Processo nº 92/2021 Data: 08.09.2021
(Autos de recurso jurisdicional)
Assuntos : Recurso jurisdicional.
Planta cadastral.
Rectificação.
Nulidade.
Acto consequente.
Usurpação de poderes.
SUMÁRIO
1. A nulidade de um “acto consequente” prevista no art. 122°, n.° 2, al. i) do C.P.A., pressupõe que tenha havido prévia “anulação contenciosa” ou “administrativa” do “acto antecedente” – com força de “caso julgado material” ou de “caso decidido” – implicando, assim, a existência de um “processo contencioso” ou de um “procedimento administrativo autónomo” relativamente àquele em que, (eventualmente), se venha a declarar a nulidade do acto consequente.
2. Por sua vez, entre os actos “dependente” e “consequente”, imprescindível é uma relação de “conexão jurídica”, não bastando uma mera “relação” apenas assente em juízos dependentes da “lógica (das coisas)” ou da “proximidade fáctica”, pois que tão só se pode considerar a dita “conexão” existente “quando se possa afirmar que entre os dois actos existe uma relação que seria susceptível de determinar necessariamente a invalidade do segundo, se acaso o mesmo tivesse sido praticado, nos termos em que efectivamente o foi, num momento em que já tivesse sido decretada a anulação do primeiro”.
3. Constatando-se que a (invocada) “rectificação” incidiu, apenas, sobre uma (mera) “menção” constante da planta cadastral, mais concretamente, quanto ao “número da descrição predial do terreno”, (por falta da sua respectiva correspondência entre o terreno cadastrado e o descrito na C.R.P.), não implicando qualquer “alteração da planta quanto à área ou delimitação do terreno…”, adequado não se mostra de considerar que a mesma padeça do vício de “usurpação de poderes”.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 92/2021
(Autos de recurso jurisdicional)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. “O”, (“甲戊”), sociedade com sede em Macau, interpôs, no Tribunal de Segunda Instância, recurso contencioso do despacho do SECRETÁRIO PARA OS TRANSPORTES E OBRAS PÚBLICAS de 28.06.2019 que indeferiu o recurso hierárquico necessário da decisão do Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes de 06.05.2019 que declarou extinto o procedimento de licenciamento de obra de construção n.° 16/CT/2013/L; (cfr., fls. 2 a 36 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 25.02.2021, (Proc. n.° 855/2019), decidiu-se que:
“- conceder provimento ao presente recurso contencioso, declarando nulo o acto recorrido.
- não admitir o requerimento de cumulação de pedidos deduzido pela recorrente”; (cfr., fls. 332 a 362).
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Em tempo, do assim decidido recorreu a entidade administrativa, motivando para, em conclusões, e a final, dizer o que segue:
“1.ª - Constitui objecto do presente recurso jurisdicional o acórdão recorrido que anulou o acto recorrido consubstanciado no despacho do STOP, de 28 de Junho de 2019, que indeferiu o recurso hierárquico necessário da decisão do Director dos Serviços de Solos e Obras Públicas, que declarou extinto o procedimento de licenciamento da obra de construção n.° 16/CT/2013/L, a ser levada a efeito no terreno situado junto do intersecção da Estrada de Seac Pai Van, da Estrada do Alto de Coloane e da Estrada Militar, por considerar verificado o vício de erro nos pressupostos de facto.
2.ª - O acórdão recorrido padece de erro de julgamento ao concluir que o acto impugnado é inválido por ser consequente de um outro acto viciado de nulidade por usurpação de poder, o qual seja a rectificação oficiosa da planta cadastral n.° 3854/1992, convertida em definitiva pelo Despacho n.° 10/SATOP/98, operada pelo Director da DSCC.
3.ª - Aquele aresto faz uma errada interpretação e aplicação dos preceitos vertidos nos artigos 18.° e 19.° do Decreto Lei n.° 3/94/M, de 17 de Janeiro, por julgar que o Director da DSCC não tinha competência para a rectificação oficiosa da planta cadastral já referida, pois que, não havendo concordância dos interessados, a rectificação da planta cadastral deveria ser promovida judicialmente, sendo que, também incorrectamente considera que esta alteração traz implicações na localização do terreno.
4.ª - O Director da DSCC apercebendo-se de uma irregularidade, a qual seja a errada indicação da descrição predial, rectificou oficiosamente, e bem, por possuir competência para o fazer, a planta cadastral n.° 3854/1992, retirando aquela indicação, alterando a situação jurídica do terreno, que passou a constar como terreno que se presume omisso na CRP e, por isso, integrante do domínio do Estado.
5.ª - Apesar da rectificação oficiosa, a localização, área e confrontações do terreno, que consubstanciam os elementos de identificação física do mesmo, porquanto, nos termos do artigo 14.° do diploma legal já referido são título bastante para a identificação física do prédio, mantiveram-se inalterados, tendo apenas sido modificada a menção à descrição predial, a qual, não constituindo um daqueles elementos, é irrelevante e tem natureza meramente indicativa, não implicando a simples menção da descrição predial qualquer modificação destes elementos, ~ nomeadamente, da localização, como erroneamente julga o TSI.
6.ª - O Director da DSCC tem competência para oficiosamente corrigir uma mera irregularidade de uma planta, logo que dela tenha conhecimento, desde que se trate de um erro que se patenteie da própria planta e cuja verificação não prejudique os direitos dos titulares do prédio a que respeita a planta, como preceitua o artigo 18.° do Decreto-Lei n.° 3/94/M, de 17 de Janeiro, o qual, contrariamente ao vertido no acórdão recorrido, é aplicável ao caso em apreço.
7.ª - É claro, do explicitado, que se trata de uma mera irregularidade que se patenteia da própria planta, corno é de igual clareza que esta rectificação em nada prejudica os direitos da entidade recorrida.
8.ª - A planta cadastral n.° 3854/1992 encontra-se correctamente demarcada, apenas o prédio aí demarcado não corresponde ao descrito na CRP sob o n.° 6150, propriedade da entidade recorrida, o qual não se mostra demarcado, daí a necessidade de retirada, nesta planta cadastral, da menção da descrição predial sob a qual se encontra descrito o terreno propriedade da entidade recorrida, cuja titularidade o ora recorrente não contesta.
9.ª - Se o terreno demarcado naquela planta cadastral não é o de propriedade da entidade recorrida e se encontra omisso na CRP, presume-se terreno disponível, integrante do domínio do Estado, sendo que, por outro lado, a entidade recorrida continua a ser proprietária e a poder usufruir do seu terreno, aí podendo levar a efeito todas as operações urbanísticas que pretender, desde que legalmente admissíveis, razão pela qual a alteração à planta cadastral, promovida oficiosamente pelo Director da DSCC não constitui qualquer acção capaz de privar aquela de qualquer direito sobre o terreno que detém, prejudicando-a, pelo simples razão de não ser detentora de qualquer direito sobre o mesmo.
10.ª - Deste modo, porque não há qualquer prejuízo de direitos, a planta cadastral podia, nos termos do artigo 18.° do Decreto-Lei n.° 3/94/M, de 17 de Janeiro, ser oficiosamente promovida pelo Director da DSCC, sem necessidade de acordo dos interessados, sendo a mesma legal, válida e eficaz, sem necessidade de recurso aos Tribunais.
12.ª - É, de igual modo, incorrecta a interpretação dada pelo TSI à norma do artigo 19.° do diploma legal atrás referido, considerando o recorrente que a mesma não é aplicável ao presente caso, porquanto prevê que, não existindo acordo entre interessados, será necessária a rectificação judicial da planta apenas quando o erro provenha de deficiente demarcação ou envolva alteração da área ou delimitação do terreno.
13.ª - Ora, inexiste qualquer erro na planta cadastral, a qual se encontra correctamente demarcada, apenas o terreno demarcado naquela planta não corresponde ao terreno propriedade da entidade recorrida, que se mostra por demarcar, bem como a alteração cadastral levada a efeito não operou qualquer modificação na área ou delimitação do terreno, que se mantêm as mesmas, tendo somente sido retirada a menção relativa à descrição predial. Logo, não é legalmente exigível a rectificação judicial, sendo o Director da DSCC competente para a rectificação oficiosa da planta.
14.ª - Razão pela qual não se verifica, pois, o vício de usurpação de poder, previsto no n.° 2 do artigo 122.° do CPA, nem pode ser procedente o assacado vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, não estando o acto recorrido, consequentemente, inquinado da mesma invalidade.
15.ª - Esclarecida que ficou a inexistência de qualquer vício de nulidade por usurpação de poder, crê o recorrente que o acórdão recorrido conheceu e pronunciou-se sobre matéria da qual não podia tomar conhecimento, a qual seja a questão da rectificação oficiosa da planta cadastral n.° 3854/1992, estando, por essa razão, aquela decisão judicial ferida de nulidade por excesso de pronúncia.
16.ª - Existe excesso de pronúncia quando o Tribunal conhece de causa de pedir, pedido ou excepções que não foram invocados e estes não sejam de conhecimento oficioso, isto porque o Tribunal não pode condenar em objecto diferente daquele que o recorrente veio pedir. Sendo as conclusões que delimitam o objecto do recurso e afigurando-se evidente que nelas a então recorrente, ora entidade recorrida, não levantou, em momento algum, qualquer questão relativamente à invalidade da rectificação oficiosamente levada a efeito pelo Director da DSCC naquela planta cadastral, não estando a mesma rectificação ferida de nulidade, de conhecimento oficioso, parece que estava vedada ao tribunal qualquer pronúncia sobre a matéria.
17.ª - Ao fazê-lo, a decisão judicial que ora se impugna está inquinada de nulidade, por excesso de pronúncia, prevista na alínea d) do n.° 1 do artigo 571.° do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 1.° do CPAC.
18.ª - De todo o exposto, deve o presente recurso jurisdicional ser julgado procedente e, em consequência, declarar-se nulo o acórdão recorrido por excesso de pronúncia ou, caso assim se não entenda, revogá-lo por erro de julgamento”; (cfr., fls. 374 a 389).
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Em contra-alegações, e em síntese, entende a recorrida “O” que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 395 a 414).
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Em doutro Parecer que juntou aos autos, considera o Exmo. Magistrado do Ministério Público que o recurso merece provimento, devendo os autos baixar ao Tribunal de Segunda Instância para aí se conhecer do mérito da causa em relação ao remanescente não decidido; (cfr., fls. 433 a 438).
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Adequadamente processados os autos, cumpre apreciar e decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. O Tribunal de Segunda Instância considerou e indicou como relevante e provada a seguinte matéria:
«1. Pelo processo judicial que correu termos sob o n.º 210/91 - Justificação da Qualidade de Herdeiros -, A ou A1 e B foram declarados únicos e universais herdeiros do seu avô C ou C1, tendo, em consequência, herdado o terreno descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, em regime de propriedade privada, que confrontava a Norte e Leste com a Estrada do Campo, a Sul com a casa n.º 2 e a Oeste com o Beco da Porta.
2. Por escritura pública lavrada, a 16 de Outubro de 1993, no [Cartório do Notário Privado(1)] foi o prédio vendido à D.
3. Esta sociedade, como proprietária, requereu, em Agosto de 1994, junto da Direcção do Serviços de Cartografia e Cadastro (“DSCC”) a demarcação do terreno, o que foi feito.
4. Tendo, a 14 de Outubro de 1994, sido emitida, pela primeira vez a planta cadastral 3854/1992.
5. A Planta Cadastral 3854/1992 foi convertida em definitiva pelo Despacho 10/SATOP/98, de 27 de Fevereiro de 1998.
6. Em Abril de 2004, a proprietária do terreno iniciou um leilão para venda do mesmo.
7. No ponto 1 (The Land) dos detalhes (Particulars) do leilão se descreve o terreno em causa como estando inscrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 6150, com uma área de 53.866m2 (-5% do que a área mencionada no registo predial), com as seguintes confrontações:
NE - terreno junto da Estrada de Seac Pai Van e da Estrada do Alto de Coloane (n.º 22624), terreno que se presume omisso na Conservatória do Registo Predial junto da Estrada Militar e da Estrada do Alto de Coloane;
SE - terreno junto da Estrada Militar (n.º 19232), terreno que se presume omisso na Conservatória do Registo Predial junto da Estrada Militar e Estrada do Alto de Coloane e Estrada Militar;
SW - terreno que se presume omisso na Conservatória do Registo Predial junto da Estrada do Alto de Coloane e Estrada do Campo;
NW - terreno que se presume omisso na Conservatória do Registo Predial junto da Estrada de Seac Pai Van, Estrada de Seac Pai Van e Estrada do Alto de Coloane.
8. Conforme o ponto 5 (Documents Inspection) do mesmo documento, na altura foi emitida uma planta pelos Serviços de Cartografia e Cadastro identificando e localizando o terreno em causa nos termos mencionados no artigo anterior, cujas confrontações correspondem às da planta cadastral emitida em Outubro de 1994 na sequência do processo de demarcação do terreno descrito na Conservatória do Registo Predial sob a descrição n.º 6150.
9. A Recorrente obteve vencimento no leilão e, por escritura pública lavrada, no dia 06 de Maio de 2004, no [Cartório da Notária Privada(2)], adquiriu o prédio em causa.
10. Como proprietária de um imóvel em regime de propriedade privada, a Recorrente iniciou os procedimentos tendentes à sua utilização e aproveitamento, tendo para o efeito e nos termos do artigo 32.º do Regime Geral da Construção Urbana (“RGCU”), requerido a emissão de plantas cadastrais e iniciado, em 2013, o procedimento de licenciamento de um projecto de construção, onde chegaram a ser emitidas Plantas de Alinhamento Oficial, e, antes, sido emitida a licença n.º 659/2012, que permitiu à Recorrente a instalação de tapumes e contentores no terreno cuja desocupação ora se ordena.
11. Em 2018, após a publicação de um relatório do Comissariado contra a Corrupção e de um Parecer do Ministério Público que se lhe seguiu, a localização do terreno descrito sob o n.º 6150 passou, no entender da Administração e da Entidade Recorrida, a ser controvertida,
12. Tendo resultado na extinção do procedimento de licenciamento (Processo n.º 16/CT/2013/L).
13. Informação n.º 62/DJU/2019, de 24 de Junho de 2019, elaborada pelo pessoal da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transporte da RAEM:
“…
1. A sociedade comercial O apresentou ao Secretário para os Transportes e Obras Públicas (STOP) recurso hierárquico do despacho, datado de 6 de Maio de 2019, do Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que declarou extinto o procedimento de licenciamento de obras no terreno situado junto da intersecção da Estrada de Seac Pai Van, da Estrada do Alto de Coloane e da Estrada Militar, em Coloane.
2. Cumpre assim emitir o solicitado parecer.
Antecedentes:
3. O Ministério Público elaborou, em 28 de Março de 2018, um parecer intitulado "Parece sobre o terreno do projecto de construção do Alto de Coloane, no qual constatou que o terreno descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 6150 e o terreno onde se encontra localizado o projecto de construção do Alto de Coloane são dois terrenos completamente distintos.
