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Processo n.º 623/2019
(Autos de recurso jurisdicional)

Data: 9/Dezembro/2021

Descritores:
- AMCM
- Competência normativa
- Estatuto privativo do pessoal
- Regime disciplinar

SUMÁRIO
O estatuto da AMCM aprovado pelo Decreto-Lei n.º 14/96/M não concede àquela instituição poderes normativos no tocante à matéria disciplinar.
A AMCM só tem competência normativa para elaborar o estatuto privativo do pessoal quanto ao recrutamento, contratação e previdência do seu pessoal.
Já em relação ao regime disciplinar, em parte alguma do estatuto da AMCM se estatui que aquela matéria poderia ser regulada pelo estatuto privativo do pessoal.
Sendo ilegal o regime disciplinar estabelecido no referido estatuto, o acto administrativo praticado com base em tais normas ilegais padece do vício de violação de lei, devendo, assim, ser anulado.



O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo n.º 623/2019
(Autos de recurso jurisdicional)

Data: 9/Dezembro/2021

Recorrente:
- Conselho de Administração da Autoridade Monetária de Macau (entidade recorrida)

Recorrida:
- A

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo que anulou o acto administrativo impugnado, recorreu o Conselho de Administração da Autoridade Monetária de Macau jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
     “a. O EPP foi aprovado pelo Conselho de Administração da AMCM e objecto de homologação governamental, entrando em vigor no dia 1 de Fevereiro de 1991.
     b. O Decreto-Lei n.º 47/90/M, de 20 de Agosto, não exigia a publicação do EPP em Boletim Oficial, pelo que o mesmo foi apenas divulgado internamente.
     c. A AMCM é um instituto público, fazendo parte da administração indirecta da RAEM, e está autorizada pelo seu Estatuto (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 14/96/M, de 11 de Março), a criar normas próprias e especiais aplicáveis aos seus funcionários.
     d. Isso mesmo resulta da letra normativa das alíneas c) e d), do n.º 3 do artigo 17º do referido Decreto-Lei n.º 14/96/M, de 11 de Março.
     e. Por ser lei especial, o EPP não se enquadra na alínea 14) do artigo 6º da Lei n.º 13/2009.
     f. Mas se se entendesse o contrário, o que apenas se admite por cautela de patrocínio, e, por força disso, se defendesse que o EPP tem a natureza de regulamento externo, como se decidiu na sentença recorrida, tal Lei n.º 13/2009, tem um artigo 10º que excepciona o EPP da referida aplicação.
     g. Os Tribunais superiores de Macau têm reconhecido sobejamente a validade do EPP.
     h. De todo o modo, e mais uma vez à cautela, o Tribunal a quo não apurou se as normas do EPP que entendeu serem ilegais têm na letra e no sentido das disposições do ETAPM alguma correspondência.
     i. E se não têm essa correspondência em que medida isso conflitua com o concreto exercício do poder disciplinar que cabe à AMCM e que deu origem aos presentes autos.
     j. Fazendo letra morta do princípio do aproveitamento do acto administrativo e deixando de apreciar o recurso instaurado pela funcionária da AMCM.
     Termos em que, e com o douto suprimento de V. Exas., deve julgar-se o presente recurso procedente e revogar-se a sentença recorrida, ordenando-se que o Tribunal a quo aprecie finalmente o mérito dos fundamentos do recurso apresentado por A, funcionária da AMCM.”
*
Contra-alegou a recorrida A, tendo formulado nas alegações as seguintes conclusões, pugnando pela negação de provimento ao recurso:
     “1. 司法上訴人完全認同原審判決所載之依據。
