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Processo n.º 972/2021/A
(Autos de suspensão de eficácia)

Data: 6/Janeiro/2022

Requerente:
- A

Entidade requerida:
- Secretário para a Administração e Justiça

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A, maior, solteiro, titular do BIRPM, com sinais nos autos (doravante designado por “requerente”), vem, nos termos do artigo 120.º e seguintes do Código de Processo Administrativo Contencioso, requerer a suspensão de eficácia do despacho do Exm.º Secretário para a Administração e Justiça (entidade requerida), de 11.10.2021, que indeferiu o recurso hierárquico interposto por aquele do despacho que declarou a nulidade dos actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa; de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente de Macau; de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e de emissão do Passaporte da RAEM.
O requerente invoca que o acto administrativo lhe causa prejuízo de difícil reparação, e que não há grave lesão para o interesse público caso seja decretada a suspensão, nem fortes indícios de ilegalidade do recurso contencioso.
Citada a entidade requerida para, querendo, contestar, vem pugnar pelo indeferimento do pedido.
*
O Digno Delegado Coordenador do Ministério Público emitiu o seguinte douto parecer:
“Nos termos previstos no n.º 2 do artigo 129.º do CPAC, o Ministério Público vem emitir o seu parecer:
1.
A, melhor identificado nos autos, veio instaurar o presente procedimento cautelar de suspensão de eficácia do acto praticado pelo Secretário para a Administração e Justiça que, em recurso hierárquico, manteve a declaração de nulidade dos actos de emissão do bilhete de identidade de cidadão estrangeiro da República Portuguesa, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau, do Requerente e bem assim do acto de emissão do seu passaporte da RAEM com o n.º ... e do seu passaporte da RAEM com o n.º ….
2.
(i)
Decorre do disposto no artigo 121.º, n.º 1 do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), que a suspensão de eficácia dos actos administrativos que tenham conteúdo positivo ou que, tendo conteúdo negativo, apresentem uma vertente positiva é concedida quando se verifiquem os seguintes requisitos:
(i) a execução do acto causar previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que estre defenda ou venha a defender no recurso contencioso;
(ii) a suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente produzido pelo acto;
(iii) do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
Estes requisitos do decretamento da providência cautelar da suspensão de eficácia são de verificação cumulativa bastando a não verificação de um desses para que tal decretamento resulte inviável, sem prejuízo, no entanto, do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do citado artigo 121.º do CPAC (assim, entre outros, o Ac. do Tribunal de Última Instância de 4.10.2019, processo n.º 90/2019).
(ii)
No caso, o acto suspendendo é, fora de dúvida, um acto positivo por isso que dele decorre uma alteração na prévia situação jurídica da Requerente.
Além disso, a ser decretada a suspensão de eficácia do acto não vemos que daí resulte grave lesão para o interesse público concretamente prosseguido pelo acto, pelo que se pode dizer preenchido o requisito da providência a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CPAC.
Do mesmo modo, do processo não resultam fortes indícios de ilegalidade do recurso contencioso, mostrando-se assim verificado o requisito previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º do citado diploma legal.
Resta a questão de saber se a execução do acto causa previsivelmente prejuízo de difícil reparação ao Requerente.
A nosso ver, a resposta a tal questão não pode deixar de ser positiva.
Na verdade, como a propósito de situação em tudo idêntica decidiu o nosso mais alto Tribunal, é de considerar que o cancelamento do Bilhete de Identidade de Residente de Macau de um residente permanente da Região com pouco mais de 20 anos de idade e que aqui nasceu e residiu de forma regular e contínua, com a sua consequente necessidade de ter de se deslocar para o exterior de Macau sem que lhe seja conhecida a posse de qualquer outro documento de identificação ou de viagem e qualquer outra relação familiar, constitui dano merecedor de tutela jurídica que integra o conceito de prejuízo de difícil reparação para efeitos do artigo 121°, n.° 1, al. a) do CPAC (adaptámos ao caso, com a devida vénia, a formulação lapidar que consta do sumário do acórdão do Tribunal de Última Instância de 13.1.2021, processo n.º 212/2020. No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 7.11.2019, tirado no processo n.º 1013/2019/A, também versando sobre uma situação concreta análoga à que se aprecia nos presentes autos).