4. Em Setembro de 2018, o Chefe do Executivo veio manifestar a sua concordância com aquele parecer, tendo determinado que o STOP iniciasse as diligências tidas por necessárias para declarar a invalidade dos actos administrativos relativos às plantas de alinhamento e plantas cadastrais respectivas, caso ainda se encontrassem válidas, bem como o procedimento de desocupação do terreno onde se localiza aquele projecto de construção, no Alto de Coloane.
5. Pela Informação n.º 113/DJUDEP/2018, de 26 de Novembro de 2018, foi proposta a extinção daquele procedimento, com fundamento na impossibilidade do objecto, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 103.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), bem como que se iniciassem as diligências para a desocupação daquele terreno.
6. Por despacho de 29 de Novembro de 2018, o STOP veio dizer que a competência para a extinção do procedimento de licenciamento é do Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes.
7. Neste sentido, por despacho datado de 6 de Maio de 2019, exarado na Informação. n.º 44/DJUDEP/2019, o Director da DSSOPT veio declarar a extinção daquele procedimento de licenciamento, com fundamento na impossibilidade do objecto.
8. Dessa decisão veio a sociedade comercial O apresentar recurso hierárquico.
9. Os fundamentos principais do recurso hierárquico apresentado são os seguintes:
10. Afirma a recorrente que o acto se baseia em meras conjecturas, na medida em que se levanta a suspeita de que o prédio da recorrente pode não ser aquele onde se pretende desenvolver o projecto a que se reporta o presente processo de licenciamento, ficando-se por meras suposições, que não provam essa suspeita.
11. Sendo que, a entidade recorrida não tem qualquer prova cabal de que o terreno não seja naquele local, nem consegue demonstrar onde é, então, o terreno da recorrente.
12. Assentando, por isso, num vício de pressupostos de facto que, como tal, deve ser anulado.
13. Acresce que, segundo a recorrente, os limites da planta cadastral n.º 3854/1992, emitida em 16 de Outubro de 2018, referida no ofício da Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro (DSCC) n.º 1701/CADV/02.01.107/3854/2018, não são os do terreno descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) sob o n.º 6150, pelo que veria impossível que as informações daí resultantes, nomeadamente as da CRP, que nela se baseiam, fossem coincidentes.
14. Com efeito, aquela planta refere as confrontações actuais, sem ter averiguado as anteriores do terreno em causa, que se mantêm, no terreno descrito sob o n.º 6150, desde o início do século passado, a saber: Norte e Este - Estrada do Campo, Sul - casa n.º 2 e Oeste - Beco da Porta.
15. Aliás, com o passar do tempo, as confrontações de um prédio podem ser alteradas pelo simples facto de passarem a existir novos arruamentos ou de deixarem de existir ou terem novo traçado arruamentos já existentes.
16. Defende-se, ainda, a recorrente dizendo que, conforme o registo predial, o terreno descrito na CRP sob o n.º 6150 tem uma área de 56.592 m2 e a planta cadastral mostra um terreno com a área de 53.866 m2.
17. Havendo, por isso, também aqui um vício nos pressupostos de facto, com a consequente anulação do acto.
18. Na verdade, todo este processo nasce, como é referido na Informação n.º 44/DJUDEP/2018, de 3 de Maio, do parecer elaborado pelo Ministério Público, em 28 de Março emitido na sequência do relatório de investigação sobre o projecto de construção do Alto de Coloane, elaborado pelo Comissariado contra a Corrupção (CCAC), datado de 31 de Janeiro de 2018, no qual se conclui que o terreno onde se situa o projecto apresentado pela recorrente pode ser terreno do Estado, não registado na Conservatória do Registo Predial, devendo ser considerado terreno vago.
19. A recorrente alega ser, desde 6 de Maio de 2004, proprietária de um terreno com a área de 56.592 m2, que confronta a Norte e Este com a Estrada do Campo, a Sul com a casa n.º 2 e a Oeste com o Beco da Porta, terreno esse que sempre foi considerado como sendo aquele em que se pretende implantar o projecto apresentado no procedimento de licenciamento ora extinto, sem que tenha sido, até agora, posta em causa a sua localização, mais até quando a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) chegou a emitir as plantas de alinhamento e a dar parecer favorável ao projecto de arquitectura apresentado.
20. Mais alega que a Planta Cadastral n.º 3854/1992, emitida a 6 de Abril de 2017, convertida em definitiva pelo Despacho n.º 10/SATOP/98 foi emitida de acordo com a alínea b) do n.º 6 do artigo 19. do Regulamento Geral da Construção Urbana (RGCU), localiza o terreno no espaço onde se pretende licenciar o projecto de construção, tem confrontações distintas das que constam da utilizada pela DSSOPT para praticar o acto que ora recorre e identifica aquele terreno com o descrito na CRP sob o n.º 6150.
21. Não restando, por isso, na sua opinião, dúvidas que o terreno descrito na CRP sob o n.º 6150 e o terreno onde se pretende licenciar o projecto de construção são o mesmo, tendo sido sempre esse o entendimento da Administração, com base nos elementos do registo, não podendo esta agora vir, com base em meras suposições, afirmar o contrário.
22. Mais refere que, não obstante a base factual em que o relatório e o parecer assentam, bem como as respectivas conclusões, ambos estes documentos carecem de força jurídica para pôr em causa a localização e titularidade do terreno. Como também não pode ser feito com base em meras suposições.
23. Razões pelas quais, no seu entender, para todos os efeitos legais, o terreno propriedade da recorrente, sobre o qual incide o projecto de licenciamento em causa, é aquele cujos elementos da descrição predial constam do registo, das plantas cadastrais e de alinhamento oficial emitidas e constantes do procedimento administrativo de licenciamento e sobre o qual assentaram todos os actos praticados no procedimento de licenciamento n.º 16/CT/2013/L.
24. Defende ainda que, nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
25. Sendo que o artigo 25.º do mesmo diploma estatui que as descrições prediais não podem ser feitas nem actualizadas em contradição com os elementos fornecidos pelo cadastro, quanto à localização, área e confrontações dos prédios.
26. Refere o n.º 2 do mesmo preceito que a apresentação da planta cadastral é obrigatória para a realização de qualquer acto de registo que determine a abertura de descrição ou a sua actualização quanto aos elementos de identificação física, bem como quando não constem ainda da descrição existente o número e a data da planta cadastral.
27. Mais acrescenta que, nos termos do artigo 71.º daquele diploma, a descrição tem por fim a identificação física dos prédios e a referência à sua situação matricial e cadastral, sendo que, de cada prédio é feita uma descrição distinta.
28. Ora, no caso, a descrição a que corresponde o terreno em causa, descrito sob o n.º 6150, é bem clara na identificação da localização do prédio e da sua' área, não podendo a Administração, com base em suposições, vir afirmar o contrário. Para tanto teria que iniciar os procedimentos legais necessários para o cancelamento ou alteração da descrição predial em causa.
29. Estando, por isso, segundo a recorrente, a Administração impedida de declarar extinto o procedimento, com base na alínea b) do n.º 2 do artigo 103.º do CPA, alegando impossibilidade do objecto de decisão, porquanto não ocorreu qualquer alteração na ordem jurídica que o justifique.
30. Por último, defende-se a recorrente que é um terceiro de boa-fé, não lhe sendo oponível qualquer nulidade, nos termos e para os efeitos do artigo 284.º do Código Civil (CC).
Análise:
31. O recurso é próprio e está em tempo, o órgão para que foi interposto é competente para conhecer do recurso e a recorrente tem legitimidade.
32. Começa por dizer-se que a recorrente praticamente se limita a carrear para o presente recurso hierárquico os factos e fundamentos apresentados em sede de audiência prévia e que foram já rebatidos aquando da emissão da decisão ora recorrida.
33. De facto, volta a recorrente a insistir que o acto administrativo ora recorrido se baseia em meras conjecturas, atento o facto de o ofício da DSCC n.º 1701/CADV/02.01.107/3854/2018, de 28 de Outubro comprovar que os limites definidos na planta cadastral n.º 3854/1992, emitida em 16 de Outubro de 2018 pela DSCC correspondem aos da planta cadastral publicada e convertida em definitiva pelo Despacho n.º 10/SATOP/98, bem como o facto de a Conservatória do Registo Predial presumir que o terreno objecto do procedimento de licenciamento declarado extinto não se encontrar registado.
34. Porém, tal não é verdade, tendo a entidade recorrida para a prolação do presente acto analisado toda a situação factual e concluído que outra não podia ser a decisão.
35. Antes de mais, convém referir que não se contesta que a recorrente seja proprietária do terreno descrito na CRP sob o n.º 6150, nem que este terreno exista fisicamente.
36. Ainda assim, contrariamente ao referido pela recorrente, está demonstrado que este terreno e aquele outro, objecto do procedimento de licenciamento ora extinto, não são o mesmo, tratando-se de dois terrenos distintos.
37. Com efeito, a DSSOPT concluiu depois de analisar todos os factos que o terreno objecto do procedimento de licenciamento pertence ao Estado e não se encontra registado na CRP.
38. E tal, ao invés do referido pela recorrente, não decorre dos relatórios do Ministério Público ou do Comissariado Contra a Corrupção, mas da análise dos factos constantes, nomeadamente, das plantas cadastrais emitidas e das informações prestadas pela CPR.
39. Assim, o ofício da DSCC n.º 1701/CADV/02.01.107/3854/2018, de 29 de Outubro veio comprovar que os limites definidos na planta cadastral n.º 3854/1992, emitida em 16 de Outubro de 2018, correspondem aos elementos de identificação física da planta cadastral publicada e convertida em definitiva pelo Despacho n.º 10/SATOP/98, da qual consta que o terreno demarcado na mesma se presume omisso na CRP.
40. Por outro lado, aquela planta cadastral foi emitida de acordo e para os efeitos da alínea b) do n.º 6 do artigo 19.º e do artigo 32.º do RGCU, tendo, por isso, uma validade de 12 meses.
41. Mais se conseguiu demonstrar que a localização do terreno objecto do procedimento de licenciamento declarado extinto não corresponde à do terreno descrito na CRP sob o n.º 6150, porquanto:
A. As confrontações referentes ao lado sul e oeste do terreno objecto do procedimento de licenciamento ora extinto confrontam com a Estrada do Campo, contudo, no que toca ao terreno descrito na CRP sob o n.º 6150, este confronta com a Estrada do Campo pelos lados norte e Oeste;
B. São, por isso, terreno totalmente opostos, situados nos dois lados da Estrada do Campo e não se sobrepõem um ao outro;
C. No que respeita ao terreno descrito na CRP sob o n.º 6150, é referido que o mesmo confronta a oeste com o Beco da Porta, sendo que, apesar de não terem sido encontradas informações cadastrais relativas ao Beco da Porta, das informações recolhidas, pode chegar-se à conclusão que o mesmo se encontra situado no extremo Sul da Estrada do Campo, perto da Rua dos Negociantes, próximo do Largo do Presidente António Ramalho Eanes, na Vila de Coloane;
D. O terreno descrito na CRP sob o n.º 6150, de acordo com a alínea anterior, não pode situar-se no Alto de Coloane, ao lado da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van.
42. Por outro lado, em oposição ao defendido pela recorrente, não é verdade que as confrontações e área do terreno descrito na CRP sob o n.º 6150 se tenham mantido desde o início do século XX, uma vez que foram feitas, por parte do advogados dos anteriores proprietários declarações e participações junto das entidades públicas que vieram fazer constar daquela descrição predial a área ora inscrita, bem como as confrontações actuais.
43. O que veio permitir esta manifesta desconformidade com a realidade, deslocando um terreno com mais de um século, que se situaria na Vila de Coloane, para o Alto de Coloane, da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van.
44. Ademais, como se pode explicar que um terreno cuja confrontação a Sul seja a Casa n.º 2 se situe no Alto de Coloane, numa zona que, como é consabido, permanece ainda hoje em dia despovoada?
45. De tudo o até agora exposto, só podemos considerar que o acto ora recorrido se encontra devidamente fundado na análise dos factos constantes do procedimento administrativo em causa.
46. Convém, ainda assim, referir que, inversamente ao defendido pela recorrente, não incumbe à DSSOPT demonstrar onde se situa o terreno descrito na CRP sob o n.º 6150, isso será sempre obrigação do seu proprietário ou, quando muito, da DSCC.
47. Incumbe, isso sim, saber a situação e localização do terreno objecto do procedimento de licenciamento e, quanto a este, atentos os factos, dúvidas não restaram de que não se tratava do terreno descrito na CRP sob o n.º 6150, pelo que outra não podia ter sido a decisão, dado a recorrente não ser titular de nenhum direito que lhe legitimasse a realização da operação urbanística pretendida no terreno em questão, razão pela qual a declaração de extinção do procedimento impunha-se como a única solução, tratando-se, pois, de um acto administrativo vinculado cujo fundamento residiu, e bem, na impossibilidade do objecto da decisão, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 103.º do CPA.
48. Face ao expendido, não se percebe a alegação da recorrente, no sentido de que o acto recorrido assenta em meras conjecturas e por isso se encontra inquinado pelo vício de falta de pressupostos de facto.
49. Primeiro, cumpre esclarecer que não existe no ordenamento jurídico o vício apontado.
50. Com efeito, o que poderá existir será o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, todavia, nem esse se vislumbra existir.
51. Na verdade, dir-se-á que existe vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto quando os factos que servem de fundamento a um acto administrativo não são verdadeiros, ou apenas putativos ou erradamente reputados como verdadeiros pela Administração não prática do acto.
52. Consiste, por isso, na divergência entre os pressupostos de que o autor do acto partiu para prolatar a decisão administrativa final e a sua efectiva verificação na situação em concreto, resultando do facto de se terem considerado na decisão factos não comprovados ou desconformes com a realidade.
53. Não obstante, crê a entidade recorrida que o acto em apreço não se encontra ferido do vício acima apontado, uma vez apenas foram considerados, para a decisão final, factos verdadeiros e devidamente comprovados, como se tem vindo a demonstrar.
54. Peticiona, igualmente, a entidade recorrida vício nos pressupostos de direito.
55. Reitera-se que, também este vício não existe no ordenamento jurídico, podendo, contudo, a recorrente querer invocar o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito.
56. No entanto, ainda que a recorrente venha peticionar a anulação do acto com base neste vício, não alegou quaisquer factos que comprovem a sua existência, limitando-se a concluir o pedido nestes termos.
57. Motivo pelo qual entendemos não poder ser tido em conta este pedido.
58. Porém, ainda assim, somos de opinião que também não pode proceder a invocação deste vício.
59. Defende-se, também, a recorrente alegando que a DSSOPT nunca antes tinha posto em causa a localização do terreno, chegando mesmo a emitir as plantas de alinhamento e a dar parecer favorável ao projecto de arquitectura apresentado.
