Processo nº 296/2021
Data do Acórdão: 16DEZ2021
Assuntos:
Erro nos pressupostos de facto
Determinação concreta de penas disciplinares
Discricionariedade da Administração
SUMÁRIO
1. A hierarquia e a disciplina são indisciplina são indispensáveis ao normal funcionamento da administração pública.
2. A obediência às ordens legítimas do superior hierárquico é imprescindível ao bom e eficiente funcionamento da máquina administrativa.
3. Há erro nos pressupostos de facto quando os factos que sirvam de fundamento a um acto administrativo não são verdadeiros, ou apenas putativos ou erradamente reputados como verdadeiros pela Administração na prática do acto.
4. Cabem na discricionariedade da Administração a determinação concreta de penas disciplinares.
5. Os tribunais administrativos não podem sindicar as decisões tomadas pela Administração no exercício de poderes discricionários, salvo nos casos extremos de erro grosseiro ou manifesto ou quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente o princípio da proporcionalidade.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 296/2021
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
A, devidamente identificado nos autos, vem recorrer contenciosamente da deliberação do Conselho dos Magistrados Judiciais, datado de 12MAR2021, que lhe aplicou a pena disciplinar de suspensão do exercício de funções pelo período de 130 dias, concluindo e pedindo que:
1 - As ausências da secretaria tiveram por escopo a deslocação e permanência no gabinete do Juiz por motivo de trabalho e não ausências em outros locais inapropriados ou injustificados durante o horário de serviço, pelo que não consubstanciam infracção disciplinar.
2 - Por outro lado, o acto recorrido tenta esboçar um quadro nebuloso de dúvidas sobre a razão de ser das deslocações. Ora, tal dúvida é inadmissível em face do cabal e esclarecido depoimento prestado pela Senhora Juiza nos autos disciplinares que confirmou que aquelas foram feitas por motivo de serviço de carácter urgente e inadiável. E, confirmado pela secretária pessoal.
3 - Perante a ausência de qualquer outra prova que aponte em contrário, e tendo na fase de instrução tida a possibilidade de fazer todas as diligências de produção de prova necessárias para o apuramento da verdade ou a contraprova do inverso, mas não o tendo feito ou não o tendo logrado fazer, é inadmissível que tente abalar esses depoimentos lançando dúvidas infundadas.
4 - Convém relembrar que o local de trabalho do arguido não se restringe à sua secretária de trabalho, implicando, sempre que necessário, deslocações a diversos locais dos pisos que constituem o Tribunal Judicial de Base de Macau.
5 - Razão pela qual nessa parte a decisão recorrida está eivada do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, o que a torna anulável.
6 - Uma outra vertente fáctica eleita pela decisão recorrida como fundamento punitivo firma-se na frase “九唔搭八” proferida pelo recorrente perante o seu superior hierárquico.
7 - Para aferir da bondade dessa afirmação, é fundamental que se apure o quadro fáctico e dialogante em que tal afirmação foi proferida, se o ambiente da conversa era de diversão, de troça entre amigos ou colegas ou de discussão acesa.
8 - Dos depoimentos colhidos das diversas testemunhas que depuseram nos autos, 4 a 5 dos colegas de serviço próximos do balcão de atendimento onde terá ocorrido afirmam que não ouviram tal frase. Outros afirmam que a afirmação foi proferida num diálogo entre colegas sem qualquer dose de hostilidade.
9 - Por outro lado, essa afirmação foi proferida de uma só vez, e não de forma reiterada, pública ou escandalosa que tenha posto em causa o normal funcionamento do serviço, ou mau estar perante o público em geral, nem gerador de qualquer indisciplina generalizada entre os demais colegas ou, muito menos ainda, de insubordinação ou queixa.
10 - Não foi apurada a data exacta em que a afirmação foi proferida.