Estão, pois, verificados, em nosso modesto entendimento, todos os requisitos de que o artigo 121.º, n.º 1 do CPAC faz depender o decretamento da suspensão de eficácia.
3.
Pelo exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que deve ser deferido o pedido de suspensão de eficácia.”
*
Cumpre decidir.
O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e têm interesse processual.
Não existe outras nulidades, excepções e questões prévias que obstem ao conhecimento do pedido.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Resulta indiciariamente provada dos elementos constantes dos autos a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da providência:
O requerente é residente da RAEM.
O requerente tem a sua residência habitual na RAEM, na companhia da sua família.
O requerente conclui o ensino primário e secundário na RAEM.
Após ter concluído o ensino secundário em 2013, começou a trabalhar na RAEM e exerce presentemente as funções de operador na Venetian desde Junho de 2014.
O requerente tem as suas amizades e laços emocionais e efectivos na RAEM.
O requerente não possui qualquer documento que lhe permita residir fora da RAEM, sendo o BIRPM o seu único documento de identificação, e o passaporte da RAEM o seu único documento de viagem.
Em 13.8.2021, a Direcção dos Serviços de Identificação notificou o requerente de que foram declarados nulos os actos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa; de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente de Macau; de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e de emissão do Passaporte da RAEM, e por conseguinte, procedeu-se ao cancelamento do seu Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM com a primeira emissão em 20.9.1991 e do seu Passaporte da RAEM.
Inconformado, interpôs o requerente recurso hierárquico ao Secretário para a Administração e Justiça, tendo este último decidido manter a decisão dos Serviços de Identificação da RAEM.
Não se conformando, o requerente interpôs recurso contencioso do acto em 22.11.2021, o qual foi autuado com o n.º 972/2021.
Com a execução do referido acto administrativo, o requerente vai deixar de ter documento que lhe permita residir e trabalhar na RAEM.
*
A prova dos factos resulta dos documentos juntos aos autos e da confissão (face à não impugnação) da entidade requerida.
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O caso
O requerente é residente da RAEM e possui o BIRPM.
A dada altura, foi demonstrado que o seu registo de nascimento foi lavrado com base em declarações falsas prestadas quanto à filiação paterna.
Por despacho do Exm.º Secretário para a Administração e Justiça, foram declarados nulos os actos de emissão dos seus BIRM, BIRPM e Passaporte da RAEM, e por conseguinte, cancelado o seu Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM com a primeira emissão em 20.9.1991 e Passaporte da RAEM.
Pede agora o requerente a suspensão de eficácia do referido acto administrativo.
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Acto de conteúdo positivo
Dispõe o artigo 120.º do Código do Processo Administrativo Contencioso que há lugar a suspensão de eficácia “quando os actos tenham conteúdo positivo, ou tendo conteúdo negativo, apresentem uma vertente positiva e a suspensão seja circunscrita a esta vertente”.
Para Diogo Freitas do Amaral, são actos positivos “aqueles que produzem uma alteração na ordem jurídica”, enquanto actos negativos “aqueles que consistem na recusa de introduzir uma alteração na ordem jurídica”.1
Observa José Cândido de Pinho que “Há, porém, actos que, sem alterarem a situação jurídica anterior, apresentam ainda assim alguma vertente positiva, traduzida nalguma vantagem para a esfera do interessado. Trata-se de uma categoria de decisões em que há efectivamente uma utilidade na suspensão, se se concluir que deles advêm efeitos secundários positivos.” 2
Dito por outras palavras, o pedido de suspensão de eficácia de acto administrativo só é admissível quando o acto for positivo ou, tendo conteúdo negativo, apresentar uma vertente positiva.