60. Convém referir, todavia, desde já, que tanto as plantas de alinhamento como o parecer favorável àquele projecto de arquitectura tiveram por base que aquele terreno se situava no Alto de Coloane, situação que, posteriormente, se veio a comprovar não corresponder à realidade.
61. Ainda assim, a planta de alinhamento não é constitutiva de qualquer direito real sobre o terreno dela objecto, como, também, não se pode afirmar que a mesma possa colocar em causa a conclusão de que o terreno onde se pretendia implantar este projecto de construção não corresponde ao terreno do qual a recorrente é proprietária, descrito na CRP sob o n.º 6150.
62. E, no tocante ao parecer favorável ao projecto de arquitectura apresentado, cumpre esclarecer que este foi emitido no pressuposto de que o terreno era aquele e que, por isso, o titular do procedimento era o mesmo, tendo legitimidade para executar a obra, por se tratar, julgava-se, do seu proprietário.
63. Se, apenas posteriormente, se chegou à conclusão de que esta não era a realidade e que, afinal, se tratavam de dois terrenos distintos, sendo que, relativamente ao terreno objecto do procedimento de licenciamento ora extinto, a recorrente não dispunha de qualquer direito que lhe conferisse poderes de construção para levar a cabo aquela operação urbanística, a solução tinha obrigatoriamente de passar pela extinção do procedimento, independentemente da existência de parecer favorável.
64. Pelo que não colhem estes argumentos avançados pela recorrente.
65. Afirma, por sua vez, a recorrente que tanto o relatório do Ministério Público como o parecer emitido pelo CCAC, bem como as conclusões daí retiradas carecem de força jurídica para pôr em causa que o terreno onde se pretendia implantar aquele projecto de construção não seja o terreno cuja propriedade pertence à requerente.
66. Começa por se reiterar o expendido nos pontos 34 a 45 da presente informação, por se entender que fundamentam a análise também ao presente argumento.
67. E, pelas razões aí já explanadas, podemos afirmar que não pode colher também este meio de defesa.
68. De facto, foi elaborada urna correcta análise factual do caso, nomeadamente das plantas cadastrais emitidas e das informações prestadas pela CRP, para se chegar às conclusões e se fundamentar devidamente o acto administrativo ora recorrido.
69. Sendo, portanto, irrelevante que tais factos constem também do relatório do Ministério Público ou do parecer do CCAC.
70. Isto porque o acto administrativo emitido pelo Director da DSSOPT não está dependente daqueles documentos, nem remete a sua fundamentação para os mesmos.
71. Ao invés, foi emitido um acto administrativo autónomo e válido, devidamente fundamentado na análise factual e legal dele constantes, concluindo que, pelas razões já explicitadas, aquele procedimento de licenciamento tinha de ser declarado extinto.
72. Vem a recorrente arrogar-se dos artigos 7.º, 25.º e 71.º do Código do Registo Predial para fazer valer a sua posição.
73. Porém, julgamos não ser de aceitar tal argumentação.
74. Chamamos, igualmente, à colação tudo o que anteriormente já explicitámos relativamente ao facto de se tratar de dois terrenos distintos, cuja localização não é a mesma.
75. De facto, ninguém jamais contestou a existência física do terreno descrito na CRP sob o n.º 6150, nem que a recorrente seja a sua titular.
76. O que não podemos é ignorar que, como já tivemos oportunidade de demonstrar, se tratam de dois terrenos distintos.
77. E, por isso, a referência a estes preceitos legais apenas seria de relevar se julgássemos tratar-se de um só terreno, duvidando, contudo, da sua situação ou titularidade.
78. Ora, uma vez que o terreno onde se pretendia levar a cabo a operação urbanística cujo procedimento foi declarado extinto se presume omisso à CRP, este é, para os devidos efeitos legais, um terreno pertencente ao Estado.
79. Sendo os terrenos completamente distintos, não se sobrepondo um ao outro, mesmo que a recorrente tenha obtido os documentos emitidos pela Administração, tais como a planta cadastral ou a planta de alinhamento, que dessem a aparência de que o terreno do Alto de Coloane e o terreno de que é proprietária seriam o mesmo, estes documentos não são considerados um título bastante de aquisição formal da propriedade ou de outro direito real sobre o primeiro terreno.
80. E, porque não se dúvida da existência e titularidade do terreno descrito na CRP sob o n.º 6150, não tem a Administração necessidade de impugnar, cancelar ou alterar a descrição predial em causa, porquanto não se pretende alterar a verdade registral daquele terreno.
81. O que não se pode ignorar é que este terreno não é o mesmo do procedimento de licenciamento do Alto de Coloane e não sendo a recorrente a sua titular, não tem legitimidade para a realização desta operação urbanística, pelo que este procedimento de licenciamento só pode, por isso, ser declarado extinto com o fundamento na impossibilidade do objecto da decisão, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 103.º do CPA.
82. Por último, alega a recorrente ser um terceiro de boa-fé, não lhe sendo oponível qualquer nulidade, nos termos e para os efeitos do artigo 284.º do CC.
83. Todavia, somos da opinião que tal argumento não pode vingar.
84. Estamos na presença de um instituto de direito civil que não tem qualquer aplicação ao caso vertente, na medida em que implica um regime de direito privado, o que não é o caso, já que na declaração de extinção do procedimento de licenciamento a Administração Pública age munida de poderes de autoridade, poderes de direito público.
85. Por outro lado, o regime de tutela dos terceiros para efeitos de boa-fé do artigo 284.º do CC aplica-se às hipóteses em que o interveniente num negócio substantivamente inválido pretenda a respectiva invalidação, mas se vê confrontado com os terceiros que adquiriram de boa-fé e a título oneroso direitos sobre os bens cuja subsistência depende do primeiro negócio, sendo que o terceiro é protegido na medida em que não lhe pode ser aposta a invalidade do primeiro negócio.
86. Ora, como está bom de ver, tal não parece aplicar-se à situação, na medida em que pressupõe a existência de uma cadeia de negócios jurídicos, em que um é inválido, o que não existe. Aliás, não existe aqui sequer um negócio jurídico, quanto mais um ferido de invalidade.
87. Como também não foi declarada qualquer invalidade, quer do acto administrativo, quer do negócio jurídico.
88. Razões pelas quais a invocação da tutela dos terceiros para efeitos de boa-fé, no presente caso, parece infundada e despropositada.
89. Face ao exposto, propõe-se:
89.1 Que seja indeferido o recurso hierárquico, instaurado em 23 de Maio de 2019, pela recorrente O, mantendo-se o despacho exarado em 6 de Maio de 2019, pelo Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, na informação n.º 44/DJUDEP/2019, de 3 de Maio de 2019;
A recorrente deve ser notificada da decisão que venha a recair sobre este recurso hierárquico, nos termos do disposto nos artigos 68.º e 72.º do CPA.
À consideração superior. …”.
14. Em 28 de Junho de 2019, o Secretário para os Transportes e Obras Públicas da RAEM proferiu o seguinte despacho na informação supramencionada: “Concordo”.
15. A Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro da RAEM formulou a resposta ao ofício, de 27 de Julho de 2020, deste Tribunal (fls. 255 dos autos):
“…
1. Em 28 de Julho de 2004, 8 de Maio de 2008 e 22 de Fevereiro de 2013, esta Direcção emitiu a planta cadastral n.º 3854/1992 (Regulamento Geral da Construção Urbana) (anexos 1-3), que é uma planta cadastral oficial na escala 1/1000 emitida ao abrigo dos artigos 19º e 32º do Regulamento Geral da Construção Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 79/85/M (doravante designada por “planta cadastral RGCU”). De acordo com o Regulamento Geral da Construção Urbana, a planta cadastral RGCU destina-se exclusivamente ao requerimento de aprovação de projecto, e tem um prazo de validade de 12 meses, ao abrigo do n.º 3 do art.º 32º. A planta cadastral RGCU baseia-se na planta cadastral RGCU emitida em 14 de Outubro de 1994, pela primeira vez, por esta Direcção, face ao terreno em causa (anexo 4).
2. Por Despacho n.º 132/CE/2018, de 11 Setembro de 2018, do Chefe do Executivo, no que concerne ao “parecer emitido pelo MºPº em relação ao terreno onde se localiza o projecto de construção do Alto de Coloane”, esta Direcção elaborou o relatório n.º 33/DIR/2018 (anexo 5) em 16 de Outubro de 2018 e, nos termos do disposto no art.º 18º do Decreto-Lei n.º 3/94/M, procedeu à rectificação oficiosa dos respectivos elementos cadastrais, eliminando os elementos da descrição n.º 6150 do cadastro n.º 1210.005, rectificando o atributo legal do terreno e passando o mesmo a ser designado por terreno estatal, mantendo-se inalterados os elementos físicos que são idênticos aos elementos físicos da planta cadastral que se tornou definitiva e se encontrou publicada no Despacho n.º 10/SATOP/98.
3. Na sequência do tratamento dos casos de ocupação ilegal de terreno, por ofício de 11 de Outubro de 2018 (anexo 6), a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes solicitou a esta Direcção que lhe fornecesse as plantas cadastrais dos terrenos adjacentes à Estrada do Campo em Coloane. Os elementos de confrontações, de localização e de identificação física mencionados no aludido ofício são iguais aos redigidos na planta cadastral definitiva do cadastro n.º 1210.005, a par disso, as informações cadastrais do cadastro n.º 1210.005 foram já actualizadas em conformidade com o conteúdo do relatório n.º 33/DIR/2018, pelo que a planta cadastral RGCU n.º 3854/1992 (anexo 7), de 16 de Outubro de 2018, foi emitida com base na identificação física e nas informações cadastrais mais recentes constantes da planta cadastral definitiva do cadastro n.º 1210.005. Os dados da identificação física do terreno são iguais, sem qualquer alteração, tanto na planta cadastral RGCU n.º 3854/1992 anteriormente emitida, como na planta cadastral definitiva do cadastro n.º 1210.005 que foi lavrada de acordo com o Decreto-Lei n.º 3/94/M, ou no processo cadastral desta Direcção.
4. Posteriormente, em 19 de Outubro de 2018, por ofício (anexo 8), a DSSOPT solicitou a esta Direcção que lhe prestasse informações sobre a planta cadastral RGCU n.º 3854/1992, e, por seu turno, em 29 de Outubro de 2018, esta Direcção respondeu à DSSOPT, enviando-lhe a cópia da planta cadastral RGCU n.º 3854/1992 emitida em 16 de Outubro de 2018 (anexo 9)…”.
16. Em 17 de Setembro de 2020, por carta registada, este Tribunal notificou as partes do assunto em apreço.
17. Em 28 de Setembro de 2020, a Recorrente apresentou alegações facultativas, constantes de fls. 298 a 302 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
18. O Comissariado contra a Corrupção elaborou o relatório de investigação sobre o projecto de construção do Alto de Coloane, cujo conteúdo se segue:
“Relatório de investigação sobre o projecto de construção do Alto de Coloane
Introdução
1. Em Março de 2012, órgãos de comunicação social referiram que o lote do terreno sito no Alto de Coloane, próximo da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van, tinha já uma planta de alinhamento oficial (adiante designada por planta de alinhamento) emitida pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (adiante designada por DSSOPT), no qual se iriam construir edifícios destinados a habitação e comércio com altura até 100 metros. Devido ao facto de aquele projecto de construção se situar em Coloane, e o seu desenvolvimento envolver a escavação de colinas numa grande área, o público mostrou-se alerta e levantou preocupações face à eventual destruição do ambiente ecológico.
2. Em 8 de Março de 2013, quando foi entrevistado por órgãos de comunicação social, o promotor do referido projecto referiu que o lote do terreno era propriedade privada, tendo sido adquirido por leilão em Hong Kong há alguns anos atrás. Entretanto, já submetera o projecto de construção de acordo com a planta de alinhamento emitida anteriormente pelo Governo. Além disso, referiu também que o desenvolvimento do projecto provocaria certamente danos no ambiente, mas o promotor tentaria cortar as colinas o menos possível, protegeria a casamata do lote, e tomaria medidas suficientes relativamente à necessidade de protecção ambiental, de acordo com as exigências do Governo.
3. Em Junho de 2013, o director da DSSOPT referiu aos órgãos de comunicação social que o promotor do projecto tinha submetido o projecto de construção de acordo com a planta de alinhamento, e que a DSSOPT tinha solicitado aos serviços respectivos a emissão de pareceres relativamente àquele projecto. Referiu também que aquele serviço tinha vindo a receber vários pareceres, mas naquela fase, não se encontravam reunidas as condições necessárias para a realização de uma apreciação final, sendo que o promotor do projecto deveria ainda apresentar informações relativamente ao trânsito, à protecção ambiental e à casamata do terreno.
4. Em 3 de Março de 2016, a DSSOPT referiu, através de nota de imprensa, que apesar de ter sido emitido recentemente um parecer favorável relativamente ao anteprojecto do projecto a ser construído, ainda assim o titular daquele terreno ainda não submetera o projecto de construção e os respectivos projectos de especialidade, pelo que não estavam reunidas ainda as condições necessárias para que fosse, em breve, dado início à execução da obra.
5. Em 8 de Março de 2016, a Associação Novo Macau entregou ao Comissariado contra a Corrupção (adiante designado por CCAC) uma carta, solicitando uma investigação para apuramento da existência, ou não, de irregularidades administrativas ou “transferência de interesses” durante o procedimento de autorização daquele projecto por parte dos serviços de obras públicas.
6. Em 6 de Agosto de 2016, o CCAC recebeu uma queixa apresentada pela F, na qual se referia que, durante a elaboração da planta de alinhamento daquele lote, a DSSOPT tinha determinado como altura máxima para os edifícios a construir, uma cota altimétrica de 100 metros, o que poderia violar as instruções originais e as práticas habituais daquele serviço, pelo que solicitava uma investigação relativamente à legalidade do respectivo procedimento.
7. Pelo exposto, o Comissário contra a Corrupção determinou, ao abrigo do artigo 4.º da Lei n.º 10/2000 (Lei Orgânica do Comissariado contra a Corrupção da Região Administrativa Especial de Macau) (adiante designada por Lei Orgânica do CCAC), por despacho, a instauração de um inquérito, relativamente a este caso, a ser realizado pela Direcção dos Serviços de Provedoria de Justiça, focando a análise na veracidade da localização, na área e na propriedade do lote do terreno daquele projecto, bem como na legalidade e na razoabilidade dos procedimentos de autorização do respectivo projecto.
Parte I: O projecto de construção do Alto de Coloane
Em conformidade com a Lei Orgânica do CCAC, o grupo de trabalho do CCAC, responsável pelo inquérito, tomou uma série de medidas de investigação, nomeadamente solicitando informações junto dos serviços públicos e dos tribunais, consultando o arquivo histórico e os processos de autorização, ouvindo algum do pessoal envolvido, e elaborando os respectivos autos, tendo ainda efectuado vistorias ao próprio local.