     2. 持續工作以領取報酬以及報酬不受損害屬於巿民作為僱員的基本權利,故(倘有之)義務違反而對金融管理局的人員科處罰款、停薪停職或合理解僱會直接影響到該等人員作為一般巿民的基本權利。
     3. 當特別規章影響到公務人員作為巿民這個基本身份的權利時,該規章便具有外部性質。
     4. 而紀律制度正正具有剝奪權利或自由的性質,因而EPP的第19條和第66條以及EPP中其他影響到金融管理局人員作為巿民的基本權利的條文均具有外部性質,故EPP屬於一部混合性的規章。
     5. 作為間接行政機關的金融管理局,其行政管理委員會(即被上訴實體)僅有權制定不具有外部性質的行政規章,而《澳門金融管理局組織章程》亦只規定被上訴實體有權行使紀律懲戒權,但並沒有權限制訂有關紀律方面的規範。
     6. 不論是制訂EPP時所生效的法律,還是其後生效的法律,均明確要求產生對外效力的規章必須公佈,否則不產生法律效力,故EPP不可受惠於第13/2009號法律第10條的過渡規定,因為相關行政法規從來沒有被公佈。
     7. 此外,被上訴實體所援引的司法見解對本案沒有任何參考價值,因為相關判決僅涉及金融管理局人員的報酬、晉升、評核、福利以及領導和主管的任免的問題,而非紀律處分的問題。
     8. 僅當行政行為所沾有的瑕疵並不重要且不會影響最後的行政決定,才能夠適用行政行為利用原則來保留相關行為。
     9. 對於本案,所涉及的是被上訴行為的基礎(所適用的法律)違法的問題,並非一些微不足道的瑕疵,故絕對沒有可能適用上述原則。
     10. 最後,法院在本司法上訴案中並不具有完全審判權,故原審法院不可能直接對司法上訴人的個案適用其他法律,否則亦損害司法上訴人在紀律程序中的辯護權此項基本權利。
     綜上所述,應裁定被上訴實體所提起的上訴理由不成立,並維持原審法院的判決。”
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Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
司法上訴人為澳門金融管理局第二專業組別文員,於保險監察處工作 (見行政卷宗一第185頁)。
2017年8月25日,被上訴實體作出第633/CA號決議,指出其於第378/17-DSG號報告書之內容,因司法上訴人作出的某些行為可能構成違紀行為,故向司法上訴人提起紀律程序 (見行政卷宗一第11頁及背頁)。
2017年12月14日,預審員作成結案報告,指出根據已獲證實的事實,司法上訴人故意違反多項一般義務,包括:有禮義務(見《人事專用規章》第19條第2款f)項及第8款與《員工品行守則》第3條第2款f)項的規定)、熱心義務(見《人事專用規章》第19條第2款b)項及第4款與《員工品行守則》第3條第2款c)項的規定)及服從義務(見《人事專用規章》第19條第2款c)項及第5款與《員工品行守則》第3條第2款d)項的規定);以及違反多項特別義務,包括:《員工品行守則》第4條j)項規定的特別義務、《員工品行守則》第21條第1款及第2款規定的特別義務、透過第006/CA/2013號行政指令公佈的《澳門金融管理局公眾接待指引》規定的特別義務(尤其第3點及第7點),以及透過第047/CA/2015號行政指令公佈的《員工實務指南》有關“正直"(第2點)及“與公眾的關係"(第6點)的特別義務,故認為向司法上訴人科處停職和喪失30個曆日的薪酬是合理及恰當的處罰(見行政卷宗一第403頁至第417頁)。
2018年2月8日,被上訴實體作出第111/CA號決議,指出基於司法上訴人故意違反上述結案報告所列的各項義務,議決根據《人事專用規章》第66條的規定向司法上訴人科處停職和喪失24個曆日薪酬的處分 (見行政卷宗二第600頁及背頁)。
2018年2月13日,澳門金融管理局透過編號1081/2018-AMCM-DFR(SGR)公函通知司法上訴人上述決定 (見行政卷宗二第688頁及背頁)。
2018年3月15日,司法上訴人透過訴訟代理人針對上指決定向行政法院提起司法上訴。
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Nesta instância, o Digno Magistrado do Ministério Público opinou no sentido da rejeição do recurso contencioso por irrecorribilidade do acto administrativo impugnado.
Foram as partes notificadas para se pronunciar.
Vejamos.
Socorrendo-se aquele Magistrado do Ministério Público do Decreto-Lei n.º 81/99/M (que aprovou a actual estrutura orgânica dos Serviços de Saúde da RAEM) e da jurisprudência superior da RAEM, conjugando com as disposições previstas no estatuto da AMCM aprovado pelo Decreto-Lei n.º 14/96/M, entende que das deliberações proferidas pelo Conselho de Administração da AMCM cabe recurso hierárquico necessário, ao abrigo dos termos previstos no artigo 341.º do ETAPM, mas ignorando a recorrida a prática daquele acto, vem sugerir agora a absolvição do recorrente (entidade recorrida) da instância.
Vejamos.
Dispõe o n.º 2 do artigo 164.º do CPA que “o recurso tutelar só existe nos casos expressamente previstos por lei e tem, salvo disposição em contrário, carácter facultativo”.
Ao contrário do que entende o Digno Magistrado do Ministério Público, por não se vislumbrar qualquer disposição que (expressamente) preceitue que das decisões proferidas pela AMCM em matéria disciplinar caiba recurso tutelar, cremos, a nosso modesto ver, que adequado será o entendimento que é contenciosamente recorrível para o Tribunal Administrativo a deliberação n.º 111/CA do Conselho de Administração da AMCM, sendo assim se passa a conhecer do presente recurso jurisdicional.
*
Está em causa a seguinte decisão de primeira instância:
“2. Matéria de direito
Antes de mais, cumpre conhecer da legalidade das normas que servem à base da sanção disciplinar aplicada no caso dos autos, nomeadamente, os artigos 19.º, n.º 2, alíneas b), c) e f), n.ºs 4, 5, 8 e 66.º do Estatuto Privativo do Pessoal da AMCM.
