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Processo n.º 891/2020 (II) Data do acórdão: 2021-12-16
Assuntos:
– acórdão de recurso
– indeferimento da reclamação do acórdão
– mera manifestação da discordância sobre o julgado
S U M Á R I O
1. Apesar de não haver terceiro grau de jurisdição no presente processo penal, pode o arguido recorrente reclamar do acórdão condenatório do Tribunal de Segunda Instância, proferido em sede do recurso então interposto do acórdão condenatório da Primeira Instância.
2. Entretanto, para o êxito da reclamação deste tipo, há que existir, nos termos legalmente previstos, qualquer causa de nulidade do próprio acórdão de recurso.
3. Não pode o arguido aproveitar o mecanismo da reclamação do acórdão de recurso, para só manifestar a discordância sobre o aí julgado.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 891/2020 (II)
(Autos de recurso penal)
  Recorrente (arguido): A






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 645 a 671 do Processo Comum Colectivo n.º CR3-19-0166-PCC do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que o condenou como autor material, na forma consumada, de 25 crimes de usura (como modo de vida), p. e p. pelo art.o 219.o, n.os 1 e 3, alínea a), do Código Penal (CP), em um ano e seis meses de prisão por cada, e de um crime de ameaça (qualificada), p. e p. pelo art.o 147.o, n.os 1 e 2, do CP, em seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única de cinco anos e três meses de prisão, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a essa decisão, na sua motivação apresentada a fls. 678 a 688 dos presentes autos correspondentes:
– desde já, a propósito da condenação em sede do tipo legal de usura:
– erro de aplicação do Direito (porquanto as causas dos pedidos de empréstimo de dinheiro em questão nos autos referidas na fundamentação fáctica do acórdão recorrido não dão para integrar os conceitos de “situação de necessidade”, ou de “anomalia psíquica”, ou de “incapacidade”, ou de “inépcia”, ou de “inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor”, ou de “relação de dependência” do devedor postulados na norma incriminadora do n.o 1 do art.o 219.o do CP, para efeitos de verificação do crime de usura), devendo o próprio recorrente passar a ser absolvido de todos os crimes de usura por que vinha condenado em primeira instância;
– e, subsidiariamente falando, vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (dado que como “precisar urgentemente de dinheiro” não equivale necessariamente à “situação de necessidade”, há que existir prova bastante ou factos provados concretos para justificar a existência da situação de necessidade), daí (em face da dúvida, por falta de prova, não só acerca da existência da “situação de necessidade”, como também da existência de juros mensais de 10% ou da já devolução, ou não, pelas pessoas ofendidas nos autos, de montantes de dinheiro declarados por elas) devendo o recorrente passar a ser absolvido de todos os crimes de usura em causa, em obediência ao princípio de in dubio pro reo;
– por outro lado, no tocante ao crime de ameaça por que vinha condenado em primeira instância:
– violação do princípio de in dubio pro reo (devendo o recorrente ser absolvido desse mesmo crime, por falta da prova);
– por fim, e ainda subsidiariamente falando, excesso na medida da pena (com necessária pretendida redução das penas parcelares e única de prisão aplicadas no aresto recorrido).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 692 a 695 dos autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 707 a 710, no sentido de absolvição dos crimes de usura em causa, e da suspensão da pena de prisão do crime de ameaça.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos e tendo ficado vencido o Ex.mo Juiz Relator do presente processo na votação sobre a solução do recurso por ele proposta, foi já decidido o recurso em causa através do acórdão definitivo elaborado nos termos do art.o 417.o, n.o 1, parte final, do Código de Processo Penal (CPP), e ora constante de fls. 716 a 720v dos autos.
Notificado do acórdão de recurso, veio o arguido apresentar reclamação desse acórdão, mediante o petitório de fls. 726 a 728 do autos, para rogar a sua absolvição dos referidos 25 crimes de usura (com insistência na verificação, no acórdão condenatório recorrido, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por, na essência da sua argumentação, a situação do caso não integrar a “situação de necessidade” referida no n.o 1 do art.o 219.o do CP), ou a feitura da explicação detalhada do conceito jurídico da “situação de necessidade”, para ele “ter melhor compreensão jurídica sobre o tipo legal de usura previsto no art.o 219.o do CP”.
Sobre essa reclamação do arguido, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fl. 730 a 730v dos autos, no sentido final de manutenção do julgado.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão de recurso ora sob reclamação pelo arguido recorrente ficou proferido a fls. 716 a 720v dos autos, cuja fundamentação fáctica e jurídica se transcreve agora pelo seguinte:
– <<[…]
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido consta de fls. 645 a 671 dos autos, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
O arguido recorrente começou por preconizar que as causas dos pedidos de empréstimo de dinheiro em questão nos autos referidas na fundamentação fáctica do acórdão recorrido não dão para integrar os conceitos de “situação de necessidade”, ou de “anomalia psíquica”, ou de “incapacidade”, ou de “inépcia”, ou de “inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor”, ou de “relação de dependência” do devedor postulados na norma incriminadora do n.o 1 do art.o 219.o do CP, para efeitos de verificação do crime de usura, devendo, pois, ele passar a ser absolvido de todos os crimes de usura por que vinha condenado em primeira instância.