Para facilitar a análise e compreensão do desenvolvimento daquele projecto de construção e dos respectivos lotes, serão especificadas seguidamente as questões relacionadas com a mudança do direito de propriedade do lote onde se situa aquele projecto, bem como com a demarcação do terreno e os procedimentos de autorização do mesmo.
1) Antecedentes relativos à mudança do direito de propriedade do lote e à demarcação do terreno
1. De acordo com as informações da Conservatória do Registo Predial, o projecto de construção do Alto de Coloane situa-se na Estrada do Campo de Coloane, com o número da descrição predial (adiante designado por n.º de descrição) 6150 e a área de 56.592 m2, sendo o terreno propriedade privada, e tendo como titular actual a O (adiante designada por “O1”).
2. De acordo com as informações da Conservatória do Registo Predial, em 1903, G vendeu a C2, um terreno sito na Estrada do Campo de Coloane e três habitações sitas na Rua dos Negociantes, por um valor total de 1.100 patacas. Em 19 de Dezembro de 1903, C2 procedeu aos respectivos registos junto da Conservatória do Registo Predial, passando o n.º de descrição, daquele terreno sito na Estrada do Campo, a ser 6150.
3. O direito de propriedade e o respectivo registo relativamente àquele terreno não se alteraram desde o ano de 1903. Até que em Julho de 1991, os residentes de Coloane, A e B, instauraram junto do Tribunal um processo de habilitação de herdeiros, requerendo a sucessão daquele terreno. Em Abril de 1992, o Tribunal declarou que A e B adquiriram o direito de propriedade do terreno a título sucessório.
4. Em Outubro de 1992 e Setembro de 1993, A apresentou, duas vezes, um pedido à então Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro (DSCC), solicitando a demarcação do terreno, alegando que o terreno situava-se no Alto de Coloane, numa zona próxima da Estrada do Campo, da Estrada de Seac Pai Van e da Estrada do Alto. No entanto, foi recusado, pela DSCC, o respectivo pedido da emissão da planta cadastral, tendo em conta a falta de quaisquer dados comprovativos e a desconformidade manifesta da localização do lote de terreno face ao que constava no registo predial.
5. Em Outubro de 1993, A e B venderam à D (adiante designada por D1) o terreno por um valor de 150 milhões de patacas. Todavia, tendo em conta que a localização, os limites, bem como a área do terreno ainda não tinham sido confirmados pela Administração Pública, foi estipulado no contrato de compra e venda que o comprador iria pagar o preço só após a emissão da respectiva planta cadastral por parte da DSCC.
6. Em Agosto de 1994, a D1 apresentou novamente um pedido à DSCC, solicitando a demarcação do terreno. Para além do contrato de compra e venda do terreno, os documentos apresentados incluíam a certidão de registo predial com averbamento referente à área do terreno e uma certidão de transcrição do impresso (M/10), emitida pela Delegação de Finanças das Ilhas da Direcção dos Serviços de Finanças (adiante designada por DSF).
7. Em Outubro de 1994, a DSCC considerou que os documentos apresentados pela parte interessada serviam para comprovar a área e a localização do terreno, e que as dúvidas existentes anteriormente já tinham sido eliminadas, pelo que a DSCC definiu os limites e a área do terreno, emitindo assim a respectiva planta cadastral à D1.
8. Em Maio de 2004, a D1 e a O1 assinaram em Macau a escritura de compra e venda e o terreno foi vendido à O1 pelo valor de 88 milhões de dólares de Hong Kong, tendo também esta última procedido ao registo predial da compra do terreno. Por isso, o proprietário actual do terreno é a O1.
9. Decorreu mais de uma dezena de anos desde 1992, o ano em que A e B adquiriram a propriedade do terreno a título sucessório, até 2004, o ano em que a O1 comprou o terreno. Entretanto, surgiram várias acções judiciais relacionadas com o terreno. No entanto, os registos relativos às acções foram sucessivamente cancelados posteriormente no registo predial, tendo em conta, nomeadamente, o termo do seu prazo e a desistência da instância por parte do autor.
2) Antecedentes relativos ao plano de aproveitamento do lote do terreno e à aprovação do projecto
1. Em Junho de 1999, a D1 requereu, junto da DSSOPT, a emissão da planta de alinhamento do terreno sob a descrição n.º 6150. Na apreciação do dito pedido, os serviços de obras públicas referiram que o lote do terreno em causa integrava o “Plano de ordenamento de Coloane”, pelo que a autorização do mesmo estariam condicionadas à sua conformidade com o aludido plano.
2. Em Agosto de 1999, os serviços de obras públicas emitiram uma planta de alinhamento, nos termos da qual se fixou a altura máxima permitida para a construção de edifícios em 20,5 metros (cota altimétrica de 33,4 metros), e se definiu que o terreno, com a área de 20.000 m2, localizado perto da zona da Estrada do Alto de Coloane e Estrada Militar, seria classificado como zona de proibição de construção, solicitando que fosse cedida uma parcela desse terreno ao Governo para construção de estradas por parte do proprietário.
3. Em Março de 2009, a O1 apresentou um pedido à DSSOPT, no qual solicitava a emissão de nova planta de alinhamento, submetendo também o programa preliminar do estudo de desenvolvimento do terreno em causa. De acordo com o referido programa, a O1 tencionava construir 9 blocos de vivendas com 22 metros de altura e 9 blocos de edifícios destinados a habitação com 115 metros de altura (37 pisos).
4. Em Dezembro de 2009, a DSSOPT emitiu a planta de alinhamento do terreno, fixando o índice de utilização do solo (IUS) do lote do terreno em 5 e, em simultâneo, o lote do terreno em causa foi dividido em três partes: para a parte próxima da Estrada de Seac Pai Van, a altura máxima permitida para a construção de edifícios foi fixada na cota altimétrica de 80 metros; para a parte próxima da Estrada do Campo, a altura máxima permitida foi fixada em 8,9 metros; para a parte próxima da Estrada do Alto de Coloane e da Estrada Militar, a altura máxima permitida foi fixada em 9 metros.
5. Em Junho de 2010, a O1 solicitou novamente à DSSOPT a emissão de nova planta de alinhamento referente ao terreno em causa. Nesse pedido, a O1 solicitou que se aligeirassem as exigências das condicionantes urbanísticas, autorizando, por exemplo, que a altura máxima permitida para a construção de edifícios fosse fixada na cota altimétrica de 198 metros (63 pisos) em vez de 80 metros e que o índice de utilização do solo (IUS), fixado no valor de 5, fosse substituído pelo índice líquido de utilização do solo (ILUS) de 9.
6. Em Abril de 2011, a DSSOPT emitiu uma nova planta de alinhamento, nos termos da qual: o índice líquido de utilização do solo (ILUS) máximo permitido foi fixado em 8; a altura máxima permitida para a construção de edifícios foi fixada na cota altimétrica de 100 metros; a distância entre cada torre não podia ser inferior a 1/6 da altura das torres; determinando-se ainda a necessidade de, aquando da apresentação do anteprojecto da obra de construção, se submeter os relatórios de avaliação sobre o ambiente, o tráfego e a paisagem arquitectónica aos respectivos serviços para efeitos de autorização.
7. Em Janeiro de 2012, a O1 solicitou novamente à DSSOPT a emissão de nova planta de alinhamento. Na sequência desse pedido, a DSSOPT emitiu uma planta de alinhamento em 2 de Março de 2012, com o mesmo teor da planta de alinhamento emitida em Abril de 2011 por entender não existir nenhuma alteração relativamente às condicionantes urbanísticas daquele terreno.
8. Em Fevereiro de 2013, a O1 apresentou, junto da DSSOPT, o anteprojecto da obra de construção, segundo o qual, o projecto abrangia uma área de 48.868 m2, a área bruta de construção global era de 668.741 m2, e previa a construção de 13 torres com um máximo de 33 pisos, tendo aquela sociedade anexado os relatórios de avaliação sobre o ambiente, o tráfego e a paisagem arquitectónica elaborados pela Consultadoria de Avaliação de Impacto Ambiental Macau Limitada.
9. A DSSOPT remeteu o mencionado anteprojecto da obra de construção e os relatórios de avaliação aos serviços competentes, a saber, o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego, a Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (DSPA), o Instituto Cultural, entre outros, para efeitos de recolha de pareceres. Os respectivos serviços competentes emitiram um conjunto de propostas de alteração ao projecto tendo em conta, nomeadamente, o impacto que este último tinha sobre a paisagem, os espaços verdes e o tráfego, tendo ainda o Instituto Cultural solicitado que a casamata localizada na zona abrangida pelo projecto fosse preservada.
10. Em Janeiro de 2014, a O1 apresentou, junto da DSSOPT, um anteprojecto de revisão da obra de construção e relatórios de avaliação sobre o ambiente, o tráfego, o fluxo de ar, entre outros, emitidos pela “N”. Ficou decidido também não construir edifícios na zona onde se encontra a casamata e diminuir o número total de torres do projecto de 13 para 12.
11. Em Outubro de 2015, após o reconhecimento dos relatórios da avaliação do impacto ambiental e da paisagem por parte dos respectivos serviços públicos, a DSSOPT emitiu parecer favorável sobre o anteprojecto da obra de construção revisto e sobre os relatórios de avaliação. Entre Abril e Junho de 2016, a O1 solicitou a aprovação do projecto da obra de construção e de um conjunto de projectos especializados em matéria de fundações, de abastecimento e drenagem de águas, de abastecimento de electricidade, entre outros. No entanto, como não obteve ainda a autorização por parte da DSSOPT, ainda não iniciou a execução do referido projecto.
Parte II: Dúvidas existentes no procedimento da aquisição da propriedade do terreno
Durante a investigação, o CCAC deparou-se com muitas dúvidas no procedimento de transição, ocorrido na década de 90 do século passado por via sucessória, da propriedade do terreno do projecto de construção do Alto de Coloane a favor de A e B, de entre as quais não se exclui a possibilidade de alguém ter aproveitado o procedimento judicial para, fingindo tratar-se de descendentes do proprietário do terreno, adquirir, de forma ilegal, o respectivo terreno. Resumem-se seguidamente as diversas dúvidas encontradas na investigação:
1. De acordo com as informações da Conservatória do Registo Predial, o n.º de descrição do terreno do projecto de construção do Alto de Coloane é 6150, e o proprietário daquele terreno, de acordo com o primeiro registo predial datado de 1903, registou-se como sendo C2. Desde então, o registo predial, nomeadamente o direito de propriedade daquele terreno não se alterou durante quase 90 anos.
2. Em Julho de 1991, A e B instauraram, recorrendo ao seu advogado H, junto do Tribunal, um processo de habilitação de herdeiros, solicitando o reconhecimento de que C (aliás C1), seria avô deles e que eles poderiam adquirir o terreno sob o n.º de descrição 6150 a título de herdeiros.
3. Na petição inicial apresentada ao Tribunal, referia-se que A e B alegavam que o avô deles, C, também se chamava C1, que o mesmo e a avó deles morreram pouco depois da Segunda Guerra Mundial, que o pai deles, K, seria único filho do avô, e que os pais deles morreram há 40 anos, pelo que eles eram os únicos herdeiros.
4. Na relação de bens sobre sucessões apresentada ao Tribunal, mostrava-se que A e B tinham solicitado a sucessão do terreno, sob o n.º de descrição 6150, registado em nome de C1, declarando que o terreno se situava na Estrada do Campo e que custava 57.000 patacas, bem como apresentaram a certidão de registo predial, da altura, daquele terreno.
5. Em Outubro de 1991, o advogado de A e B apresentou ao Tribunal um anúncio sobre o processo de habilitação de herdeiros que tinha sido publicado em jornais de língua chinesa e portuguesa nos termos da legislação processual, no qual se comunicava que qualquer pessoa indeterminada poderia arrogar os seus direitos dentro do prazo legal.
6. Em 2 de Abril de 1992, o Tribunal iniciou o julgamento sobre o caso. Depois de ter ouvido os depoimentos de I e de J, testemunhas indicadas por A e B, o juiz proferiu sentença, reconhecendo o facto registado na petição inicial e declarou que A e B seriam únicos herdeiros de C, aliás C1.
7. Em 7 de Dezembro de 1992, A e B solicitaram, recorrendo à sentença judicial transitada em julgado, junto da Conservatória do Registo Predial a transmissão do terreno sob o n.º de descrição 6150 a seu favor. A partir daquela data, A e B adquiriram, oficialmente e por via sucessória, o direito de propriedade do terreno que originalmente pertencia a C2.
8. O CCAC descobriu na investigação que, apesar de o processo de habilitação de herdeiros referido ter corrido nos termos do Código de Processo Civil, ainda assim, encontram-se no caso situações de falta de fundamento na apreciação de factos, sendo difícil excluir a possibilidade de ter havido quem tivesse aproveitado os procedimentos judiciais para adquirir o terreno.
9. A finalidade da acção instaurada por A e B era a aquisição do direito de propriedade do terreno sob o n.º de descrição 6150 por via sucessória. Com esse propósito, alegaram, na petição inicial, que C, o avô deles, tinha, também, outro nome, C1, esperando que o Tribunal reconhecesse que eles eram os únicos herdeiros legais de C1.
10. No entanto, na acção em causa, A e B não apresentaram ao Tribunal quaisquer documentos que fizessem prova de que C tinha também o nome de C1. As duas testemunhas referiram que conheciam os pais do A e B, mas não conheciam o avô deles, sendo que nunca foi provado que C e C1 eram uma e a mesma pessoa.
11. Nos registos de nascimento requeridos por A e B em 1958 e 1977, respectivamente, C3 é identificado expressamente como avô dos mesmos, não existindo, no entanto, qualquer registo no sentido de que o mesmo tivesse, a título alternativo, o nome C1. Tal registo também não foi encontrado em quaisquer outros documentos.
12. O CCAC, através da consulta da escritura pública e da “escritura de papel de seda ou «sá-chi-kai»” primitivas, confirmou que o nome em chinês do C3 é “丙”, e o nome em chinês do C2 é “丙一”. A alegação de A e B no sentido de que o seu avô tem como nome “C aliás C1” é desprovida de qualquer meio comprovativo, aliás, tal facto de uma pessoa com apelido “Vong” ter simultaneamente o apelido “Choi” não corresponde aos hábitos relativos à adopção de apelidos pelos chineses.
13. Ainda que o avô de A e B tivesse como nome alternativo “C1”, o nome em chinês pode não corresponder necessariamente aos caracteres chineses “丙一”, nem necessariamente à pessoa que figura como proprietário no registo predial do terreno em causa. Mais, o nome do proprietário constante do registo predial do dito terreno é C2, enquanto que o nome alternativo do avô, alegado por A e B, é C1, existindo aqui uma diferença entre “Chui” e “Choi”, não havendo, no entanto, nenhuma justificação para tal facto.