Como se sabe, quando se fala do poder disciplinar da Administração Pública, entramos no domínio de direito sancionatório público, na dimensão do ius puniendi de entidade empregadora pública. Trata-se da manifestação do exercício dos poderes hierárquicos na organização administrativa das pessoas colectivas públicas, em que perante a prática de infracção pelo seu subalterno, por violação de deveres funcionais, o superior hierárquico vai aplicar as sanções legais.
Com isto quer dizer, não obstante a perspectiva bidimensional assumida na relação de emprego estabelecida entre trabalhadores e a Administração Pública, o exercício pela Administração Pública do poder disciplinar nunca deve ser apenas encarado na vertente da relação laboral, do plano dos direitos e obrigações contratuais, mas também como um procedimento de produção de efeitos jurídicos externos por parte da Administração Pública, e que afecta o trabalhador como administrado.
Nas palavras do Professor Marcello Caetano, “a aplicação das sanções é ainda actividade de administrar.”
Em todo o caso, independentemente da natureza do vínculo jurídico criado entre trabalhadores e a entidade patronal pública, temos de afirmar que a sanção aplicada no âmbito do processo disciplinar por esta foi no exercício do poder de autoridade com uma posição de supremacia em relação a aqueles, e podendo aqueles, por consequência, fazer valer todas as garantias que assistem aos administrados face a tal sanção de carácter eminentemente de acto administrativo.
Neste sentido, o exercício do poder disciplinar da entidade pública, como sucede no caso dos autos, diferente da actuação sancionatória nas relações jurídicas de direito privado, é necessariamente menos livre e flexível, por estar sujeito às limitações decorrentes das disciplinas de direito da função pública.
Por outro lado, o vínculo jurídico de emprego estabelecido pela recorrente com a AMCM também se reveste da natureza de direito público.
Como se vê no caso vertente, a recorrente trabalhadora é administrativa do Segundo Grupo do Departamento de Supervisão de Seguros da AMCM, de nível 8, recrutada mediante o instrumento de contrato individual de trabalho. E nas suas interacções recíprocas com a sua empregadora, a trabalhadora, para além de estar vinculada pelos termos estipulados no contrato, também pelo disposto do Estatuto Privativo do Pessoal e demais regulamentação interna aplicável da AMCM, como se refere na Cláusula 9 da minuta de contrato junta a fls. 284 a 285 dos autos.
Como as jurisprudências do TSI já tiveram oportunidade de pronunciar quanto à natureza da relação jurídica criada entre a AMCM e os seus trabalhadores, com as considerações que julgamos pertinentes transcrever no seguinte:
“…
5. Traçado este quadro geral de análise do problema, há que projectar estes princípios no caso sub judice.
Nos termos do artigo 1º do Estatuto da AMCM (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 14/96, de 11 de Março), a Autoridade Monetária de Macau (doravante "AMCM") "é uma pessoa colectiva de direito público dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com a natureza de serviço público personalizado (...)".
Como foi já reconhecido recentemente, e por diversas vezes, por este Tribunal, a AMCM "integra-se na categoria dos institutos públicos que se enquadram na administração indirecta da Região, e nessa qualidade, especialmente vocacionado para a realização de uma actividade que se situa no domínio do direito público e, dentro deste, do direito administrativo."
A Autoridade Monetária de Macau é uma organização que foi criada para a prossecução de específicos interesses públicos que a lei expressamente lhe confiou e que se prendem, nomeadamente, com a orientação, coordenação e fiscalização dos mercados monetário, financeiro, cambial e segurador e os respectivos trabalhadores não estão ao serviço de uma qualquer organização dirigida ao lucro e submetida à concorrência do mercado, mas sim ao serviço de uma entidade pública que tem, por incumbência legislativa, o objectivo de dar satisfação a interesses da comunidade de primordial importância.
Cabem, assim, os actos por ela praticados, no âmbito do artigo 30°, n.º 2, alínea 1), subalínea 2) e n.º 5, alínea 7) da referida Lei de Bases da Organização Judiciária.

O que está em causa, no fundo, é um acto de gestão de pessoal de um órgão de uma entidade administrativa que, quer pelo seu Estatuto e meios que lhe são conferidos, quer pelos fins que prossegue não se deixa de reputar de acto de natureza administrativa, numa relação entre a AMCM e o recorrente, que veio a ser Director-Adjunto de Supervisão Bancária, onde, embora com vertentes de direito privado, não deixam de ser mais marcantes as componentes de direito público.
…” (cfr. Acórdão do TSI nos autos n.º 268/2005, sublinhado nosso)
Tanto mais que o referido entendimento vai ao encontro das outras jurisprudências do mesmo Tribunal, designadamente os Acórdãos nos autos n.ºs 98/2005 e 230/2005:
“…De acordo com tais parâmetros e em face do que decorre, quer do Estatuto da AMCM, quer do seu Estatuto Privativo do Pessoal (EPP), os respectivos trabalhadores não estão ao serviço de uma qualquer organização dirigida ao lucro e submetida à concorrência do mercado, mas sim ao serviço de uma entidade pública que tem, por incumbência legislativa, o objectivo de dar satisfação a interesses da comunidade de primordial importância.
