Processo n.º 1131/2020 Data do acórdão: 2021-12-16
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– leges artis
– prova do montante de remuneração do trabalho
– indemnização por danos futuros
– necessidade de tratamento médico vindouro
– fixação equitativa da indemnização por danos morais
– art.o 489.o, n.o 1, do Código Civil
– art.o 487.o do Código Civil
S U M Á R I O
1. Há erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. Se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la.
3. Assim, pode o tribunal recorrido, na sentença, usar determinados elementos concretamente constantes dos autos para tornar congruentemente duvidoso o montante da remuneração mensal do demandante declarado pela nova entidade exploradora da loja da qual este era trabalhador, pelo que é de respeitar o julgado feito na sentença, a nível de julgamento da matéria de facto no referente à indagação do montante da remuneração.
4. O demandante quer ser indemnizado de mais danos futuros, mas a matéria de facto então dada por provada no texto da sentença não permite demonstrar a necessidade, por parte dele, do vindouro tratamento médico e terapêutico de quaisquer sequelas resultantes das lesões corporais sofridas em consequência do acidente de viação dos autos.
5. A indemnização por danos morais do demandante deve ser fixada equitativamente, nos termos da norma do n.o 1 do art.o 489.o do Código Civil (a qual manda atender às circunstâncias referidas no art.o 487.o do mesmo Código), tendo em conta nomeadamente o impacto e as compreensíveis inconveniências a acarretar pelas suas lesões corporais sofridas (especialmente a fractura no lado esquerdo do osso púbico e na vértebra sacral esquerda), mesmo curadas clinicamente, para o resto da sua esperança da vida com tempo ainda muito prolongado, e também o sentimento de desgosto dele no restante período da sua esperança da vida, por causa desse impacto e inconveniências, por um lado, e, por outro, das diversas cicatrizes evidentes deixadas no seu corpo (na mão esquerda, em ambos os joelhos, no tornozelo direito e nas costas) em consequência do acidente de viação, com influência negativa para a aparência da sua pessoa.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 1131/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (demandante civil): A
Recorrida (demandada civil): X Insurance (Hong Kong) Limited
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 350 a 363v do Processo Comum Singular n.o CR5-20-0143-PCS (com enxertado pedido cível de indemnização emergente de acidente de viação) do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base na parte respeitante à decisão civil, veio recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) o lesado ora demandante civil A, assacando a esse Tribunal, na motivação apresentada, em original, a fls. 520 a 533 dos presentes autos correspondentes:
– o cometimento de erro notório na apreciação da prova como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), quando julgou (diversamente da posição tomada no acórdão do Processo n.o 317/2004 do TSI, segundo a qual normalmente a entidade patronal declara valores inferiores aos reais para efeitos fiscais) que o montante mensal da remuneração do trabalho do próprio demandante ora recorrente era apenas de HKD16.000,00, e não de HKD30.000,00 como deveria ser em face dos elementos probatórios carreados aos autos, pelo que há que passar a calcular o montante indemnizatório de 417 dias de percas salariais com base nesse devido montante mensal de HKD30.000,00, para o correspondente montante passar a ser fixado no total de MOP430.135,50 (através da seguinte fórmula aritmética: HKD30.000,00x1.0315/30 diasx417 dias=MOP430.135,50);
– o cometimento ainda de erro notório na apreciação da prova quando julgou que não se podia reconhecer que o total de despesas de MOP4.700,00 de reparação de dois telemóveis de marca e modelo respectivamente de Iphone XS Max e de Iphone X (ambos partidos na parte do respectivo écran por causa do acidente de viação) – atento o facto de já terem decorrido cinco meses desde a data da ocorrência do acidente de viação, aliado ao facto da posse dos telemóveis desde sempre pelo próprio demandante – tivesse a ver com o acidente de viação em causa, isto especialmente porque, diversamente do entendido pelo Tribunal recorrido, o telemóvel, mesmo com écran partido, não deixa de poder funcionar normalmente nas respectivas funcionalidades, por um lado, e, por outro, foi impossível ao próprio demandante, lesado no acidente e como tal com dificuldade em se movimentar, ir tratar da questão da reparação dos dois telemóveis, pelo que há que passar a atribuir ao demandante a indemnização por aquelas despesas de reparação do écran dos dois telemóveis;