14. Em Maio de 1995, “L”, a mulher de A, intentou uma acção judicial junto do Tribunal solicitando a declaração de nulidade das transacções relacionadas com o terreno descrito sob o n.º 6150, tendo como fundamento que A tinha declarado “M” como seu cônjuge no processo de habilitação de herdeiros, quando, de acordo com os dados do registo de casamento, seu cônjuge é antes “L” e esta não tinha dado qualquer consentimento relativamente à transacção em questão.
15. Na petição inicial apresentada no Tribunal, A e B alegaram que C seria o seu avô e Chan Si (陳氏) seria a sua avó, no entanto, de acordo com o registo de nascimento de A, o avô seria C3 e a avó seria antes Ho Si (何氏), sendo que foi confirmado na sentença do Tribunal que a avó dos dois era Choi Si (崔氏).
16. Em relação a estas dúvidas sobre a identidade, as mesmas podem ser demonstradas através da consulta dos registos de nascimento e de casamento dos interessados, no entanto, os interessados não apresentaram as respectivas certidões de registo civil no decorrer do referido processo judicial, indiciando a violação da previsão legal constante do “Código do Registo Civil” nos termos da qual um facto relativo ao estado civil só pode ter por fundamento o registo civil, não podendo ser ilidido por recurso a qualquer outra prova.
17. E foi desta forma que A e B, através do processo de habilitação de herdeiros, adquiriram o direito de propriedade do terreno descrito sob o n.º 6150, originalmente pertencente a C2. Embora A e B tenham falecido, respectivamente, em 1995 e 1999, o terreno em causa foi vendido pelos mesmos à D1 em Outubro de 1993, pelo valor de cento e cinquenta milhões de patacas.
Parte III: Dúvidas existentes no âmbito da localização e da área do terreno
Durante a investigação, o CCAC descobriu que a localização do terreno sob a descrição n.º 6150 não se situa no Alto de Coloane, e a sua área também não é de 56.592 m2. No procedimento da demarcação do terreno e da emissão da planta cadastral, existiam erros notórios, até mesmo situações fraudulentas. Seguem-se, resumidamente o respectivo desenvolvimento e as dúvidas detectadas:
1) Dois pedidos para a emissão da planta cadastral foram recusados
1. O primeiro registo do terreno sob a descrição n.º 6150, efectuado em 1903, não mencionava a área e o número policial do referido terreno, mas do mesmo constava a localização (confrontações) do terreno: o lado norte e o lado leste é a Estrada do Campo, o lado sul é Casa n.º 2, e o lado oeste é o Beco da Porta.
2. Após a aquisição do direito de propriedade do terreno por via sucessória, A pediu, em Outubro de 1992, junto da DSCC a demarcação do terreno e a emissão da planta cadastral. Em 16 de Outubro de 1992, A referiu aos trabalhadores responsáveis pela demarcação do terreno que o terreno se situava no Alto de Coloane, junto da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van, com a área de 111.848 m2.
3. Em 2 de Setembro de 1993, a DSCC respondeu ao A que não foram encontrados quaisquer dados que pudessem determinar os limites e a área do terreno, e que a localização do Beco da Porta não podia ser determinada. Para além disso, o mapa da década de 30 não mostrava a localização actual da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van. Além do mais, o terreno que A alegou possuir incluía vários terrenos concessionados pelo Governo. Assim sendo, aqueles Serviços recusaram a emissão da planta cadastral.
4. Foi ainda indicado na resposta da DSCC que, segundo as “confrontações” do terreno que constavam no registo predial, o terreno sob a descrição n.º 6150 não era possível tratar-se do terreno indicado pelo A, porque o lado leste do referido terreno que constava no registo predial era a Estrada do Campo, mas o A tinha indicado que o lado oeste do seu terreno era a Estrada do Campo, sendo assim completamente contrário à localização que constava no registo predial.
5. Em 16 de Setembro de 1993, A voltou a pedir a demarcação do terreno. A alegada localização do terreno desta vez era, em princípio, a mesma como a anterior, só que a área foi reduzida para 57.300 m2, excluindo em particular o terreno da Aldeia da Esperança do Instituto de Acção Social de Macau, os terrenos concessionados pelo Governo e uma grande parte do terreno do Alto de Coloane.
6. Em 27 de Outubro de 1993, a DSCC voltou a responder a A, indicando que no registo predial não constava a área do terreno, e na ausência de limites concretos e na falta de quaisquer documentos comprovativos, os limites do terreno não podiam ser determinados, além disso, a alegada localização do terreno não correspondia obviamente às confrontações que constavam no registo predial, pelo que aqueles Serviços recusaram, mais uma vez, a emissão da planta cadastral.
2) Determinação da área e da localização e emissão da planta cadastral
1. Em Dezembro de 1993, a Delegação de Finanças das Ilhas da DSF emitiu uma certidão de transcrição, referindo que A tinha apresentado um impresso de “Participação de ocorrências diversas” de contribuição predial (M/10) e, para os efeitos de avaliação de terreno, A declarou que o terreno sob a descrição n.º 6150 tinha uma área de cerca de 56.592 m2.
2. Em Janeiro de 1994, o advogado, H, em representação de A e B, apresentou ao Tribunal a referida certidão emitida pela DSF e, tendo como fundamento a referida certidão, solicitou a rectificação da relação de bens que constava do processo de habilitação de herdeiros, acrescentando que “o terreno tem uma área de cerca de 56.592 m2”. O referido pedido foi autorizado por juiz em 26 de Janeiro de 1994.
3. Em Fevereiro de 1994, após a inserção da referida frase relativamente à área do terreno na relação de bens, o advogado H pediu junto do Tribunal uma certidão do processo e, tendo como fundamento a referida certidão, requereu à Conservatória do Registo Predial um averbamento no registo, indicando que a área do terreno era de 56.592 m2. O respectivo pedido foi admitido.
4. Foi assim que uma área do terreno que anteriormente não tinha qualquer suporte documental comprovativo, através uma série de operações, nomeadamente por via da declaração do A no impresso de contribuição predial, da alteração da relação de bens que constava do processo do Tribunal relativo à habilitação de herdeiros e do pedido de averbamento no registo predial, ficou no fim “comprovada” com um documento oficial.
5. Em Julho de 1994, a Delegação de Finanças das Ilhas da DSF emitiu mais uma certidão, a qual referia que o advogado H tinha apresentado um impresso de contribuição predial (M/10) e, para os efeitos de avaliação de terreno e de pagamento da diferença de imposto de sisa, o advogado H actualizou a localização do terreno (confrontações) sob a descrição n.º 6150 naquele impresso.
6. De acordo com a referida certidão, H alegou que a localização original do terreno era a seguinte: o lado noroeste era a Estrada do Campo, o lado sul era Casa n.º 2, e o lado leste era o Beco da Porta, enquanto a localização actualizada referia que: o lado noroeste era a Estrada do Campo e a Estrada de Seac Pai Van, o lado sudeste era a Estrada Militar e a habitação sem número policial, e o lado nordeste era o Parque de Seac Pai Van e a Aldeia da Esperança.
7. Em Agosto de 1994, a D1 voltou a pedir a demarcação do terreno com aquela certidão, a qual não tinha qualquer identificação do imóvel nem quaisquer efeitos probatórios e cujo conteúdo era apenas declarado pela parte interessada, com informações desconformes com aquelas que constavam no registo predial. No entanto, a DSCC considerou que as dúvidas existentes anteriormente já tinham sido eliminadas, pelo que emitiu a planta cadastral do referido terreno em Outubro de 1994.
8. Segundo a planta cadastral emitida pela DSCC, o terreno sob a descrição n.º 6150 situava-se no terreno do Alto de Coloane junto da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van, com a área de 53.866 m2. A actual planta de alinhamento do projecto de construção do Alto de Coloane emitida pela DSSOPT e o anteprojecto do referido projecto de construção aprovado têm por base a localização e a área que constavam na referida planta cadastral.
3) Certidões da Delegação de Finanças das Ilhas da DSF
1. Em Setembro e Outubro de 1993, a DSCC recusou duas vezes a emissão da planta cadastral, tendo como principal fundamento que a parte interessada não conseguiu fornecer qualquer documento que permitisse comprovar a área e a localização do terreno sob a descrição n.º 6150, para além da desconformidade manifesta entre a localização do terreno que alegou possuir e as “confrontações” constantes no registo predial.
2. Relativamente aos documentos que a D1 apresentou em Agosto de 1994 quando pediu, pela terceira vez, a demarcação do terreno, verifica-se que o que comprovava a área do terreno era o averbamento no registo predial e o que comprovava a localização do terreno era a certidão emitida pela Delegação de Finanças das Ilhas da DSF. Entretanto, o que fundamentou o averbamento no registo predial foi a relação de bens que o Tribunal alterou segundo a certidão da Delegação de Finanças das Ilhas da DSF.
3. Isto mostra que quando a parte interessada pediu a planta cadastral pela terceira vez, os documentos comprovativos relativos à área e à localização apresentados eram, no fundo, todos derivados das certidões emitidas pela Delegação de Finanças das Ilhas da DSF. Entretanto, estas duas certidões eram transcrições, feitas pela Delegação de Finanças das Ilhas da DSF, do conteúdo dos impressos de “Participação de ocorrências diversas” de contribuição predial (M/10) preenchidos por A e H.
4. O impresso de contribuição predial (M/10), preenchido pela parte interessada, serve só para efeitos declarativos, nomeadamente para o que se refere à alteração de endereço. Os factos que constam no impresso não ficam comprovados com a apresentação do impresso, sendo que o próprio impresso não tem qualquer efeito probatório. A Delegação de Finanças das Ilhas da DSF não possuía, de facto, a capacidade de confirmação da veracidade do teor das declarações de A e H, nem a competência para emitir qualquer certidão relativa aos elementos de identificação do bem imóvel.
5. A emissão de uma certidão do impresso de contribuição predial (M/10) por parte da Delegação de Finanças das Ilhas da DSF afigura-se não só uma prática estranha mas também rara. O objectivo de transcrever, na forma de certidão, o conteúdo preenchido pela parte interessada num impresso de declaração não passa de um acto de “embrulhar” o conteúdo de uma declaração prestada pela parte interessada como se se tratasse de um documento comprovativo emitido por um serviço público, face à circunstância da falta de documentos comprovativos, de investigação e de recolha de provas.
6. Foi em conformidade com a certidão emitida pela Delegação de Finanças das Ilhas da DSF que o Tribunal aprovou a alteração da relação de bens e foi segundo o documento alterado pelo Tribunal que a Conservatória do Registo Predial procedeu ao averbamento no registo. Através desta série de operações de “branqueamento”, a área do terreno, relativamente à qual originalmente não se encontrava qualquer documento comprovativo, foi inserida expressamente no registo predial.
7. Na certidão da Delegação de Finanças das Ilhas da DSF, encontra-se ainda uma menção especial que refere que “Para os efeitos de avaliação de terreno, é necessário apresentar a planta emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia”. Isto quer dizer que se a parte interessada não apresentar a planta, a certidão em questão não serve sequer para “efeitos de avaliação de terreno”. No entanto, a mesma serviu como fundamento para alterar um documento processual e pedir registo predial.
8. Quando a inserção da menção “o terreno tem uma área de cerca de 56.592 m2” na relação de bens foi aprovada pelo Tribunal, o valor do terreno declarado pela parte interessada no processo foi de 57.000 patacas. Se não for falsa a declaração prestada pela parte interessada, então deve ter havido lapso no valor do terreno declarado, porque não é possível o valor do terreno em Coloane na altura ter um preço tão baixo, concretamente de apenas uma pataca por metro quadrado.
9. Por outro lado, nas suas duas recusas da emissão de planta, a DSCC já tinha apontado que existia uma desconformidade manifesta entre a localização do terreno que A alegou possuir e as “confrontações” constantes no registo predial porque, segundo o registo predial, no lado leste e no lado norte do terreno encontrava-se a Estrada do Campo, no entanto, a oeste do Alto de Coloane tinha a Estrada do Campo, e a norte tinha a Estrada de Seac Pai Van e o Parque de Seac Pai Van.
10. Em Julho de 1994, quando o advogado H preencheu as “confrontações” originais do terreno no impresso de contribuição predial (M/10), intencionalmente ou não, mudou inesperadamente a localização do terreno, passando a referir que “a nordeste situa-se a Estrada do Campo” para “a noroeste situa-se a Estrada do Campo”. Apesar de a diferença ser de uma só palavra, “leste” e “oeste”, produziu o efeito de que, na prática, o terreno teria “atravessado” a Estrada do Campo e “transferido-se” para o Alto de Coloane.
11. A declaração que H prestou no impresso de contribuição predial (M/10), tendo “invertido o leste e o oeste”, foi transcrita na certidão pela Delegação de Finanças das Ilhas da DSF, ignorando o erro que estava na declaração. A DSCC, por sua vez, mudou a sua posição anterior e aceitou com “facilidade” esta “certidão” emitida pelos serviços fiscais, contendo informações desconformes com as constantes no registo predial, como documento que permitiu definir a localização do terreno, tendo assim emitido a respectiva planta.
4) Falsificação de dados relativos à localização e área contidos na planta cadastral
1. De acordo com as confrontações constantes do registo predial, temos a Estrada do Campo na parte leste e na parte norte do terreno descrito sob o n.º 6150, pelo que se infere que o aludido terreno se deve situar na Estrada do Campo, perto da zona onde se situam actualmente o Posto de Saúde de Coloane e a Escola Superior das Forças de Segurança, e não na actual localização no Alto de Coloane, na medida em que a Estrada do Campo se encontra situada a oeste e a sul do projecto de construção do Alto de Coloane.
2. As confrontações constantes do registo predial inicial de 1903 eram as seguintes: a norte e a leste situava-se a Estrada do Campo, a sul situava-se a “Casa n.º 2”, a oeste situava-se o Beco da Porta. Para poder determinar a localização correcta do referido terreno, para além da Estrada do Campo, é necessário determinar a localização da “Casa n.º 2” e do Beco da Porta.
3. Atendendo que o registo predial apenas mencionava que a sul do terreno se encontrava a “Casa n.º 2”, não especificando em que rua concreta se situava a referida “Casa n.º 2”, o mesmo não tem grande utilidade para efeitos de determinação da localização correcta do terreno. No entanto, se for possível determinar a localização concreta do Beco da Porta, poder-se-á determinar também a localização correcta do terreno através do ponto de intersecção entre a Estrada do Campo e o Beco da Porta.
4. Embora seja difícil encontrar qualquer simbolização relativa ao Beco da Porta nos dados constantes do mapa actualmente existente, o certo é que de acordo com os dados dos censos de 31 de Dezembro de 1878, publicados no «Boletim Oficial do Governo» da época da administração portuguesa, existiam nessa altura habitações e residentes no “Beco da Porta”. Pelo menos, isto mostra que existia ainda, em 1903, o “Beco da Porta” na altura da aquisição do terreno e de uma habitação por C2.