O EPP da AMCM consagra, de facto, um regime especial de emprego público aplicável aos trabalhadores da mesma instituição, a tal não se opondo a referência contida no n.° 1 do art.° 33.° do respectivo Estatuto à “lei reguladora das relações de trabalho” em Macau, já que é a própria lei que prevê para a AMCM duas espécies de vínculos laborais, quais sejam, a de emprego público e a de contrato individual de trabalho (vide os diferentes títulos de constituição de vínculo de emprego previstos nos n.°s 2 e 3, do art.° 33.° do mesmo Estatuto).
…”
Em linha com o pensamento marcado pelas doutas jurisprudências, a recorrente, estando ao serviço da AMCM enquanto pessoa colectiva de direito público, exerce essencialmente uma função pública, com vista à satisfação dos interesses da comunidade de primordial importância. O vínculo jurídico entre ela e a AMCM, embora com vertentes de direito privado, não deixa de ser mais marcantes nas componentes de direito público, ou melhor dizendo, do direito de emprego público criado pelo regime de Estatuto Privativo do Pessoal da AMCM.
Nestes termos, parece-nos ser inegável que deve a recorrente ter um estatuto disciplinar equiparado ao de quaisquer trabalhadores da função pública, e goza de todas as garantias que a estes foram conferidas pelo direito sancionatório público.
Por consequência, deve ser lhe aplicável, e por regra, tal como aos trabalhadores da função pública em geral, o regime constituído no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ou ETAPM), inclusivamente as normas respeitantes ao regime disciplinar, isto é, os artigos 276.º a 358.º, tanto as que regulam o procedimento, como as que estabelecem as infracções disciplinares.
Desde logo, a norma do artigo 1.º do ETAPM fixou com nitidez o âmbito de aplicação do mesmo Estatuto:
“1. O presente Estatuto aplica-se ao pessoal dos serviços públicos da Administração de Macau, incluindo os serviços e fundos autónomos.
3. O presente Estatuto aplica-se ainda ao pessoal civil e, subsidiariamente, com as devidas adaptações, ao pessoal militarizado e do Corpo de Bombeiros das Forças de Segurança de Macau” (sublinhado nosso).
Tudo isto é assim, salvo que existam as disposições especiais ou excepcionais…
A questão a seguir passa pela análise das fontes das respectivas normas disciplinares sancionatórias, a saber em que termos as exigências legais gerais possam ser afastadas e se é possível que a matéria em causa seja regulada por Estatuto Privativo do Pessoal da AMCM, ou, por outras palavras, os regulamentos internos, nos termos alegados pela entidade recorrida.
A resposta não se encontra senão pela definição da matéria que foi regulada.
O que não se deve olvidar, quanto a este ponto, é que está em causa o direito fundamental dos trabalhadores da função pública, o direito de ser garantido por via do processo legal, contra um mal infligido pela pena disciplinar resultante do exercício do poder público punitivo, isto é, o direito fundamental ao “estatuto disciplinar” dos trabalhadores da função pública.
E não se afigura difícil compreender que esta matéria, tendo em conta a sua essencialidade, se deve integrar no âmbito do regime fundamental aplicável aos trabalhadores da administração pública, tal como elencado no artigo 6.º, alínea 14) da Lei n.º 13/2009 (Regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas), como matéria reservada à lei de competência da Assembleia Legislativa de Macau.
Estabelece na norma do art.º 6.º, alínea 14) da Lei n.º 13/2009 o seguinte:
“Artigo 6.º
Leis
A normação jurídica das seguintes matérias é feita por leis:

14) Regimes fundamentais aplicáveis aos trabalhadores da administração pública;
…”
Sabe-se que o princípio da reserva de lei, ou melhor dizendo, reserva de competência legislativa da Assembleia, significa que há matérias que estão reservadas à assembleia representativa e que não reconhece qualquer poder regulamentar originário ao poder executivo.
E o princípio está naturalmente conexo com a precedência da lei, que significa que a lei tem superioridade e preferência relativamente aos regulamentos administrativos, não podendo ser contrariada pelas normas regulamentares.
Aliás, estamos no domínio da reserva de lei absoluta, significa que “certas matérias só podem ser reguladas por lei sem possibilidade de autorizar por meio de lei de delegação, os órgãos administrativos a legislar”. (cfr. João Manuel Nunes Lemos de Albuquerque, Poder Normativo: O regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas da Região Administrativa Especial de Macau, texto integrado no Estudos no Âmbito da Produção Legislativa, CFJJ, 2018).
Ao contrário do que afirma a entidade recorrida na sua resposta, do que se trata não é, nem podia ser reduzido a um simples “relações especiais de poder” que deva ser regulado pelo regulamento meramente interno.
