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Processo n.º 965/2021 Data do acórdão: 2021-12-16
Assuntos:
– Cocaína em éster metílico de benzoilecgonina
– consumo ilícito de estupefacientes
– art.o 14.o da Lei n.o 17/2009
– tráfico ilícito de estupefacientes
– art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009
– análise laboratorial da Cocaína
– mapa da quantidade de referência de uso diário de estupefacientes
– conhecimento de quantidade de uma das composições da Cocaína
– art.o 14.o, n.o 3, da Lei n.o 17/2009
– art.o 11.o, n.o 2, da Lei n.o 17/2009
– atenuação especial do art.o 18.o da Lei n.o 17/2009
– desmantelamento de grupo de tráfico ilícito de estupefacientes
– art.o 66.o, n.o 1, do Código Penal
S U M Á R I O
1. Não constando da factualidade provada qualquer circunstância alusiva à intenção de o 2.o arguido adquirir um total de 1,35 gramas líquidos de quantidade de Cocaína (com composição química de éster metílico de benzoilecgonina) para efeitos de fornecer a outrem, a sua conduta de aquisição, ao 1.o arguido, desses 1,35 gramas de Cocaína – quantidade esta que excede o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário dessa substância, fixada legalmente em 0,03 grama – deve integrar a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 2, da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), com aplicação da moldura penal correspondente à do crime de tráfico ilícito de estupefacientes do art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei.
2. O facto de a análise laboratorial da Polícia Judiciária sobre a Cocaína apreendida nos autos ter sido feita apenas com base na composição química de éster metílico de benzoilecgonina (e não de cloridrato) não obsta à tomada de decisão condenatória penal dos dois arguidos dos autos nos termos a relevar do disposto na Lei n.o 17/2009 (na redacção vigente), isto precisamente porque foi o Legislador quem, para a Cocaína, especificou, no Mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à mesma Lei, “doses diferentes, respectivamente para o cloridrato e para o éster metílico de benzoilecgonina”, de maneira que basta o conhecimento de quantidade de uma dessas composições químicas possíveis da Cocaína para se formar o juízo de valor de que se fala no n.o 3 do art.o 14.o dessa Lei, ou no n.o 2 do art.o 11.o da mesma Lei.
3. A atenuação especial facultada pelo art.o 18.o da Lei n.o 17/2009 deveria ser accionada, em função de muito elevadas exigências de prevenção geral do crime de tráfico de estupefacientes em Macau, mais propriamente em caso, por exemplo, de ter o agente auxiliado na recolha de provas decisivas para desmantelamento de grupo ou organização de tráfico ilícito de estupefacientes.
4. Nem se pode atenuar especialmente a pena nos termos gerais do art.o 66.o, n.o 1, do Código Penal, porquanto as referidas prementes necessidades da prevenção geral do crime de tráfico de estupefacientes reclamam que a sua pena seja graduada dentro da respectiva moldura ordinária.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 965/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
1.o arguido A
2.o arguido B





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 456 a 467 do Processo Comum Colectivo n.° CR3-21-0137-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram condenados:
– o 1.o arguido A como co-autor material, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro), em sete anos e três meses de prisão;
– e o 2.o arguido B como autor material, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.os 14.o, n.o 2 e 8.o, n.o 1, da mesma Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro) (doravante abreviada como Lei de droga), em cinco anos de três meses de prisão.
Inconformados, vieram os dois arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Alegou o 1.o arguido, no seu essencial na motivação apresentada a fls. 488 a 492 dos presentes autos correspondentes, que:
– houve consideração insuficiente, por parte do Tribunal sentenciador, de todas as circunstâncias susceptíveis de atenuar (nos termos do art.o 18.o da Lei de droga) especialmente a pena do próprio ora recorrente, já que prestou ele, com já arrependimento da prática dos factos (com relevância em sede do art.o 66.o, n.o 2, alínea c), do Código Penal (CP)), prova concreta decisiva para a Polícia Judiciária interceptar um suspeito também responsável pela conduta ilícita de tráfico de droga, para efeitos de investigação penal;
– e mesmo que assim não se entendesse, sempre haveria espaço para reduzir a sua pena de prisão, nos termos gerais.
Enquanto o 2.o arguido preconizou, em síntese, o seguinte na motivação apresentada a fls. 494 a 504 dos presentes autos:
– o que ele praticou foi o crime de consumo ilícito de estupefacientes p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 2, da Lei de droga, e não o de tráfico ilícito de estupefacientes previsto no art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei;
– e quanto à moldura penal aplicável a esse seu crime de consumo de estupefacientes, deveria ser a moldura correspondente à do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade do art.o 11.o, n.o 1, alínea 1), da mesma Lei;
– e mesmo que assim não se entendesse, sempre deveria ser reduzida a sua pena de prisão, atentas as circunstâncias aludidas nas alíneas a), b) e d) do n.o 2 do art.o 65.o do CP.