11 - Pois, se tal frase serve de fundamento da infracção disciplinar e punição mister é que se apure a data, hora, o local e quadro fáctico em que fôra proferida. Isto assim, quer para avaliar o seu grau de culpa, o motivo ou justificação, e, ainda, esclarecer da questão primordial da eventual prescrição da infracção disciplinar (assim, o disposto no artigo 289º do ETPAM);
12 - Pois, só assim, poderá o arguido exercer cabalmente o seu direito de defesa, que, in casu, foi gravemente coartado.
13 - O direito disciplinar um ramo de direito sancionatório, é-lhe subsidiariamente aplicável as normas e princípios do direito e processo penal, mormente em matéria de garantias de defesa do arguido (neste sentido, o disposto no artigo 277º do ETAPM).
14 - Há assim, manifesta insuficiência da matéria apurada, razão pela qual a decisão recorrida está eivada do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, o que a torna anulável.
15 - Cada indivíduo, consoante a sua compleição física e estado de saúde, tem diferente grau de aceitabilidade ou de tolerância da temperatura num ambiente controlado artificialmente pelo ar-condicionado.
16 - Ora, quando se está a trabalhar dentro de um espaço fechado entre vários colegas, a boa norma e o bom senso manda que haja prudência e respeito mútuo no uso do ar-condicionado.
17 - Ademais, há que ter em conta que perante posições diferentes de colocação de cada uma das mesas de trabalho perante a boca do ar-condicionado, há alguns que sentem directamente o vento a soprar, e outros não tanto.
18 - O recorrente comunicou várias vezes que sentia frio perante o ar-condicionado e pedira que mudasse de mesa. A resposta é que tal era impossível já que nenhum dos colegas queria fazer a troca.
19 - Com efeito, a pessoa responsável deveria ter envidado esforços para solucionar tal problema e não apenas ter sondado ser alguém queria mudar de mesa voluntariamente.
20 - E, quando tal acontece, é normal e compreensível que a pessoa afectada - o ora recorrente - tente, na medida do possível, salvaguardar a sua saúde.
21 - E assim o recorrente tentou colocar placas de plásticos para dalguma forma desviar a direção do vento proveniente da boca do ar-condicionado, o que fez tentando a concordância prévia dos demais colegas potencialmente afectados.
22 - Ademais, há que ter presente, ainda, o facto de haver naquele espaço uma colega com doença prolongada, o que torna a situação bem mais complexa, pois, aquela era queixa-se do calor, ora queixa-se do frio.
23- Os depoimentos prestados pelos vários colegas não permitem chegar a conclusão uníssona. Não estão correctamente desenhados os contornos da suposta infracção e nem esta está minimamente provada.
24- Razão pela qual a decisão recorrida está eivada do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, o que a torna anulável.
25 - O uso de auscultadores entre colegas é um facto generalizado.
26 - Antes da deflagração do problema com a visita de inspecção à secretaria do Juizo laboral feita pelo Ilustre Doutor Juiz B em 22/04/2020 não havia ordem ou instrução escrita ou expressa que proibisse o uso de auscultadores.
27 - Depois dessa visita, fez-se uma reunião onde a chefia deu instrução no sentido de não mais usarem auscultadores no local de trabalho. A partir daí ninguém mais usou. Incluindo o recorrente, obviamente.
28 - Razão pela qual a decisão recorrida está eivada do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, o que a torna anulável.
Por outro lado,
29 - A fixação de um aviso que se veio tornar uma suposta infracção disciplinar tinha por objectivo relembrar os colegas da necessidade de executar as tarefas que lhes competiam, já que o recorrente viu que alguns labutavam distraidamente.
30 - Não houve qualquer intenção maléfica, provocadora ou criadora de mau ambiente, razão pela qual a decisão recorrida está eivada do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, o que o torna anulável.
31 - As alíneas g) a m) do n.º 2 do artigo 314° do ETAPM, aprovado pelo Decreto-Lei N.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, disciplina os cenários em que a pena de suspensão de funções de 121 a 240 dias deve ser aplicada.