Como muito bem citado, a este propósito, pela entidade recorrida do manual do Prof. José Eduardo Figueiredo Dias, “Os regulamentos gerais são aqueles que se dirigem a todos os particulares em geral, não pressupondo uma relação estatutária com a Administração. Por sua vez, os regulamentos especiais são normas destinadas a regular as designadas relações especiais de poder ou, numa formulação mais moderna, relações especiais de direito administrativo, ou seja, relações de especial ligação ou subordinação dos particulares com uma determinada entidade administrativa.
Os regulamentos gerais são, nitidamente, regulamentos externos, visto que, tendo como destinatários os particulares em geral, produzem os seus efeitos para fora da esfera da entidade que os emana.
A questão que se coloca é a de saber se os regulamentos especiais são externos ou meramente internos.
Para esse efeito, é necessário compreender exactamente o que se entende por “relações especiais de poder” ou “de direito administrativo”: pretende-se com esta noção classificar aquelas relações em que os particulares se encontram ligados à Administração por laços de subordinação especial diferentes daqueles que vinculam os residentes nessa sua condição. É o que acontece designadamente com os funcionários perante os seus superiores hierárquicos e, em geral, perante a organização administrativa; com os reclusos em face da administração prisional; com os alunos de uma escola pública perante os órgãos dessa mesma escola; ou com os doentes de um hospital público em face dos respectivos órgãos. De todas estas, destacamos a relação especial de poder que encontramos na relação de emprego público, ou seja, a que se estabelece entre os funcionários e agentes e a entidade administrativa para quem eles prestam o seu serviço, por ser a mais típica e, porventura, a mais importante.”.
Mas ela parece ter esquecido o resto que o mesmo autor também referiu no mesmo manual, para o efeito da distinção do regulamento externo do regulamento interno, caracterizou no âmbito das relações especiais de poder, a relação de serviço ou fundamental ao lado da relação orgânica ou de funcionamento: “…A doutrina actual distingue, no seio de tais relações, dois tipos de situações. Por um lado, uma relação orgânica ou de funcionamento, em que as pessoas sujeitas a tais relações são vistas apenas enquanto elementos da respectiva “máquina” administrativa, ficando sujeitas aos poderes dos seus órgãos. Por outro lado, existe a chamada relação de serviço ou fundamental, em que se realça o facto de as pessoas submetidas a essa relação não sofrerem qualquer capitis deminutio como se pensava tradicionalmente: os funcionários, reclusos ou estudantes (de uma escola pública) não perdem, com essa sua condição, o estatuto de residentes e de pessoas, a quem são reconhecidos direitos fundamentais que a Administração não pode pôr em causa.
Na relação orgânica o destinatário da relação especial de poder encontra-se numa especial dependência face à Administração. Tomando por base a relação de emprego público, os funcionários são vistos apenas nessa qualidade, como elementos fundamentais do funcionamento do serviço.
Por sua vez, na relação fundamental, o destinatário da relação especial de poder é considerado não como um elemento do serviço mas como uma pessoa, titular de direitos fundamentais.
Se o regulamento especial se aplicar apenas à relação orgânica, dirigindo-se aos funcionários apenas nessa qualidade, com o fim de disciplinar a organização ou o funcionamento do serviço, tal regulamento é meramente interno. Se se tratar de regulamentos aplicáveis aos funcionários na sua qualidade de residentes ou como titulares de direitos fundamentais que a Administração não pode pôr em causa, sujeitos de uma relação jurídica de emprego com a Administração, com o fim de disciplinar essa relação e os direitos ou os deveres recíprocos que a integram, então esses regulamentos serão externos.” (cfr. Manual de Formação de Direito Administrativo de Macau, pag.169 a 170, José Eduardo Figueiredo Dias, CFJJ. 2006) (sublinhado nosso).
Não obstante, além do mais, admite-se a figura do “regulamento misto”, em que coexistem as normas de carácter interno e de carácter externo, como ensina Professor Mário Aroso de Almeida “Reconhece-se, entretanto, que um regulamento pode ser, deste ponto de vista, um regulamento misto, quando contenha normas de caráter interno, que, disciplinando matéria orgânica e funcional, se limitem a ser fonte de direito interno à própria Administração, e normas de caráter externo, que definam o estatuto ou de algum modo contendam com a esfera jurídica de sujeitos jurídicos distintos da entidade que emanou o regulamento.” (cfr. Teoria Geral do Direito Administrativo, O Novo Regime do Código do Procedimento Administrativo, 2017, 4.ª Edição, pp. 143).
Daí, parece-nos evidente que a relação jurídica emergente no exercício do poder disciplinar, embora relacionado com o funcionamento interno da organização administrativa, não pode ser visto como uma relação meramente interna ou orgânica, mas sim como uma relação de serviço ou fundamental, tendo em conta o facto de que a pena disciplinar se intromete necessariamente na esfera jurídica dos funcionários, mormente na sua qualidade como residentes, titulares dos direitos fundamentais.
Se assim não entender, todo o regime disciplinar aplicável ao trabalhador da função pública, sendo geral ou especial, poder-se-ia se escapar facilmente ao controlo jurisdicional quanto à sua legalidade, integrando-se no enquadramento do regulamento interno, sob égide da presença de uma relação hierárquica entre os subordinados e os superiores hierárquicos dentro da organização administrativa.