– a violação do princípio da equidade latente no n.o 1 (parte inicial) do art.o 489.o do Código Civil (o qual manda atender às circunstâncias referidas no art.o 487.o do mesmo Código), quando fixou em MOP130.000,00 o montante destinado à compensação pecuniária dos danos morais sofridos pelo demandante, pelo que há que passar a atribuir um montante não inferior a MOP500.000,00 (em vez daquele montante reduzido de MOP130.000,00), para efeitos de compensação pecuniária dos danos morais, tendo em conta nomeadamente a sua idade à data do acidente, as lesões sofridas, os tratamentos diversos a que se sujeitou, o impacto das lesões para o resto da sua vida com tempo ainda muito prolongado, e a taxa de inflação no futuro, etc.;
– e, por fim, a omissão de pronúncia quanto ao pedido de indemnização por danos futuros, formulado nos art.os 50.o a 53.o da petição cível, em montante a liquidar em sede da execução da sentença, por causa de todas as despesas médicas e medicamentosas e percas salariais a ocorrer depois de 27 de Maio de 2019, daí que há que passar a atribuir ao próprio demandante a indemnização por danos futuros em causa.
Ao recurso, respondeu a ora recorrida demandada seguradora X Insurance (Hong Kong) Limited a fls. 540 a 554 dos presentes autos, a defender a manutenção do julgado.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista dada a fl. 575, opinou que não tinha legitimidade para emitir parecer, por estar em questão matéria meramente civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida ficou proferida a fls. 350 a 363v dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas ao mesmo tempo nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O lesado ora recorrente começou por preconizar a existência de erro notório, cometido pelo Tribunal recorrido, na apreciação da prova, quando este julgou que o montante salarial do próprio demandante era apenas de HKD16.000,00, e não de HKD30.000,00 como deveria ser.
Sobre a temática da apreciação da prova, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova, como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, o Tribunal recorrido já expôs detalhadamente, no último parágrafo da página 24 do texto da sentença e no primeiro parágrafo da página 25 do mesmo texto (a fl. 361v a 362 dos autos), as razões pelas quais julgou que o demandante tinha apenas HKD16.000,00 de remuneração mensal do seu posto de trabalho como empregado de venda, e não de HKD30.000,00 como alegado na sua petição cível. A explicação dada por esse Tribunal é exemplo real de ser o próprio Tribunal sentenciador a usar determinados elementos concretamente constantes dos autos para tornar congruentemente duvidoso o montante da remuneração mensal do lesado demandante declarado pela nova entidade exploradora da loja da qual era trabalhador o mesmo lesado, pelo que é de respeitar o julgado feito na sentença, a nível de julgamento da matéria de facto no ponto referente à indagação de qual o montante da remuneração mensal do demandante.
Daí que não se pode passar a calcular o montante indemnizatório de 417 dias de percas salariais do recorrente com base no alegado montante remuneratório mensal de HKD30.000,00.
O recorrente não deixou de apontar à decisão judicial civil recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova na parte em que se julgou que não se podia reconhecer que o total de despesas de MOP4.700,00 de reparação de dois telemóveis de marca e modelo respectivamente de Iphone XS Max e de Iphone X (ambos partidos na parte do respectivo écran alegadamente por causa do acidente de viação) tivesse a ver com o acidente de viação em causa.
Pois bem, é certo que um telemóvel com écran partido pode continuar a funcionar bem e que a gente pode ir tratar da reparação do telemóvel mais tarde, mas também não são menos razoáveis as razões invocadas pelo Tribunal recorrido ao julgar que as despesas de reparação em causa não tiveram a ver com o acidente de viação dos autos.
Por isso, tudo se resume numa questão de livre apreciação da prova, sob aval do art.o 114.o do CPP. Como não se vislumbra que o resultado do julgamento da matéria de facto nesta parte concreta em causa tenha violado patentemente quaisquer regras da experiência da vida humana, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto, é de respeitar também esse julgado feito na sentença.