32 - Imputa a decisão recorrida uma atitude de provocação, insubordinação, de incitação e de geradora de mau ambiente entre os colegas do serviço, mas não o consubstancia de forma clara, directa e fáctica.
33 - Não se provou quem foi/foram o colega de serviço que ficou provocado, ou ficara com atitude de insubordinação ou incitado perante a conduta imputada ao recorrente.
34 - Não estamos em crer que haja matéria fáctica para tal enquadramento legal, e, daí, a consequente má graduação da medida concreta da pena disciplinar aplicada, e ainda por cima de forma agravada, que peca por severidade em demasia. Quando muito, seria aplicável uma pena de suspensão de 30 dias, suspensa em sua execução.
35 - Há, pois, vício de violação de lei, por erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários na escolha, graduação e aplicação da pena de suspensa por 130 dias.
NESTES TERMOS, nos melhores de Direito, com o sempre mui douto suprimento de V. Excia., deve o presente recurso contencioso ser admitido e, a final, julgado procedente, por provado, e em consequência, revogado o acto administrativo recorrido pelo vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto.
Assim se fazendo inteira e sã Justiça!
Citado, veio o Conselho dos Magistrados Judiciais contestar pugnando pela improcedência do recurso.
Não houve lugar à produção de provas por não ter sido requerida nem ordenada ex oficio.
Notificados para apresentar alegações facultativas, tanto o recorrente como a entidade recorrida não as apresentaram.
Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seguinte parecer, pugnando pela improcedência do presente recurso:
Na petição, o recorrente requereu a revogação da deliberação pro-ferida pelo Conselho dos Magistrados Judiciais no Processo Disciplinar n.ºPDI-24-20-3, assacando erro nos pressupostos de facto aos fundamen-tos da aplicação da pena disciplinar traduzida na suspensão por período de 130 dias bem como erro manifesto ou total desrazoabilidade no exer-cício de poderes discricionários na graduação da referida pena.
Em sintonia com o princípio pro actione, vamos tratar a inexactidão do pedido como lapso e interpretar, ao abrigo do preceito no art.20º do CPAC, tal pedido no sentido de solicitar a “anulação” da supramenciona-da deliberação (doc. de fls.20 a 37 dos autos, que se dá aqui por integralmente produzido).
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Ora, o senso comum e a regra da experiência ordinária dizem-nos que a hierarquia e a disciplina são indispensáveis para a manutenção do normal funcionamento de qualquer organização pública, sob pena de cair na desordem e até caos. Daí se compreende que a obediência é igualmente imprescindível e constitui um dos deveres gerais dos trabalhadores de to-dos serviços públicos.
Estatuariamente, na carreira de oficial de justiça judicial e do M.ºP.º integram-se cargos de chefia hierarquizados (art.4.º da Lei n.º7/2004), e compete ao escrivão de direito, além de outros, chefiar a secção de processos dos tribunais ou do M.ºP.º, orientando, coordenando e executando as activi-dades desenvolvidas, em conformidade com as respectivas atribuições.
Importa realçar que todos os funcionários de justiça estão sujeitos aos deveres gerais dos trabalhadores da Administração Pública (art.20.º da Lei n.º7/2004), que se encontram consignados no art.279.º do ETAPM, cujos n.ºs 5 e 8 definem os dever de obediência e de correcção.
No caso sub judice, a Sra. Escrivã de direito substituta na secção do Juízo Laboral do TJB é a superior hierárquico do recorrente e, sem som-bra de dúvida, é legítima a “ordem verbal” a que alude o 5.º facto provado do Relatório do sobredito processo disciplinar (cfr. fls.300 a 314 do P.A.).
Nestes termos, inclinamos a colher que quanto às “ausências com deslocações ao gabinete do Juiz”, é sã e inatacável – sem erro nos pressu-postos de facto – a subsunção operada pelo Exmo. Senhor Instrutor do processo disciplinar, no sentido de as ausências do recorrente sem prévia comunicação a superior hierárquico infringirem o dever de obediência.