É a matéria ou o objecto em causa que determina a escolha da forma adequada da intervenção normativa. Julgamos que a lógica não podia ser invertida.
Voltemos ao caso nos autos.
Face ao enquadramento geral erigido pelo ETAPM, em matéria disciplinar, não existe outra norma legal especial ou de força equivalente ao ETAPM que regula diversamente o regime disciplinar aplicável aos trabalhadores subordinados à AMCM.
De outro lado, as invocadas normas do regime disciplinar se encontram reguladas pelo Estatuto Privativo do Pessoal da AMCM que foi aprovado pela deliberação n.º 16/CA do Conselho de Administração da AMCM, de 18 de Janeiro de 1991, e homologado em 24 de Janeiro de 1991, mas nunca foi objecto de publicação.
As ditas normas, sendo destinadas à generalidade dos trabalhadores da AMCM – gerais e abstractos -, assumem o caractér regulamentar. Poderá então o Conselho de Administração da AMCM regulamentar sobre a mesma matéria disciplinar, tal como aconteceu?
Pelo que foi dito até aqui, parece ser justo responder negativamente. As normas disciplinares contidas no regulamento na sua forma de regulamento interno não publicado, carecem em si de uma base legal, pela violação da reserva da lei estabelecida no artigo 6.º, alínea 14) da Lei n.º 13/2009.
Faria pouco sentido o que afirmou a entidade recorrida, na tentativa de salvaguardar a eficácia da norma, invocou o art.º 10.º da referida Lei n.º 13/2009, nos termos do qual “os regulamentos administrativos publicados antes da entrada em vigor da presente lei, ainda que não observem o regime nesta estabelecido, continuam a produzir efeitos jurídicos até à sua alteração, suspensão ou revogação através de diplomas legais.”
A contradição dos termos é mais do que transparente: se a entidade recorrida quiser defender a tese de regulamento interno bem como a razão legítima de a sua não publicação, estaria naturalmente impedida de lançar mão daquela norma que trata do regulamento externo e publicado; se passasse a defender a tese de regulamento externo, a norma não se aplicaria na mesma, uma vez que o regulamento (ou Estatuto Privativo do Pessoal da AMCM) é ineficaz por falta da publicação.
A seguir, veremos outra questão, se existe verdadeiramente uma norma legal habilitante que delega na Administração Pública o poder de normação sobre a matéria em causa. Não obstante, como falámos, ainda que exista tal norma habilitante, a legalidade desta norma permanecia duvidosa por ter interferido com o âmbito da reserva da lei absoluta.
Estatui a norma do art.º 17.º, n.º 3 do Novo Estatuto da AMCM, aprovado pelo DL n.º14/96/M, de 11 de Março, o seguinte:
“…
3. Compete ao Conselho de Administração:
a) Superintender em toda a actividade da AMCM;
b) Gerir o património, exercendo poderes de administração geral ou especial, podendo, nomeadamente, adquirir e alienar bens, dar ou tomar de arrendamento e aceitar quaisquer ónus ou encargos sobre os mesmos bens;
c) Contratar e gerir os recursos humanos em conformidade com as necessidades da AMCM, os orçamentos privativos aprovados e o estatuto privativo do pessoal, exercendo, nomeadamente, o poder disciplinar;
d) Representar a AMCM, em juízo ou fora dele, confessar, transigir e desistir em quaisquer litígios e comprometer-se em arbitragens;
e) Arrecadar os proveitos e autorizar o pagamento dos custos;
f) Elaborar e aprovar o regulamento interno e o estatuto privativo do pessoal e submetê-los a homologação do Governador;
g) Elaborar e submeter à aprovação do Governador o plano de contas privativo, o regulamento do Fundo de Previdência do Pessoal da AMCM, o regulamento privativo do parque automóvel, o plano anual de actividades, os orçamentos privativos de exploração e de investimento e respectivas revisões, bem como o relatório e contas anuais;
h) Submeter, nos termos da lei, as contas anuais ao julgamento do Tribunal de Contas;
i) Assegurar a orientação, coordenação e execução da auditoria interna da actividade da AMCM;
j) Pronunciar-se sobre todos os assuntos compreendidos no âmbito das atribuições da AMCM;
l) Praticar todos os demais actos necessários ao bom funcionamento da AMCM e à realização das suas atribuições.” (sublinhado nosso)
E mais estabelece na norma do art.º 33.º do mesmo diploma:
“Artigo 33.º
(Estatuto do pessoal)
1. O pessoal da AMCM está sujeito, no que respeita ao seu recrutamento, contratação e previdência, ao estatuto privativo do pessoal e à lei reguladora das relações de trabalho no território de Macau.
2. Podem exercer funções na AMCM, em regime de comissão de serviço, requisição ou destacamento, funcionários ou agentes dos serviços públicos do Território.