5. Aquando da aquisição, em 1903, do terreno da Estrada do Campo por C2, este último adquiriu igualmente três habitações situadas na Rua dos Negociantes. Actualmente, a Rua dos Negociantes encontra-se localizada perto do Largo do Presidente António Ramalho Eanes na vila de Coloane. De acordo com a escritura pública da altura, as confrontações relativas a uma dessas habitações com número policial 40 da Rua dos Negociantes eram as seguintes: a norte encontrava-se o “Beco da Porta”, a sul a habitação n.º 38 da Rua dos Negociantes, a leste a Estrada do Campo, e a oeste a Rua dos Negociantes.
6. Isso demonstra que o “Beco da Porta” se situa no extremo sul da Estrada do Campo, perto da Rua dos Negociantes. Considerando que a norte e a leste do terreno descrito sob o n.º 6150 fica localizada a Estrada do Campo e a oeste fica o “Beco da Porta”, o terreno em causa deve estar situado perto do Largo do Presidente António Ramalho Eanes na vila de Coloane, e não no terreno do Alto de Coloane ao lado da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van.
7. As confrontações actualizadas pelo advogado H através do impresso de declaração de contribuição predial (M/10) indicavam: a noroeste situavam-se a Estrada do Campo e Estrada de Seac Pai Van, a sudeste situava-se a Estrada Militar e a habitação sem número policial, a nordeste situava-se o Parque de Seac Pai Van e a Aldeia da Esperança. Assim, para além de inverter o leste e o oeste da Estrada do Campo, fez desaparecer a “Casa n.º 2” e o “Beco da Porta”.
8. Esta “inversão” e “omissão” não devem ter sido efectuadas de forma “desintencional”, porque, mesmo hoje em dia, o terreno do Alto de Coloane encontra-se despovoado, sendo por isso impossível afirmar existir um lugar onde se localizam a “Casa n.º 2” e o “Beco da Porta”. Por outro lado, em 1903 não existia ainda a Estrada de Seac Pai Van e a Estrada Militar em cima da montanha, nem existia o Parque de Seac Pai Van e Aldeia da Esperança.
9. No âmbito do projecto de construção do Alto de Coloane existe uma casamata militar, sendo que de acordo com as informações providenciadas pelo Instituto Cultural, a dita casamata era uma instalação militar auxiliar da Fortaleza de Coloane construída em 1884, fazendo parte do sistema militar geral de Coloane na altura. O que significa que em 1903, ano em que C2 adquiriu o terreno da Estrada do Campo, já a referida casamata devia existir.
10. Se o terreno adquirido por C2 se localizasse mesmo no terreno do Alto de Coloane, então, devia incluir a casamata que se encontrava em funcionamento. Tendo em conta o contexto histórico da altura, esta situação é difícil de imaginar. Se nessa altura não existisse ainda a casamata, não seria razoável a sua construção posterior num terreno privado, nem o facto de o proprietário não ter levantado qualquer objecção.
11. Relativamente ao registo predial feito em 1903, não foi indicada a área do terreno descrito sob o n.º 6150. Todavia, através de outras propriedades que C2 adquiriu e registou no mesmo período, pode-se estimar aproximadamente a área deste terreno. Na altura, C2 adquiriu o terreno da Estrada do Campo pelo preço de 300 patacas, e o mesmo adquiriu as outras três habitações situadas na Rua dos Negociantes pelo preço de 200 ou 300 patacas.
12. Na altura, o preço pelo qual C2 adquiriu a habitação com os números policiais 32-34 da Rua dos Negociantes era de 300 patacas. A habitação foi vendida em 1923 e, segundo o registo predial, a mesma tinha uma área de 252 m2. Daí, não é difícil estimar que, no mesmo período e com o mesmo preço, a área do lote do terreno sito na Estrada do Campo não teria uma grande diferença. Se o referido lote do terreno tiver uma área de 56.592 m2, tal seria não só desproporcional, como absurdo.
13. Na sequência da investigação, o CCAC considera que no procedimento de demarcação e de emissão da planta cadastral do terreno descrito sob o n.º 6150, existem erros óbvios ou mesmo situações de fraude. O terreno em causa não se encontra situado no terreno do Alto de Coloane que fica ao pé da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van, mas sim localizado perto do Largo do Presidente António Ramalho Eanes na vila de Coloane, e a área em causa não é de 53,866 m2, sendo que deverá ter, no máximo, apenas algumas centenas de metros quadrados.
14. Tendo em conta que os dados que servem como base para a demarcação do terreno estão em desconformidade manifesta com a realidade, o acto administrativo de reconhecimento da demarcação do terreno é desprovido de fundamentos de facto, sendo que os respectivos fundamentos constituem elemento essencial de um acto administrativo, pelo que de acordo com o n.º 1 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo, a planta cadastral do terreno descrito sob o n.º 6150, emitida pela DSCC em 1994 é inválida, sendo que as plantas de alinhamento requeridas e o anteprojecto do plano de obras aprovado com base naquelas informações cadastrais são igualmente inválidos.
15. O actual lote de terreno onde se encontra localizado o projecto de construção do Alto de Coloane deve ser terreno vago e não se encontra registado na Conservatória do Registo Predial, e de acordo com o artigo 7.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, o referido terreno faz parte dos terrenos do Estado. O CCAC considera que o Governo da RAEM deve recorrer aos devidos procedimentos e vias legais, com vista a reaver o terreno em causa.
Parte IV: Problemas no âmbito da autorização do plano de aproveitamento do projecto de construção
Durante a investigação, o CCAC descobriu que existiu violação das Circulares no procedimento da emissão da planta de alinhamento do projecto de construção do Alto de Coloane por parte da DSSOPT. Verificou-se também que existiram problemas relativamente à falta de enquadramento legal no procedimento da avaliação do impacto ambiental, das paisagens e dos espaços verdes por parte da DSPA e do IACM.
1) Violação de Circulares na emissão da planta de alinhamento do projecto de construção
1. Em Junho de 1999, a D1 requereu a emissão da planta de alinhamento do terreno sob a descrição n.º 6150. Foi indicado no relatório da análise dos serviços de obras públicas que, o plano de aproveitamento daquele lote de terreno devia cumprir as condições previstas no “Plano de ordenamento de Coloane”, nomeadamente o disposto relativamente à altura máxima permitida para a construção de edifícios, no entanto, devido à existência de litígio sobre o índice de utilização do solo determinado pelo referido “Plano”, foi sugerido que não se cumprisse a respectiva disposição relativa ao índice de utilização do solo.
2. De acordo com a planta de alinhamento emitida pelos serviços de obras públicas, o titular do terreno podia apenas construir, ao longo da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van, edifícios de 7 pisos com uma altura até 20,5 metros, e com uma cota altimétrica máxima que não podia exceder 33,4 metros. Para além disso, não se podia escavar uma grande parte das colinas no âmbito da referida construção, porque o terreno sito no Alto de Coloane, com a área de 20.000 m2, próximo da Estrada do Alto de Coloane e da Estrada Militar, foi classificado como zona de proibição de construção destinada a espaços verdes.
3. Após a aquisição do direito de propriedade do terreno em 2004, a O1 pediu a emissão de nova planta de alinhamento em Março de 2009. De acordo com o plano de estudo preliminar do desenvolvimento do terreno, a O1 tencionava construir 9 blocos de vivendas com 22 metros de altura e 9 blocos de edifícios destinados a habitação com 115 metros de altura. No decorrer da análise do referido pedido por parte da DSSOPT, surgiu dúvida sobre se o respectivo lote deveria ser regulado pelo “Plano de ordenamento de Coloane”, ou não.
4. Em 1987, a DSSOPT considerou que, era necessário tomar algumas medidas preventivas e restritivas antes da elaboração do planeamento urbanístico da vila de Coloane, pelo que emitiu a Circular n.º 7/87, no sentido de integrar a zona da Rua da Cordoaria, da Avenida da República, da Avenida de Cinco de Outubro e da Estrada do Campo no plano específico, e determinar a altura máxima permitida para a construção de edifícios sitos nas diversas vias.
5. Em 9 de Dezembro de 1997, o então Secretário-Adjunto para os Transportes e Obras Públicas aprovou, por despacho, o “Plano de ordenamento de Coloane” elaborado por uma empresa especializada contratada para o efeito. Através do referido “Plano”, foram planeadas detalhadamente as zonas da vila de Coloane, de Ká-Hó e de Hac-Sá, e determinou-se uma série de requisitos que devem ser cumpridos na construção de edifícios, nomeadamente no que diz respeito ao índice de ocupação do solo, ao índice de utilização do solo e às classes de altura dos edifícios.
6. Todo o lote do projecto de construção do Alto de Coloane já se encontra integrado no “Plano de ordenamento de Coloane”, sendo assim, quando a D1 pediu a emissão da planta de alinhamento em Agosto de 1999, a DSSOPT indicou claramente que na elaboração do plano de aproveitamento do respectivo lote do terreno, deveriam cumprir-se as condições determinadas no referido “Plano”. Aquele “Plano” não só restringiu a altura máxima permitida para a construção de edifícios em até 20,5 metros, mas também classificou uma grande dimensão do terreno sito no Alto de Coloane como zona de proibição de construção destinada a espaço verde.
7. No entanto, há entendimentos diferentes no seio dos serviços de obras públicas no que diz respeito à eficácia do “Plano de ordenamento de Coloane”. Para além disso, existem também práticas diferentes em relação à necessidade, ou não, de cumprimento das condições previstas no Plano aquando da aprovação dos projectos de construção em Coloane. Em resposta à solicitação de prestação de esclarecimento pelo CCAC, a DSSOPT referiu que o “Plano de ordenamento de Coloane” aprovado tem apenas carácter de referência interna, não é vinculativo no que diz respeito às condicionantes urbanísticas do respectivo lote de terreno.
8. Em Abril de 2009, a Circular n.º 01/DSSOPT/2009 foi aprovada pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas, estabelecendo a regulamentação relativa à altura dos edifícios e outras condicionantes urbanísticas. O seu Ponto 15 estabelece as disposições referentes à vila de Coloane, e o seu conteúdo é, basicamente, idêntico ao da Circular n.º 7/87 vigente anteriormente, prevendo regulamentação relativa à altura dos edifícios e às outras condicionantes urbanísticas para os edifícios a serem construídos na zona.
9. Relativamente ao pedido da O1, a DSSOPT considerou que o “Plano de ordenamento de Coloane” podia ser um dos factores de ponderação essencial na elaboração da planta de alinhamento, mas não era necessário ser regida pelas condições constantes do Plano. Pelo exposto, nos termos da Circular n.º 01/DSSOPT/2009, foram determinadas as alturas dos edifícios da vila de Coloane e as restantes condicionantes urbanísticas, emitindo-se assim a planta de alinhamento para o projecto de construção do Alto de Coloane.
10. Em Dezembro de 2009, a DSSOPT emitiu uma planta de alinhamento do terreno, nos termos da qual o planeamento referente ao lote do terreno em causa seria efectuado com a divisão de três partes, A, B e C, sendo o índice de utilização do solo (IUS) máximo permitido fixado em 5:
- Parte A: perto da Estrada de Seac Pai Van, com a área de 28.066 m2, sendo a altura máxima permitida para a construção de edifícios fixada na cota altimétrica de 80 metros;
- Parte B: perto da Estrada do Campo, com a área de 2.821 m2, sendo a altura máxima permitida para a construção de edifícios fixada em 8,9 metros;
- Parte C: perto da Estrada do Alto e Estrada Militar, com a área de 19.743 m2, sendo a altura máxima permitida para a construção de edifícios fixada em 9 metros.
11. O relatório de análise da DSSOPT referiu que como a parte B do lote do terreno perto da Estrada do Campo estava na área de intervenção da Circular n.º 01/DSSOPT/2009, a altura máxima permitida para a construção de edifícios era limitada a 8,9 metros, enquanto que no lote do terreno sito no Alto de Coloane, perto da Estrada do Alto e da Estrada Militar, só podiam ser construídas vivendas com altura de 9 metros tendo nas áreas envolventes da construção zonas verdes.
12. Após a recepção da referida planta de alinhamento, a O1 solicitou novamente a emissão de nova planta em Março de 2010. Nesse pedido, a O1 solicitou que se aligeirassem as exigências das condicionantes urbanísticas, e que fosse autorizado que a altura máxima permitida para a construção de edifícios fosse fixada na cota altimétrica de 198 metros (63 pisos), em vez de 80 metros, e que o índice de utilização do solo (IUS), fixado no valor de 5, fosse substituído pelo índice líquido de utilização do solo (ILUS) de 9.
13. O relatório de análise da DSSOPT considerou que, em relação à planta de alinhamento emitida anteriormente, o fundamento que levou à divisão do lote do terreno em três partes não era suficientemente claro. Para além disso, a determinação da altura dos edifícios por zona a que pertencem tem de ter em consideração alguns factores, tais como a proporção entre o comprimento e largura das torres e a sua orientação, a protecção da configuração da montanha, os fluxos de ar, o projecto de recuperação e compensação de ecossistema integrado. Por isso, em vez de determinar a altura das torres por zona, sugeriu-se a determinação de uma altura máxima permitida para a construção de edifícios.
14. No que respeita ao índice de utilização do solo, segundo o referido relatório, embora o pedido de substituição do índice de utilização do solo (IUS) fixado no valor de 5 pelo índice líquido de utilização (ILUS) de 9 apresentado pelo proprietário se encontre dentro do limite máximo fixado pela Circular n.º 01/DSSOPT/2009, no entanto, tendo em conta as condicionantes urbanísticas dos projectos de construção à volta do lote de terreno em causa e outros factores de limitação, tais como a área de sombra projectada, a altura dos edifícios, o índice de ocupação da construção, a distância mínima entre os edifícios, foi sugerido que o índice de utilização do solo (IUS) fosse fixado em 9.
15. O director da DSSOPT proferiu despacho sobre o dito relatório de análise, determinando que aquando da tomada de decisão sobre o projecto de desenvolvimento do terreno em causa, deve-se ter em conta a natureza do terreno, isto é, o facto de o mesmo ser um terreno de propriedade privada e não um terreno concedido por arrendamento; e quanto à determinação do índice de utilização do solo, deve-se considerar o índice publicado na Circular, pelo que deve o índice líquido de utilização (ILUS) ser fixado em 8, o que corresponde aproximadamente ao valor 12 do índice de utilização do solo (IUS).
16. Em Abril de 2011, a DSSOPT emitiu uma nova planta de alinhamento do projecto de construção do Alto de Coloane, nos termos da qual a altura máxima permitida para a construção de edifícios foi fixada na cota altimétrica de 100 metros e o índice líquido de utilização do solo (ILUS) máximo permitido foi fixado em 8. Determinou-se ainda que uma parcela do terreno fosse revertida para o domínio público e que fosse destinada à construção de vias públicas e zonas verdes. O plano de obras do actual projecto de construção do Alto de Coloane tem por base essa planta de alinhamento.