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Ressalvado elevado respeito pela opinião diferente, parece-nos que eticamente avaliadas, são arrogantes e ofensivas as palavras dirigidas pelo recorrente ao seu superior hierárquico às quais alude o 16.º facto provado do Relatório do sobredito processo disciplinar (cfr. fls.300 a 314 do P.A.).
Nesta linha de valoração, subscrevemos a prudente e equilibrada subsunção do Exmo. Senhor Instrutor do processo disciplinar, consistindo em imputar ao recorrente a violação do dever de correcção que exige o respeito e urbanidade no relacionamento com todos os colegas.
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No nosso prisma, a manobra de temperatura dos aparelhos de ar-condicionado, o uso de auscultadores e a fixação de um papel com teor de aviso denota que ao recorrente falta o respeito pelos colegas e, à luz da humanidade comum, provoca o desgosto e despeito.
O que significa que tais condutas do corrente não só colide com o dever de correcção, mas também afectam negativamente o ambiente do trabalho e, deste modo, infringem o dever de colaborar na normalização do serviço – consagrado na alínea 3) do art.20.º da Lei n.º7/2004.
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Chegando aqui, não podemos deixar de colher que são descabidas as arguições do erro nos pressupostos de facto, resta-nos indagar se a pena disciplinar de suspensão por período de 130 dias padecer ou não do erro manifesto ou total desrazoabilidade?
Bem, o Venerando TUI vem afirmando: A aplicação pela Adminis-tração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrati-vo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade. (vide. Acórdão no Processo n.º71/2015)
Pois, cabem na discricionariedade da Administração a aplicação, a graduação e a escolha da medida concreta das penas disciplinares, e só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discri-cionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável – art.21.º n.º1, al. d) do CPAC.
Ponderando todas as condutas do recorrente à luz das orientações jurisprudenciais supra aludidas, e sem necessidade de desenvolver o sig-nificado e alcance do princípio da proporcionalidade, estamos convictos de que a apontada pena disciplinar aplicada na deliberação em causa não enferma de erro manifesto nem de total desrazoabilidade, afigurando-se-nos que é bondosa e equilibrada a proposta do Exmo. Senhor Instrutor do processo disciplinar relativa a graduação da mesma pena.
***
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso contencioso.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
O processo é o próprio e inexistem nulidades e excepções ou questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso contencioso de anulação.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Em face das conclusões tecidas na petição do recurso, as questões nelas suscitadas podem ser sintetizadas nas questões do erro nos pressupostos de facto e da violação do princípio de proporcionalidade.
Para nós, ambas as questões efectivamente colocadas com alegações devidamente motivadas já foram correcta e exaustivamente debatidas no Douto parecer do Ministério Público acima integralmente transcrito, com que estamos inteiramente de acordo, não nos resta outra alternativa melhor do que a de aproveitarmos integralmente esse parecer, convertendo-o na fundamentação do presente recurso para julgar improcedente o presente recurso contencioso de anulação.
Em conclusão:
1. A hierarquia e a disciplina são indisciplina são indispensáveis ao normal funcionamento da administração pública.
2. A obediência às ordens legítimas do superior hierárquico é imprescindível ao bom e eficiente funcionamento da máquina administrativa.
3. Há erro nos pressupostos de facto quando os factos que sirvam de fundamento a um acto administrativo não são verdadeiros, ou apenas putativos ou erradamente reputados como verdadeiros pela Administração na prática do acto.
4. Cabem na discricionariedade da Administração a determinação concreta de penas disciplinares.
5. Os tribunais administrativos não podem sindicar as decisões tomadas pela Administração no exercício de poderes discricionários, salvo nos casos extremos de erro grosseiro ou manifesto ou quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente o princípio da proporcionalidade.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência julgar improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 8UC.
Registe e notifique.
RAEM, 16DEZ2021
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Lai Kin Hong Mai Man Ieng
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Fong Man Chong
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Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
296/2021-1