3. Pode igualmente exercer funções na AMCM, em regime de contrato individual de trabalho ou de prestação de serviços, pessoal recrutado ao exterior nos termos da legislação aplicável, nomeadamente ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto Orgânico de Macau.
4. O pessoal nomeado para exercer funções na AMCM mantém todos os direitos inerentes ao seu lugar de origem, nomeadamente os que se referem ao acesso nas respectivas carreiras, considerando-se, para todos os efeitos, como prestado no quadro próprio todo o tempo de serviço prestado na AMCM.
5. A AMCM pode conceder ao pessoal, nos termos de regulamento próprio homologado pelo Governador, empréstimos para a compra e beneficiação de habitação própria.”
Face ao citado, temos de afirmar que uma leitura semântica não nos permite chegar onde chegou a entidade recorrida. Isto é:
A norma da alínea c) do n.º 3 do art.º 17.º do mesmo diploma inclui o poder disciplinar no âmbito da competência de gestão de recursos humanos do Conselho de Administração, referindo-se somente à vertente do exercício do poder disciplinar ou da aplicação da sanção disciplinar, mas daí não decorre a atribuição de uma competência normativa em matéria disciplinar.
E quando a norma da alínea f) do n.º 3 do art.º 17.º confere tal competência normativa ao Conselho de Administração, para elaborar e aprovar o regulamento interno e o estatuto privativo do pessoal, colocando o regulamento interno ao lado do estatuto privativo pessoal, inexiste entre um e outro uma relação lógica de inclusão.
É óbvio que aquela norma não diz que o estatuto privativo pessoal poderia ser feito pelo regulamento interno.
Mesmo contra a semântica da frase, entende-se que tal estatuto privativo pessoal se integraria na categoria do regulamento interno, certo é que o aludido artigo 33.º, n.º 1 se limita a atribuir a competência normativa sobre a matéria de “recrutamento, contratação e previdência” do pessoal da AMCM, nada menciona quanto ao regime disciplinar.
Ou seja, nem o próprio Estatuto da AMCM, no seu local próprio, referiu que a matéria disciplinar seria regulada pelo estatuto privativo pessoal. O legislador simplesmente não o ponderou.
Importa reiterar que se nos situamos no âmbito da matéria altamente sensível, qualquer norma habilitante, ainda que fosse legalmente viável e tivesse existido, teria de ser feita do modo mais explícito possível, quer quanto à competência normativa subjectiva, quer quanto à competência objectiva.
Assim sendo, afigura-nos forçado dizer que a matéria disciplinar é inerente ao estatuto pessoal, ou que a matéria implicitamente aí se incorporaria, e a sua inclusão expressa poderia não ser necessária.
Resumindo, inexiste qualquer norma habilitante legal que confere ao Conselho de Administração da AMCM o poder normativo de regular o regime disciplinar do pessoal por forma do Estatuto Privativo de Pessoal não publicado.
Tudo visto, é ilegal o regime disciplinar estabelecido no Estatuto Privativo do Pessoal da AMCM, e por conseguinte o acto recorrido, praticado com base nas normas ilegais (isto é, os artigos 19.º e 66.º do Estatuto Privativo do Pessoal da AMCM), padece do vício de violação da lei e deve ser anulado.
Assim, face a ilegalidade das normas, torna-se inviável conhecer os outros vícios invocados pela recorrente.
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IV. Decisão
Assim, pelo exposto, decide-se:
Julga procedente o presente recurso contencioso e anula o acto recorrido.
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Sem custas pela entidade recorrida, por ser subjectivamente isenta.
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Registe e notifique.”

Analisada a douta sentença que antecede, louvamos a acertada decisão com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito aí exposta, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC, aplicável subsidiariamente.
Em boa verdade, somos a entender que o estatuto da AMCM aprovado pelo Decreto-Lei n.º 14/96/M não concede àquela instituição poderes normativos no tocante à matéria disciplinar.
Não obstante que é atribuída ao Conselho de Administração da AMCM a competência para elaborar e aprovar o regulamento interno e o estatuto privativo do pessoal (artigo 17.º, n.º 3, alínea f) do estatuto), mas determina-se no n.º 1 do artigo 33.º do mesmo estatuto que o pessoal da AMCM está sujeito, no que respeita ao seu recrutamento, contratação e previdência, ao estatuto privativo do pessoal e à lei reguladora das relações de trabalho no território de Macau.
Isso mostra, em nossa opinião, que a AMCM só tem competência normativa para elaborar o estatuto privativo do pessoal quanto ao recrutamento, contratação e previdência do seu pessoal.
Já em relação ao regime disciplinar, em parte alguma do estatuto da AMCM se estatui que aquela matéria poderia ser regulada pelo estatuto privativo do pessoal.
Isto posto, na medida em que o estatuto privativo do pessoal contém normas que regulam o regime disciplinar, e por que essas normas possuem natureza ablativa dos direitos e liberdades dos cidadãos, mormente ofensa ao direito patrimonial, concordamos com a posição assumida pela primeira instância no sentido de ser ilegal o regime disciplinar estabelecido no referido estatuto, sendo assim, o acto administrativo impugnado, por ser praticado com base em normas ilegais, padece do vício de violação de lei, devendo ser anulado.