Pois bem, segundo o facto provado 29, descrito na página 29 do texto do aresto recorrido, a fl. 659: no acima referido período da prática da sua conduta, o arguido sabia claramente que todas as pessoas ofendidas acima referidas se encontravam, no tempo em que lhe pediam emprestar dinheiro, em dificuldade financeira, em situação de falta de dinheiro para circulação do capital, e em situação de precisarem urgentemente de dinheiro.
Diversamente do defendido pelo recorrente, realiza o presente Tribunal Colectivo de recurso (por votos de maioria) que essas circunstâncias referidas no facto provado 29 ainda dão para integrar, em conjunto, e de modo cabal, o conceito de “situação de necessidade” de que se fala na norma do n.o 1 do art.o 219.o do CP (que prevê que: Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, […], fizer com que ele prometa ou se obrigue a conceder, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstâncias do caso, manifestamente desproporcionada face à contraprestação, é punido com pena de prisão […]). Portanto, não pode ter havido erro, por parte do Tribunal recorrido, de aplicação do Direito no tangente à condenação do recorrente nos 25 crimes de usura (como modo de vida) em causa.
Por outra banda, relativamente aos mesmos crimes de usura, não deixou o recorrente de invocar a existência, na decisão condenatória recorrida, de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Entretanto, os argumentos concretamente tecidos por ele para sustentar a verificação desse vício não têm a ver propriamente com o vício nominado na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas sim já com a questão de falta de prova bastante ou de insuficiência de prova.
Como o recorrente também invocou a falta de prova para o condenar em sede do tipo legal de ameça, é de ajuizar agora, uma vez por todas, se já tenha sido feita prova bastante para efeitos de condenação dele nos 25 crimes de usura e no crime de ameaça nos termos constantes da decisão penal recorrida.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, depois de vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se mostra patente que o Tribunal recorrido tenha violado quaisquer normas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência da vida humana, ou ainda quaisquer leges artis vigentes no julgamento da matéria de facto, pelo que é de respeitar o resultado do julgamento dos factos já feito por esse Tribunal.
E ante toda a matéria de facto já dada por provada em primeira instância (sem qualquer insuficiência ou falta de prova), é legal a condenação do arguido pelos 25 crimes de usura como modo de vida e por um crime de ameaça (qualificada).
Por fim, no que à medida da pena diz respeito, vistas todas as circunstâncias fácticas já dadas por apuradas na fundamentação fáctica do aresto recorrido, com pertinência à medida concreta das penas dos dois tipos legais de ilícito em questão, aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, e tendo em conta também as exigências da prevenção geral desses dois tipos-de-ilicito, não se vislumbra que haja injustiça notória nas penas de prisão aplicadas pelo Tribunal recorrido aos ditos 25 crimes de usura e crime de ameaça, e o mesmo se pode dizer em relação à pena única de prisão aí achada, em sede do art.o 71.o , n.os 1 e 2, do CP. (Nota-se que é inviável a atenuação especial da pena desses dois tipos de crime, devido à necessidade da pena, em função das elevadas exigências da prevenção geral – cfr. o critério material consagrado no n.o 1 do art.o 66.o do CP, para efeitos de activação, ou não, do mecanismo de atenuação especial da pena).
Naufraga in totum o recurso, sem mais indagação, por desnecessária ou prejudicada.>>
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Juridicamente falando, apesar de não haver terceiro grau de jurisdição no ora subjacente processo penal, pode o arguido recorrente reclamar do acórdão condenatório deste TSI, proferido em sede do recurso então interposto por ele do acórdão condenatório da Primeira Instância.
Entretanto, para o êxito da reclamação deste tipo, há que existir, nos termos legalmente previstos, qualquer causa de nulidade do próprio acórdão de recurso referido.
Sucede que o objecto do então recurso do arguido já foi decidido por este TSI, nos termos do rumo jurisprudencial seguido desde há muito, mormente nos acórdãos do TSI (já citados na parte inicial da fundamentação jurídica do aresto ora sob reclamação), de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001, segundo o qual ao tribunal de recurso, cumpre, com excepção da matéria de conhecimento oficioso, resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas.
No caso, o recorrente, no petitório da reclamação em questão, limitou-se a reiterar o seu entendimento já posto na motivação do recurso na parte em que preconizava não integrar a situação dos autos a “situação de necessidade” referida no n.o 1 do art.o 219.o do CP, para pedir a sua absolvição total do tipo-de-ilícito de usura por que vinha condenado em primeira instância, ou a feitura, pelo presente Tribunal de recurso, da explicação detalhada do conceito jurídico da “situação de necessidade”, para ele “ter melhor compreensão jurídica sobre o tipo legal de usura previsto no art.o 219.o do CP”.
Vê-se, pois, que o recorrente esteve a aproveitar o mecanismo da reclamação do acórdão de recurso, para manifestar a sua discordância sobre o julgado feito pelo Tribunal de recurso, sendo certo que do conteúdo do próprio acórdão de recurso se retira que o mesmo aresto contém já a fundamentação fáctica e jurídica necessária da decisão final do recurso tomada.
Razões por que a reclamação ora em causa fica votada ao insucesso, sem mais indagação por desnecessária.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em indeferir a reclamação do recorrente A.
Custas da reclamação pelo recorrente, com cinco UC de taxa de justiça.
Macau, 16 de Dezembro de 2021.
___________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
___________________________
Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
__________________________ (不妨礙本人在實體問題的立場)
Choi Mou Pan
(Relator do processo)



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