17. Se fizermos uma comparação entre a dita planta de alinhamento e as duas plantas de alinhamento emitidas em 1999 e 2009, para além da verificação de um aumento significativo de quase 12 vezes mais do índice de utilização do solo fixado em 5, o controlo da altura das edificações deixou de ser efectuado em função das configurações do terreno, sendo que a cota altimétrica para a altura máxima permitida para a construção de edifícios foi fixada em 100 metros, o que significava que se iria proceder à escavação de uma grande parte das colinas no âmbito da referida construção.
18. A parte do extremo sul do terreno do projecto de construção do Alto de Coloane, perto da Estrada do Campo, pertencia ao âmbito de planeamento da Circular n.º 01/DSSOPT/2009, a altura máxima permitida para a construção de edifícios deveria ser de 8.9 metros, no entanto, de acordo com a dita planta de alinhamento, a altura máxima permitida para a construção de edifícios em causa foi fixada em 100 metros, violando assim, de forma notória, a determinação imposta pela Circular n.º 01/DSSOPT/2009.
19. De acordo com o artigo 38.º do “Regulamento Geral da Construção Urbana”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 79/85/M, todos os projectos de obras necessitam de obedecer às determinações do planeamento urbanístico e dos respectivos regulamentos e instruções, caso contrário, deve-se indeferir o pedido de aprovação do projecto. Deste modo, o CCAC considera que, como a planta de alinhamento do projecto de construção do Alto de Coloane não obedeceu às condicionantes urbanísticas impostas pela dita Circular, a DSSOPT deveria indeferir o pedido de aprovação do projecto em causa.
20. Se, em relação ao terreno do projecto de construção do Alto de Coloane, não existissem problemas relacionados com a sua propriedade, localização, área, etc., o proprietário poderia requerer a emissão de uma nova planta de condições urbanísticas ao abrigo da “Lei do planeamento urbanístico” e iniciar os subsequentes procedimentos de autorização. No entanto, atendendo a que aquele lote do terreno é um terreno do Estado, a questão da validade da planta de alinhamento torna-se um problema secundário.
2) Falta de fundamentos legais na avaliação relativamente ao impacto ambiental e aos espaços verdes
1. Devido ao facto de o desenvolvimento do projecto de construção do Alto de Coloane ter por base a escavação de grande parte das colinas, e a altura dos edifícios a construir poder atingir os 100 metros, surgiram preocupações, por parte de todos os sectores da sociedade, face à eventual destruição do ambiente natural de Coloane. No decorrer da autorização do projecto, a DSSOPT solicitou à DSPA e ao IACM a emissão de pareceres relativamente àquele projecto, que tivessem em conta, nomeadamente, a avaliação do impacto ambiental, a paisagem e os espaços verdes do mesmo.
2. Em Março de 2009, a O1 apresentou o programa de construção do terreno, com vista à construção dos 9 blocos de vivendas com 22 metros de altura e dos 9 blocos de edifícios com 115 metros de altura. A DSPA considerou que, “devido a que o desenvolvimento do projecto poderá provocar a escavação de grande parte das colinas, a perda dos espaços verdes e a destruição da função de colinas relativamente ao filtro de contaminantes, sugere-se uma nova avaliação, relativamente ao nível do impacto no ambiente ecológico resultante da execução da obra”.
3. O IACM considerou que: “O projecto de construção a desenvolver situa-se nas colinas entre a Estrada do Alto de Coloane - a Estrada Militar e a Estrada de Seac Pai Van – a Estrada do Campo, sendo que a diferença da altura destas áreas atinge 60 metros. Assim, para que tenha lugar a aquisição do terreno plano, é necessário escavar as colinas, o que poderá provocar grandes danos na estrutura das colinas e na vegetação, resultando na perda de uma grande dimensão dos espaços verdes, sendo as colinas escavadas substituídas por taludes de betão”.
4. O IACM considerou ainda que: “Os 9 blocos de edifícios destinados a habitação a construir terão 115 metros de altura, quando em comparação com a Estrada Militar que se situa na cota altimétrica de 60 metros, regista-se um aumento de 55 metros, assim sendo, a vista em direcção a Hengqin, tanto na Estrada Militar, como no Trilho de Coloane, será prejudicada. A Ilha de Coloane tem sido sempre o local principal onde se situa a floresta de Macau, pelo que é necessário analisar de forma cautelosa se o desenvolvimento deste projecto é contrário ao planeamento urbanístico ou não”.
5. Apesar de a DSPA e o IACM se mostrarem preocupados com o possível impacto resultante da escavação de grande parte das colinas do Alto de Coloane para a construção de edifícios altos, no entanto, de acordo com a planta de alinhamento emitida pela DSSOPT em Abril de 2011, a altura dos 13 edifícios foi fixada na cota altimétrica de 100 metros, o que demonstra que as opiniões da DSCC e do IACM não tiveram efeito vinculativo em relação à autorização do projecto.
6. Em Fevereiro de 2013, de acordo com as condicionantes urbanísticas da planta de alinhamento, a O1 apresentou, junto da DSSOPT, o anteprojecto da obra de construção e os relatórios de avaliação relativos ao impacto ambiental e à paisagem arquitectónica. Desde então, a DSPA e o IACM emitiram propostas de alteração apenas para os relatórios profissionais apresentados pelo proprietário, mas finalmente, acabaram por aceitar os relatórios da avaliação relativamente ao impacto ambiental e à paisagem daquele projecto de construção.
7. No âmbito da investigação, o CCAC constatou que, quer a avaliação do impacto ambiental realizada pela DSPA, quer a avaliação das zonas verdes e da paisagem realizada pelo IACM relativas ao referido projecto de construção do Alto de Coloane, não estão sujeitas a nenhuma regulamentação jurídica concreta, existindo apenas um conjunto de instruções emitidas pelos serviços públicos. Por exemplo, foi por via de instruções que a DSPA definiu as situações que carecem de uma avaliação do impacto ambiental, os critérios de avaliação do impacto ambiental, e o respectivo procedimento operacional, entre outras matérias.
8. Atendendo a que a DSPA e o IACM não possuem as respectivas competências legais, as opiniões técnicas emitidas sobre a protecção ambiental, a paisagem e os espaços verdes, entre outras, não têm força vinculativa em relação ao pedido do projecto de construção e ao procedimento de autorização instruído pela DSSOPT, inexistindo também um mecanismo legal com efeito vinculativo de fiscalização e de examinação da implementação concreta, por parte do promotor, das condições definidas, e aceites pelo mesmo, nos relatórios profissionais, nomeadamente sobre a avaliação do impacto ambiental.
9. No decorrer da investigação realizada pelo CCAC, o pessoal da DSPA e do IACM afirmou que, sendo o Alto de Coloane um projecto de desenvolvimento privado, o pessoal daqueles serviços não podia entrar no terreno em causa para realizar inspecções ou confirmações in loco, podendo apenas realizar avaliações com base nos elementos providenciados pelo promotor e solicitar à DSSOPT que assegure o cumprimento das sugestões decorrentes da avaliação do impacto ambiental e de outras avaliações, por parte do promotor, nas fases de execução e de funcionamento da obra.
Parte V: Opiniões e Sugestões
1. Através da presente investigação, o CCAC descobriu que um terreno com mais de cem anos, sito na vila de Coloane, foi “deslocado” para o Alto de Coloane da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van, tendo a área do mesmo sido ampliada para cerca de 100 vezes mais, destinando-se em breve à construção de edifícios de 100 metros de altura. É claro que não se exclui a possibilidade de ter havido quem tivesse praticado actos de fraude e actos suspeitos da prática de crimes, no entanto, verifica-se também a existência de problemas como o da falta de clareza na investigação e o do exercício de funções de forma negligente por parte dos serviços públicos naquela altura.
2. Entre os factos ocorridos, a Delegação de Finanças das Ilhas da DSF violou a prática de trabalho pré-determinada e as suas competências legais enquanto serviço público, tendo emitido a chamada “Certidão de transcrição” do impresso de contribuição predial, a qual serviu para encobrir uma declaração do interessado desprovida de comprovação ou tendo até mesmo sido falsificada, fazendo com que aquela declaração se tornasse um documento dos serviços públicos, o que serviu como documento comprovativo para efeitos de alteração dos documentos no âmbito da acção judicial e da demarcação dos limites do terreno.
3. A DSCC violou as disposições legais e o senso comum profissional, aceitando a certidão emitida pelos serviços de finanças como fundamento de reconhecimento da localização do terreno e ignorando os erros existentes na documentação respectiva. O mesmo serviço pensava poder livrar-se do problema pela remissão da sua responsabilidade para documentos emitidos por outros serviços públicos, revogando a sua posição anterior de recusa, por duas vezes, de emissão da planta cadastral, acabando por promover assim a dita “deslocação” do terreno.
4. Apesar de o caso ter ocorrido maioritariamente antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau e de se saber que, hoje em dia, o funcionamento do sistema e da sua fiscalização se encontrarem relativamente mais aperfeiçoados, sendo pouco provável que situações semelhantes se possam repetir, os serviços públicos da Região Administrativa Especial de Macau e os seus trabalhadores devem estar sempre cientes de que o desempenho fiel das suas funções não é apenas um “slogan”. Qualquer negligência ou erro existente no âmbito de um procedimento administrativo ou de uma decisão pode vir a implicar no final uma lesão irreparável para a Região Administrativa Especial de Macau.
5. Por outro lado, o CCAC considera que os serviços de obras públicas devem cumprir rigorosamente o princípio da legalidade no âmbito da autorização de projectos de construção, incluindo necessariamente no que respeita às respectivas Circulares. Os serviços de protecção ambiental e de assuntos municipais devem aperfeiçoar, com a maior brevidade possível, a legislação relacionada com a avaliação do impacto ambiental, a paisagem e as zonas verdes, a fim de poder haver legislação que possa ser verdadeiramente cumprida no âmbito da protecção do ambiente natural e da criação de espaços verdes nas colinas.
Pelo exposto, e na sequência da investigação sobre o projecto de construção do Alto de Coloane, o CCAC apresenta as seguintes conclusões e sugestões:
1. O terreno descrito sob o n.º 6150 não se encontra situado no terreno do Alto de Coloane que fica ao pé da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van, mas sim perto do actual Largo do Presidente António Ramalho Eanes na vila de Coloane. A área em causa não é de 53,866 m2, sendo que a mesma deveria ter, no máximo, apenas algumas centenas de metros quadrados.
2. A planta cadastral, emitida pela DSCC, do terreno descrito sob o n.º 6150 é inválida, sendo que as plantas de alinhamento requeridas e os anteprojectos do plano de obras aprovados com base naquelas informações cadastrais são igualmente inválidos.
3. A planta de alinhamento do projecto de construção do Alto de Coloane violou as condicionantes urbanísticas impostas pela Circular n.º 01/DSSOPT/2009. A DSSOPT deve indeferir o pedido de aprovação do projecto em causa.
4. O actual lote de terreno do projecto de construção do Alto de Coloane, localizado perto da Estrada do Campo e da Estrada de Seac Pai Van, faz parte dos terrenos do Estado na RAEM, pelo que o Governo da RAEM deve, com recurso aos devidos procedimentos e vias legais, proceder em conformidade com vista a reaver o terreno em causa....”»; (cfr., fls. 336 a 356 e 13 a 65 do Apenso).
Do direito
3. Vem a entidade administrativa recorrer do Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado que concedeu provimento ao recurso contencioso que a agora recorrida interpôs da sua decisão que confirmou o acto administrativo do Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que declarou extinto o procedimento de licenciamento de obra de construção n.° 16/CT/2013/L.
Das (atrás transcritas) “conclusões” produzidas a final das suas alegações de recurso colhe-se que, em sua opinião, está o dito Acórdão do Tribunal de Segunda Instância inquinado com o vício de “erro de julgamento” (por inexistir a nulidade que lhe foi assacada) e de “excesso de pronúncia”; (cfr., art. 571°, n.° 2, al. d) do C.P.C.M.).
Tem a decisão recorrida agora impugnada (na parte que agora interessa)” o teor seguinte:
“(…)
2. Da existência do erro nos pressupostos de facto:
À luz das informações constantes dos autos, na planta cadastral n.º 3854/1992, emitida em 28 de Julho de 2004, 8 de Maio de 2008 e 22 de Fevereiro de 2013 (fls. 96, 130 e 110 dos autos), foram assinaladas as seguintes confrontações do terreno descrito sob o n.º 6150:
NE: terreno junto da Estrada de Seac Pai Van e da Estrada do Alto de Coloane (n.º 22624), terreno que se presume omisso na Conservatória do Registo Predial junto da Estrada Militar e da Estrada do Alto de Coloane;
SE: terreno junto da Estrada Militar (n.º 19232), terreno que se presume omisso na Conservatória do Registo Predial junto da Estrada Militar e Estrada do Alto de Coloane e Estrada Militar;
SW: terreno que se presume omisso na Conservatória do Registo Predial junto da Estrada do Alto de Coloane e Estrada do Campo;
NW: terreno que se presume omisso na Conservatória do Registo Predial junto da Estrada de Seac Pai Van, Estrada de Seac Pai Van e Estrada do Alto de Coloane.
A supracitada planta cadastral foi emitida depois da prolação do Despacho n.º 10/SATOP/98, e, por esse Despacho, foram convertidas em definitiva as plantas cadastrais que, na altura, não foram disputadas ou suspensas, e onde se assinalava a Freguesia de S. Francisco Xavier de Coloane.
Segundo as plantas cadastrais definitivas emitidas naquele período, o terreno descrito sob o n.º 6150, pertencente à Recorrente, estava na localização em causa.
Segue-se a localização concreta:
Ora, por que, na planta cadastral do mesmo número, emitida em 16 de Outubro de 2018, o terreno em causa não está assinalado na referida localização, tornando-se não registado?
Este Tribunal procedeu à investigação oficiosa, exigindo à Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro que prestasse esclarecimento sobre o assunto, e, por seu turno, essa Direcção formulou a seguinte resposta:
“…
1. Em 28 de Julho de 2004, 8 de Maio de 2008 e 22 de Fevereiro de 2013, esta Direcção emitiu a planta cadastral n.º 3854/1992 (Regulamento Geral da Construção Urbana) (anexos 1-3), que é uma planta cadastral oficial na escala 1/1000 emitida ao abrigo dos artigos 19º e 32º do Regulamento Geral da Construção Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 79/85/M (doravante designada por “planta cadastral RGCU”). De acordo com o Regulamento Geral da Construção Urbana, a planta cadastral RGCU destina-se exclusivamente ao requerimento de aprovação de projecto, e tem um prazo de validade de 12 meses, ao abrigo do n.º 3 do art.º 32º. A planta cadastral RGCU baseia-se na planta cadastral RGCU emitida em 14 de Outubro de 1994, pela primeira vez, por esta Direcção, face ao terreno em causa (anexo 4).