No caso vertente, é de verificar que o acto administrativo em crise consiste na declaração de nulidade de emissão de documentos de identificação do requerente e, em consequência, foi cancelado o seu BIRPM e passaporte, a qual consubstancia um acto de conteúdo positivo, uma vez que com a execução do acto, o requerente perde o estatuto de residente permanente da RAEM.
Daí que a eficácia do acto é susceptível de suspensão em sede de procedimento cautelar, desde que sejam verificados os respectivos requisitos legais.
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Do preenchimento dos requisitos previstos no artigo 121.º, n.º 1 do Código de Processo Administrativo Contencioso
Analisemos, em seguida, se estão verificados os requisitos de que depende a concessão da providência requerida.
Prevê-se no artigo 121.º do Código de Processo Administrativo Contencioso o seguinte:
“1. A suspensão de eficácia dos actos administrativos, que pode ser pedida por quem tenha legitimidade para deles interpor recurso contencioso, é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) A execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso;
b) A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto; e
c) Do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
2. Quando o acto tenha sido declarado nulo ou juridicamente inexistente, por sentença ou acórdão pendentes de recurso jurisdicional, a suspensão de eficácia depende apenas da verificação do requisito previsto na alínea a) do número anterior.
3. Não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 para que seja concedida a suspensão de eficácia de acto com a natureza de sanção disciplinar.
4. Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente.
5. Verificados os requisitos previstos no n.º 1 ou na hipótese prevista no número anterior, a suspensão não é, contudo, concedida quando os contra-interessados façam prova de que dela lhes resulta prejuízo de mais difícil reparação do que o que resulta para o requerente da execução do acto.”
De facto, para ser concedida a suspensão de eficácia do acto, não importa apreciar o mérito da questão, traduzido nos eventuais vícios subjacentes à decisão impugnada, mas limita-se a saber se estão verificados cumulativamente os três requisitos de que depende a procedência da providência: um positivo traduzido na existência de prejuízo de difícil reparação decorrente da execução do acto, e dois negativos respeitantes à inexistência de grave lesão do interesse público e à não verificação de fortes indícios de ilegalidade do recurso, face aos elementos carreados aos autos.
Bastará a falta de um deles para que a providência requerida seja indeferida.
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Não há grandes dúvidas sobre o preenchimento dos dois requisitos negativos, por que não se nos afigura que o recurso contencioso a ser interposto em sede própria está enfermado de ilegalidade do ponto de vista processual, nem cremos que a eventual suspensão de execução do acto praticado pelo Exm.º Secretário para a Administração e Justiça possa determinar grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto, pelo que verificados estão os requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 121.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
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Resta saber, por último, se está verificado o requisito previsto na alínea a) daquele mesmo artigo, e para o efeito, compete ao requerente alegar e demonstrar a existência do prejuízo de difícil reparação decorrente da execução do acto.
Tem-se entendido que o requisito do prejuízo de difícil reparação exigido pela lei terá que ser valorado caso a caso, consoante as circunstâncias de facto invocadas pelo próprio interessado.
Nas palavras de José Cândido de Pinho, “cumpre ao requerente caracterizar de modo credível, ou seja, conveniente e convincentemente os prejuízos, expondo as razões fácticas que se integrem no conceito, devendo para isso ser explícito, específico e concreto, não lhe sendo permitido recorrer a expressões vagas, genéricas e irredutíveis a factos que não permitam o julgador extrair aquele juízo. Não bastam, assim, alegações conclusivas. É necessário alegar factos que permitam estabelecer um nexo de causalidade ou de causa-efeito entre a execução do acto e o invocado prejuízo, ficando cometido ao tribunal o juízo de prognose acerca dos danos prováveis”.3
É o que se decidiu, também, no Acórdão deste TSI, proferido no âmbito do Processo n.º 328/2010/A:
    “Quanto ao requisito positivo, tem vindo a constituir jurisprudência constante, o facto de, no incidente de suspensão de eficácia do acto administrativo, incumbir ao requerente o ónus de alegar factos concretos susceptíveis de formarem a convicção de que a execução do acto causará provavelmente prejuízo de difícil reparação, insistindo permanentemente tal jurisprudência no ónus de concretização dos prejuízos tidos como prováveis, insistindo-se também que tais prejuízos deverão ser consequência adequada, directa e imediata da execução do acto”.