Aos recursos dos 1.o e 2.o arguidos, respondeu o Ministério Público nas respostas respectivamente constantes de fls. 510 a 513 e de fls. 514 a 516v dos autos, defendendo a improcedência da pretensão dos dois arguidos.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 533 a 536v, opinando pela rectificação da qualificação jurídico-penal dos factos em relação ao 2.o arguido, o qual, assim, deveria passar a ser condenado pela prática de um crime de consumo ilícito de estupefacientes p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 2, da Lei de droga, com moldura aplicável prevista no art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei, sendo entretanto de manter as penas de prisão já achadas no acórdão recorrido aos dois arguidos.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão recorrido ficou proferido a fls. 456 a 467, cuja fundamentação fáctica se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde logo, há que conhecer do pedido do 2.o arguido de convolação do crime de tráfico ilícito de estupefacientes por que vinha condenado em primeira instância, para o crime de consumo ilícito de estupefacientes (mas com moldura penal aplicável do crime de tráfico de menor gravidade).
Em face da matéria de facto descrita como provada no acórdão recorrido, tem meia razão este recorrente nesta questão materialmente respeitante à qualificação jurídico-penal dos factos provados.
Com efeito, não constando da factualidade provada qualquer circunstância alusiva à intenção de ele adquirir um total de 1,35 gramas líquidos de quantidade de Cocaína (com composição química, verificada em exame laboratorial feito pela Polícia Judiciária, de éster metílico de benzoilecgonina) para efeitos de fornecer a outrem, a sua conduta de aquisição, ao 1.o arguido, desse total concreto de 1,35 gramas líquidos de Cocaína (em éster metílico de benzoilecgonina) – quantidade total concreta esta que já excede, como já observou o próprio Tribunal recorrido, o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário dessa substância, fixada legalmente (no mapa de quantidades, em anexo à Lei de droga) em 0,03 grama – deve integrar a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 2, da Lei de droga, com aplicação da moldura penal correspondente à do crime de tráfico ilícito de estupefacientes do art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei, e não, portanto, da moldura aplicável ao crime de tráfico de menor gravidade do art.o 11.o, n.o 1, alínea 1), dessa Lei.
Isto porque:
À data dos factos da aquisição e detenção da referida quantidade líquida de Cocaína (em éster metílico de benzoilecgonina) pelo 2.o arguido, já entrou em vigor a nova redacção dada à Lei n.o 17/2009 pela Lei n.o 10/2016, prevendo o n.o 3 do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, nessa nova redacção, que “[…] são contabilizadas as […] substâncias […] que se destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal e, em parte, se destinem a outros fins ilegais”.
Assim sendo, como aquela quantidade total de Cocaína (na referida composição química) detida em autoria material por ele não para fins de a fornecer a outrem já ultrapassa o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário da mesma substância, o acto delitual penal seu de detenção ilícita de estupefaciente deve ser punido com a moldura penal prevista no do art.o 8.o, n.o 1, por força sobretudo do n.o 2 do art.o 14.o da mesma Lei n.o 17/2009 (na sua dita redacção nova), e não nos termos do art.o 11.o, n.o 1, alínea 1) dessa Lei (na mesma redacção nova) (precisamente porque é o n.o 2 desse art.o 11.o que manda que “Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade […] na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade […] anexo à presente lei […]”), por não se vislumbrar, no caso dos autos, qualquer situação de estar a ilicitude dos factos praticados pelo mesmo arguido consideravelmente diminuída.
O entendimento acima exposto está em sintonia com a seguinte explanação jurídica tecida no douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância de 4 de Outubro de 2019 do Processo n.o 87/2019 (reafirmada inclusivamente no douto Acórdão desse Venerando Tribunal de 26 de Fevereiro de 2020 do Processo n.o 11/2020):
– <<[…] nos seus n.os 2 e 3 do artigo 14.º, inovadoramente, a Lei n.º 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.º 10/2016, mandou aplicar, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º, caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém (para consumo próprio) constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei, e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade deste mapa.
O que quer dizer que, actualmente, o consumo de estupefacientes ou a mera detenção para consumo pessoal do agente, são punidos com as penas dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º, caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém (para consumo próprio) constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei, e a sua quantidade exceder, cinco vezes a quantidade deste mapa.
Daqui podemos concluir que faz parte do tipo do artigo 14.º, n.os 1 e 2, a finalidade de consumo das substâncias (o n.º 2 refere “o agente referido no número anterior”) em medida superior a cinco à prevista no mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei.