2. Por Despacho n.º 132/CE/2018, de 11 Setembro de 2018, do Chefe do Executivo, no que concerne ao “parecer emitido pelo MºPº em relação ao terreno onde se localiza o projecto de construção do Alto de Coloane”, esta Direcção elaborou o relatório n.º 33/DIR/2018 (anexo 5) em 16 de Outubro de 2018 e, nos termos do disposto no art.º 18º do Decreto-Lei n.º 3/94/M, procedeu à rectificação oficiosa dos respectivos elementos cadastrais, eliminando os elementos da descrição n.º 6150 do cadastro n.º 1210.005, rectificando o atributo legal do terreno e passando o mesmo a ser designado por terreno estatal, mantendo-se inalterados os elementos físicos que são idênticos aos elementos físicos da planta cadastral que se tornou definitiva e se encontrou publicada no Despacho n.º 10/SATOP/98.
3. Na sequência do tratamento dos casos de ocupação ilegal de terreno, por ofício de 11 de Outubro de 2018 (anexo 6), a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes solicitou a esta Direcção que lhe fornecesse as plantas cadastrais dos terrenos adjacentes à Estrada do Campo em Coloane. Os elementos de confrontações, de localização e de identificação física mencionados no aludido ofício são iguais aos redigidos na planta cadastral definitiva do cadastro n.º 1210.005, a par disso, as informações cadastrais do cadastro n.º 1210.005 foram já actualizadas em conformidade com o conteúdo do relatório n.º 33/DIR/2018, pelo que a planta cadastral RGCU n.º 3854/1992 (anexo 7), de 16 de Outubro de 2018, foi emitida com base na identificação física e nas informações cadastrais mais recentes constantes da planta cadastral definitiva do cadastro n.º 1210.005. Os dados da identificação física do terreno são iguais, sem qualquer alteração, tanto na planta cadastral RGCU n.º 3854/1992 anteriormente emitida, como na planta cadastral definitiva do cadastro n.º 1210.005 que foi lavrada de acordo com o Decreto-Lei n.º 3/94/M, ou no processo cadastral desta Direcção.
4. Posteriormente, em 19 de Outubro de 2018, por ofício (anexo 8), a DSSOPT solicitou a esta Direcção que lhe prestasse informações sobre a planta cadastral RGCU n.º 3854/1992, e, por seu turno, em 29 de Outubro de 2018, esta Direcção respondeu à DSSOPT, enviando-lhe a cópia da planta cadastral RGCU n.º 3854/1992 emitida em 16 de Outubro de 2018 (anexo 9)
…”.
Aparentemente, o acto recorrido não padece do vício de erro nos pressupostos de facto, visto que, finda a rectificação oficiosa da planta cadastral, o terreno descrito sob o n.º 6150, pertencente à Recorrente, deixou de ficar na localização original, portanto, a entidade recorrida apenas tomou a decisão de revogação da licença de obra com base nos novos dados do título legal no que se refere à localização e confrontações do terreno em causa.
Todavia, tendo analisado profundamente o disposto nos artigos 18º e 19º do Decreto-Lei n.º 3/94/M, consideramos que isso não é a resposta.
Os artigos 18º e 19º do Decreto-Lei n.º 3/94/M prevêem:
Artigo 18.º
(Rectificação oficiosa)
1. As plantas erradas podem ser rectificadas por iniciativa do director da DSCC, logo que tome conhecimento da irregularidade, ou a pedido de qualquer interessado.
2. O simples erro que se patenteie da própria planta e cuja rectificação não possa prejudicar os direitos dos titulares do prédio a que respeita a planta ou dos prédios confinantes, pode ser rectificado oficiosamente, sem intervenção dos interessados.
Artigo 19.º
(Rectificação por acordo ou judicial)
1. O erro proveniente de deficiente demarcação ou que envolva alteração da planta no que respeita à área ou delimitação do terreno só pode ser rectificado mediante a produção de prova demonstrativa da inexactidão das operações no terreno ou na respectiva representação cartográfica e com a concordância de todos os interessados que possam ser prejudicados com a rectificação.
2. Não havendo concordância, tanto o director da DSCC como qualquer interessado podem promover a rectificação judicial, anotando-se a pendência da rectificação nas plantas envolvidas e promovendo-se o registo da respectiva acção.
3. A pendência da rectificação é oficiosamente comunicada, no prazo de 48 horas, à Conservatória do Registo Predial e averbada, no mesmo prazo, às respectivas descrições prediais ou anotada no verbete real quando os prédios não estejam descritos.
Daí se vislumbra que o legislador apenas permite que o Director dos Serviços de Cartografia e Cadastro da RAEM rectifique oficiosamente (ou a pedido dos interessados) o erro simples existente na planta cadastral definitiva, sem intervenção dos interessados, cuja rectificação não possa prejudicar os direitos e interesses dos interessados.
O erro proveniente de deficiente demarcação ou que envolva alteração da planta no que respeita à área ou delimitação do terreno só pode ser rectificado pelo Director dos Serviços de Cartografia e Cadastro da RAEM mediante a produção de prova demonstrativa da inexactidão das operações no terreno ou na respectiva representação cartográfica e com a concordância de todos os interessados que possam ser prejudicados com a rectificação.
Não havendo concordância dos interessados, o caso só pode ser resolvido por meio judicial, promovendo-se a rectificação judicial através da propositura de acção no tribunal.
In casu, a planta cadastral em causa foi rectificada oficiosamente pelo Director dos Serviços de Cartografia e Cadastro da RAEM e a Recorrente não interveio no procedimento da rectificação nem manifestou, de forma nenhuma, a sua concordância.
Os dados rectificados estavam relacionados à localização do terreno, não sendo erros simples, a par disso, da rectificação resultou o desaparecimento do terreno descrito sob o n.º 6150, pertencente à Recorrente, na localização original.
Nestas circunstâncias, o Director dos Serviços de Cartografia e Cadastro da RAEM não poderia efectuar a respectiva rectificação oficiosa. Pelo contrário, tal problema deveria ser resolvido através da propositura de acção no tribunal competente.
A rectificação oficiosa da planta cadastral efectuada pelo Director dos Serviços de Cartografia e Cadastro da RAEM é indubitavelmente ilegal. Assim, quais são as consequências jurídicas provocadas por esse acto ilegal? É um acto nulo ou anulável?
Salvo o devido respeito por opinião contrária, no nosso entendimento, a rectificação efectuada pelo Director dos Serviços de Cartografia e Cadastro da RAEM é um acto nulo, por padecer do vício de usurpação de poder.
Como acima referido, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 19º do Decreto-Lei n.º 3/94/M, é necessário requerer a rectificação judicial através da propositura de acção no tribunal competente. Em suma, o legislador atribuiu o poder de rectificação ao poder judicial e não ao poder executivo.
Não é difícil entender porque o legislador fez isso. Sabendo que a rectificação de planta cadastral pode prejudicar os direitos e interesses dos interessados, o legislador, como seu objectivo, pretende dar-lhes maiores garantias, pelo que exige que a rectificação seja feita pelo órgão judicial que é independente, justo e imparcial, através de processo judicial.
A doutrina e as jurisprudências do direito administrativo entendem, por unanimidade, que o exercício do poder judicial pelo órgão administrativo é uma das formas de usurpação de poder e vice-versa.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo, são nulos os actos viciados de usurpação de poder. O acto nulo não produz quaisquer efeitos, independentemente da declaração de nulidade. A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal. (art.º 123º, n.ºs 1 e 2 do CPA).
O acto recorrido foi praticado com base na rectificação da planta cadastral efectuada pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro da RAEM, ou seja, a rectificação é o acto básico (ou acto pressuposto) do acto recorrido. Assim sendo, a nulidade do acto básico/pressuposto desencadeia a nulidade do acto recorrido (acto consequente) (art.º 122º, n.º 2, al. i) do CPA, conforme a regra de interpretação jurídica por razão mais forte).
Nesta conformidade, embora a Recorrente não tenha invocado o vício de usurpação de poder, o recurso contencioso em causa merece provimento.
Pretendemos apontar que, não obstante o apuramento da nulidade da rectificação oficiosa da planta cadastral efectuada pelo Director dos Serviços de Cartografia e Cadastro da RAEM, esta decisão não prejudica o exercício, pelo referido Director, da faculdade que lhe foi conferida pelo art.º 19º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 3/94/M, no sentido de requerer a rectificação judicial junto do tribunal competente.
Em caso de provimento da acção, a entidade recorrida poderá praticar o novo acto com o mesmo conteúdo.
(…)”; (cfr., fls. 358-v a 361 e 71 a 77 do Apenso).
Em face do assim ponderado e decidido – e, como bem salienta o Exmo. Representante do Ministério Público no seu douto Parecer, onde, de forma clara e lógica evidencia a desadequação legal da solução pelo Tribunal de Segunda Instância adoptada – impõe-se reconhecer razão à entidade administrativa ora recorrente.
Aliás, as “questões” suscitadas e que cumpre apreciar são (totalmente) idênticas às que foram trazidas para decisão nos Autos de Recurso Jurisdicional neste Tribunal de Última Instância registados com o n.° 86/2021, (com os mesmos “sujeitos processuais”, tratando-se, exactamente, do mesmo “terreno”, e, embora em causa estivesse aí uma decisão da sua “desocupação”, idêntica foi também a abordagem pelo Tribunal de Segunda Instância efectuada).
Dest’arte, inteiramente válidas se nos apresentando as razões por este Colectivo consideradas para a decisão do aludido recurso, (Proc. n.° 86/2021), adequado se apresenta que sejam as mesmas aqui igualmente adoptadas para a decisão da presente lide recursória.
Nesta conformidade, vejamos.
Nos termos do art. 122° do C.P.A.:
“1. São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
2. São, designadamente, actos nulos:
a) Os actos viciados de usurpação de poder;
b) Os actos estranhos às atribuições da pessoa colectiva em que o seu autor se integre;
c) Os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime;
d) Os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental;
e) Os actos praticados sob coacção;
f) Os actos que careçam em absoluto de forma legal;
g) As deliberações dos órgãos colegiais que forem tomadas tumultuosamente ou com inobservância do quórum ou da maioria legalmente exigidos;
h) Os actos que ofendam os casos julgados;
i) Os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente”; (sub. nosso).
E, in casu, (e independentemente do demais), não estamos perante o (considerado) “acto consequente”.
Com efeito, a nulidade de um “acto consequente” prevista no “art. 122°, n.° 2, al. i)” pressupõe que tenha havido prévia “anulação contenciosa” ou “administrativa” do acto antecedente – com força de “caso julgado material” ou de “caso decidido” – implicando, assim, a existência de um “processo contencioso” ou de um “procedimento administrativo autónomo” relativamente àquele em que se vier a declarar a nulidade do acto consequente (nos termos do citado preceito).
Por sua vez, entre os “actos” – “dependente” e “consequente” – em questão, imprescindível é uma relação de “conexão jurídica”, não bastando uma mera “relação” apenas assente em juízos dependentes da “lógica (das coisas)” ou da “proximidade fáctica”, pois que tão só se pode considerar a dita “conexão” existente “quando se possa afirmar que entre os dois actos existe uma relação que seria susceptível de determinar necessariamente a invalidade do segundo, se acaso o mesmo tivesse sido praticado, nos termos em que efectivamente o foi, num momento em que já tivesse sido decretada a anulação do primeiro”; (cfr., v.g., Mário Aroso de Almeida in, “Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes”, pág. 317).
Na situação agora em apreço, assim não sucede.
A decisão recorrida – tal como a objecto do recurso n.° 86/2021 – proferida em sede do anterior recurso contencioso do acto administrativo praticado pelo S.T.O.P., declarou a nulidade do “acto de rectificação da planta cadastral” praticado pelo Director da D.S.C.C., e, simultaneamente, do acto (aí) recorrido, (de confirmação da declaração de extinção do procedimento de licenciamento da obra de construção n.° 16/CT/2013/L), não se mostrando desta forma adequado o decidido.
Porém, (e independentemente do demais), outra observação se nos mostra de aqui fazer.
É a seguinte.
O Acórdão recorrido deu como verificado o vício de “usurpação de poder”, uma vez que considerou que a aludida “rectificação da planta cadastral” teria que ser efectuada por “decisão judicial” e não por “acto administrativo”, invocando, para tal, o art. 19° do D.L. n.° 3/94/M de 17.01, onde se prescreve que:
“1. O erro proveniente de deficiente demarcação ou que envolva alteração da planta no que respeita à área ou delimitação do terreno só pode ser rectificado mediante a produção de prova demonstrativa da inexactidão das operações no terreno ou na respectiva representação cartográfica e com a concordância de todos os interessados que possam ser prejudicados com a rectificação.
2. Não havendo concordância, tanto o director da DSCC como qualquer interessado podem promover a rectificação judicial, anotando-se a pendência da rectificação nas plantas envolvidas e promovendo-se o registo da respectiva acção.
3. A pendência da rectificação é oficiosamente comunicada, no prazo de 48 horas, à Conservatória do Registo Predial e averbada, no mesmo prazo, às respectivas descrições prediais ou anotada no verbete real quando os prédios não estejam descritos”.
Porém, em face do que “provado” está, justificada não se apresenta a aplicação do transcrito comando legal, pois que a “situação (fáctica)” em questão não se enquadra na sua previsão.
Com efeito, a dita “rectificação” incidiu, apenas, sobre uma (mera) “menção” constante da planta cadastral, mais concretamente, quanto ao “número da descrição predial do terreno”, (por falta da sua respectiva correspondência entre o terreno cadastrado e o descrito na C.R.P.), não implicando qualquer “alteração da planta quanto à área ou delimitação do terreno…” (referida no dito art. 19°), adequado não se mostrando assim a declaração da existência do referido vício de “usurpação de poderes”.
Nesta conformidade, imperativa é a conclusão que incorreu o Tribunal de Segunda Instância na igualmente imputada “nulidade por excesso de pronúncia”.
Por fim, uma última nota.
Nos termos do art. 159°, n.° 1 do C.P.A.C.:
“Quando o tribunal de recurso julgue que não procede o fundamento que na decisão impugnada determinou o não conhecimento do pedido e nenhum outro motivo obste à decisão sobre o mérito da causa, os autos baixam ao tribunal recorrido para esse efeito”.
In casu, cremos haver matéria em relação à qual o Tribunal de Segunda Instância não emitiu pronúncia, (nomeadamente, em relação ao vício de “erro nos pressupostos de facto” pelo recorrente contencioso invocado), havendo, assim, que se decidir em conformidade com o estatuído no transcrito art. 159°, n.° 1 do C.P.A.C..
Decisão
4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao presente recurso, devendo os autos voltar ao Tribunal de Segunda Instância nos exactos termos consignados.
Custas pela recorrida, com a taxa de justiça de 8 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 08 de Setembro de 2021
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
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