O recorrente imputou ao Tribunal recorrido omissão de pronúncia sobre o seu pedido de indemnização por danos futuros, por todas as despesas médicas e medicamentosas e percas salariais a ocorrer depois de 27 de Maio de 2019, como tinha sido peticionado no art.o 52.o da petição cível, enxertada a fls. 105 a 111 dos presentes autos penais.
Do exame do teor da sentença recorrida, sabe-se que: o Tribunal recorrido, para além de atribuir ao demandante indemnização por despesas médicas e medicamentosas realizadas até 27 de Maio de 2019 (no total de MOP22.979,00), atribuiu também indemnização por despesas médicas e medicamentosas ulteriormente realizadas até 16 de Janeiro de 2020 (no total de MOP5.809,00), e atribuiu também indemnização por percas salariais de um total de 417 dias, de ocorrência até 31 de Janeiro de 2020).
Por isso, a decisão cível tomada pelo Tribunal recorrido a este propósito já ultrapassa temporalmente aquela data de 27 de Maio de 2019 a partir da qual o demandante pretendia ver indemnizado de todas as vindouras despesas médicas e medicamentosas e percas salariais, de maneira que o demandante não pode acusar ao Tribunal recorrido a omissão de pronúncia sobre o pedido de indemnização por danos futuros, formulado no art.o 52.o da petição cível.
É certo que o demandante quer ser indemnizado de mais danos futuros, mas a matéria de facto então dada por provada no texto da sentença não permite demonstrar a necessidade do tratamento médico e terapêutico, depois de finais de Janeiro de 2020, de quaisquer sequelas resultantes das lesões corporais sofridas em consequência do acidente de viação dos autos.
Por fim, quanto à justeza do montante de MOP130.000,00 fixado na sentença para efeitos de reparação dos danos morais do demandante:
Ponderadas todas as circunstâncias fácticas já descritas como apuradas na fundamentação fáctica da sentença (mormente nos segundo, quarto, quinto, sexto, sétimo e oitavo parágrafos da página 10 do texto da sentença e nos segundo, terceiro e quinto parágrafos da página seguinte do mesmo texto, a fls. 354v a 355 dos autos), com pertinência à fixação equitativa do montante indemnizatório dos danos morais nos termos da norma do n.o 1 (parte inicial) do art.o 489.o do Código Civil (a qual manda atender às circunstâncias referidas no art.o 487.o do mesmo Código), tendo em conta o impacto e as compreensíveis inconveniências a acarretar pelas suas lesões corporais sofridas (especialmente a fractura no lado esquerdo do osso púbico e na vértebra sacral esquerda), mesmo curadas clinicamente, para o resto da sua esperança da vida (com, pelo menos, 75 anos de idade) com tempo ainda muito prolongado, e também o sentimento de desgosto dele em todo o restante período da sua esperança da vida, por causa desse impacto e inconveniências, por um lado, e, por outro, das diversas cicatrizes evidentes deixadas no seu corpo (a saber, na mão esquerda, em ambos os joelhos, no tornozelo direito e nas costas) em consequência do acidente de viação dos autos, tudo com influência negativa para a aparência da sua pessoa, afigura-se ser de aumentar tal montante de MOP130.000,00 para MOP250.000,00.
Em suma, procede parcialmente o recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso do demandante A, passando a condenar a demandada seguradora X Insurance (Hong Kong) Limited a pagar-lhe mais MOP120.000,00 (cento e vinte mil patacas) por efeito do agora decidido aumento, para MOP250.000,00 (duzentas e cinquenta mil patacas), do montante fixado em MOP130.000,00 (cento e trinta mil patacas) na sentença recorrida a título de reparação dos danos morais sofridos pelo demandante.
Custas do pedido cível em ambas as duas Instâncias pelo demandante e pela demandada seguradora, na proporção dos respectivos decaimentos finais.
Macau, 16 de Dezembro de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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