Por isso, a quantidade consumida ou detida para consumo, acrescida ou não, em parte, com as quantidades que “se destinem a outros fins ilegais” (n.º 3 do artigo 14.º), desde que acima das mencionadas cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário, só pode relevar em sede de medida da pena, mas não, por si só, para efeitos de se considerar o agente como actuando com ilicitude consideravelmente diminuída, dado que o limite relevante da lei é a quantidade referente a cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário.
Ou seja, se se provar apenas que o agente detém para consumo pessoal uma quantidade de seis ou sete vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário, pouco superior às cinco vezes, não é possível, sem prova de outras circunstâncias atenuantes, considerar que actuou com ilicitude consideravelmente diminuída, para efeitos de punição nos termos dos artigos 14.º e 11.º da Lei, sendo punido, portanto, nos termos dos artigos 14.º e 8.º. De outra forma estar-se-ia a desvirtuar a intenção legislativa, que fixou como limite cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário e não seis ou sete vezes.
[…]
[…]
[…] a circunstância de a quantidade detida ser mais de 5 vezes a quantidade de referência do mapa anexo à lei, não obsta à aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 11.º.
Isso é certo, só que não se provou qualquer facto donde resulte que a ilicitude dos factos se mostra consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados.
A circunstância de a quantidade detida ser pouco superior a 5 vezes a quantidade de referência do mapa anexo à lei, não é suficiente, exactamente porque o limite é o mencionado e não outro.>>
Nota-se que o facto de a análise laboratorial da Polícia Judiciária sobre a Cocaína apreendida nos autos ter sido feita apenas com base na composição química de éster metílico de benzoilecgonina (e não de cloridrato) não obsta à tomada de decisão condenatória penal dos dois arguidos nos termos a relevar do disposto na Lei de droga, isto precisamente porque foi o Legislador quem, para a Cocaína, especificou, no Mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à mesma Lei, “doses diferentes, respectivamente para o cloridrato e para o éster metílico de benzoilecgonina”, de maneira que basta o conhecimento de quantidade de uma dessas composições químicas possíveis da Cocaína para se formar o juízo de valor de que se fala no n.o 3 do art.o 14.o da Lei de droga, ou no n.o 2 do art.o 11.o da mesma Lei.
Com o que, em suma, há que passar a condenar o 2.o arguido propriamente pela autoria material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes do art.o 14.o, n.o 2, da Lei de droga (e não de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes por que vinha ele condenado no acórdão recorrido), apesar de este crime dever ser punido pela moldura correspondente ao crime de tráfico ilícito de estupefacientes, nos termos já acima analisados.
No que à temática da pena dos dois recorrentes diz respeito:
Para já não se pode atenuar especialmente a pena de prisão do 1.o arguido, nem nos termos especiais do art.o 18.o da Lei de droga (porquanto a atenuação especial facultada por esse art.o 18.o deveria ser accionada, em função de muito elevadas exigências de prevenção geral do crime de tráfico de estupefacientes em Macau, mais propriamente em caso, por exemplo, de ter o agente auxiliado na recolha de provas decisivas para desmantelamento de grupo ou organização de tráfico ilícito de estupefacientes), nem nos termos do art.o 66.o, n.o 1, do CP (uma vez que as referidas prementes necessidades da prevenção geral do crime de tráfico de estupefacientes reclamam que a sua pena seja graduada dentro da respectiva moldura ordinária – cfr. o critério material vertido na norma desse n.o 1 do art.o 66.o).
E no tocante à medida concreta da pena dos dois arguidos: ponderadas todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância (tendo em conta em especial que os 1.o e 2.o arguidos chegaram a deter, respectivamente, 16.4 (15.05+1,35) gramas líquidos e 1,35 gramas líquidos, de Cocaína, em éster metílico de benzoilecgonina), e consideradas as prementes necessidades da prevenção geral, é evidente que, aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, já não há mais margem para a pretendida redução da pena deles.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente o recurso do 1.o arguido, e parcialmente provido o recurso do 2.o arguido, passando este a ser condenado como autor material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, previsto pelo art.o 14.o, 2, da Lei n.o 17/2009 (na sua redacção dada pela Lei n.o 10/2016), e punível pela moldura referida no art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei (também na mesma redacção), na pena de cinco anos e três meses de prisão.
Custas do recurso do 1.o arguido totalmente a cargo deste, com quatro UC de taxa de justiça, e mil e seiscentas patacas de honorários do seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Pagará o 2.o arguido metade das custas do seu recurso e duas UC de taxa de justiça, por causa do decaimento parcial no recurso.
Macau, 16 de Dezembro de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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