E não obstante o estatuto privativo do pessoal ter sido objecto de recursos contenciosos e nunca foi declarada a ilegalidade das suas disposições ou rejeitada a sua aplicação, a verdade é que cada caso é um caso, aliás os casos anteriores invocados pelo recorrente, ao contrário do que sucede com o presente caso, lidam sobretudo com questões de remunerações, classificação, tempo de serviço dos seus trabalhadores.
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Entende ainda o recorrente ou entidade recorrida que, apesar do vício constatado, o acto administrativo poderá ser aproveitado, no sentido de que o tribunal deveria confrontar as disposições do ETAPM que regulam a actividade disciplinar da Administração, para determinar se a base legal (estatuto privativo do pessoal) citada pelo recorrente para aplicar a medida sancionatória à recorrida não encontrava correspondência no ETAPM ou, encontrando, criava um regime mais lesivo ao trabalhador.
No que se refere à questão de aplicação deste princípio no âmbito do processo disciplinar, decidiu-se num recente Acórdão do Venerando TUI, no Processo n.º 129/2020, o seguinte:
“Porém, e deste “princípio” resultando, essencialmente, e muito sumariamente, um “poder-dever” de o Tribunal – reunidas estando determinadas circunstâncias – “afastar” o efeito anulatório do acto em face do vício de que padece, (e, assim, no seu “aproveitamento”), temos para nós que, na situação dos presentes autos, viável não se apresenta tal solução.
É que, como se vê do teor do Acórdão do ora recorrente, a pena de “censura” aplicada ao ora recorrido constitui uma “pena única”, resultado de um considerado “concurso efectivo, a punir individualmente com a apontada pena”, (cfr., pág. 42 deste aresto, cabendo aqui observar, igualmente, que o art. 41°, n.° 1, al. a) do Código Disciplinar em questão permite a punição com a pena de “advertência”, que consiste, como se sabe, numa pena mais leve e de escalão inferior), possível não se nos mostrando desta forma a aplicação do aludido “princípio” com o aproveitamento da dita decisão punitiva, por manifesta “invasão do poder discricionário” que, (como se referiu, no caso), ao ora recorrente está atribuído.
Como em sede do – sumário do – Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 18.12.2013, Proc. n.° 77/2013, se deixou consignado: “O princípio do aproveitamento dos actos administrativos pelo tribunal, não invalidando o acto, apesar do vício constatado, só vale na área dos actos vinculados, o que não se verifica no domínio da dosimetria das penas disciplinares da função pública, que comporta uma margem de discricionariedade”.

Segundo a jurisprudência acima citada, é bom de ver que, situando-se a actuação do recorrente no âmbito do exercício de um poder discricionário, seria inaplicável o princípio do aproveitamento do acto administrativo.
E mesmo para aqueles que entendam que o princípio do aproveitamento seja aplicável no âmbito de actos praticados no exercício de um poder discricionário, também só em caso excepcional é que se pode tornar inoperante a força invalidante dos vícios detectados.
É o que se decidiu no Acórdão do Tribunal Central Adminstrativo Norte, no âmbito do Processo n.º 02171/09.1BEPRT, citado a título de direito comparado, nos termos que se seguem:
“Tal princípio habilita o julgador, mormente, o juiz administrativo a poder negar relevância anulatória ao erro da Administração [seja por ilegalidades formais ou materiais], mesmo no domínio dos atos proferidos no exercício de um poder discricionário, quando, pelo conteúdo do ato e pela incidência da sindicação que foi chamado a fazer, possa afirmar, com inteira segurança, que a representação errónea dos factos ou do direito aplicável não interferiu com o conteúdo da decisão administrativa, nomeadamente, ou porque não afetou as ponderações ou as opções compreendidas (efetuadas ou potenciais) nesse espaço discricionário, ou porque subsistem fundamentos exatos bastantes para suportar a validade do ato [v.g., derivados da natureza vinculada dos atos praticados conforme à lei], ou seja ainda porque inexiste em concreto utilidade prática e efetiva para o impugnante do operar daquela anulação visto os vícios existentes não inquinarem a substância do conteúdo da decisão administrativa em questão não possuindo a anulação qualquer sentido ou alcance.”
Ora, uma vez que não estando em causa qualquer dessas situações, não há lugar a afastamento do efeito anulatório do acto administrativo impugnado.
Por tudo quanto deixou exposto, decide este TSI negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo Conselho de Administração da Autoridade Monetária de Macau, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas por o recorrente/entidade recorrida estar isento.
Registe e notifique.
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RAEM, 9 de Dezembro de 2021

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Tong Hio Fong Mai Man Ieng
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Lai Kin Hong
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Fong Man Chong




Recurso Jurisdicional 623/2019 Página 34