, veio recorrer a Digna Delegada do Procurador para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pretender, na sua motivação de recurso apresentada a fls. 306 a 312 dos presentes autos correspondentes, a invalidação da referida decisão absolutória penal total, alegando, para o efeito, que essa decisão estava a padecer do vício de erro notório na apreciação da prova, devendo os três arguidos passando a ser condenados nos ditos crimes por que já vinham acusados pelo Ministério Público.
Ao recurso respondeu a 2.a arguida a fls. 320 a 322 dos autos, no sentido de improcedência da pretensão do Ministério Público.
Respondeu também a 1.a arguida a fls. 325 a 326 dos autos, defendendo o não provimento do recurso.
Por outro lado, respondeu ainda o 3.o arguido a fl. 327 a 327v, opinando pela improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 344 a 345v, pugnando pela existência do erro notório na apreciação da prova na decisão absolutória penal recorrida.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão recorrido consta de fls. 287 a 292, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. As 1.a e 2.a arguidas foram julgadas presencialmente no Tribunal recorrido, enquanto o 3.o arguido foi aí julgado à revelia.
3. Segundo a acusação pública deduzida a fls. 186 a 188: a 1.a arguida adquiriu a outrem ketamina para vender a outrem, e vendeu, por várias vezs, ketamina à 2.a arguida e ao 3.o arguido (sendo de 63 vezes, pelo menos, à 2.a arguida, e de 13 vezes, pelo menos, ao 3.o arguido), e o 3.o arguido tinha por hábito consumir ketamina e a 2.a arguida consumia ketamina.
4. Entretanto, o Tribunal recorrido acabou por dar por provado que a 1.a arguida adquiriu a outrem “droga” para vender a outrem, e vendeu, por várias vezes, “droga” à 2.a arguida e ao 3.o arguido, e a 2.a arguida consumia “droga”.
5. Na fundamentação probatória da decisão absolutória penal ora recorrida, o Tribunal recorrido chegou a afirmar (nas 2.a a 7.a linhas da página 8 do texto do aresto recorrido, a fl. 290v) que: na audiência de julgamento, apesar de a 1.a arguida ter confessado o tráfico de droga e a 2.a arguida ter confessado o consumo de droga, a Polícia não chegou a descobrir ketamina na disponibilidade dos três arguidos, nem houve detecção da presença de ketamina dentro do corpo da 2.a e do 3.o arguidos, pelo que na falta de realização de perícia susceptível de comprovar que os três arguidos tenham chegado a tocar na ketamina, o Tribunal considera que inexiste prova objectiva a provar que a 1.a arguida tenha chegado a vender ketamina à 2.a arguida e ao 3.o arguido e que a 2.a e o 3.o arguidos tenham chegado a consumir ketamina.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O cerne do presente recurso tem a ver com a questão de saber se é acertada a decisão absolutória penal tomada no acórdão recorrido, em face das provas referidas na respectiva fundamentação probatória.
O crime de consumo ilícito de estupefaciente do art.o 14.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 (na redacção vigente à data dos factos ora em causa) é punível com pena de prisão até um ano, e o crime de tráfico de menor gravidade do art.o 11.o, n.o 1, alínea 1), da mesma Lei (na mesma redacção vigente, aplicável aos factos do caso concreto) é punível com prisão até cinco anos.
O Tribunal recorrido apenas deu por provado que a 1.a arguida vendeu “droga” por várias vezes à 2.a e ao 3.o arguidos e que a 2.a arguida consumia droga, tendo fundamentado a sua livre convicção (inclusivamente sobre esses factos) na falta de descoberta de ketamina na disponibilidade dos três arguidos e na inexistência de detecção da presença de ketamina dentro do corpo da 2.a e do 3.o arguidos.
Quanto ao crime de tráfico de menor gravidade então acusado à 1.a arguida, sendo este punível com pena de prisão até cinco anos, a confissão da prática dos factos deste crime, mesmo que tivesse sido de modo integral e sem reservas, não daria para, por si só, comprovar a sua efectiva prática pela 1.a arguida (cfr. o espírito da norma do art.o 325.o, n.o 3, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP)).
E no tocante ao crime de consumo ilícito de estupefaciente, a confissão da 2.a arguida – mesmo que tivesse sido de modo integral e sem reservas – da prática dos respectivos factos poderia não dar para julgar por assente a prática deste crime por ela, se o Tribunal recorrido tivesse suspeitado da veracidade dos factos confessados (cfr. o espírito da norma do art.o 325.o, n.o 3, alínea b), parte final, do CPP).
Portanto, tudo se reconduziria à questão de livre apreciação da prova, permitida pelo art.o 114.o do CPP.
A este nível, afigura-se ao presente Tribunal ad quem que o resultado a que chegou o Tribunal recorrido na missão jurisdicional de julgamento da matéria de facto não seja patentemente violador das leges artis, ou de quaisquer normas sobre o valor legal da prova, ou de quaisquer regras da experiência da vida humana, pelo que é de julgar por inexistente o vício de erro notório na apreciação da prova esgrimido na motivação do recurso à decisão absolutória penal recorrida.
Ademais, é sempre útil fazer relembrar aqui a jurisprudência deste TSI acerca da questão de quantidade de droga, veiculada no acórdão de 10 de Dezembro de 2020, no Processo n.o 1121/2020:
A norma do n.o 2 do art.o 11.o da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção inclusivamente dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro) (que dispõe que “Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante”) reflecte bem que: (1) para efeitos da ponderação sobre a verificação do crime de tráfico ilícito de estupefacientes, é essencial o conhecimento de qual a quantidade total de estupefacientes encontrada na disponibilidade do agente, e (2) atento o bem jurídico em causa no crime de tráfico de estupefacientes e a necessidade da sua protecção, deve ser considerada toda a quantidade “traficada” pelo agente durante uma certa época, e não em determinado momento.
Razões por que entende o presente Tribunal de recurso que sem qualquer droga concretamente apreendida ou encontrada, é inviável condenar a 1.a arguida por prática de crime de tráfico ilícito de estupefaciente, mesmo que de menor gravidade se tratasse.
No tocante à absolvição penal da 2.a e do 3.o arguidos, é de manter essa decisão judicial, por decorrência necessária da razoabilidade da fundamentação probatória tecida no acórdão recorrido para essa decisão absolutória.
Improcede, pois, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso do Ministério Público.
Sem custas no presente processado recursório.
Fixam em mil patacas os honorários do Ex.mo Defensor Oficioso da 1.a arguida, em setecentas patacas os honorários da Ex.ma Defensora Oficiosa da 2.a arguida, e em setecentas patacas os honorários do Ex.mo Defensor Oficioso do 3.o arguido, tudo a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 2 de Dezembro de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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