No mesmo sentido, decidiu-se ainda no Acórdão do Venerando TUI, no Processo n.º 37/2013, que “cabe ao requerente o ónus de alegar e provar os factos integradores do conceito de prejuízo de difícil reparação, fazendo-o por forma concreta e especificada, através do encadeamento lógico e verosímil de razões convincentes e objectivos, não bastando alegar a existência de prejuízos, não ficando tal ónus cumprido com a mera utilização de expressões vagas e genéricas irredutíveis a factos a apreciar objectivamente”.
No caso vertente, alega o requerente que a execução imediata do acto administrativo implica a perda do estatuto de residente, trazendo-lhe nefastas consequências negativas para o próprio.
Isso é verdade.
De facto, uma vez perdido o estatuto de residente, o requerente irá ser expulso da RAEM.
E sem contar dos prejuízos patrimoniais, os quais são sempre ressarcíveis, a partir do momento em que é expulso, vai passar a viver noutro país ou região e tem que abandonar tudo de cá para recomeçar nova vida. E não se esquece que o requerente tem vivido em Macau desde a infância, pelo que não é difícil imaginar que a sua expulsão imediata da RAEM consubstancia uma consequência bastante violenta.
Sobre a questão em apreço, o Venerando TUI já teve oportunidade de se pronunciar, no seu Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 212/2020, nos seguintes termos transcritos:
    “Com efeito, e antes de mais, não se pode olvidar que em causa está o estatuto de “residente permanente da R.A.E.M.” da ora recorrente que, para além de outros “direitos – e deveres – fundamentais”, (cfr., v.g., art. 24º e segs. da L.B.R.A.E.M.), lhe atribui, (nomeadamente), o direito (de continuar a) residir (legalmente) em Macau, (onde, note-se, tem vivido desde que nasceu), e que, perante a decisão de cancelamento do seu Bilhete de Identidade de Residente da R.A.E.M., a coloca , como a própria alegou, numa situação de “permanência ilegal” que irá culminar com a sua “expulsão da R.A.E.M.”.
     E, nesta conformidade, esta sua “necessidade de ter de se deslocar para o exterior de Macau” (após aqui ter mantido o seu “centro de vida” desde a sua nascença), nomeadamente, para a R.P. da China ou qualquer outra parte do mundo, sem que lhe seja conhecida a posse de qualquer outro documento de identificação ou de viagem e desconhecida sendo igualmente qualquer outra “relação familiar”, não deixa de representar um (evidente) “dano de difícil reparação”.”
Perante o quadro factual assente, somos a entender que verificada está a circunstância de a execução do acto vir a causar previsivelmente prejuízo de difícil reparação ao requerente, pelo que, demonstrado o preenchimento de todos os requisitos previstos no n.º do artigo 121.º do CPAC, nada obsta ao decretamento da providência requerida.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em deferir o pedido de suspensão de eficácia de acto administrativo formulado pelo requerente A.
Sem custas por a entidade requerida beneficiar de isenção subjectiva.
Registe e notifique.
***
RAEM, aos 6 de Janeiro de 2022
Tong Hio Fong
Rui Pereira Ribeiro
Lai Kin Hong
Mai Man Ieng
1 Diogo Freitas do Amaral, Lições de Direito Administrativo, vol. III, Lisboa, 1989, pág. 155
2 José Cândido de Pinho, Manual de Formação de Direito Processual Administrativo Contencioso, 2.ª edição, CFJJ, 2015, pág. 278
3 José Cândido de Pinho, Manual de Formação de Direito Processual Administrativo Contencioso, 2ª edição, CFJJ, pág. 310
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Suspensão de Eficácia n.º 972/2021/A Pág. 8